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1 1. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITOS FUNDAMENTAIS 1.1. Estado Democrático de Direito O termo “Estado Democrático de Direito”, conquanto venha sendo largamente utilizado em nossos dias, é pouco compreendido e de difícil conceituação em face das múltiplas facetas que ele encerra. No Estado contemporâneo, em virtude da maximização do papel do poder público, que se encontra presente em praticamente todas áreas das relações humanas, a expressão “Estado Democrático de Direito” ganha uma extensão quase que ilimitada, mas, conseqüente e paradoxalmente, perde muito em compreensão. O fato de esse termo ter sido incluído em nosso atual texto constitucional, no seu primeiro artigo, adjetivando a República Federativa do Brasil, torna obrigatória a sua interpretação, com todas as conseqüências que dela podem e devem advir. O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se pelo Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, adotou, igualmente em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.1 O termo "Estado democrático de direito" conjuga dois conceitos distintos que, juntos, definem a forma de mecanismos tipicamente assumidoS pelo Estado de inspiração ocidental. Cada um destes termos possui sua própria definição técnica, mas, neste contexto, referem-se especificamente a parâmetros de funcionamento do Estado Ocidental moderno. Em sua origem grega, "democracia" quer dizer "governo do povo". No sistema moderno, no entanto, não é possível que o povo governe propriamente (o que significaria uma democracia direta). Assim, os atos de governo são exercidos por membros do povo ditos "politicamente constituídos", por meio de eleição. No 1 Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2007. p 125. 2 Estado Democrático Brasileiro, as funções típicas e indelegáveis do Estado são exercidas por indivíduos eleitos pelo povo para tanto, de acordo com regras pré- estabelecidas que regerão o pleito eleitoral. O aspecto do termo "de Direito" refere-se a que tipo de direito exercerá o papel de limitar o exercício do poder estatal. No Estado democrático de direito, apenas o direito positivo (isto é, aquele que foi codificado e aprovado pelos órgãos estatais competentes, como o Poder Legislativo) poderá limitar a ação estatal, e somente ele poderá ser invocado nos tribunais para garantir o chamado "império da lei". Todas as outras fontes de direito, como o Direito Canônico ou o Direito natural, ficam excluídas, a não ser que o direito positivo lhes atribua esta eficácia, e apenas nos limites estabelecidos pelo último. Nesse contexto, destaca-se o papel exercido pela Constituição. Nela delineiam-se os limites e as regras para o exercício do poder estatal (onde se inscrevem os chamados "Direitos e Garantias fundamentais"), e, a partir dela, e sempre a tendo como baliza, redige-se o restante do chamado "ordenamento jurídico", isto é, o conjunto das leis que regem uma sociedade. O Estado democrático de direito não pode prescindir da existência de uma Constituição. No entanto, toda a conceitualização não deverá restringir o elemento democrático à limitação do poder estatal e a democracia ao instituto da representação política. Esta, em virtude de seus inúmeros defeitos, não pode fundamentar o Estado Democrático de Direito, pelo menos não como ele deveria ser, já que o princípio democrático não se reduz a um método de escolha dos governantes pelos governados. O Estado Democrático envolve necessariamente, a soberania popular. Conforme expõe José Afonso da Silva, o Estado Democrático se funda no princípio da soberania popular que ‘impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representativas, que constituem 3 um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento. 2 Assim, a substância da soberania popular deve ser representada pela autêntica, efetiva e legítima participação democrática do povo nos mecanismos de produção e controle das decisões políticas, em todos os aspectos, funções e variantes do poder estatal. Friedrich Müller apregoa que, a idéia fundamental da democracia é a determinação normativa de um tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já que não se pode ter o auto-governo na prática quase inexeqüível, pretende-se ter ao menos a auto-codificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político.3 Para José Joaquim Gomes Canotilho, o esquema racional da estadualidade encontra expressão jurídico–política adequada num sistema político normativamente conformado por uma constituição e democraticamente legitimado. Por outras palavras: o Estado concebe-se hoje como Estado Constitucional Democrático, porque ele é conformado por uma Lei fundamental escrita (= constituição juridicamente constituída das estruturas básicas da justiça) e pressupõe um modelo de legitimação tendencialmente reconduzível à legitimação democrática.4 Entendemos que o Estado Democrático deve ser transformador da realidade, ultrapassando o aspecto material de concretização de uma vida digna para o homem. Este Estado age como fomentador da participação pública em vários seguimentos. O Estado deve sempre ter presente a idéia de que a democracia implica necessariamente a questão da solução do problema das condições materiais de existência. Portanto, foi criado para ultrapassar a idéia utópica de transformação social, assumindo o objetivo da igualdade, a lei aparece como instrumento de reestruturação social, não devendo atrelar-se a outros fins como à sanção ou à promoção. 2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. Brasil: Malheiros, 2007, p .66. 3 MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão Fundamental da democracia. Tradução: Peter Naumam, revisão: Paulo Bonavides, São Paulo:Max Limonad, 1998. p. 57. 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 43. 4 A democracia como realização de valores de convivência humana de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa é conceito mais abrangente do que “Estado Democrático de Direito” que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. Além disso, é certo que o Estado Democrático deve aparecer com a função de reduzir antíteses econômicas e sociais e isto se torna possível com a devida aplicação da Constituição Federal (colocada no ápice de uma pirâmide jurídica escalonada), que representa o interesse da maioria. Em suma, após essa reflexão inicial podemos elencar os elementos que julgamos essenciais no Estado Democrático de Direito, sendo o seu fundamento e principal aspecto a soberania popular: 1 - A necessidade de providenciar mecanismos de apuração e de efetivação da vontade do povo; 2 – Ser um Estado Constitucional, ou seja, dotado de uma constituição material legítima, rígida, emanada da vontade do povo; 3 - A existência de um órgão guardião da Constituição e dos valores fundamentais da sociedade, que tenha atuação livre e desimpedida, constitucionalmente garantida; 4 - A existência de um sistema de garantia dos direitos humanos, em todas as suas expressões; 5 - Realização da democraciacom a conseqüente promoção da justiça social; 6 - Observância do princípio da igualdade; 7 - existência de órgãos judiciais, livres e independentes, para a solução dos conflitos entre a sociedade, entre os indivíduos e destes com o Estado.5 1.1.1 Origem Histórica A idéia de Estado Democrático tem raízes no séc. XVIII, e está ligado a idéia de certos valores da dignidade humana, organização e funcionamento do Estado e a participação popular. No entanto, na antigüidade, o indivíduo tinha valor relativo; só alguns participavam das decisões, ou seja, apenas os cidadãos, aqueles que eram homens e tinham bens; ou segundo Aristóteles (384 – 322 a. C), no seu livro III, de “A Política”, cidadão era aquele que tivesse autoridade deliberativa ou judiciária, jamais um artesão ou mercenário, isso porque a virtude 5 http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_167/R167-13.pdf (artigo escrito por Enio Moraes da Silva - Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005. 