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Leitura! Argumentaçõo no ensino de Língua Portuguesa Mariléia Silva dos Reis Márcia Regina Curado Pereira Mariano Derli Machado de Oliveira Orgs.l * Editora UFS FICH A CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Leitura e argum entação no ensino de Língua Portuguesa / Organizadores: M ariléia Silva dos Reis, M árcia Regina Curado Pereira M ariano e Derli M achado de Oliveira - São Cristóvão : Editora UFS, 2015. 162 p. L533 ISBN 978-85-7822-513-1 1. Língua portuguesa - Estudo e ensino. 2. Leitura. 3. I. Reis, M ariléia Silva. II. Mariano, M árcia Regina Curado Pereira. III. Oliveira, Derli Machado. CDU 811.134.3(81) SUMÁRIO Apresentação 8 Da linguística imanente à linguística do discurso: em busca dos ‘fundadores de discursividade’ Maria Emília de Rodat de Aguiar Barreto Barros 14 Argumentação no livro didático: análise de um capítulo de Cereja e Magalhães Márcia Regina Curado Pereira Mariano 40 A ironia e a não coincidência do dizer nas tiras em quadrinhos José Ricardo Carvalho 52 Letramento visual: caminhos teóricos e práticos para a análise de imagens Cynthia Carlla de Alm eida Andrade D erli Machado de Oliveira, José Teixeira Neto Sandra Virgínia Correia de Andrade Santos 66 Monotongação e ensino: estudo de caso em Itabaiana José Humberto dos Santos Santana M ariléia Silva dos Reis 84 Produção de textos no ensino fundamental: referenciação em multimodalidade G ilvan da Costa Santana 100 Temas Transversais e TIC: um caminho para a argumentação Edineide Santana Cardoso da Silva 112 A IRONIA E A NÃO-COINCIDÊNCIA D O DIZER NAS TIRAS EM QUADRINHOS JOSÉ RICARDO CARVALHO Tomando como referência o estudo de Bakhtin (1995), divulgado no livro "Marxismo e Filosofia da Linguagem”, identificamos nas tiras de ^ u in o o recurso da menção como fonte do discurso citado. Isto significa dizer que todo enunciado é assimilado por outro locutor sob um novo prisma. A partir desta configuração enunciativa constatam os que todo dizer carrega referências e células de sentidos de outros dis cursos. Este processo constitutivo da linguagem é aprofundado com os estudos de Jaqueline Authier-Revuz (1990), conferindo o conceito de heterogeneidade m ostrada m arcada (discurso direto, discurso indire to, itálico, negação, paráfrase, negrito) jun tam ente com a heterogenei dade não-m arcada (discurso indireto livre, ironia, paródia, provérbio, imitação, pastiche). Tais fenôm enos discursivos revelam processos de derivação, não responsabilizando o locutor pelo que está sendo dito. Em sua abordagem, pode ocorrer na não coincidência interlocutiva e não coincidência com o próprio discurso. Esta form a de realização discursiva m etaenunciativa lança proposições irônicas. Sendo assim, pretendem os sinalizar aspectos m etaenunciativos expressos pelos per sonagens das tiras em quadrinhos, buscando com preender a produção da ironia com base no suporte teórico referido. A noção de ironia como figura de linguagem é vista como recurso retórico que promove um dito inverso ao afirmado em um enunciado. Esta posição tem sido questionada por estudos linguísticos que tomam o funcionamento da linguagem para investigar a organização da ironia. De acordo com Sperber e W ilson (2001), a noção tradicional de ironia não consegue explicar determinados fenômenos de uso da linguagem no processo interacional. A abordagem clássica apresenta problemas quando localiza a presença de elementos contraditórios como fonte do discurso irônico, adotando, assim, a noção de sentido figurado e sentido literal como pontos divergentes na constituição da ironia. Na aborda gem destes autores, a compreensão da ironia genuína envolve a ridicu larização de um a opinião de um terceiro ou de um interlocutor a quem o falante faz eco. Para comprovar a falta de consistência da noção de ironia clássica, Sperber e W ilson (2001) relatam o caso de um motorista