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Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● TÉCNICA OPERATÓRIA 1 www.medresumos.com.br FERIDAS E BIOLOGIA DA CICATRIZAÇÃO A função primária da pele é atuar como uma barreira protetora contra agentes agressores do meio ambiente. A perda de integridade de grandes proporções da pele, como resultado de ferimento ou doença, pode causar incapacidade ou, até mesmo, óbito. Ferida é, por definição, qualquer solução de continuidade na pele. O organismo repara essa solução de continuidade pela criação de um tecido que preenche o defeito cutâneo e mantém unidas as bordas da ferida: a cicatriz. Os objetivos principais do tratamento das feridas são: fechamento rápido da lesão e cicatriz resultante funcional e esteticamente satisfatória. A aplicação desses princípios, que abrange o conhecimento da biologia do processo de cicatrização, estende-se às feridas agudas (mínimas, como o “joelho ralado” de uma criança, ou complexas, criadas pelo bisturi do cirurgião ou queimaduras) e feridas crônicas (como as úlceras e feridas venosas, arteriais, de pressão e as diabéticas). CLASSIFICAÇÃO DA FERIDA A ferida pode ser, grosseiramente, classificada quanto ao agente causal e quanto à cicatrização. CLASSIFICAÇÃO DAS FERIDAS QUANTO AO AGENTE CAUSAL Incisas ou cortantes: são feridas produzidas por qualquer agente cortante desde que a solução de continuidade tenha um comprimento predominante sobre a profundidade, bordas nítidas, retilíneas e regulares. São feridas produzidas por bisturi, facas, tesouras, navalhas. A forma da ferida depende do modo de como o instrumento cortante é introduzido na pele, podendo causar, inclusive, feridas perfurantes. Corto-contusas: o que caracteriza é a força do peso do instrumento, sendo ele capaz de produzir um corte pouco mais profundo: a profundidade predomina sobre o comprimento e apresenta bordas irregulares. Instrumentos como machados e enxadas produzem este tipo de ferida. Além disso, a contusão causada por este instrumento predomina sobre os aspectos da ferida. Perfurantes: podem ser perfurantes superficiais (profundidade limitado ao plano pré-aponeurótico) e as feridas perfurantes profundas (atravessam a aponeurose). Enquadram-se neste tipo de classificação toda ferida que penetra as cavidades naturais do organismo (feridas cavitárias) e aquelas que transfixam estruturas de um lado e outro (transfixantes). Agentes longos e pontiagudos (como prego, alfinete, agulha, faca, navalhas, tesouras). Pérfuro-contusas: ferida causada por instrumentos capazes de perfurar e causar lesões contusas na superfície de seu local de entrada. São feridas causadas por instrumentos como balas de arma de fogo. Caracteriza-se por ser uma ferida circular que pode produzir dois orifícios distintos: (1) orifícios entrada: com orla de contusão (zona mais interna, produzida pelo impacto do projétil sobre a superfície cutânea), orla de enxugo (queimadura em torno da lesão) e zona de tatuagem (zona mais externa, caracterizada pela pulverização da pólvora no momento do impacto); (2) orifício de saída: são geralmente maiores que o orifício de entrada, sem orla de contusão ou de enxurgo. Quando há dois orifícios, sugere-se que, cirurgicamente, seja fechado a priori apenas um (o orifício de saída, preferencialmente), para que o outro sirva para eventual drenagem. Lácero-contusas: são caracterizadas por dois mecanismos básicos: (1) compressão: são feridas que, quando presentes, a pele adota um aspecto esmagado de encontro ao plano subjacente (como causado por um chute); (2) tração: tecidos rasgados ou arrancados (mordedura de cão), com perda relativamente considerável de tecido. São feridas com bordas bastantes irregulares e vários ângulos. Aconselha-se