5 política, que é a sabedoria para mandar e obedecer, só pertence àquele que não tem necessidade de trabalhar para viver. Percebe-se que a idéia de povo é restrita a cidadão, não sendo compatível com a idéia de povo do século XVIII, época em que “...a burguesia, economicamente poderosa, estava às vésperas de suplantar a monarquia e a nobreza no domínio do poder político.”6 Na sua origem, o conceito de democracia encontra definição razoavelmente pacífica na especificação do regime do demos, nome pelo qual eram designadas as divisões territoriais administrativas na Grécia antiga, de forma que, por extensão, tal palavra, originada de demokratia, (ou, no grego, δηµοχρατία) passou a significar poder popular, governo do povo. Como a tal conclusão, podemos facilmente notar que os conceitos de "poder popular" e de "governo do povo" não eram exatamente os que se fazem presentes na contemporaneidade, de forma que pela dificuldade de se conceituar o que seria poder popular - e, por conseqüência, de se delimitar o governo do povo - o conceito de democracia tem sofrido os mais diversos significados durante a história.7 Vale destacar a Carta de João Sem Terra de 1215: um documento medieval bilateral em que o rei se obriga a respeitar a lei. O objetivo foi reparar os abusos do rei, pois o mesmo não abria mão de sua soberania, porém, deveria respeitar o Parlamento, eis a origem fiscalizadora do Parlamento, no controle dos gastos público. Imperioso trazer à lume a lição de Carl Schmitt, acerca da Magna Charta de 1215, in verbis: La Magna Carta inglesa de 15 de Julho de 1215, suele designar- se como modelo y origen de las modernas Constituciones liberales. El desarrollo del Derecho político de Inglaterra tomó um curso peculiar, porque los senõres feudales y estamentos de la Edad Media (alta nobleza, caballeros y burguesia inglesa) y su representación (la Cámara de los lordes y la Cámara de los Comunes) pasaron en un proceso lento e insensible a las condiciones propias del Estado moderno...8 6 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20a ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 124. 7 Ibid., 146. 8 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madri: Alianza Universidad Textos, 1996, p. 164. 6 Dalmo de Abreu Dallari destaca ainda que à base do conceito de Estado Democrático, está na noção de governo do povo, e que tal locução deriva etimologicamente do termo democracia. Ainda, faz menção aos três grandes movimentos político-sociais responsáveis pela condução ao Estado Democrático, quais seriam: a Revolução Inglesa, com a influência de John Locke e expressão mais significativa no Bill of Rights de 1689; a Revolução Americana com seus princípios expressos na Declaração de Independência das treze colônias americanas em 1776, e a Revolução Francesa, com influência de Rousseau, dando universalidade aos seus princípios, devidamente expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Com relação à Revolução Inglesa, aludido autor ressalta dois pontos básicos tinham por objetivo assegurar a proteção dos direitos naturais dos indivíduos; a intenção de estabelecer limites ao poder absoluto do monarca e a influência do protestantismo. Quanto à Declaração da Independência, o autor destaca a garantia de supremacia da vontade do povo, a liberdade de associação e a possibilidade de manter um permanente controle sobre o governo. No tocante à Revolução Francesa, afirma ser um movimento consagrador das aspirações democráticas. Este movimento evidencia a sociedade política que tem por fim a preservação da liberdade do homem e a inexistência da imposição de limites que não seja decorrentes de lei (expressão da vontade geral), bem como o direito dos cidadãos de concorrer, pessoalmente ou através de seus representantes, para a formação da vontade geral. Para Jorge Miranda, o aparecimento histórico do Estado reveste caráter interdisciplinar, e as conclusões resultantes de uma série de indagações parecem ser necessidade, em toda sociedade humana, de um mínimo de organização política; necessidade de situar no tempo e espaço a estrutura do estado; constantes transformações das organizações políticas; diferenças e 7 complexidades entres as sociedades e organizações políticas; tradução no âmbito de idéias de Direito e das regras jurídicas na formação de cada Estado.9 1.1.2. O Surgimento do Estado De acordo com Dalmo de Abreu Dallari, a origem do Estado Moderno remonta ao Absolutismo e a idéia de Estado Democrático aparece no século XVIII, através dos valores fundamentais da pessoa humana, a exigência de organização e funcionamento do Estado enquanto órgão protetivo daqueles valores. 10 A doutrina diverge sobre as origens e surgimento do Estado. Dalmo de Abreu Dallari registra que existem três teorias básicas a respeito da época do aparecimento do Estado. Pela primeira, o Estado, assim como a sociedade, sempre teria existido, considerando que o Estado seria uma organização social, dotada de poder e com autoridade para determinar o comportamento de todo o grupo. Pela segunda, a sociedade humana teria inicialmente existido sem o Estado, tendo este sido constituído gradual e localmente para atender as necessidades ou as conveniências dos grupos sociais. E, finalmente, pela terceira teoria, somente se pode falar em Estado como uma sociedade política dotada de certas características bem definidas, como conceito histórico concreto, com a idéia e a prática da soberania, o que somente ocorreu no século XVII, existindo autores que apontam o ano de 1648, como a data oficial em que o mundo ocidental se apresenta organizado em Estados.11 Assim se descrevem os princípios que passaram a nortear os Estados, como exigência e cumprimento da democracia: 1) a supremacia da vontade popular (a participação popular no governo); 2) a preservação da liberdade (o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem interferência do Estado; 3) a igualdade de 9 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional – Tomo I – Preliminares – O Estado de os Sistemas Constitucionais, 6ª Ed. São Paulo:Coimbra, 1997, p. 44. 10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20a ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 150. 11 Ibid, p. 51. 8 direitos (a proibição de distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre classes sociais). 12 Hodiernamente, podemos compreender o Estado como sendo um agrupamento social politicamente organizado, gerido por objetivos em comum, obviamente segundo determinadas normas jurídicas em um territóriocerto e definido, sob a total tutela de um poder soberano, representado por um governo independente. Assim sendo, a consolidação do Estado surge à medida em que coexistem interesses similares de uma coletividade e o devido ânimo de colocá-los em prática. Consoante o pensamento de Jean Dabin, que expressa a essência primordial do Estado: chegou um momento em que os homens sentiram o desejo, vago e indeterminado, de um bem que ultrapassa o seu bem particular e imediato e que ao mesmo tempo fosse capaz de garanti-lo e promovê-lo. Esse bem é o bem comum ou bem público e consiste num regime de ordem, de coordenação de esforços e intercooperação organizada. Por isso o homem se deu conta de que o meio de realizar tal regime era a reunião de todos em um grupo específico, tendo por finalidade o bem público. Assim, a causa primária da sociedade política reside na natureza humana, racional e perfectível. No entanto, a tendência deve tornar-se um ato; é a natureza que impele o homem a instituir a sociedade política, mas foi a vontade do homem que instituiu as diversas sociedades políticas de outrora e de hoje. O instinto natural não era suficiente, foi preciso a arte humana.13 Destarte, conclui-se que os objetivos do Estado são a ordem e a defesa social, em suma, o bem estar social, o bem público; sendo os seus três elementos precípuos o povo, o território e o poder político. No dizere de Darcy Azambuja, "Estado é a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público, com governo próprio e território determinado”. Dalmo de Abreu Dallari entende o Estado como sendo "organização jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território". Importante ressaltar que na correta acepção do termo Estado, mister se faz ressaltar que "o fenômeno estatal revela-se no elemento pessoal (Estado–Comunidade) como no elemento poder (Estado-aparelho ou Estado-poder)" nos dizeres de Kildare Carvalho. 12 Ibid, p. 128 13 DABIN, Jean. Doctrine Génerale de l’État, Ed. Sirey, Paris 1939, p.42. 9 O conceito de Estado moderno, portanto, assenta-se sobre quatro elementos básicos: a soberania, o território, o povo e a finalidade. Ele é definido como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território.14 Para os fins de nosso estudo, interessa em especial a questão da soberania estatal, uma vez que ela é indispensável para a análise do Estado Democrático de Direito. E essa característica somente se apresenta com relação ao conceito de Estado moderno. Sérgio Resende de Barros leciona que não houve na prática antiga a idéia de um poder supremo, soberano, embasado em si e por si mesmo, sem lei que o vinculasse à base social; ou seja, um poder solutus a legibus. A idéia de soberania, como marca de uma sociedade política por ela diferenciada, é moderna. Recuando ao máximo, chega ao fim do medievo. 