excessivamente cauteloso diante da estrada. Seu amigo, que o acom panhava em uma viagem, de repente vê uma ciclista em um a distância considerável e enuncia: "Vem aí qualquer coisa”, referindo-se a um ci clista que se encontrava bem distante. Observa-se que o ato de ironia não consiste em dizer o contrário, mas em fazer eco a um a determinada atitude expressa pelo amigo. digo (vem aí qualquer coisa) em tom de censura. Nessas circuns tâncias, esse comentário pode bem ser irônico. Estou a fazer eco do tipo de opinião que o meu amigo está. No momento em que o meu amigo entra na estrada principal, eu constantemente a exprimir, mas em circunstancia que a tornam claramente ridícula. Assim a única coisa necessária para tornar (vem aí qualquer coisa) irônica é um elemento ecóico e uma atitude de troça ou de censura que lhe é associada. (SPERBER& WILSON, 2001, p.354) Como se observa, a ironia pode ir além de dizer ao contrário. Para explicitar m elhor essa tese, Sperber e W ilson (1978) dem onstram que a ironia é resultado do processo de menção, ou seja, toma-se um frag m ento do discurso para realizar um com entário sobre ele. A menção é um recurso para fazer um enunciado ser dobrado e logo em seguida ser com entado com um acento apreciativo. Estes autores, então, cha mam atenção para a diferença entre "menção” e "emprego”. A noção de emprego corresponde a um a atividade linguística voltada para a representação de um elemento externo fora do discurso ao qual se faz referência. Já noção de menção funciona como um eco de um enun ciado, expressão ou palavra da qual se realiza um comentário, estabe lecendo um acento de apreciação. Neste processo, há a manifestação de um discurso que o falante não assimila como seu, m ostrando certo distanciam ento entre dois pontos de v ista que assumem divergências. Koch (1996) sintetiza a relação de ironia e menção proposta de Sperber e W ilson da seguinte forma: Segundo Sperber e Wilson (1978), as ironias podem ser descritas como menções, geralmente implícitas, de proposição, interpretadas como eco de um enunciado ou de um pensamento cuja falta de per tinência ou inexatidão o locutor pretende sublinhar. Normalmente, 53 A ironia e a não-coincidência do dizer nas tiras em quadrinhos 54 Leitura e Argumentação no ensino de Língua Portuguesa as ironias têm um alvo determinado: quando se trata de um eco dis tante e vago elas não visam um alvo determinado; quando, porém, o eco é próximo e precisável, o alvo são as pessoas às quais elas fazem eco. Se o locutor faz eco a si mesmo, tem-se a auto-ironia; se faz eco destinatário, tem-se o sarcasmo. (KOCH, 1996, p.154) Como vemos, o processo de produção do humor, pela via da iro nia, consiste em um processo de menção para realização de atividades m etaenunciativas. A fala dos personagens dos quadrinhos, organizada pelo quadrinhista, é organizada por com entários de um discurso sobre outro, form ulando ditos irônicos. Neste estudo, analisamos os processos que envolvem a produção do efeito risível pela via das ironias lançadas pelos personagens das tiras em quadrinhos da série Mafalda. Para sustentar as indagações, partim os do pressuposto que a ironia decorre de um processo metae- nuciativo em que um personagem ao realizar um ato de fala expõe um acento de apreciação negativo sobre um a enunciação. Isto é, a ava liação de células do discurso pronunciado não é de todo de responsa bilidade do locutor, visto que este faz menção a um discurso alheio, explicitando por meio de m arcas linguísticas a não adesão ao conteúdo ou ponto de vista apresentado. Para realizar esta atividade existem algumas m anobras discursivas que dem onstram o não com prom eti m ento sobre o que está sendo dito, projetando na enunciação formas implícitas no plano do discurso que expressam atos de ironia. Aproveitando-se de marcas gráficas, daexpressão facial dos perso nagens e de jogos de linguagem, o quadrinhista coloca