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REVISTA DO PROFESSOR, 38 jul./set. 2007(91):Porto Alegre, 23 38-42, RELATO DE EXPERI NCIAS Arte: caminho que facilita a inclusão de alunos com necessidades especiais Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda a possibilidade que tenho para não apenas falar de minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerentes. Paulo Freire A proposta de inclusão de alu nos com necessidades especiais, no ensino regular, é hoje garantida pela legislação educacional bra sileira. Contudo, a inclusão com garantia de direitos e qualidade de educação ainda é um sonho a ser alcançado, um caminho a ser construído, onde várias mudanças serão necessárias: estruturais, no que se refere à organização da escola regular, e de concepções pedagógicas dos professores que atuam nas mesmas. De acordo com Beyer, a pri meira condição para a educação inclusiva não custa dinheiro: ela exige uma nova forma de pensar. Precisamos entender que as crian ças são diferentes entre si. Elas são únicas em sua forma de pensar e aprender. Mudanças evocam pensar, re fletir, estudar, construir e recons truir, assumir novos paradig mas de educação e, assim, organizar uma nova proposta educacio nal que seja inclusiva. Mudar é difícil, mas, como diz sabiamente Paulo Freire, mudar implica saber que fazêlo é possível. Cremos nas mudanças gradati vas, que modificam também o pen sar, não somente o agir. Para tanto, buscamos mudar a concepção que os professores têm sobre o aluno com necessidades educa cio nais especiais. A experiência que ora apresen tamos envolveu duas turmas da Escola Estadual Especial Cristo Redentor, instituição que aten de alunos exclusivamente com quadros de deficiência mental, autismo e psicose e duas turmas da Escola Infantil Fantástico Mun- do da Criança, escola de ensino regular, localizada nas imediações da nossa e que prontamente se en gajou na proposta apresentada e no desafio lançado. Ambas as escolas situamse no Bairro Cristo Reden tor, na cidade de Porto Alegre/RS. As duas instituições escolares vivenciavam e vivenciam situações muito distintas em seu diaadia. A Escola Especial é uma instituição estadual, com uma clientela na sua grande maioria de classe baixa, ou média baixa, com seus alunos apresentando comprometimentos cog ni ti vos e emocionais significa tivos. A Escola Infantil, por outro lado, é uma instituição particular, que atende a uma clien tela de clas se média, onde não havia ocorrido • KARLA FERNANDA WUNDER DA SILVA Pedagoga Especial. Psicopedagoga Institucional. Vice-Diretora da Escola Estadual Especial Cristo Redentor. Porto Alegre/RS. E-mail: kakaiw@gmail.com • ROBERTA PORCHER MARQUES Pedagoga Especial. Psicopedagoga Institucional. Professora da Escola Estadual Especial Cristo Redentor. Porto Alegre/RS. E-mail: betaporcher@gmail.com • SAMARA DE AVILA BOTTIN Pedagoga Especial. Psicopedagoga Clínica. Professora da Escola Estadual Especial Cristo Redentor. Porto Alegre/RS. E-mail: samybottin@gmail.com REVISTA DO PROFESSOR, jul./set. 2007 39 (91):Porto Alegre, 23 38-42, RELATO DE EXPERI NCIAS até o presente momento nenhum caso de aluno com necessidades educa cio nais especiais. Realidades distintas sim, mas que não impediram que os desejos de educadores tornassem realidade esta experiência, sob a forma de projeto, e contagiassem os alunos de ambas as escolas. Os alunos da Escola Especial, participantes da experiência, eram portadores de déficit cognitivo acentuado (deficiência mental), encontrandose na faixa etária de 5 até 11 anos. Os da Escola Infantil tinham de 3 até 6 anos de idade. O que desencadeou a experiên cia foi o trabalho que as professo ras da escola especial realizavam com seus alunos – oficininhasde arte (artes plásticas e música) – e nele viram avanços nas conquistas cognitivas dos alunos, bem como os estudos sobre inclusão realiza dos na própria escola. Isto foi o ponto