Buscar

Noções sobre Estado Democrático de Direito

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 7 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 7 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

Noções sobre Estado Democrático de Direito
O Estado moderno surgiu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. No auge da Idade Média, concluído o processo histórico que pôs fim ao regime patriarcal e escravista típico da Idade Antiga, as terras férteis da Europa se apresentaram fragmentadas na forma de feudos, nos quais se baseou o regime senhorial e feudal típico da Idade Média, o feudalismo. Os feudos de base territorial constituíam unidades econômicas, sociais e políticas dotadas de relativa autonomia. Eram governados pelos seus donos, os senhores feudais, que mantinham entre si relações hierárquicas de nobreza (reis, duques, marqueses, condes) e de clero (papa, bispos, abades). Esses príncipes leigos e clericais eram suseranos e vassalos entre si com base em juramentos de lealdade, mediante os quais formavam uma pirâmide hierárquica de poder e dignidade. Mas todos eram senhores feudais. Cada um era dono (dominus) de um domínio (dominium) feudal e mandava no âmbito das terras que possuía como feudo: o rei mandava no reino, o duque mandava no ducado, o marquês, no marquesado, o conde, no condado, o papa, nas terras papais, o bispo, no bispado, o abade, na abadia. Em suma, cada príncipe governava seu principado por efeito de um domínio político de base territorial.
Esse domínio implicava – não só aproximadamente o que hoje se diz propriedade e posse da terra – como realmente o poder de governo sobre os que nela habitavam. Eis aí o princípio político característico do feudalismo: o domínio da terra implica o domínio político. O senhor feudal mandava pela lei da terra. Em termos atuais, o direito de governo sobre a população de um território derivava do direito de domínio das terras que o constituíam. O dono da terra, com base no direito da terra, governava o que se passava na terra. Era um domínio político-territorial, vinculando o poder à terra. É o velho princípio, ainda hoje resistente no mandonismo rural em terras remotas: "na minha terra, mando eu". Só que, na era medieval, esse princípio feudal se combinava com o senhorial, que o abrandava na proporção em que os feudatários das terras mantinham entre si relações de hierarquia, na nobreza e no clero, constituindo-se em suseranos (acima) e vassalos (abaixo), uns dos outros, compondo-se dentro da pirâmide social, em cuja base ficavam os camponeses e aldeões, totalmente avassalados, ao passo que no topo, como suseranos maiores, estavam o rei e o papa. O princípio senhorial feudal alcançava também o rei e o papa, que eram os senhores feudais mais destacados. Mas cada senhor mandava nas suas terras feudais. Pelo que, o rei governava as terras do seu reino e o papa, as vastas terras papais (hoje reduzidas à minúscula cidade-estado do Vaticano), e ambos estiveram em constantes lutas políticas durante a Idade Média.
Ao final da Idade Média, o rei apoiado pela burguesia mercantil consolidou em suas mãos um poder de governo geral sobre todos os feudos. Os príncipes medievais, quer leigos (duques, marqueses, condes), quer clericais (arcebispos, bispos, abades etc.), vieram a ser submetidos ao poder político do rei. Antes disso, também o rei, como todo senhor feudal, governava pela lei da terra. O dono da terra manda. O rei mandava no seu reino. Mas, agora, já na decadência do feudalismo, o poder do rei vai além do seu reino feudal. Reúne diversos domínios feudais (ducados, marquesados, condados, principados, etc.) em um reino unido sob seu poder. O rei se torna o senhor dos senhores, o príncipe dos príncipes. De fato, o único senhor: o monarca. Passa a mandar independentemente do domínio da terra e de qualquer outra lei que o vincule politicamente, inclusive das leis com que ordena os súditos. Governa impondo sua própria lei, sem ficar a ela submetido. É governo solutus a legibus: não relativo a alguma lei, mas absoluto, o que significa desligado das leis. Duques, marqueses, condes, bispos, abades continuam donos de suas terras. Mas, acima deles e sobre eles, agora o rei chefia a nação, constituída das gentes habitantes das cidades e terras feudais de diversas regiões e províncias, agora unidas sob um monarca, não apenas único, mas absoluto.