em confronto o discurso de um personagem e o discurso alheio a ser criticado por meio de menções. Para com preender os mecanismos constitutivos das form u lações irônicas presentes nos enunciados produzidos pelos personagens, levamos em conta os processos autonímicos, isto é, a propriedade da lin guagem se dobrar sobre si mesma. guando alguém pergunta em forma de adivinha "o que é que existe no meio da rua?” dando como resposta a letra ‘u ’, o sujeito não se remete ao objeto existente no mundo, mas à metalinguagem utilizada para falar do mundo. Com isso, se faz uma menção a um termo presente na linguagem. Se alguém pergunta: "você fala francês?” e outro responde: "sim, francês”, dizemos que o su jeito utilizou a menção como forma de atuar no plano metaenunciativo1. Observam os que as aspas desem penham um papel im portante no modo de m arcar o discurso do outro com diferentes funções no plano enunciativo. Ao descrever os estudos de Authier, foi sintetizado por Koch (1997, p. 53-54) um conjunto de funções das aspas: I - asp as de d ife re n c ia ç ã o (para m ostrar que nos distinguim os daquele(s) que usa(m) a palavra, que so mos "irredutíveis” às palavras mencionadas); II- a sp as de c o n d e sc en d ên c ia (para assinalar um a palavra que se incorpora ‘paternalisticam ente’, para saber o que o in terlocutor faria assim; III- asp as pedagóg icas: (no discurso de vulgarização científica, que assinalam, frequentem ente, o uso de term os ou expressões vulgares, como um passo in ter mediário para perm itir o emprego posterior da pala vra "verdadeira”, "correta” à qual o locutor adere); IV- asp as de p ro teção : para m ostrar que palavras ou expressões usadas não são plenam ente apropriadas, que estão sendo em pregadas no lugar de outras, cons tituindo, m uitas vezes, m etáforas banais; V - a sp as de ê n fase o u in s is tê n c ia VI - aspas de q u es tio n am en to ofensivo ou irôn ico (quanto a propriedade da palavra ou expressão empre gada pelo interlocutor por prudência ou por imposição a situação.) É a partir do entendim ento de que todo dizer é atravessado por um a cadeia discursiva capaz de viabilizar a inserção de um processo de com preensão ativa2 que Bakhtin sustenta a noção de dialogismo como 1 "Os analistas de discurso cham am de m etaenunciação ao processo pelo qual os locutores ‘com entam ’ aquilo mesmo que dizem. Tais enunciações têm função de m arcar ‘não coin cidências’ seja entre locutores (dois locutores não em pregariam as mesm as palavras), seja entre discursos (já que o discurso pode ser afetado por outro), seja entre as palavras e as coisas (as palavras seriam ‘incapazes’ de nom ear de form a transparente), seja das palavras consigo mesm as (as palavras podem ter mais de um sentido)” (POSSENTI, 2002, p.82) 2 Para Bakthin com preensão significa um a form a de diálogo onde se opõe a palavra do locutor a um a contrapalavra. 55 A ironia e a não-coincidência do dizer nas tiras em quadrinhos 56 Leitura e Argumentação no ensino de Língua Portuguesa modo constitutivo de funcionam ento da linguagem. Para agir sobre um enunciado, torna-se necessário desdobrar as palavras a um já dito, confrontá-las com outros dizeres, pensá-las sobre diversas perspecti vas de form a apreciativa, instaurando, assim, um a contrapalavra como diria Bakhtin(1995). Isto significa dizer que o processo de com preen são vai além do entendim ento de palavras soltas ou sentenças isoladas, necessita-se rem eter às m anifestações do discurso de outrem inserido em um novo discurso. Sintaticam ente, a configuração deste fenômeno (discurso relatado) pode ser expressa por meio do discurso direto, in direto e indireto livre. Contudo, não são som ente as marcas sintáticas os elem entos que identificam a fronteira entre dois discursos. A com posição de discursos se configura, também, na relação entre as m arcas de subjetividade e sua relação com a exterioridade. Neste