15 A concepção do Estado moderno vem atrelada ao entendimento de que o Estado é o único criador do Direito e ele mesmo solucionará os conflitos sociais por intermédio do Estado-juiz que aplicará as normas positivadas pelo próprio Estado-legislador. É a monopolização da produção jurídica e sua aplicação por parte do Estado. É paradoxal que tal sistema jurídico tenha sido preconizado e efetivamente implementado pelo Estado Liberal, influenciado pelo Iluminismo, uma vez que o seu pressuposto filosófico é a doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural. No entanto, no momento em que se exigiu do Estado o respeito a tais direitos, deu-se máxima ênfase ao aspecto da legalidade, concedendo o poder absoluto de produção jurídica ao legislador estatal.16 José Joaquim Gomes Canotilho entende que: o Estado deve entender-se como conceito historicamente concreto e como modelo de domínio político típico da modernidade. Se pretendêssemos caracterizar esta categoria política da modernidade, dir-se-ia que Estado é um sistema processual e dinâmico e não uma essência imutável ou um tipo de domínio político fenomenologicamente originário e metaconstitucional.”17 14Ibid., p. 118. 15 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: DelRey, 2003, p. 121. 16 Ibid., p. 18. 17 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 43. 10 1.1.3. Estado de Direito e seus Fundamentos Para alcançar uma compreensão do Estado de Direito, não se pode prescindir uma análise da distinção entre direito natural e direito positivo, considerando que essa é uma dicotomia estabelecida pelo pensamento jurídico ocidental, e que influenciou e ainda influencia fortemente as relações sociedade– Estado e Estado–indivíduo, sendo que não se pode falar da instituição Estado sem falar no Direito. Dessa divisão teórica resultam vários questionamentos quando se perquire da relação do Estado com o Direito. Norberto Bobbio esclarece que a distinção entre direito natural e direito positivo já havia sido identificada até mesmo na antiguidade, com Platão e Aristóteles. Este último utilizou-se de dois critérios para chegar a tal diferenciação: 1 - o direito natural é aquele que tem em toda parte a mesma eficácia, enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto; 2 - o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas ou más a outros. Prescreve ações cuja bondade é objetiva. O direito positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: é correto e necessário) que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei. 18 Os filósofos da Idade Média também discorreram sobre o assunto, deixando assente que existe uma clara distinção entre direito natural e direito positivo, tendo este a característica de ser posto pelos homens, em contraste com o primeiro que não é posto por esses, mas por algo (ou alguém) que está além desses, como a natureza (ou o próprio Deus). Essa distinção, que perdura até hoje, ganha importância no tocante à questão do exame do Estado de Direito e, em última análise, do Estado Democrático de Direito, quando se sabe que o positivismo jurídico reduziu todo o Direito a direito positivo, afastando o direito natural da categoria do Direito, pois 18 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 17. 11 essa corrente doutrinária não considera Direito outro que não seja aquele posto pelo Estado, sendo este o único detentor do poder de estabelecer as normas jurídicas que irão reger a sociedade. Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Vale acrescentar que Hans Kelsen, o precursor máximo do positivismo jurídico, defende que o Direito é um sistema de normas jurídicas, postas pelo Estado, num escalonamento de autoridade legal hierárquica, em que a Constituição de um Estado se encontra na camada jurídico-positiva mais alta. 19 Portanto, concluímos que o Estado de direito é aquele em que vigora o chamado "império da lei", porém este termo engloba alguns aspectos significados:primeiro aspecto é o de que, neste tipo de Estado, as leis são criadas pelo próprio Estado, através de seus representantes politicamente constituídos; o segundo aspecto é que, uma vez criadas pelo Estado, as leis passam a serem eficazes, isto é, aplicáveis, o próprio Estado fica adstrito ao cumprimento das regras e dos limites por ele mesmo impostos; o terceiro aspecto, que se liga diretamente ao segundo, é a característica de que, no Estado de direito, o poder estatal é limitado pela lei, não sendo absoluto, e o controle desta limitação se dá através do acesso de todos ao Poder Judiciário, que deve possuir autoridade e autonomia para garantir que as leis existentes cumpram o seu papel de impor regras e limites ao exercício do poder estatal. Na origem, o Estado de Direito tinha um conceito tipicamente liberal, daí falar-se Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: a) a submissão ao império da lei, lei esta emanada do Poder Legislativo, composto por representantes do povo; b) a divisão de poderes, que separe de forma 19 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 103 12 independente e harmônica os poderes legislativo, judiciário e executivo; c) um enunciado de direitos fundamentais.20 Daí a importância do chamado Estado de Direito, pois após os movimentos liberalistas, o Estado revestiu-se de outras características marcadas principalmente pela divisão dos poderes, como técnica que assegure a produção das leis ao Legislativo e a independência e a imparcialidade do Judiciário em face aos demais poderes e dos interesses particulares de toda sociedade. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em seu magistério, esclarece que: a locução Estado de Direito foi cunhada na Alemanha: é o Rechtsstaat. Aparece num livro de Welcker, publicado em 1813, no qual se distinguem três tipos de governo: despotismo, teocracia e Rechtsstaat. Igualmente foi na Alemanha que se desenvolveu, no plano filosófico e teórico, a doutrina do Estado de Direito. Nas pegadas de Kant, Von Mohl e mais tarde Stahl lhe deram a feição definitiva.21 Segundo ensinamentos de José Afonso da Silva: a superação do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade Democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. Chega agora o ‘Estado Democrático de Direito’ que a constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o conceito de ‘Estado Democrático de Direito’ da Constituição da República Portuguesa (art. 2º) e do ‘Estado Social e Democrático de Direito da Constituição Espanhola’ (art. 10º).22 O conceito de “Estado de Direito” foi ganhando “sinônimos” com o tempo e muitos desses foram concepções deformadoras. Com a superação do liberalismo, a expressão Estado de Direito, que inicialmente convertia os súditos em cidadão livres, tornou-se insuficiente, pois, segundo Carl Schmitt: “Estado de Direito pode ter tantos significados distintos como a própria palavra ‘Direito’ e designar tantas organizações quanto as que se aplica a palavra ‘Estado’”. Assim, acrescenta ele, 20 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. Brasil: Malheiros, 2007, p. 112 21 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 05. 22 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. Brasil: Malheiros, 2007 p. 113. 13 há um Estado de Direito feudal, outro burguês, outro nacional, além de outros conformes com o Direito natural, com o Direito racional e com o Direito histórico. 23 Entendemos, portanto, que o Estado de Direito é sinônimo de Estado de Justiça, que por sua vez, nada tem a ver com o estado submetido ao poder judiciário, sendo este apenas um elemento que compõe o Estado de Direito. Estado submetido ao juiz é Estado cujos atos legislativos, administrativos e também judiciais ficam sujeitos ao controle jurisdicional no que tange à legitimidade constitucional e legal Na concepção jurídica de Hans Kelsen, o conceito de Estado de Direito também é “deformado”. Para ele, Estado e Direito são conceitos idênticos. Na medida em que ele confunde Estado e ordem jurídica, todo Estado, para ele, há de ser Estado de Direito. Como, na sua concepção, só é Direito o Direito positivo, como norma pura, desvinculada de qualquer conteúdo, tem-se uma idéia formalista do Estado de Direito ou Estado Formal de Direito que serve também a interesses ditatoriais, pois, se o Direito acaba se confundindo com o mero enunciado formal da lei, destituído de qualquer conteúdo, sem compromisso com a realidade política, social, econômica e ideológica, todo Estado acaba sendo Estado de Direito.24 Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho: os três grandes princípios encontráveis num Estado submetido ao Direito são: o princípio da legalidade, o princípio da igualdade e o princípio da justicialidade. O princípio da legalidade, que contém a afirmação da liberdade do indivíduo como regra geral, seria a fonte única de todas as obrigações dentro de um Estado de Direito. A lei vincula o Poder Executivo, que não pode exigir condutas que não estejam previstas em lei, submete a função do Judiciário, que não pode impor sanção sem que esta esteja definida em lei, e embasa a atuação do Legislativo, que nada pode prescrever senão por meio de uma lei. A igualdade é princípio informador do conceito de lei no Estado de Direito, posto que suas formulações legais devem ser iguais para todos, proibindo o arbítrio, tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida em que se desigualam. A justicialidade, vista como princípio também, é o controle dos atos do Estado de Direito, que deve conter um procedimento contencioso para decidir os litígios, sejam estes entre 23 Ibid.,. p.113. 