que, para feridas por mordedura canina, não se faça sutura, mas lava-se a ferida e a deixa cicatrizar por segunda intenção, realizando, de antemão, antibiótico-profilaxia. Pérfuro-incisas: lesões causadas por instrumentos pérfuro-cortantes (com gume e ponta), como uma espada e punhal, capazes de causar transfixação de planos anatômicos. Escoriações: ação lesiva tangencial à superfície cutânea. Ocorre arrancamento da pele e exposição do cório. Equimoses e hematomas: equimoses são manchas hemorrágicas em forma de placas causadas por rompimento de pequenos vasos da região acometida, e não por vasodilatação cutânea (e por isso, não desaparecem com digitopressão); hematomas são bolsas de coleção sanguínea estagnada, caracterizadas por equimoses bastante salientes. Hematomas supra-orbitários e infra-orbitários caracterizam o chamado sinal de Guaxinim, sugerindo fratura de base do crânio. Tipo de ação Tipo de ferida Perfurante Punctiforme Cortante Cortada Contundente Contusa Pérfuro-cortante Pérfuro-cortada Pérfuro-contundente Pérfuro-contusa Corto-contundente Corto-contusa Arlindo Ugulino Netto. TÉCNICA OPERATÓRIA 2016 Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● TÉCNICA OPERATÓRIA 2 www.medresumos.com.br CLASSIFICAÇÃO DAS FERIDAS QUANTO A CICATRIZAÇÃO Ferida aguda: processo ordenado em tempo hábil, com resultado anatômico e funcional satisfatório. São feridas produzidas por bisturi ou tesouras que sejam submetidas a uma cicatrização adequada, com suturas quando necessárias. Ferida crônica: processo estaciona-se na fase inflamatória (primeira fase do processo de cicatrização). A infecção é o principal fator que predispõe à formação de ferida crônica. É por esta razão que não se usa antiinflamatórios em feridas agudas, uma vez que o processo inflamatório é um processo natural da evolução da ferida e da cicatrização. BIOLOGIA DA CICATRIZAÇÃO A cicatrização consiste em um fenômeno químico, físico e biológico cuja finalidade é a reconstrução tecidual. Tem o objetivo de limitar o dano tecidual, tendo como produto final a cicatriz. Consiste, portanto, em um fenômeno fundamental para todas as especialidades cirúrgicas: não há nenhum tipo de cirurgia que não passe pelo fenômeno da cicatrização. OBS 1 : Aqui, a cicatrização deve ser diferenciada da regeneração: a primeira, consiste em uma reconstrução tecidual que utiliza, obviamente, célula diferentes do tecido regenerado como os fibroblastos, formando um tecido particular denominado de cicatriz; já a regeneração, a que o fígado é, por exemplo, submetido, se dá com a proliferação de células naturais do tecido lesado: o fígado, quando é regenerado, é constituído pelos mesmos hepatócitos que constituem o seu parênquima. A cicatrização de feridas cutâneas envolve uma complexa interação entre muitos tipos de células, citocinas ou mediadores solúveis e a matriz extracelular. Geralmente, para fins didáticos e melhor compressão, divide-se a cicatrização em três fases: (1) fase inflamatória ou inflamação (ou hemostasia e inflamação); (2) fase proliferativa; e (3) maturação ou remodelagem. Estas fases serão discutidas mais adiante. TIPOS DE CICATRIZAÇÃO Em resumo, temos três tipos de cicatrização: a cicatrização por primeira intenção (quando o cirurgião fecha a ferida operatória imediatamente depois de aberta); cicatrização por segunda intenção (quando se deixa a ferida aberta e ela, espontaneamente, se fecha a partir de sua força contrátil); e cicatrização por terceira intenção (quando, vários dias depois de aberta e já com tecido de granulação, o cirurgião intervém novamente e fecha as bordas da ferida ou intervém com a aplicação de enxerto). Cicatrização primária ou por primeira intenção: os tecidos são aproximados ou fechados logo após a lesão, como por