contexto, todo dizer pressupõe a presença do outro que con fere um a instância de alteridade a definir os papéis a serem cum pridos no plano enunciativo. O ato de proferir um enunciado de form a ne gativa conota em sua prem issa a presença de outro, em bora não pre sente, assumindo um a perspectiva positiva ao mesmo dizer. Vale dizer que no processo de citação a heterogeneidade discursiva se m anifesta a sua últim a potência. Com preendem os que há m uitos desafios para explicitar os proces sos constitutivos da ironia em um a perspectiva enunciativa. No campo do gênero ‘tira em quadrinhos’, cada hum orista com bina diferentes recursos para prom over a ironia e o efeito risível. Observamos nas tiras de ^ u in o a contraposição de dois ou m ais discursos de form a a ridicularizar um a das partes. Destaca-se, neste contexto, a produção de argum entos dos persona gens que retomam o discurso do outro com um acento apreciativo ne gativo. Sendo assim, a base da ironia consiste na menção a um discurso alheio de forma a estabelecer um juízo depreciativo ou questionador em relação a um a atitude ou posicionamento discursivo. Tomando como referência o estudo de Bakhtin (1995), divulgado no livro "Marxismo e Filosofia da Linguagem”, identificamos nas tiras de ^u in o o recurso da menção como uma atividade decorrente do discurso citado. Isto signi fica dizer que todo enunciado é assimilado por outro enunciador com um novo acento apreciativo. A partir desta configuração enunciativa, é possível constatar que todo discurso é heterogêneo, isto é, todo dizer carrega referências e células de sentidos de outros discursos. Este processo constitutivo da linguagem é aprofundado com os estu dos de Jaqueline Authier-Revuz (1990) que elabora o conceito de hetero geneidade m ostrada (marcada e não marcada) no discurso. A heteroge neidade mostrada revela um a não coincidência do discurso como fonte com o discurso derivado, não responsabilizando o locutor do segundo discurso pelo que está sendo dito. Em sua abordagem, pode ocorrer não coincidência interlocutiva e não coincidência com o próprio discurso. Esta forma de realização discursiva m etaenunciativa é realizada pelos personagens quando lançam proposições irônicas. Sendo assim, preten demos sinalizar os aspectos dos processos m etaenunciativos encontra dos nas tiras em quadrinhos que geram a produção de ironia. O discurso citado e a heterogeneidade Sobre o recorte das enunciações, retomamos os estudos de Bakh tin (1995) que chamam atenção para o fenômeno do discurso citado3. Uma parte de um a enunciação pode ser retomada fora de seu contexto de origem, sendo assimilada por outra enunciação. Isto pode acontecer, graças à mobilidade das fronteiras e à autonom ia relativa das enuncia ções, permitindo, assim, a inclusão de parte de um a situação enunciativa em outro discurso. Essa elaboração, entretanto, exige que o falante, ao retom ar a enunciação de outro, venha a fazer reformulações no plano de sua composição sintática e estilística, de modo que a palavra e os senti dos de um a determinada situação enunciativa sejam resgatados em seu discurso. A partir da configuração enunciativa proposta por Bakhtin, foi possível constatar que todo discurso é heterogêneo, isto é, toda enun ciação carrega referências e células de sentidos de outros discursos. Não é possível significar sem retom ar significações da palavra de outrem. 3 "O processo de citação de um enunciado dentro de outro, conform e as relações estabe lecidas entre discurso citante e discurso citado, pode se dar através da realização de três estratégias diferentes: como discurso direto (DD) que preserva a independência do dis curso citado em relação ao citante; como discurso indireto (DI) que subordina o discursocitado ao ato de enunciação do discurso citante e, finalmente, como discurso indireto livre (DIL) que é mais restrito ao campo literário e vale-se dos dois anteriores para um tipo de enunciação específico (...) Segundo M aingueneau, enquanto no DD tem-se a crença de que há repetição das palavras de um outro ato de enunciação, dissociando, portanto, dois atos de enunciação, no DI só há citação do sentido, constituindo-se, assim, em tradução de um a enunciação citada” (FLORES, 1999, p. 144/145). 