24 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 103, p. 117. 14 as autoridades superiores do Estado, ou entre autoridades e particulares, ou, num Estado federal, entre a Federação e um Estado-membro, ou entre Estados-membros etc. 25 Portanto, o reconhecimento e a institucionalização do Estado de Direito tende a produzir, de forma geral, a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos, a submissão do poder ao império do direito e o reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, que são, em última análise, a materialização de uma idéia de justiça presente na constituição de um Estado. Por isso, podemos afirmar que o Estado de direito possui várias dimensões essenciais. A primeira dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado subordinado ao direito. Isso significa, mais concretamente, três coisas: a) o Estado está sujeito ao direito, em especial a uma Constituição (por isso, que constituição é, segundo José Joaquim Gomes Canotilho, o estatuto jurídico do político); b) o Estado atua através do direito; c) o Estado está sujeito a uma idéia de justiça. As demais dimensões essenciais são, resumidamente, que o Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais, ou seja, com um conjunto de normas constitucionais superiores, que obrigam o legislador a respeitá-las, observando o seu núcleo fundamental, sob pena de nulidade das próprias leis e da declaração de sua inconstitucionalidade;além disso, deve observar o princípio da razoabilidade, ou seja, é um Estado de justa medida porque se estrutura em torno do princípio material normalmente chamado de princípio da proibição de excesso. Além disso, destacamos que o Estado de Direito é um Estado que estabelece o princípio da legalidade da administração pública, isto é, um Estado que estabelece a idéia de subordinação à lei dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado que responde pelos seus atos, ou seja, é um Estado que civilmente é responsável por danos incidentes na esfera jurídica dos particulares. O Estado de Direito é um Estado que garante a via judiciária, ou seja, o acesso ao poder judiciário no caso de ameaça ou de lesão de direito. Esse princípio é complementado, entre outros pressupostos, pela garantia de um juízo regular e independente, pela observância do princípio do contraditório e da ampla defesa, pela institucionalização do direito de escolher um defensor e pelo reconhecimento 25 FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 23. 15 do cidadão ter a assistência obrigatória de um advogado quando processado pelo Estado. Outro ponto fundamental e essencial do Estado de Direito é um Estado estruturado a partir da divisão de poderes, isto é, do fracionamento do Poder do Estado e da independência de seus três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Nesse sentido, o Estado de Direito é também, como regra, um Estado descentralizado, mesmo quando se configura como um Estado unitário. 16 1.2 Direitos Fundamentais Direitos fundamentais são os considerados indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual; a definição desses direitos denominados “fundamentais” envolve diferentes aspectos. Numa acepção material, podemos afirmar que eles dizem respeito aos direitos básicos que o indivíduo, natural e universalmente, possui em face do Estado; em acepção formal, os direitos são considerados fundamentais quando o direito vigente em um país assim os qualifica, normalmente estabelecendo certas garantias para que estes direitos sejam respeitados por todos.26 José Joaquim Gomes Canotilho afirma que: “tal como são um elemento constitutivo do Estado de Direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: 1 - significa a contribuição de todos os cidadãos para o seu exercício (princípio direito de igualdade e da participação política); 2 – implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos da próprio princípio democrático; 3 – envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivo de uma democracia econômica, social e cultural. Realce-se esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia.27 Aludido autor entende ainda que os direitos fundamentais, como direitos subjetivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e como direitos legitimadores de um domínio democrático asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestação sociais, econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões 26 PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais. 2a edição, Saraiva, São Paulo, 2005, p. 60. 27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 430. 17 impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos.28 1.2.1. Evolução Histórica e Aspectos Conceituais A história dos direitos fundamentais está diretamente ligada ao aparecimento do constitucionalismo, no final do século XVIII, que, entretanto, herdou da idade média as idéias de contenção do poder do Estado em favor do cidadão, sendo exemplo mais relevante neste sentido a célebre Magna Carta, escrita na Inglaterra, em 1215, pela qual o Rei João Sem Terra reconhecia alguns direitos dos nobres, limitando o poder do monarca. Numa breve abordagem histórica da evolução dos direitos fundamentais encontraremos traços gerais das primeiras declarações de direitos e nas cartas de franquia da Idade Média, que continham enumerações de direitos. Desde a Revolução de 1789, as declarações de direitos são um dos traços do Constitucionalismo, como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho: a opressão absolutista foi a causa próxima do surgimento das Declarações. Destas a primeira foi a do Estado da Virgínia, votada em junho de 1776, que procurava estabelecer os direitos fundamentais do povo norte-americano, tais como a liberdade, a igualdade, eleição de representantes etc., servindo de modelo para as demais na América do Norte embora a mais conhecida e influente seja a dos "Direitos do Homem e do Cidadão", editada em 1789 pela Revolução Francesa. 29 Com a Revolução Francesa, em 1789, se acentuaram os movimentos e documentos escritos que buscavam garantir aos cidadãos os seus direitos elementares em face da atuação do poder público. Como dito, um dos documentos mais conhecidos neste sentido foi a denominada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produto daquela revolução ocorrida em território francês. Assim, mister se faz ressaltar que no século XVIII foram feitas conquistas substanciais e definitivas, contudo o surgimento das liberdades 28Ibid., p. 431. 29 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalvez. Estado de direito e constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 281. 18 públicas tem como ponto de referência duas fontes primordiais: o pensamento iluminista da França e a Independência Americana. Em 1948, logo após a 2ª Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas fazia editar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, estendendo para praticamente todo o mundo o respeito e a proteção aos direitos fundamentais do ser humano. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, preocupou-se, fundamentalmente, com quatro ordens de direitos individuais, conforme assevera Celso Ribeiro Bastos: "Logo no início, são proclamados os direitos pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Num segundo grupo encontram-se expostos os direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à nacionalidade, direito de asilo para todo aquele perseguido (salvo os casos de crime de direito comum), direito de livre circulação e de residência, tanto no interior como no exterior e, finalmente, direito de propriedade. Num outro grupo são tratadas as liberdades públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação, princípio na direção dos negócios públicos. Num quarto grupo figuram os direitos econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à educação".30 ParaJosé Joaquim Gomes Canotilho, as expressões ‘direitos do homem’ e ‘direitos fundamentais’ são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Sem dúvida que a causa principal do reconhecimento de direitos naturais e intangíveis em favor do indivíduo é de ordem filosófico-religiosa. Uma grande contribuição é tributada ao Cristianismo, com a idéia de que cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus; portanto, a igualdade fundamental natural entre todos os homens. 