de partida para assumirem a responsabilidade de desmistificar o conceito, socialmente construí do, de que o aluno especial não é capaz, não consegue relacionarse com os outros, e para criarem con dições a fim de que a inclusão es colar pudesse existir com sucesso. Entramos em contato com a direção da Escola Infantil, ofere cendo uma proposta de trabalho coletivo, onde sugeríamos que ambas as escolas trabalhassem com a arte como ferramenta, para que as crianças conhecessem e assumissem a diversidade como um valor, e não como menosvalia, como um defeito. A direção, na primeira oportunidade, reuniu os pais dos alunos que participariam desse projeto e conseguiu a autori zação dos mesmos para realizálo. Deuse, assim, o primeiro passo para o início da experiência que transformou o ano letivo em ambas as escolas, pois o planejamento das aulas, pelo menos uma vez por semana, era construído para um grupo de duas escolas distintas, que se uniam na busca de serem, em algum momento, um só grupo e, lembrando Beyer, evidente mente as crianças diferenciamse entre si enormemente, o que não é surpreendente. Assim educar é confrontar com esta diversidade. O confronto com a diversidade e a valorização da mesma num grupo foram alguns dos grandes objetivos do projeto. Propiciar este contato com o outro, seja ele espe cial ou não, provoca mudan ças, e essas mudanças é que bus cávamos, em nossos alunos e nos outros sujeitos que fizeram parte da proposta. Queríamos propiciar momentos de integração, trocas, aprendizagens, convivência, so cia lização e aceitação do que, hoje em dia, ainda é visto como diferente e assustador, ou seja, o aluno com necessidades educa cio nais especiais. Pedagogicamente visávamos a incentivar e a oferecer aos alu nos com necessidades especiais e aos alunos da escola regular a oportunidade de se expressarem livremente por meio de técnicas de desenho, pintura, recorte, fa vorecendo a manifestação de suas emoções, de seus ritmos indivi duais e interesses, além, é claro, do intercâmbio entre a Escola Especial e a Escola Infantil. Os grupos de alunos reuniamse semanalmente, às quintasfeiras à tarde, na Escola Especial, onde realizavam as atividades progra madas e, após, faziam um lanche coletivo. Todos os momentos foram fotografados pelas profes soras para, posteriormente, serem mostrados aos pais de ambas as escolas como um feedback da proposta realizada. Os dois primeiros encontros ocorreram um em cada escola, para que os espaços em que cada grupo circulava passassem a ser conhecidos por todos. O primeiro encontro realizou se na Escola Especial. Para este momento, os alunos foram traba lhados na perspectiva da visita de colegas de outra escola. Quando os alunos da escola regular che garam, os anfitriões os receberam chamandoos de amigos. O grupo, junto com as professoras, apresen tou a escola aos novos amigos, convidandoos depois para um lanche coletivo no refeitório e, após, foi realizada uma integração por meio de jogos recreativos no pátio. Segundo relato da profes sora Ro berta Cardoso, da Escola Crianças utilizam linguagem gráfica para interperetar música ouvida REVISTA DO PROFESSOR, 40 jul./set. 2007(91):Porto Alegre, 23 38-42, RELATO DE EXPERI NCIAS Infantil, neste primeiro encontro, todos estávamos ansiosos, tanto eu quanto os alunos. Passamos uma tarde agradável, conhecemos os ambientes, os alunos e as profes soras que iriam realizar o projeto conosco. No segundo encontro, os alunos da Escola Infantil receberam os alunos da Escola Especial com entusiasmo,demonstrando satis fação e sentindose importantes ao apresentarem sua escola. Fizemos um passeio por todo o am bien te escolar, conhecendo as turmas e as dependências para, posterior mente, iniciarmos o trabalho pro posto para aquele dia. As turmas da Escola Infantil apresentaram a peça Os Três Porquinhos aos nossos alunos, que vibraram e permaneceram envolvidos até o final, participando