57 A ironia e a não-coincidência do dizer nas tiras em quadrinhos 58 Leitura e Argumentação no ensino de Língua Portuguesa Este processo dialógico pode ser notado por meio da heterogeneidade de nossa fala. Todas as vezes que nos referimos a algo, trazemos de al guma forma o discurso de outrem. Na maior parte das vezes, quando isto acontece, deixamos marcas na superfície do texto que podem ser identificadas em um processo de análise. Este processo constitutivo da linguagem é aprofundado com os estudos de Jaqueline Authier-Revuz (1990), conferindo o conceito de heterogeneidade constitutiva, presença do outro não localizada na superfície do discurso, mas percebida no in- terdiscurso (Além da formulação teórica de heterogeneidade constituti va, a autora descreve a presença do outro na cadeia discursiva por meio da noção de heterogeneidade m ostrada (marcada e não marcada). São formas de heterogeneidade mostrada marcada: discurso direto, discurso indireto, negação, paráfrase, e as formas de conotação autoními- ca, isto é, as aspas, o itálico, as entonações e as glosas. Considera-se que as conotações autonímicas são inscritas no fio contínuo do discurso sem uma marca de interrupção. Se substituíssemos as aspas, por exemplo, por outras palavras, teríamos "como diria y” ou "ele diria x”, confirmando a não assimilação sobre o que está sendo afirmado. Em outras palavras, o locutor assume um afastamento sobre o que é dito, assumindo uma pos tura de juiz sobre as formulações enunciadas no momento em que são pronunciadas. Diante deste fato, Maingueneau e Charaudeau (2004, p. 326-327) demonstram que o metadiscurso desempenha diferentes funções no plano das interações com distintas modalizações autonímicas. (1)auto-corrigir-se ("eu deveria ter dito...” "mais exatamente”), ou corrigir o outro ("você quer dizer, na realidade, que ...”); (2 ) marcar a inadequação de certas palavras (“se se pode dizer”, “por assim dizer”...); (3) eliminar antecipadamente um erro de interpretação ("no sentido exato”, "metaforicamente”, "em todos os sentidos da palavra”...); (4) desculpar-se ("desculpe-me a expressão”, "se eu posso me permitir”...); (5) reformular o propósito (“dito de outra forma”, “em outras palavras”...) etc. Com procedim entos m etadiscursivos, notam os a presença de mo- dalizadores que revelam opinião e posicionam ento do falante diante da produção de um enunciado. A retom ada do discurso de um ou trem revela, em m uitos m omentos, a não coincidência do dizer nas seguintes instâncias: a) entre enunciador e coenunciador; b) entre dis curso proferido e a fonte de referência; c) entre o emprego das pala vras diante de um referente; d) polissemia e ambiguidade do próprio sistem a linguístico. Este fato decorre da heterogeneidade de sentidos das palavras e dos variados posicionam entos discursivos sobre dados em busca de interpretação. Vejamos como tal fato ocorre na tira de ^ u in o a seguir. Reproduzimos as falas encontradas nos balões que re presentam o diálogo entre a personagem Susanita e Mafalda em um a tira publicada por ^u ino . Observarem os a m udança de tipo de letras colocada nos balões e o deslocamento enunciativo representado pelo transform ação gráfica. Q U A D R O 1 : D IÁ L O G O EN TR E S U S A N ITA E M A F A L D A 1° quadrinho 2° quadrinho 3° quadrinho 4° quadrinho - Minha mãe amassa. - Amassa só? - Sim, amassa e salga a massa. - A massa se amas sa na mesa. - A massa é sã. - Sim, essa massa é sã. O bom de ir para a escola é que a gente pode ter conversas literárias. (QUINO, 2007, tira 338) Quino representa