30 BASTOS, Celso Ribeiro. A Era dos Direitos. 10 ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 34. 19 Norberto Bobbio afirma que: a Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre.31 Paulo Bonavides, discorrendo sobre a importância das declarações dos direitos do homem e enaltecendo aquela nascida na França, alega que: Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade. O teor de universalidade da Declaração recebeu, aliás, essa justificativa lapidar de Boutmy: Foi para ensinar o mundo que os franceses escreveram; foi para o proveito e comodidade de seus concidadãos que os americanos redigiram suas Declarações. 32 Assim, podemos afirmar que os direitos fundamentais são o resultado de um longo processo histórico, de uma lenta evolução. Eles não nasceram em uma data específica e nem foram engendrados em um único país, embora alguns momentos da história e certos Estados possam ser mencionados como relevantes para seu surgimento e fortalecimento. Em verdade, porém, como já mencionado, esses direitos do ser humano deitam suas raízes mais longínquas no cristianismo, que contribuiu enormemente para que o homem fosse visto e tratado de forma isonômica, uma vez que a doutrina cristã prega que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, valorizando assim a criação divina e permitindo-lhe que adquirisse respeito e fosse tratado de forma digna. Nessa evolução histórica, surgiram várias declarações de direitos do homem, como as já mencionadas Magna Charta Libertatum (1215), a Declaração 31 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10 ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 34 32 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p.571. 20 americana (1776), a francesa (1789), e a Declaração da ONU (1948), que, certamente, influenciaram o surgimento das proteções jurídicas dos direitos fundamentais em outros países. Para José Afonso da Silva, Direitos Fundamentais são "situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana". Melhor dizendo: "São direitos constitucionais na medida em que se inserem no texto de uma constituição ou mesmo constem de simples declaração solenemente estabelecida pelo poder constituinte”. São direitos que nascem e se fundamentam, portanto, da soberania popular. Eis algumas características dos Direitos Fundamentais: 33 (1) Historicidade. São históricos como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. (...); (2) Inalienabilidade. São direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis; (3) Imprescritibilidade. (...) Vale dizer, nunca deixam de ser exigíveis. Pois prescrição é um instituto jurídico que somente atinge os direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso; (4) Irrenunciabilidade. Não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite que sejam renunciados.34 No Brasil, face a nova concepção acerca dos direitos fundamentais, anteriormente mencionada, foi também incorporada às Constituições Brasileiras, de modo que, dentro do direito constitucional positivo, a Constituição elenca os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. A primeira Constituição, diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a adotar, em seu texto, essa inspiração foi da de 1934, no que foi seguida pelas posteriores. As anteriores – 1824 e 1891 – como era de se esperar, manifestavam em seu texto o apego à concepção individualista dos direitos fundamentais.35 33 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª. Ed., ver. e atual.- São Paulo: Malheiros, 2006, p. 183. 34 Ibid., p. 185. 35 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 25 ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 285. 21 Vale mencionar que a Constituição de 1988 classifica dos Direitos Fundamentais em cinco grupos: Direitos Individuais; Coletivos; Sociais; à Nacionalidade e Políticos. Os direitos fundamentais são as bússolas das Constituições; não há constitucionalismo sem direitos fundamentais. Afirma Paulo Bonavides explicando que: a pior das inconstitucionalidades não deriva, porém da inconstitucionalidade formal, mas da inconstitucionalidade material, deveras contumaz nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos onde as estruturas constitucionais, habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos reflexos que os fatores econômicos, políticos e financeiros que sobre ela se projetam. 36 Não resta dúvida de que à margem da teorização, no âmbito exclusivo da realidade de nosso tempo, os obstáculos para a concretização dos direitos fundamentais e as ameaças de que poderão tornar letais à liberdade enquanto direito fundamental, vem ganhando espaço e força gradativamente. Em rigor, diante dos novos perfis empresariais do sistema capitalista, das ofensas ao meio ambiente, da expansão incontrolada de meios informáticos e, principalmente, da mídia posta a serviço do Estado e das cúpulas hegemônicas da economia, tais ameaças tendem a se tornar cada vez mais sérias e delicadas, obstaculizando a sobredita concretização dos direitos fundamentais. Portanto, podemos concluir que os Direitos Fundamentais estão inseridos dentro daquilo que o Constitucionalismo denomina de princípios constitucionais fundamentais, que são os princípios que guardam os valores fundamentais da Ordem Jurídica. Sem eles, a Constituição nada mais seria do que um aglomerado de normas que somente teriam em comum o fato de estarem inseridas num mesmo texto jurídico; de modo que, onde não existir Constituição não haverá também direitos fundamentais. 36 BONAVIDES, Paulo Bonvides. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p. 600. 22 1.2.2 Classificação dos DireitosFundamentais Direitos fundamentais, como já dissemos, em sua acepção formal, são aqueles direitos básicos do indivíduo e do cidadão, reconhecidos pelo direito positivo do Estado, que exige deste uma abstenção ou uma atuação no sentido de garanti-los. No Brasil, essa expressão engloba vários direitos, tais como: os individuais, os coletivos, os difusos, os sociais, os nacionais e os políticos. No entanto, os direitos fundamentais podem ser estudados e concebidos das mais diferentes maneiras. Dentre essas formas, podemos analisar os referidos direitos dividindo-os em dimensões sob a forma de gerações, como o faz Paulo Bonavides, Norberto Bobbio e outros doutrinadores. A primeira geração de direitos dominou o século XIX, e é composta dos direitos de liberdade, que correspondem aos direitos civis e políticos. Tendo como titular o indivíduo, os direitos de primeira geração são oponíveis ao Estado, sendo traduzidos como faculdades ou atributos da pessoa humana, ostentando uma subjetividade que é seu traço marcante. 37 A segunda geração de direitos, da mesma forma que a primeira, foi inicialmente objeto de formulação especulativa nos campos político e filosófico, e possuíam grande cunho ideológico.Assim como os de primeira geração dominaram o século XIX, pois tiveram seu nascedouro nas reflexões ideológicas e no pensamento antiliberal desse século.38 Cingidos ao princípio da igualdade – sendo esse a razão de ser daqueles – os direitos de segunda geração são considerados como sendo os direitos sociais, culturais, coletivos e econômicos, tendo sido inseridos nas constituições das diversas formas de Estados sociais, portanto dispersos nos textos legais. Quanto a esses direitos de segunda geração, salienta Paulo Bonavides, in verbis: atravessaram, a seguir uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes constituições, inclusive a 37 Ibid, p. 517. 38 Ibid, p. 518. 23 do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. De tal sorte, os direitos da segunda geração tendem a tornar-se tão justificáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programático da norma. Os direitos de terceira geração (fraternidade ou solidariedade) são identificados como sendo o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. 