com falas e questionamentos. Após, foi reali zado um lanche coletivo e todos participaram de jogos apresenta dos pelas professoras da Escola Infantil. É importante ressaltar que, neste momento, poucos dos nossos alunos quiseram participar. Preferiram observar o desenrolar da atividade. As diferenças se fizeram sem pre presentes, mas em momento algum interferiram ou influencia ram no relacionamento e no aco lhimento entre os alunos. As diferenças fazem parte do diaadia numa proposta inclusi va e, segundo Beyer, elas devem ser encaradas como oportunidade para enriquecimento recíproco dos alunos. Podemos ver isso claramente no relato da professora Roberta Cardoso: Durante todo o proje to foi conversado com a turma sobre o que acharam dos novos amigoseficoumuitoclaroparaas crianças que não existiam tantas diferenças entre eles. Em momento algum houve rejeição por parte dos alunos. Neste encontro pudemos per ceber que alguns alunos da Escola Especial ainda não tinham condi ções de participar de atividades fora da escola, onde precisavam manifestar atenção e concentra ção, devido aos vários estímulos que o ambiente da Escola Infantil oferecia. Na percepção da pro fessora Roberta Cardoso, este segundo encontro foi um momento crucial, pois as crian ças puderam relacionarse livremente com os novos amigos. Conjuntamente, foi deci dido que as atividades reali zadas pelos alunos deveriam culminar numa apresentação no final do projeto, para os pais de ambas as escolas. Todo o trabalho foi basea do numa música infantil do autor Beto Hermann do CD Oficininha (Quadro 1). Foi construída uma pe quena história (Quadro 2), considerando a letra da música, tendo como pano de fundo a proposta da in clusão. Os alunos foram os atores, em vários papéis, a ponto de não sabermos quais eram os da escola especial e quais os da escola regular e onde estavam. A música foi coreografa da pela professora de balé da Escola Infantil, que en saiou algumas vezes com o grupo do projeto, e foi apresentada logo após o teatro. As fantasias e o cenário foram construídos com os alunos nos encontros de quintasfeiras. Inicia mos o trabalho ouvindo a música e desenhando o que ela nos dizia. A SEMENTE DA INCLUSÃO Era uma vez 20 amigos que ganharam um saquinho com algumas sementinhas. Curiosos para verem no que elas iriam se transformar resolveram então cultivá-las. Vestiram suas roupas de jardinagem e foram ao trabalho. As sementes foram semeadas em um lindo jardim, com uma terra muito fofa e adubada e com um ar muito puro. Mas só isso não era suficiente, eram necessários outros elementos muito importantes na natureza que iriam garantir o crescimento lindo e saudável dessas sementinhas. Primeiro veio uma nuvem bem gordinha que trouxe a água. De repente, logo em seguida as sementinhas foram sentindo um calor... e foi chegando o Sol, a nuvem então começou a dar tchau e foi se afastando. Junto com esses elementos as sementinhas também recebiam muito amor, carinho e atenção de seus jardineiros que, em pouquinho tempo, foram percebendo o crescimento de suas plantinhas. E elas foram crescendo, crescendo, crescendo e acabaram se transformando em lindas árvores cheias de folhas, flores e frutos. Assim, ao acompanharem todo esse crescimento, os jardineiros se deram conta de que uma parcela de amor, atenção, cuidado e dedicação faz muita diferença no cuidado com a natureza. Com as pessoas também é assim: cada uma tem seu jeito de ser, uma é mo- rena, outra é loira, uma usa óculos, outra não, uma aprende rápido, outra precisa de mais tempo para aprender, umas falam logo, outras nunca vão falar, mas todas fazem parte deste grande jardim que é o mundo, e cada uma tem o seu lugar. Quando bem tratadas, bem direcionadas, amadas e educadas com responsa- bilidade, todas podem gerar grandes frutos de sabedoria. QUADRO 2 MÚSICA – CD OFICININHA AUTOR: BETO HERMANN Faz de conta que você é uma sementinha Bem