graficamente com letras diferentes (cursiva e impres sa) os diferentes discursos, demarcando no espaço da fala aquilo que corres ponde à reprodução do discurso da cartilha. No quarto quadrinho, Mafalda faz um comentário sobre a citação reproduzida de forma irônica, chamando o que disseram as duas personagens de “conversas literárias”. Desempe nhando a mesma função das aspas, as letras em manuscrito (itálico) assu mem o papel de aspas de diferenciação, atribuindo o dito a outro. Sendo as sim, a ironia se organiza por meio de um processo metaenunciativo em que o falante faz um comentário sobre um enunciado ao qual não compartilha de sua opinião. Uma das formas de marcar a adesão ou repulsa a um deter minado discurso seria o uso de modalizadores. No discurso oral poderia se manifestar com um “Ah!”, “Hum”, já no caso do discurso escrito as marcas podem aparecer por meio de aspas e itálico, entre outras formas gráficas, que marquem a fronteira entre um dizer e outro. No caso da tirinha, que acabamos de ver, o uso da mudança de letra funciona como modalizador para demarcar a citação e a não aderência do falante perante o enunciado dito. Neveu (2008) caracteriza a modalização da seguinte forma: Operação linguística destinada a marcar o grau de adesão do sujeito da enunciação, tendo em vista o conteúdo dos enunciados que ele profere. Chamam-se modalizadores as expressões linguísticas, os procedimentos tipográficos, ou marcas prosódicas empregados 59 A ironia e a não-coincidência do dizer nas tiras em quadrinhos 6o Leitura e Argumentação no ensino de Língua Portuguesa para realizar essa operação. Catherine Kerbrat-Oricchioni (L’ Énonciation - De la subjectivé dans le langage, 1980) considera, dentre essas marcas, notadamente o uso de aspas enunciando um certo distanciamento, as expressões do tipo é [ verdadeiro, duvidoso, certo, incontestável...] . (NEVEU, 2008, p.205) Como vemos, em toda formulação discursiva é possível localizar fragm entos em que os signos não se referem à realidade externa da linguagem, mas a própria linguagem que constitui os enunciados, re velando, assim, propriedades autoním icas de uso dos signos. Sendo assim, dizemos que o sujeito que produz um enunciado pode in ter rom per o fio de seu discurso para tecer com entários sobre algo já dito. Com este m ovimento o locutor estabelece processos metadiscursivos que conferem o atravessam ento do discurso de outrem em sua enun ciação. Nesta perspectiva, o falante pode trazer palavras, afirmações que reservam certo distanciam ento de sua posição discursiva. Tal p ro cedimento revela a heterogeneidade do dizer no plano discursivo. Jaqueline Authier-Revuz (1990) fundam entou sua abordagem psi- canalítica lacaniana. Para ela, todo discurso é determ inado por um já dito de form a inconsciente. O produtor de um discurso não tem total controle sobre o seu dizer. Ao form ular um enunciado, os sentidos das palavras e das expressões são tom ados por um a significação pré-cons- truída. A esse fenôm eno A uthier denom ina heterogeneidade consti tutiva. Observa-se que todo discurso é produto de um a m em ória do dizer (interdiscurso). O discurso do Outro comparece nas formulações enunciativas do sujeito, sem que este tenha consciência. Sendo assim, não podem os localizar e dem onstrar na superfície do texto a fonte que determ ina seu dizer. A razão de seu dizer está vinculada ao processo de identificação com discursos produzidos no universo social. Veja mos a tira em que a personagem Susanita aparece em todos os balões sozinha, dirigindo a sua fala para Mafalda que não se encontra em nenhum dos quadrinhos. Q U A D R O 2: D IÁ LO G O DE S U S A NIT A E M A F A L D A 1° quadrinho 2° quadrinho 3° quadrinho 4° q u ad rin h o - Ficou louca, mafalda? Eu ter uma profissão? - Eu ser engenhei ra, arquiteta, advo gada, médica? Vou ser mulher! - Eu vou ser dona de casa e me em penhar nas tarefas domésticas! Vou