39 Tecendo comentários sobre a terceira geração de direitos, Norberto Bobbio, comenta que para Celso Lafer, os direitos de terceira geração são direitos cujos sujeitos não são os indivíduos, mas sim, os grupos de indivíduos, grupos humanos como a família, o povo, a nação e a própria humanidade.40 Lançadas as bases por Paulo Bonavides, tem-se que a "globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social".41 Segundo ele, os direitos da quarta geração consistem no direito à democracia, direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a materialização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo quedar-se no plano de todas as afinidades e relações de coexistência. Enquanto direito de quarta geração, a democracia positivada há de ser, necessariamente, uma democracia direta, que se torna a cada dia mais possível, graças aos avanços tecnológicos dos meios de comunicação, e sustentada legitimamente pela informação correta e aberturas pluralistas do sistema. É de se lembrar, também, que deve ser uma democracia isenta, livre das contaminações, vícios e perversões da mórbida mídia manipuladora. 39 Ibid, nota 10, p. 518. 40BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10 ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 13, nota 11. 41 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p. 524-256. 24 Assim, podemos dizer que os direitos da segunda, terceira e quarta geração, além de dispersos em todo texto legal jurídico, não se interpretam, mas sim, concretizam-se. E é no seio dessa materialização, dessa solidificação, que se encontra o futuro da globalização política, o início de sua legitimidade e a força que funde os seus valores de libertação. Enfim, conforme enfatiza Paulo Bonavides, "os direitos da quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política".42 Essas gerações, numa primeira análise, representariam a conquista pela humanidade de três espécies de direitos fundamentais, amparada nos ideais divulgados especialmente na Revolução Francesa, os quais se resumiam no lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Coincidentemente, cada uma dessas expressões representaria uma geração de direitos a ser conquistada. Portanto, podemos concluir em breve resumo que os direitos fundamentais de primeira geração corresponde àqueles direitos básicos dos indivíduos relacionados a sua liberdade, considerada em seus vários aspectos, buscando também controlar e limitar os desmandos do governante, de modo que este respeite as liberdades individuais da pessoa humana. A segunda geração, por sua vez, fundada na idéia da igualdade, significa uma exigência ao poder público no sentido de que este atue em favor do cidadão, cobrando uma prestação positiva do Estado aos chamados direitos sociais, direitos não mais considerados individualmente, mas sim de caráter econômico e social. E, ainda, a terceira geração, que corresponde a fraternidade, que representa a evolução dos direitos fundamentais para alcançar e proteger aqueles direitos decorrentes de uma sociedade já modernamente organizada, que se encontra envolvida em relações de diversas naturezas, especialmente aquelas relativas à industrialização e densa urbanização; assim, podemos mencionar: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à comunicação, os direitos dos consumidores e vários outros direitos especialmente aqueles relacionados a grupos de pessoas 42Ibid. p. 526. 25 mais vulneráveis (a criança, o idoso, o deficiente físico, etc). Por derradeiro, uma quarta geração de direitos fundamentais, identificada por vários autores, que decorreria da atual globalização desses direitos, tais como a democracia, o direito à informação e ao pluralismo. Paulo Bonavides esclarece que: via de regra, todo direito fundamental concreto demanda, para sua interpretação, o exame dos seguintes aspectos: o aspecto objetivo- institucional, por exemplo, no caso da Família; o da prestação estatal, haja vista o direito de acesso à cultura: o direito fundamental à prestação jurisdicional, e, finalmente o aspecto da vertente subjetiva que opera no caso de liberdade religiosa, unida, porém, ao status corporativus, como exemplificado pela igreja e comunidades religiosas.43 Com igual energia e clareza elucidativa, da gênese hermenêutica, dos direitos fundamentais na sede de sua teorização, arremata ele: É um processo ordinário no Estado constitucional o nascimento e a morte das teorias dos direitos fundamentais. O que deve permanecer é a idéia da proteção pessoal. E todas as teorias dos direitos fundamentais devem colocar-se a serviço da mesma. Com efeito, tem razão o constitucionalista: as teorias dos direitos fundamentais nascem e morremcom os regimes políticos, com as ideologias, com os teoristas dos Estado, com os filósofos do poder e com os pensadores políticos. Paulo Bonavides conclui afirmando que, as teorias modernas e contemporâneas, não importam a sua diversidade, só terão acolhida no constitucionalismo do Estado democrático se tiverem por elemento primário e base de legitimação a liberdade nas quatro dimensões que a dogmática evolutiva daqueles direitos ostenta, e que já foram referidas também sob a designação de direitos de quatro gerações, isto é, direitos individuais, sociais, do desenvolvimento, da paz e do meio ambiente e, de último, despontando no horizonte social e político, os direitos da quarta geração, a saber, a democracia, o pluralismo e a informação. 44 43 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p.598. 44 Ibid, p.599. 26 2. O DEVIDO PROCESSO LEGAL E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL A norma contida no enunciado do art. 5º, LIV, da Constituição Federal é um princípio porque não descreve um comportamento, mas sim a realização de um fim. Isso não significa que a norma não prescreva comportamentos, mas apenas que tais comportamentos (obrigatórios justamente por serem necessários à realização do fim) não estão descritos no enunciado, como ocorre com as regras. O princípio do devido processo legal está relacionado à idéia de controle do poder estatal. O Estado pode, através de seus órgãos, a fim de realizar os fins públicos, impor restrições aos bens individuais mais relevantes. No entanto, não pode fazê-lo arbitrariamente. O escopo do princípio estudado é reduzir o risco de ingerências indevidas nos bens tutelados, através da adoção de procedimentos adequados. Ou ainda, garantir que a prolação de determinada decisão judicial ou administrativa seja precedida de ritos procedimentais assecuratórios de direitos das partes litigantes. 45 Ao devido processo legal é atualmente atribuída grande responsabilidade por ser um princípio fundamental, ou seja, sobre ele repousam todos os demais princípios constitucionais, ou seja, é um super princípio. Nelson Nery Júnior, Paulo Roberto Dantas de Souza Leão, José Rogério Cruz e Tucci, Cândido Rangel Dinamarco e Paulo Rangel, afirmam que no devido processo legal estariam contidos todos os outros princípios processuais, como o da isonomia, do juiz natural, da inafastabilidade da jurisdição, da proibição da prova ilícita, da publicidade dos atos processuais, do duplo grau de jurisdição e da motivação das decisões judiciais. Com muita precisão, Cristina Reindolff da Motta afirma que "a todo momento que se fizer análise ou reflexão acerca de algum princípio processual constitucional, com certeza poder-se-á identificar nuances do Princípio do Devido Processo Legal, e vice-versa". 46 45 ÁVILA, Humberto. Fundamentos do Estado de Direito. São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p. 63/64. 46 JÚNIOR, Humberto Theodoro. A garantia fundamental do devido processo legal e o exercício do poder de cautela no Direito Processual Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1991. p. 11. 27 Nota-se uma critica subliminar da doutrina à expressa inserção desse princípio no texto constitucional. Tal crítica não é no sentido de que não fosse ela necessária ou o princípio não a merecesse, mas da redundância que decorreria da referência expressa ao devido processo legal após elencado todos os princípios e direitos processuais constitucionais. Entretanto, países que já tiveram o dissabor de passar por ditaduras e golpes militares, como o nosso, sabem da importância da Constituição conter explicitamente as garantias fundamentais derivadas do processo legal. Trazido praticamente ao final do rol, o devido processo legal tem por objetivo enfeixar as demais garantias, não como uma redundância, mas como um inabalável sustentáculo. O devido processo legal não tem uma definição estanque, fixa ou muito menos, perene. Isso permite a sua mutabilidade, adaptação gradual, e, principalmente, evolução, de acordo com a demanda da sociedade. Luiz Rodrigues Wambier menciona que: Arturo Hoyos entende que o princípio do devido processo legal está inserido no contexto, mais amplo, das garantias constitucionais do processo, e que somente mediante a existência de normas processuais, justas, que proporcionem a justeza do próprio processo, é que se conseguirá a manutenção de uma sociedade sob o império do Direito. 