meio de sutura. Cicatrização secundária ou por segunda intenção: tipo de fechamento que depende, fundamentalmente, das forças de contração da ferida. Isto significa dizer que, depois da lesão, a ferida ficará aberta e, através dos fenômenos físicos de contração da pele, formam-se pontes de colágeno responsáveis por aproximar paulatinamente as margens da ferida. Fechamento primário retardado oupor terceira intenção: neste caso, a ferida aberta é fechada secundariamente, vários dias depois da lesão inicial, geralmente porque houve contaminação durante o trauma ou ato cirúrgico. É um processo gradativo em que a ferida deve ser acompanhada (mas não fechada) com curativos trocados diariamente. Tão logo que a ferida forma um tecido de granulação em suas margens internas, sem evidência macroscópica de infecção, o cirurgião deve desbridá-la para, só então, suturar a ferida. O enxerto é o melhor exemplo do processo de fechamento primário retardado: quando se tem uma ferida ampla em que, mesmo depois de muito tempo de acompanhamento, a cicatrização por segunda intenção não foi possível, aplica-se enxerto e sutura-se, caracterizando uma cicatrização por terceira intenção. Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● TÉCNICA OPERATÓRIA 3 www.medresumos.com.br FASES DA CICATRIZAÇÃO 1. Fase inflamatória ou inflamação (0 – 5 dias) A fase inflamatória se inicia no momento da lesão e é constituída por cinco principais eventos: vasoconstricção; acúmulo ou agregação de plaquetas; depósito de fibrina e coagulação; migração de leucócitos; e ativação celular. Os três primeiros estariam relacionados com a hemostasia, havendo predomínio do influxo de células originadas do sangue e a liberação de seus mediadores e citocinas. Vasoconstricção: nesta fase, depois da lesão do endotélio vascular e ativação do sistema de coagulação, ocorre uma vasoconstricção imediata (o que causa a hemostasia) que cessa em 10 a 15 minutos após a lesão. Esta vasoconstricção é imediatamente seguida da liberação de aminas vasoativas que promovem vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular, quando ocorre a transudação de proteínas plasmáticas, complemento, água, eletrólitos, etc.; fatores que formam o edema traumático. Resposta inflamatória aguda (participação celular): ocorre, logo então, migração de granulócitos e neutrófilos para a região lesada, onde ocorre a destruição enzimática da fibrina. Logo depois, ocorre a migração de macrófagos e monócitos para a fagocitose de corpos estranhos e bactérias e, por fim, participação de fibroblastos para a formação do colágeno. Diversas citocinas são liberadas neste processo: C5a, Linfócitos T CD4+, IL-1 e TNF-α. As células mono-macrofágicas, que participam desta etapa, apresentam as seguintes funções: fagocitose; produção de citocinas (TNF-α, FGF, EGF, PDGF, IL-1, INF-γ); produção de radicais livres (O2 - , NO, H2O2); estimulam a formação dos fibroblastos; estimulam a síntese do colágeno; estimulam a neoformação vascular; estimulam a formação e aporte de novos macrófagos; processamento de Ag e apresentação aos Linfócitos, que produzem INF-γ. Fase defensiva: aparecimento de sinais flogísticos normais (que não devem evoluir para infecção), frutos da liberação de citocinas por todas as células da etapa anterior. Há, nesta fase, a formação de uma crosta com função de controle do sangramento e limpeza. Dura entre 1 e 4 dias. OBS 2 : É devido à fase inflamatória da cicatrização, isto é, um componente evolutivo normal da cicatrização da ferida, que não se deve indicar o uso de anti-inflamatórios na fase aguda da lesão. Tais medicamentos (com adição de antibioticoterapia) são indicados apenas para as feridas que evoluem com sinais flogísticos exacerbados, provavelmente causados por um processo infeccioso. Sugere-se prescrever analgésicos simples, como a dipirona. 