ser mulher! - E não uma dessa afeminadas que trabalham em coi sas de homens! (QUINO, 2007, tira 338) A manifestação da heterogeneidade no discurso de Susanita não se encontra m arcada de form a nítida. Podemos identificá-la pelo modo como ela se filia a um discurso que vê a m ulher voltada para as fun ções domésticas na sociedade. A personagem Susanita, ao se dirigir à personagem Mafalda que está ausente nas vinhetas, assume de form a agressiva, realizando um ato de fala que corresponde um protesto. Re param os que a personagem não cita palavras exatas de nenhum dis curso, contudo é possível observar um a linha de argum entação que condiz com o discurso m achista. D esta forma, a personagem Susanita, no jogo discursivo, defende a ideia de que a m ulher não deve ocupar os cargos de engenheira, arquiteta, advogada e médica, pois estes des caracterizam a identidade da mulher. A graça do enunciado reside na atitude de Susanita se exprim ir como um a m ilitante que adere a um posicionam ento político desfavorável à sua condição de mulher, re produzindo um posicionam ento tipicam ente machista. Além da heterogeneidade constitutiva, Authier observou outra forma de heterogeneidade capaz de ser demonstrada na superfície textual, tra ta-se da heterogeneidade mostrada. De acordo com a síntese de Mussalim (2001, p.128) esta heterogeneidade pode se manifestar de três formas: a) aquela em que o locutor ou usa de suas próprias palavras para traduzir o discurso de um Outro (discurso relatado) ou então recorta as palavras do Outro e as cita (discurso direto); b) aquela em que o locutor assinala as palavras do Outro em seu discurso, por meio, por exemplo, de aspas, de itálico, de uma remissão a outro discurso, sem que o fio do discurso seja interrompido; c) aquela em que a presença do Outro não é explicitamente mostrada na frase, mas é mostrada no espaço do implícito, do sugerido, como nos casos do discurso indireto livre, da antífrase, da ironia, da imitação, da alusão. Para A uthier (1990), a heterogeneidade m ostrada revela um a não- -coincidência do discurso fonte com o discurso derivado. Todo dizer, ao retom ar um discurso, produz deslocamentos, favorecendo rupturas de sentidos. Desta m aneira, a heterogeneidade m ostrada pode se m a nifestar de duas formas, organizadas no quadro a seguir: 61 A ironia e a não-coincidência do dizer nas tiras em quadrinhos 62 Leitura e Argumentação no ensino de Língua Portuguesa Q U A D R O 3: A H E TE R O G E N E ID A D E M O S T R A D A MARCADA NÃO-MARCADA Discurso direto, discurso indireto, Discurso indireto livre, ironia, paródia, pro- itálico, negação, paráfrase, negrito. vérbio, imitação, slogan, pastiche. Para exemplificarmos um caso de heterogeneidade marcada, tom a rem os a reprodução dos enunciados inscritos em um a tira em quadri- nho de ^u ino . Q U A D R O 4: A H E TE R O G E N E ID A D E M O S T R A D A - E X E M P LO 1° QUADRINHO 2° QUADRINHO 3° QUADRINHO Figura de uma senho ra rezando e no alto a figura do nosso senhor com asas no céu. Figura de um homem re zando e o nosso senhor com asas no céu. Figura de susanita rezan do se dirigindo ao nosso senhor com asas no céu. - O pão nosso de cada dia nos dai hoje... - Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. - E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, não nos coloquei em confusões como aque la gordinha da padaria que ficou sabendo que o namorado também era namorado da prima casa da com o trouxa que antes andava com a irmã... (QUINO, 2000, p.406). Identificamos, nos enunciados da tira, trechos de uma oração católi ca O pai nosso. Evidencia-se aí a heterogeneidade m arcada no discurso em que se observa uma fronteira entre o discurso religioso e o discurso da personagem Susanita. O discurso religioso é repetido por dois perso nagens tal como ele é apresentado na bíblia. O mesmo discurso bíblico, apropriado pela personagem Susanita, assume