Se ninguém fica submetido a si mesmo, muito menos o soberano fica submetido a si próprio. Surgem, atreladas ao absolutismo do rei, a prática e a teoria da soberania real. O rei se impõe pela sua própria força. Força armada por apetrechos novos, sobretudo uma arma mais potente, que no fim da Idade Média fez a diferença em favor dos reis: o canhão. Este incorporou ao domínio do rei até mesmo o mar adjacente às suas terras, alcançado pelo poder de suas armas, até onde iam as balas dos seus canhões: usquearmorumpotestas. No início da era moderna, chamou-se potestassuperana esse poder superior aos demais, que se impõe por si mesmo, pela sua própria força, absoluto, solutus a legibus, ou seja, independente de qualquer lei racial ou feudal ou de qualquer outra lei humana. Essa força a si bastante se impõe por si mesma, pela sua própria força, que em última análise é a força armada. Apoiada na superioridade das armas, acima dos vínculos raciais ou feudais, definiu a sociedade política que então surgiu. É a soberania, que define o Estado. À sociedade política por ela estabilizada, vale dizer, à sociedade política estável sob o poder soberano de um príncipe, Maquiavel chamou Estado, empregando nesse sentido especial (por isso, hoje grafado com inicial maiúscula) um nome comum às situações em que as coisas estão, por exemplo, estado do tempo, estado do doente, estado disso, estado daquilo, etc.
Dessa maneira, o Estado caracterizado pela soberania surgiu na passagem da era medieval para a moderna. Nasceu como Estado (sociedade estabilizada pela soberania) nacional (tendo por base geopolítica a nação) monárquico (tendo por forma de governo a monarquia) e absoluto (tendo por regime político o absolutismo). A transição do feudal ao nacional definiu historicamente o Estado pela soberania. Se doutrinariamente também for definido pela soberania, será forçoso reconhecer que, assim definido, o Estado surgiu apenas no início da Idade Moderna. Não foi propriamente o Estado moderno que então surgiu, mas o próprio Estado. Antes, não houve propriamente Estado. Na Idade Média, a sociedade política constituiu-se de feudos definidos pelo domínio político-territorial. Na Idade Antiga, de pólis (a civitas romana): uma cidade e suas terras, definida pela autarquia econômica e política, ou seja, pela capacidade de auto-manter-se e auto-governar-se, tal como explicou Aristóteles no início de suas considerações sobre a "Política". Por conseguinte, na história da civilização, a sociedade humana, depois que se tornou sedentária, teve três bases geopolíticas sucessivamente – a pólis, o feudo, a nação – constituídas e definidas respectivamente pela autarquia dos cidadãos, pelo domínio do senhor feudal e pela soberania do governante. Já na história prévia à civilização, dita pré-história, a sociedade humana se constituiu de tribos, comunidades raciais errantes, não sedentárias, sem apropriação da terra e, portanto, sem base geopolítica fixa. Eram sociedades fixadas não pelo solo, mas definidas e caracterizadas pela consagüinidade, sendo orientadas pelo conselho dos mais velhos e regidas por um rei, que não era absoluto, mas escolhido ou aceito segundo uma lei natural, a saber: por sua maior sabedoria, vivência, experiência de vida.
O Estado de base nacional, que surgiu na Idade Moderna, perdura até os dias de hoje. Contudo, a partir dele, com base nele, mas em superação dele, ao longo da Idade Contemporânea se desenvolveu uma progressiva relativização da soberania, que está culminando presentemente na constituição da Comunidade ou União supranacional, na Europa, cuja força cultural ainda é a locomotiva da civilização ocidental. Assim como os feudos se globalizaram em estados nacionais, agora na evolução européia o processo de união continua pela globalização dos estados nacionais em comunidade supranacional. Esse processo se desenvolve tendoorigem e base na formação de um mercado comum, antes suprafeudal e agora supranacional, mas, partindo desse fundamento econômico, tem por seqüência e conseqüência a constituição de nova sociedade política por coligação e relativização, antes dos domínios feudais e agora das soberanias nacionais.