2. Fase proliferativa ou fibroplasia (3 – 14 dias) Na ausência de infecção significativa ou contaminação, a fase inflamatória é curta. Depois de a ferida ser submetida à retirada de material desvitalizado, segue-se a fase proliferativa da cicatrização, caracterizada pelos eventos que seguem: reepitelização (migração de queratinócitos e células epidérmicas); migração de fibroblastos; formação de tecido de granulação; angiogênese (neovascularização); síntese proteica (colágeno); e contração da ferida. Trata-se de uma fase em que ocorre a restauração da barreira contra perda de fluidos e infecções por meio da proliferação de fibroblastos, cuja principal função é o processo de fibroplasia (síntese de colágeno). Ocorre ainda o fenômeno da epitelização (que já começa a ocorrer após 48h da lesão, o que põe em dúvida a necessidade de curativo mesmo após dois dias depois do traumatismo da pele) e da formação do tecido de granulação. OBS 3 : Tipos e localização do colágeno: Colágeno tipo I: Todos os tecidos, à exceção de cartilagem e membrana basal Colágeno tipo II: cartilagem, Humor vítreo, disco intervertebral Colágeno tipo III: pele, vasos, vísceras Colágeno tipo IV: membrana basal Colágeno tipo V: córnea Na matriz extracelular ou substância fundamental resultante da síntese proteica, que será a principal responsável pela restauração do tecido lesado, o colágeno depositado é composto por subtipos cuja concentração varia entre os tecidos. O colágeno tipo I, que constitui 80 a 90% na derme intacta, é formado por uma tripla hélice, envolvendo três cadeias polipeptídicas que são sintetizadas separadamente dentro do fibroblasto. As cadeias polipeptídicas consistem em padrão repetido de glicina-X-Y, no qual frequentemente a posição X é ocupada pela prolina (tropocolágeno) e a Y, pela hidroxiprolina. A interação de cadeias inicia a formação da tripla hélice, que é secretada como pró-colágeno no meio extracelular. Dentro da célula, o colágeno passa por oito etapas, antes de ser secretado ao meio extracelular na forma de pró-colágeno. Um passo crítico (e talvez o mais importante) envolve a hidroxilação da prolina e da lisina dentro das cadeias polipeptídicas, que requer enzimas específicas e cofatores, como oxigênio, vitamina C (o escoburto, isto é, deficiência de vitamina C, pode propiciar a síntese de colágeno sub-hidroxilado, que é incapaz de gerar ligações fortes), íon ferro, alfacetoglutarato e cobre. Posteriormente, a tripla hélice é secretada como pró-colageno no espaço extracelular, e enzimas pró-colágeno- peptidases clivam o extremo pró-peptídico de suas moléculas. Isso diminui a solubilidade das moléculas, iniciando o processo de formação de fibrilas. Durante este processo, moléculas de colágeno são inicialmente unidas por laços eletrostáticos; posteriormente, grupos livres de amina em resíduos de lisina e hidroxilisina, dentro das moléculas de colágeno, são transformados em resíduos-aldeído pela enzima lisil-oxidase. Estes resíduos interatuam com a lisina na Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● TÉCNICA OPERATÓRIA 4 www.medresumos.com.br formação de ligações covalentes estáveis entre as moléculas, o que estabiliza a união das moléculas de colágeno em fibrilas e fibras, que fornecem as características especiais de resistência do colágeno. A inibição de moléculas específicas, como a lisil-oxidase, poderia se tornar opção terapêutica, no futuro, para doenças fibróticas, como cicatriz hipertrófica e queloides. Nesta fase, ainda, o ambiente da ferida começa a ser invadido por novo estroma, aproximadamente quatro dias após a lesão, constituindo o tecido de granulação. O tecido de granulação consiste em um tecido