um a panorâm ica diversa de sua fonte, ou seja, o locutor produz um novo sentido, convertendo a prece em uma fofoca. Com isso, observamos um deslocamento na for mulação do discurso religioso com enunciados advindos do Pai nosso, assinalando marcas de heterogeneidade m ostrada no discurso. A pro dutividade das relações constatadas está, exatamente, na tensão entre dois discursos que a rigor não se combinam. Isto é, ao mesmo tempo em que Susanita se dirige a Deus por meio de um a oração reconhecida no espaço católico, incorpora ao texto comentários sobre a vida alheia. Desta maneira, o quadrinhista encena situações em que o falante não tem controle sobre a linguagem, projetando de alguma forma formula ções que advém de dois campos discursivos distintos. A uthier (1998) aponta para um sujeito cindido, disperso e dividido em que a exterioridade da linguagem tem relação, justam ente, com o inconsciente. Com isso, o olhar dos mecanism os enunciativos de Au- th ier dá visibilidade aos lapsos, atos falhos e chistes que estão constan tem ente sendo enfocados nas tiras de humor. Ao contrário desta pes quisadora, o linguista Ducrot trará outra visão para retratar o sujeito da enunciação por meio do desdobram ento de entidades enunciativas. No lugar de pensar o sujeito cindido, reflete sobre a m ultiplicidade e o desdobram ento do ato de dizer realizado por locutores e enunciadores. Concluímos que a ironia não é dizer o contrário do que havia sido dito, mas a exposição de um enunciado que assum e um a perspectiva de confronto com o enunciado de outro locutor, prom ovendo assim, com entários críticos sobre um determ inado ato enunciativo. A ironia pode acontecer em dois níveis nos quadrinhos. No prim eiro nível, os personagens no interior da enunciação agem de form a irônica diante de outros personagens, instalando vozes, que a serem confrontadas com o discurso do opositor, faz o discurso alheio se to rnar absurdo. Em um segundo nível, o autor que arregim enta discursos confronta pontos de vista incongruentes. Um dos enunciadores, colocado em ce na, postula um a perspectiva absurda diante da enunciação. Neste caso, o efeito risível não decorre de um locutor propriam ente dito, mas das condições em que um enunciado é proferido. 63 A ironia e a não-coincidência do dizer nas tiras em quadrinhos 64 Leitura e Argumentação no ensino de Língua Portuguesa Referências bibliográficas AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Palavras Incertas.- as não-coincidências do dizer. Campinas: UNICAMP, 1998. __________ . Heterogeneidade(s) enunciativas. In: Caderno de Estudos Lingüísti cos . Campinas (19): 25-42, jul/dez., 1990. BAKHTIN, M. M./ VOLOSHINOV, V. N. M arxismo e filosofia da linguagem . problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. __________ . Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. DUCROT, Oswald. Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação. In: O Dizer e o D ito . Campinas: Pontes, 1987. __________ . 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T ra ta -se de p ropos ições p rá ticas de ens ino de L ín g ua Portuguesa a a lunos do E ns ino Fundam en ta l, com pedagogias com pa tíve is ao m u lt i le tra m e n to que o m undo g lo b a li zado passou a e x ig ir dos estudantes com o adven to da in te rn e t d en tro e fo ra dos m u ros da escola; às m ú lt i p las com pe tênc ias com un ica tiva s em am b ien te v ir tu a l e rea l de in te ra ção ; às d ife renças lin gu ís tica s , socia is e cu ltu ra is de nossa m acro rreg ião , pa ra a p rom oção e a in c lu são socia is; e, p o r fim , à e laboração de m a te r ia l d idá tico in o va do r que atende a to da essa d ivers idade. E é pe la le itu ra e pe la a rgum en tação que a escola asse gu ra aos a lunos a sua inserção soc ia l pa ra o exerc íc io p leno de cidadania . O rgan izadores. n
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