47 O devido processo legal, foi concebido e conceituado durante muito tempo como amparador ao direito processual, buscando uma adequação do processo à ritualística prevista, praticamente confundindo-se ao princípio da legalidade. 2.1. Antecedentes Históricos A garantia constitucional do devido processo legal prescinde da história do homem pela busca de sua liberdade, ou seja, libertar-se da servidão que lhe foi imposta pelo próprio semelhante; revela, sobretudo, a luta pela contenção do poder. 48 47 BOLQUE, Fernando César. A efetividade dos direitos fundamentais (art. 5º da Constituição Federal) e o princípio da razoabilidade das leis: a atuação do Ministério Público. Disponível na Internet: Acesso em 22 ago 2002. 48 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law, Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 15. 28 Qualquer abordagem que se pretenda fazer no tocante à garantia do devido processo legal deve iniciar-se pela análise do panorama político e social da Inglaterra medial, culminando com a outorga da Magna Carta do Rei João Sem Terra em 1215. Porém, nos primórdios, vivia o homem em regime tribal, com total liberdade e comunhão de patrimônio, restringidos apenas pelo interesse de sobrevivência do grupo. Após a criação do Estado, os séculos vieram demonstrar que o homem havia perdido sua liberdade, quase que total, porque o detentor do poder passou a utilizá-lo, de modo geral, em proveito próprio, ignorando o interesse do povo, chegando Luís XIV a dizer: "L’État c’ est moi" (O Estado sou eu). 49 Todavia, a saga pela liberdade nunca foi abandonada, pois, para o homem constitui o seu mais precioso bem, sendo o modo natural de manifestação da vida, da inteligência, da criatividade, das quais decorrem, inelutavelmente, a indústria e o progresso, enfim, a civilização. O homem nasceu para ser livre, sujeitando-se ao mínimo de restrições necessárias à realização do bem comum. 50 Com exatidão Paulo Fernando Silveira nos mostra que: a lição que se extrai é que as ditaduras e impérios que se apoiaram em ordem absoluta, individual do tirano ou do grupo dominante, contrariando a natureza das coisas, por mais poderosos que tenham sido, entraram em colapso, como registra a história. Apenas o governo democrático, que tem o povo como base, com suas múltiplas diversidades individuais e diferentes anseios, pode desenvolver-se serenamente, administrando a conjuntura variável, pois, ainda que cometa erros, serão, por certo, reparáveis.51 No Direito Inglês a garantia do devido processo legal surgiu no reinado de John, chamado de Sem-Terra, cujo reinado usurpou de seu irmão Ricardo Coração de Leão que morreu em virtude de um ferimento de flecha recebido em uma batalha, como dito. Paulo Fernando Silveira nos ensina que: 49 Ibid, p.15. 50 Ibid, p.16. 51 Ibid, p.16. 29 João Sem-Terra ao assumir a coroa passou a exigir elevados tributos e fez outras imposições decorrentes de sua tirania, o que levou os barões a se insurgirem: ‘Os desastres, cincas e arbitrariedades do novo governo foram tão assoberbantes, quea nação, sentindo-lhe os efeitos envilecedores, se indispôs, e por seus representantes tradicionais reagiu. Foram inúteis as obsecrações. A reação era instintiva, generalizada; e isso, por motivo de si mesmo explícito: tão anárquico fora o reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos nossos dias se repete, a decadência; postergou regras jurídicas sãs de governo; descurou dos interesses do reino; e, a atuar sobre tudo, desservindo a nobres e a humildes, ameaçava a desnervar a energia nacional, que se revoltou. 52 Assim, em 15/06/1215 John foi obrigado a concordar apondo seu selo real, com os termos da declaração de direitos, que lhe foi apresentada pelos barões, a qual ficou conhecida como Magna Carta, ou Great Charter, da qual ainda existem preservados quatro exemplares originais. Por esse documento, o Rei John jurou respeitar os direitos, franquias e imunidades que ali foram outorgados, como salvaguarda a liberdade dos insurretos, entre eles a cláusula do devido processo legal (due process of law). Destaca-se que a Magna Carta (1215) evidenciou pela primeira vez, de modo inequívoco, que nenhuma pessoa, por mais poderosa que fosse, estaria acima da lei, ao assegurar, em seu § 39, com as alterações da Carta de 1225, com regra absoluta a ser observada, o devido processo legal: 51 Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra. Cremos que a função primeira deste documento foi sem dúvida limitar o poder real, inibindo as tiranias e manobras de João Sem Terra, e, por conseqüência, garantia aos senhores feudais certos direitos e prerrogativas antes nunca concedidas. Portanto, pela primeira vez na história, de forma muito singela, instituiu-se o devido processo legal que constitui a essência da liberdade individual em face da lei, ao afirmar que ninguém perderá a vida ou a liberdade, ou será despojado de 52 SILVEIRA, Paulo Fernando. Op. p. 21 apud Pontes de Miranda. História e prática do habeas corpus. 7. Ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 11. 30 seus direitos ou bens, salvo pelo julgamento de seu pares, de acordo com a lei da terra. 53 O autor Paulo Fernando Silveira, aduz ainda que: qualquer pretensão de conceituar o devido processo legal deverá levar em consideração sua origem, que remonta, aos reinados de Henry I (1100/11350 e Henry II (1154/1189), culminando com a assinatura da Magna Carta pelo Rei João Sem Terra – (Jonh Lackland (1199/1216), que sucedeu ao seu irmão Ricardo Coração de Leão-Richard the Lion Heart (1189/1199)".54 Assim, o primeiro ordenamento que teria tratado desse princípio foi a Magna Carta do rei John Lackland (João "Sem-Terra"), de 15 de junho de 1215, quando o seu art. 39 se referiu a legem terrae, termo posteriormente traduzido para a língua inglesa como law of the land, sem, contudo, mencionar a expressão que hoje conhecemos, due process of law. 55 No Direito Americano a origem o devido processo legal surgiu por meio de dissidentes protestantes ingleses, que, em fuga, aportaram nas praias americanas da Virgínia em 1607, trazendo consigo os fundamentos da common law, entre os quais o princípio do devido processo legal. Em 1354, ainda na Inglaterra do rei Eduardo III, no conhecido Statute of Westminster of the Liberties of London, por um legislador desconhecido, foi utilizada a expressão definitiva e, de forma mais importante, incorporado aquele texto aos dispositivos da Common Law. Há de se admitir, no entanto, que durante toda essa época, o instituto era meramente formal, se utilização e sem expressão. 56 53 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law, Belo Horizonte: Del Rey, 1996p. 22. 54SILVEIRA, Paulo Fernando. Op. p. 21 apud Pontes de Miranda, História e prática do habeas corpus. 7. Ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 79. 55 AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 79. 56 "None shall be condemned without trial. Also, that no man, of what estate or condition that he be, shall be put out of land or tenement, nor taken or imprisoned, nor disinherited, nor put to death, without being brought to answer by due process of law". JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pg. 33. nota 6. 31 Daí em diante, as garantias outorgadas a contragosto por João Sem Terra – morto aos 10 de outubro de 1216, firmaram-se como um símbolo da liberdade e do desenvolvimento do povo inglês, influenciando o resto do mundo, principalmente as colônias da América do Norte. A própria “magna charta”, como aponta Jorge Miranda, foi confirmada seis vezes por Henrique III, três vezes por Eduardo I, catorze vezes por Eduardo III, seis vezes por Ricardo II, seis vezes por Henrique IV, uma vez por Henrique V e uma vez por Henrique VI. A Constituição dos Estados Unidos da América, onde muito se desenvolveu o devido processo legal, não trata originalmente do instituto, sendo abordado explicitamente nas suas emendas, na 5ª e na 14ª Emenda. Na primeira emenda referida, a cláusula due process of law apareceu pela primeira vez ao lado do trinômio "vida, liberdade e propriedade" e, na segunda, sofreu grande transformação-evolução, passou a significar também a "igualdade na lei", e não só "perante a lei", além de marcar a sua utilização efetiva. Tais inserções deram-se pela tendência de acompanhar a evolução das Constituições de alguns Estados, como Maryland, Pensilvânia e Massachusetts, que já contavam com o a garantia em testilha, pois, por sua vez, acompanhavam as Declarações de Direitos das Colônias de Virgínia, Delaware, Carolina do Norte, Vermont e de New Hampshire, posteriormente transformados em Estados federados. Na América Latina, a Argentina e o México, desde o nascedouro de suas Constituições, em 1853 e 1857, respectivamente, já contavam com o instituto. Na Europa continental, a Itália e a Alemanha, países onde há enorme aprofundamento científico no direito processual serviram de exemplo para os demais, como Espanha e Portugal. 