O processo de relativização da soberania principiou na Inglaterra, no fim do século 17, com a Revolução Gloriosa, que destronou Jaime II e entronizou Guilherme e Maria, mas submetidos a um regime político em que se firmou de um lado, para conter o governante, a divisão do seu poder político entre o rei, as casas parlamentares e os juízes, ao mesmo tempo que se confirmou do outro lado, para garantir o governado, um rol escrito dos seus direitos. A Inglaterra é uma ilha física e geograficamente, mas também política e institucionalmente. Suas condições peculiares ensejam, pela contínua evolução, o ajustamento dos usos e costumes políticos às exigências do momento histórico com tanta acomodação e presteza, que geram instituições políticas eficientes e pioneiras, as quais passam como modelo para a Europa continental e, mais amplamente, para o mundo ocidental. Foi assim que um século depois a relativização da soberania eclodiu no continente europeu e na América do Norte, pela racionalização e radicalização da divisão em separação de poderes e do rol em declaração de direitos e, enfim, pela inserção de ambas na constituição escrita, no processo histórico da Revolução Francesa e da Revolução de Independência dos Estados Unidos (que ficou conhecida, simplesmente, como Revolução Americana).
Não falta quem diga que a constituição passou a ser escrita em um código superior, formal e rígido, para organizar mais racionalmente o Estado. Porém, o valor diretivo – o vetor axiológico – que motivou e guiou a escrita da constituição não foi organizar o Estado, mas garantir a liberdade individual. A liberdade foi, então, concebida como absoluta prerrogativa do indivíduo, só limitável mediante uma lei igual para todos em função do interesse comum. Assim capaz de se opor ao Estado absoluto, a liberdade individual foi o valor fundante de um novo tipo de Estado que – por substituir e impor o império da lei ao império do rei, submetendo todos os indivíduos ao Direito – foi chamado Estado de Direito, o qual – tendo por conteúdo, neste seu primeiro momento histórico, um regime político derivado da ideologia do liberalismo – se chamou Estado Liberal de Direito.
Ao vestir constituição escrita, na Europa e na América, o Estado de Direito já aparece historicamente como Estado Constitucional, no qual toda a lei fica submetida à Constituição, posta como lei maior, fundamento de toda a ordem jurídica. A Revolução Francesa, a Revolução Americana e as outras revoluções liberais que de imediato as seguiram – ao escrever a constituição do Estado nacional em um código formal e rígido, por isso dito constituição, e nele inscrever a separação de poderes e a declaração de direitos – acreditaram que bastaria isso para garantir o indivíduo contra quem governasse e administrasse o estado-nação, cuja soberania ficaria assim relativizada.
A constituição escrita com separação de poderes e declaração de direitos seria o necessário e o bastante para debelar o arbítrio do poder e garantir a liberdade do indivíduo. Mas essa crença logo se revelou uma ilusão do idealismo revolucionário da primeira hora liberal. Não tardou a verificação de que a lei – embora feita pelos agentes do poder legislativo em nome do povo em função do interesse comum – não raro feria a Constituição e, por conseqüência, agredia os direitos que significavam liberdades. Daí, a necessidade histórica de – para garantir a liberdade individual contra o arbítrio político mediante a Constituição escrita – garantir a própria Constituição mediante o controle da inconstitucionalidade das leis. Eis como, à necessidade histórica de garantir a liberdade pela Constituição, sobreveio a necessidade histórica de garantir a Constituição pela constitucionalidade.