conjuntivo avermelhado, recém-formado, ricamente vascularizado. É composto, basicamente, pela combinação de elementos celulares e matriz extracelular de colágeno: água, proteínas, células inflamatórias, fibroblastos, citocinas, complemento, glicoproteínas, proteoglicanos, colágeno, fibrina, neovasos em grande quantidade (importância do processo de angiogênese). A síntese da matriz extracelular tem, portanto, as seguintes funções: firmeza e sustentação aos tecidos; fornecer meio e material para o fluido tecidual; facilita a interação entre as citocinas e suas células-alvo. Esta matriz apresenta alguns constituintes figurados (fibras) e outros amorfos (géis) em sua composição: Constituintes figurados da matriz extracelular: fibras colágenas (trofocolágeno);reticulares (albumina); elásticas (elastina). Constituintes amorfos (géis): mucopolissacarídeos (MPS) não-sulfatados (ácido hialurônico e condroitina); MPS sulfatados (sulfato de condroitina A e B); glicoproteínas; mucoproteínas. OBS 3 : Algumas bactérias apresentam a hialuronidase, capaz de degradar o ácido hialurônico, componente amorfo da matriz extracelular. É deste modo que algumas bactérias, ao desenvolverem o processo de infecção, interferem no processo de cicatrização das feridas. A reepitelização das feridas constitui a reconstrução do epitélio, passo crucial para o restabelecimento da função de barreira da pele, tendo início imediatamente após a lesão (alguns estudos mostram que se inicia com 8 horas após a lesão). Este processo tem início com cerca de 8 horas após a lesão. Em feridas incisas, onde a falha epitelial é mínima, há reepitelização entre 24 e 48 horas depois da lesão inicial, enquanto em feridas maiores é maior o tempo para surgir esse neoepitélio. O processo de reepitelização acontece na seguinte sequência: (1) configuração colunar e proliferação vertical; (2) deslocamento centrípeto de células epiteliais; (3) intensa atividade proliferativa e mitótica; (4) produção de queratina pelos queratinócitos; (5) vedação e queratinização. Suas funções são as seguintes: Proteção das feridas contra bactérias; Proteção contra agentes físicos e químicos; Proteção contra perda de líquidos e eletrólitos; Efeito estético Enfim, ocorre, nesta fase, uma intensa fibroplasia, produção de tecido de granulação e epitelização, com acentuada proliferação de fibroblastos. 3. Fase de maturação e remodelação (7 dias – 1 ano): A remodelagem da cicatriz começa a predominar como atividade primária da cicatrização da ferida aproximadamente 21 dias após a lesão. Normalmente, ocorre equilíbrio entre a taxa de síntese e degradação do colágeno. A regulação da síntese de colágeno é regulada pelo interferon-γ, TNF-α e pela própria matriz de colágeno. Ocorre, portanto, nesta fase a formação do tecido cicatricial, o remodelamento da ferida e a maturação do colágeno. Remodelamento da ferida: ocorrem os seguintes mecanismos nesta fase: equilíbrio síntese-degradação do colágeno; redução da vascularização; reabsorção de glicoproteínas, albumina, globulinas; degradação dos proteoglicanos (AH, Fibronectina); reabsorção de água e eletrólitos; redução da infiltração de células inflamatórias. A remodelagem secundária (descrita por Peacock) ocorre nos tendões, que exigem um processo de remodelagem diferente da pele (para que a contratilidade do tecido não seja prejudicada): a deposição de colágeno se dá de forma paralela às fibras musculares. Maturação do colágeno: o colágeno tipo III presente na pele é sintetizado até, mais ou menos, o 21º dia após a lesão, enquanto que a resistência à tensão da ferida operatória (secundária às forças de contração da ferida) continua a se desenvolver mesmo depois de encerrada a síntese de colágeno. Só depois de muito tempo (cerca de 