57 A Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948), a 6ª Convenção Européia Para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Roma, 1950) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos 57 Ibid, "All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws". 32 das Nações Unidas (1966) consagram proteções e garantias individuais que denotam o encampar daquele princípio. No Brasil, é pacífico entre os doutrinadores que o princípio do devido processo legal foi abraçado por todas as Constituições pátrias, desde 1924, em especial a de 1967 e Emenda Constitucional nº 01, de 1969, pois, quando consignaram os princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade, teriam, tacitamente, aceitado a existência daquele. Porém, a inclusão definitiva e expressa da garantia do due processof law veio somente com a Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu artigo 5º, LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", sendo complementada pelo inciso LV do mesmo artigo: “aos litigantes em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” Sabemos que a Magna Carta não teve, na sua gênese, a intenção mais pura de servir à cidadania, à democracia ou ao povo em geral, posto criada como uma espécie de garantia para os nobres, do baronato, contra os abusos da coroa inglesa. Entretanto, ela continha institutos originais e eficazes do ponto de vista jurídico para a repressão dos abusos do Estado, que até hoje se fazem reluzentes em praticamente todas as constituições liberais do mundo. 2.2 Características do Devido Processo Legal Em seu nascedouro, o devido processo legal foi concebido como uma garantia de feições apenas processuais, como princípio que viria a assegurar que a privação da liberdade e da propriedade somente seriam possíveis através de um processo regular. Mas, como aponta Nelson Nery Júnior, o devido processo legal é caracterizado pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, ou seja, “tem-se o direito de tutela àqueles bens da vida em seu sentido mais amplo e genérico. Tudo o que disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção da due process clause”. O devido processo legal, como mencionado, foi concebido e conceituado durante muito tempo como amparador ao direito processual, buscando uma 33 adequação do processo à ritualística prevista, praticamente confundindo-se ao princípio da legalidade. Ele ganhou força expressiva no direito processual penal, mas já se expandiu para processual civil e até para o processo administrativo. Conceituar o devido processo legal é tarefa ingrata. Há duas facetas sobre as quais incide tal princípio: o procedural due process (sentido processual) e o substantive due process (sentido material). Oportuno transcrever as palavras de Cintra, Grinover e Dinamarco, acerca do princípio sub analisis: o devido processo legal, como princípio constitucional, significa o conjunto de garantias de ordem constitucional, que de um lado asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes de natureza processual e, de outro, legitimam a própria função jurisdicional. 58 A necessidade de intervenção judicial nas atividades estatais – principalmente legislativas – fez nascer uma bipartição ideológica a pairar sobre o devido processo legal, principalmente no direito norte-americano através dos julgados da Suprema Corte. Entendeu-se que não somente em sentido processual deveria o princípio garantir o trinômio vida-liberdade-propriedade, porque de tão amplo deveria cuidar de corrigir eventuais abusos do poder soberano ao legislar. Em outras palavras, criou-se a idéia de que o devido processo legal – concebido como cláusula anti-arbítrio – seria também responsável por vincular a produção legislativa à idéia de razoabilidade ou proporcionalidade. Baseada no espírito que norteou a Magna Carta de 1215, diz a doutrina: uma lei não pode ser considerada uma law of the land, nos termos desejados pelo due process of law, se incorrer na falta de razoabilidade, ou seja, quando for arbitrária. 59 A idéia de “governo dos juízes”, com os tribunais assumindo a função de censores da vida social, política e econômica da nação norte-americana, fez com que a visão unicamente processualista do devido processo legal retratasse a entrada em cena do judiciário como árbitro autorizado e final das relações do 58 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª. ed. rev. ampl. atual. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2003, p. 04. 59 CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.57. 34 governo com a sociedade civil, revelando o seu papel de protagonista e igualmente ‘substantivo’ no seio das instituições governativas.60 Esse conjunto de garantias de ordem constitucional - processual, encontrado apenas na nossa mais recente doutrina, não é novidade para os americanos, que há muito se debruçam sobre o devido processo legal. Vejamos o trecho do voto proferido no voto no caso Anti-Facist Committe vs. McGrafth (1951), pelo Juiz da Suprema Corte Americana, Felix Frankfurter: Due process não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros lindes de uma fórmula... ‘due process’ é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. ‘Due process’ não é um instrumento mecânico. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício do julgamento por aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo.61 O procedural due process, também chamado de devido processo adjetivo ou procedimental, é considerado mais restrito que o devido processo material e caracteriza-se pela simples norma de respeito ao procedimento previamente regulado. Inobstante o alcance diminuto, esta faceta do devido processo legal é mais empregada pela doutrina e pelos usuários do Direito, talvez exatamente por conta do vocábulo "processo" do princípio estudado, foi ele apenas sub-utilizado nesta acepção. A doutrina, mesmo ciente da vigência da cláusula due process of law nas constituições anteriores e do seu alcance a todos os tipos de procedimentos, debruçou-se especialmente na sua aplicação ao direito processual penal, em seguida, à jurisdição civil e, recentemente, aos procedimentos administrativos. Convém enfatizar sua aplicação ao direito processual civil, sendo indiscutível que nesse campo, entre outros, garante o direito à citação, do conhecimento do teor da acusação, de julgamento rápido e público, à igualdade de partes, à proibição da prova ilícita, à gratuidade da justiça ou ao desembaraçado 60 Ibid., p. 57. 61 Apud Carlos Roberto de Siqueira Castro. O devido Processo Legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição e Brasil, Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 56. 35 acesso a essa, ao contraditório, ao juiz natural e imparcial, ao duplo grau de jurisdição, à ampla defesa. "Resumindo o que foi dito sobre este importante princípio, verifica-se que a cláusula do procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível, isto é, de ter his day in Court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos".62 O devido processo legal substantivo ou material é a manifestação do devido processo legal na esfera material. Considera-se o seu alcance mais amplo que o seu lado procedimental, pois se manifesta em todos os campos do Direito (administrativo, civil, comercial, tributário, penal, entre outros). O conteúdo substancial de cláusula do devido processo legal apresenta-se, indubitavelmente, "amorfo e enigmático, que mais se colhe pelos sentimentos e intuição do que pelos métodos puramente racionais da inteligência." 63 O substantive due process tutela o direito material do cidadão, inibindo que lei em sentido genérico ou ato administrativo ofendam os direitos do cidadão, como a vida, a liberdade e a propriedade, outros destes derivados ou inseridos na Constituição. A Suprema Corte Americana entende que tem direito a examinar qualquer lei e determinar se ela constitui um legítimo, não-abusivo, exercício do poder estatal. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso, prolatou acórdão que em poucas palavras traz
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