A possibilidade de agressão da lei à Constituição já havia sido tratada por Alexander Hamilton no número 78 de O Federalista, coleção de artigos em favor da aceitação da proposta de união federal pelos Estados que se uniam. Aí – igualando a Constituição ao interesse do povo e a lei inconstitucional ao mero interesse dos agentes do povo – ele concluiu que a interpretação das leis é uma província própria e peculiar das cortes e que uma constituição é, de fato, e deve ser considerada pelos juízes uma lei fundamental e que, portanto, cabe a estes verificar o significado dela, assim como o significado de qualquer ato particular procedente da corporação legislativa, de tal modo que, se suceder que exista uma discordância irreconciliável entre ambos, aquele que tiver validade e obrigatoriedade superiores deve, certamente, ser preferido; ou, em outras palavras, a Constituição deve ser preferida à lei: a intenção do povo, à intenção dos seus agentes. Foi assim que irrompeu para resolver o caso Marbury versus Madison, na prática do constitucionalismo norte-americano, o controle de constitucionalidade das leis: como meio para o fim de garantir a constituição para garantir a intenção do povo, então centrada na preocupação maior daquele momento histórico: a garantia da liberdade.
Eis como a soberania sofreu a sua primeira relativização na medida em que o Estado se libertou do absolutismo e o Estado Liberal de Direito se constituiu por escrito, exceto na Inglaterra, onde nasceu dos usos e costumes constitucionais. Esse processo de relativização da soberania prosseguiu no curso da evolução do estado liberal para o Estado Social de Direito, cuja plenitude jurídica é o Estado Democrático de Direito, a ser alcançado com a terceira geração de direitos, os direitos de solidariedade, que surgem e urgem no rumo de um estado de direito pleno, em que os direitos humanos sejam direitos de todos baseados em deveres de todos e não apenas do Estado.
A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo inaugural, afirma que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Mas, embora tenha sido escrita pelo Constituinte com o verbo no indicativo presente, essa afirmação não é uma realidade presente. É um desejo do povo brasileiro, que ainda está por ser satisfeito. A verdade é que, no mundo dos fatos jurídicos, no processo da história do Direito, o Estado Democrático de Direito somente se realizará no Brasil, como em qualquer país, quando – não só os direitos políticos – mas todos os direitos fundamentais, inclusive os políticos, estiverem convertidos em direitos humanos difusos, integrais, recíprocos, solidários: verdadeiros direitos de todos que, por serem apoiados nos deveres de todos que lhes sejam correspondentes, possam assim, quanto à titularidade, sujeitar todos os indivíduos da espécie humana e, quanto ao objeto, apreender todos os valores da dignidade humana.
A dignidade humana é a versão axiológica da natureza humana. É a valorização das condições em que o ser humano nasce e se desenvolve no seu processo histórico-social. Aí, por que os valores da dignidade humana são realmente os valores fundantes da espécie humana. São constantes axiológicas que fundam a humanidade no processo histórico, valorizando as diferenças específicas que a definem, alçando a um plano superior de consideração as condições fundamentais da sua existência e realçando nesse plano as notas básicas da sua essência. Existência e essência humanas, que por enquanto ainda estão adstritas à Terra, mas brevemente irão além dela, até aonde possamos chegar.
Entre 1787 e 1788, a imprensa de Nova York publicou oitenta e cinco artigos escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, assinando os três com o mesmo pseudônimo, Publius, e defendendo a ratificação pelos Estados do projeto de constituição federal elaborado em Filadélfia. Conhecidos como Papéis Federalistas, esses artigos hoje estão reunidos em um livro, sob o título de O Federalista, do qual existeedição em português. Cf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist. Chicago, Londres, Toronto: William Benton, Publisher, Encyclopaedia Britannica, Inc., 1952. p. 231. (Traduzi.) Cf. BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização, pág. 326. Tese defendida e aprovada no concurso para obtenção do título de livre-docente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em 2001. Em fevereiro de 2002, com o mesmo título, estará nas livrarias o livro relativo a essa tese. Por ora, o seu texto pode ser consultado na Biblioteca da Faculdade de Direito da USP.

Outros materiais