20 anos) a ferida começa a perder a sua resistência à tensão. São fatores que contribuem para o aumento da Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● TÉCNICA OPERATÓRIA 5 www.medresumos.com.br resistência da ferida: oxigenação das feridas; vitamina C; proteinemia (aminoácidos); oligoelementos (Zinco, Fe ++ , outros). Processo de contração: processo final de remodelagem pela mobilização dos tecidos vizinhos, diminuindo o tamanho do defeito pelo movimento centrípeto de células à margem da lesão. Ocorre participação ativa dos miofibroblastos (actina-miosina). O processo de contração é bastante importante na cicatrização por segunda intensão. Devemos diferenciar contração e contratura (ver OBS 4 ) OBS 4 : A contratura é um tipo de contração maléfica, anômala, que ocorre, por exemplo, no processo de cicatrização de queimaduras; ela promove um defeito estético e funcional relativamente grande. CITOCINAS E CICATRIZAÇÃO Citocina Célula produtora Ações TGF- (Fator de crescimento beta de transformação) Plaquetas, linfócitos, macrófagos, células endoteliais, fibroblastos, células musculares lisas. Presente em todas as fases. Estimula síntese de colágeno e MEC, proliferação de fibroblastos e células endoteliais. Esta diretamente ligada à formação dos queloides. PDGF (Fator de crescimento derivado das plaquetas) Plaquetas, macrófagos e células epiteliais Regulação da fase inflamatória e estimulação da síntese da MEC FGF (Fator de crescimento de fibroblastos) Macrófagos e células endoteliais Induzem a angiogênese através da proliferação e atração de células endoteliais EGF (Fator de crescimento da epiderme) Queratinócitos Induzem a proliferação e diferenciação dos queratinócitos e fibroblastos KGF (Fator de crescimento de queratinócitos) Fibroblastos Estimula migração, proliferação e diferenciação dos queratinócitos IGF-1 (Fator de crescimento insulina- símile) Vários tipos celulares Induzem a síntese de colágeno e MEC, além de facilitar a proliferação de fibroblastos FATORES CLÍNICOS QUE INTERFEREM NA CICATRIZAÇÃO Infecção: É a causa mais comum de interferência da cicatrização. A contaminação da ferida por bactérias em quantidade maior do que 10 5 microrganismos/grama de tecido ou estreptococos -hemolítico é necessária para o retardo na cicatrização. A infecção prolonga a fase inflamatória, interfere com epitelização, contração e deposição de colágeno. Deve ser feito, então, tratamento local e sistêmico. Nutrição: A má-nutrição (perda de 15-25% peso corporal ou albumina inferior a 2,0g/dl) é um importante fator que interfere na cicatrização, especialmente em pacientes idosos. Pacientes malnutridos apresentam incidência de feridas abdominais e anastomoses. A depleção proteica pode resultar de traumatismos graves, doenças consumptivas ou sepse, ocorrendo retardo da cicatrização por inibição da angiogênese da proliferação de fibroblastos e da síntese, acúmulo e remodelagem do colágeno, além da supressão da resposta imune, porque não há disponibilidade de aminoácidos para a síntese desses substratos. o Deficiência de Ácido ascórbico (Vitamina C): é um cofator vital na formação dos resíduos de hidroxiprolina no pró-colágeno e sua deficiência afeta síntese do colágeno; processo interrompido na fase de fibroplasia. Correção: 100-1000mg/dia. o Deficiência de Ácido retinoico (Vitamina A): diminui a atividade de monócitos e distúrbios dos receptores de TGF- o Deficiência de Ferro: ocorre na anemia ferropriva, interfere na cicatrização por levar à inadequada hidroxilação da lisina e prolina encontrada, resultando na formação de colágeno de fraca qualidade. o Deficiência de cobre: é cofator de inúmeras enzimas envolvidas com a cicatrização, como a lisil-oxidase, além de estar associado ao reparo ósseo. Sua suplementação em queimados tem sido proposta. o Deficiência de Zinco: está envolvido com a síntese e remodelamento do colágeno e proliferação de células epiteliais. Sua deficiência moderada se associa à cicatrização prejudicada, devido à baixa qualidade de colágeno. Deficiência crônica severa resulta em função anormal de neutrófilos e linfócitos, aumento da suscetibilidade à infecção e retardo na cicatrização, além de comprometer a epitelização. A deficiência de zinco está bastante presente nas queimaduras extensas, trauma grave e cirrose hepática. Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● TÉCNICA OPERATÓRIA 6 www.medresumos.com.br Perfusão Tecidual: a perfusão tecidual é definida como sendo o produto entre a volemia, os níveis de hemoglobina e a saturação de oxigênio sanguíneo (Volemia x Hb x O2). Qualquer fator que influencie em algum desses três elementos, interfere na perfusão tecidual e, obviamente, interfere no processo de cicatrização. Anemia (só interfere com quando o hematócrito é menor que 15%), desidratação (causa suturascom muita tensão), hipóxia e hipovolemia são os fatores que mais interferem com a cicatrização. Feridas isquêmicas, que traduzem hipoperfusão tecidual e consequente redução de oxigênio, apresentam maior risco de infecção e retardo na cicatrização. Diabetes mellitus e obesidade: Todas as fases da cicatrização são prejudicadas quando o paciente apresenta distúrbios metabólicos como diabetes mellitus e obesidade. Nestas condições, ocorre o espessamento da membrana basal dos capilares (dificulta a microcirculação) e o aumento na degradação do colágeno. Além disso, a resposta inflamatória reduzida afeta profundamente a cicatrização subsequente, como foi demonstrado no diabetes e no tratamento com esteroides. Glicocorticoides: Os esteroides interferem na fase precoce da cicatrização: inibem a migração de macrófagos, a proliferação de fibroblastos e a síntese de colágeno e da matriz proteica. Embora a terapia com altas doses de drogas antiinflamatórias não-esteroidais tenha sido associada a retardo na cicatrização, não há evidências de que doses terapêuticas apresentem efeito direto sobre a cicatrização humana. Drogas citotóxicas: Interferem na divisão celular, impedindo a proliferação de fibroblastos, endoteliócitos, macrófagos e queratinócitos. Quimioterapia e radioterapia: a Doxorrubicina e Ciclofosfamida e o RxT também influenciam no processo de cicatrização. Idade avançada: a melhor cicatrização ocorre nos fetos devido a menor inflamação e acúmulo de colágeno. A qualidade da cicatrização vai diminuindo inversamente com a idade. FATORES AMBIENTAIS QUE INTERFEREM NA CICATRIZAÇÃO Fios cirúrgicos: As suturas devem ser tão resistentes quanto os tecidos onde estão colocadas. O ritmo com que a cicatriz ganha resistência deve compensar o eventual enfraquecimento das suturas (ver OBS 5 ). O material de sutura usado deve oferecer o mínimo de prejuízo sobre o processo de cicatrização. Devem ser utilizados, sempre que possível, fios absorvíveis e monofilamentados. Temperatura: a cicatrização mais efetiva ocorre na temperatura média de 30ºC. Duração prolongada da cirurgia: aumenta a incidência de desidratação dos tecidos expostos e futura complicação na cicatrização. OBS 5 : Os fios de sutura podem ser absorvíveis e não-absorvíveis. Este critério, contudo, não diz respeito à absorção orgânica de cada fio, mas à resistência e tensão do fio. Fios absorvíveis: são os fios de sutura que perdem a sua força tensil com menos de 60 dias. Contudo, a maioria desses fios só são absorvidos, no sentido lato da palavra, na média de 90 dias. Ex: Fios de categute simples (produzido a partir da serosa do intestino do carneiro) tem resistência tensil de 12 dias, o que significa que a ferida deve estar fechada em até 12 dias para que não haja deiscência; Fios de categute cromado tem adições de sais de cromo aumenta a sua resistência tensil para 20 dias; O Vycril tem uma resistência tensil de 28 dias, sendo ideal para a síntese de aponeurose. Fios inabsorvíveis: são os fios de sutura que perdem a sua força tensil com mais de 60 dias. Dentro desta classificação, temos os fios biodegradáveis e os não-biodegradáveis. o Fios inabsorvíveis biodegradáveis: o fio de nylon apresenta uma boa resistência tensil (mais de 60 dias) e é hidrolisado pelo organismo cerca de 20% ao ano (isto é, em 5 anos, ele é totalmente absorvido pelo organismo). o Fios inabsorvíveis não-biodegradáveis: o fio de aço, muito utilizado na esternorrafia e costorrafia, mesmo depois de vários anos após o procedimento, ainda é perceptível ao raio-X de tórax. O fio de polipropileno (Prolene®), utilizado na síntese de parede abdominal, também se enquadra nesta classificação. Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● TÉCNICA OPERATÓRIA 7 www.medresumos.com.br PROBLEMAS ESPECÍFICOS NA CICATRIZAÇÃO DAS FERIDAS Cicatrização no trato gastrointestinal: os processos que ocorrem na pele também se aplicam ao reparo tecidual de vários tecidos e órgãos, com algumas diferenças estruturais. Estruturalmente, a integridade do TGI é mantida pela submucosa, que contém a maior quantidade de colágeno em relação às outras camadas. Por esta razão, diz-se que a submucosa é a camada mais importante para o processo de cicatrização no TGI. As complicações nas anastomoses de decorrentes da cicatrização do TGI podem ser insuficiência (deiscência anastomótica, fístula) ou exuberância (com estenoses, obstrução intestinal). Múltiplos fatores intrínsecos e extrínsecos estão envolvidos, como na cicatrização cutânea, e o controle desses fatores estabelece a base para a prática segura na cirurgia gastrointestinal. Cicatriz hipertrófica e queloide: são duas condições com a mesma fisiopatologia, mas de aspectos diferentes: a cicatriz hipertrófica caracteriza-se por um aumento na produção de colágeno sobre a ferida de uma forma limitada, bem delineada; a cicatriz queloidiana, por sua vez, extrapola os limites da ferida, adotando um aspecto muito mais grosseiro, sendo, muitas vezes, pruriginosas. É mais comuns nos negros. Ambas as situações são causadas por uma produção de colágeno não acompanhada da degradação adequada de suas fibras. Estudos mostram que os queloides estão envolvidos com a hiperexpressão de TGF- e a -2-macroglobulina. O tratamento destes queloides é feito com o desbridamento da cicatriz e, para evitar recidiva, o tratamento radioterápico (β-terapia) de baixa dose. PRINCÍPIOS DO CUIDADO COM A FERIDA Cuidados pré-operatórios: o Realizar desbridamento e manter a irrigação da ferida o Instrumentação adequada o Anestesia efetiva o Planejamento da incisão tomando como referência as linhas de tensão da pele descritas por Langer (1861, no cadáver) e Kraissl (1951, in vivo): são únicas para cada paciente; são perpendiculares aos músculos; são identificadas pelo pinçamento da pele. Cuidados transoperatórios: o Posicionamento da incisão o Desbridar quando necessário o Hemostasia meticulosa o Obliteração dos espaços mortos o Síntese da derme o Fechamento sem tensão da ferida Cuidados pós-operatórios o Emolientes tópicos o Dermoabrasão de paredes irregulares o Evitar irradiação solar excessiva o Cremes esteroides (como o Kelo-Cote®, aplicado após a síntese, que previne a formação de queloide) o Cuidados com os curativos: evitar contaminação, facilitar cicatrização, reduzir infecção, absorver secreções, facilitar drenagem, promover hemostasia, contato com medicamentos, promover conforto.
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