quietinha deitadinha pelo chão E agora uma nuvenzinha vai chegar E chegando perto ela vai te molhar De repente vai ficando quente muito quente É o Sol que chega e a nuvem diz tchau E a sementinha vai crescendo sem parar Numa arvorezinha ela vai se transformar E agora enche a mãozinha de sementes Muita atenção pra brincadeira começar Cante bem bonito a canção da sementinha E no finalzinho jogue todas para o ar Faz de conta que eu era-ra Uma árvore da floresta-ta De repente-te Veio o vento-to Que soprou a semente que voou Voou! QUADRO 1 REVISTA DO PROFESSOR, jul./set. 2007 41 (91):Porto Alegre, 23 38-42, RELATO DE EXPERI NCIAS Já neste momento inicial, pu demos perceber o quanto o contato com os amigos da Escola Infantil influenciava o desenvolvimento dos nossos alunos, pois alguns de les deram intenção aos seus dese nhos, identificaram suas garatujas e trabalharam cooperativamente. Percebemos que, conforme Beyer afirma, as interações sociais são fundamentais para a construção das estruturas cogni tivas e também lingüísticas da crian ça, tornandoas mais complexas, mais elaboradas, com a ajuda do outro. No momento em que foi solici tado que cada um falasse sobre sua produção, nossos alunos também o fizeram, cada qual de sua maneira, e tiveram o desejo de expressar também o que haviam produzido, fazendo questão de que a profes sora registrasse seus nomes nas folhas em exposição na sala. Pudemos perceber que houve trocas significativas entre os alunos enquanto ensaiavam. Uns ajuda vam os outros para que cuidassem a hora de entrar em cena, a hora de realizar os gestos necessários a cada personagem. Na construção dos cenários e fantasias, a participação foi ativa de todos os alunos. A alegria, quando cada etapa era terminada, contagiava cada um que via o trabalho das professoras das duas escolas. A chegada dos alunos da Escola Infantil, devagar a princípio, e a vergonha dos alunos especiais foram sendo substituídas, com o tempo, pela desenvoltura, como se houvessem convivido sempre uns com os outros. A intervenção com os alu nos num grande grupo, como acon tecia, não cabia somente às pro fes soras responsáveis por eles. As trocas aconteciam também aí. As responsabilidades foram se tornando coletivas, e todos eram de todas, para auxiliar, mediar o conhecimento, construir limites, pontuar combinações ou, sim plesmente, para trocar afagos e carinhos. Ao final, tínhamos realmente um grande grupo e não mais duas escolas distintas. No dia marcado para a apresen tação dos alunos, compareceram os pais de ambas as escolas, no espaço da Escola Especial, por ser mais adequado para a atividade. Neste dia, a receptividade dos pais foi muito interessante. Havia um mural com algumas fotos dos dias dos encontros, e cada pai que ia chegando, antes de acomodar se, dirigiase até estas fotos e as olhava com admiração e respeito pelo trabalho realizado. A performance dos alunos e das professoras foi muito significativa. Rompeuse aqui o preconceito sobre o sujeito considerado defi ciente, mostrouse que um outro olhar é possível, basta querer. Sei que dentro das nossas possibili dades foi positivo este trabalho, pois contribuiu para que barreiras fossem ultrapassadas.Foi bom ouvir o comentário dos pais sobre o projeto, pois é possível transfor mar a realidade, ou seja, é possível conviver sem preconceitos, diz a professora Rober ta Cardoso. Nosso orgulho é que, neste ano letivo, a Escola Infantil Fantástico Mundo da Criança, que foi cora josa ao participar conosco deste projeto e assumir os riscos de todo o trabalho inovador, vem trilhando também sua caminhada na inclu são ao matricular um aluno com necessidades especiais. Este aluno não só foi matriculado, mas aceito em suas diferenças e respeitado como sujeito do conhecimento, capaz de alçar vôos maio res. Sabemos que esse é um pequeno Alunos constroem coletivamente o cenário, utilizando técnicas variadas de pintura e colagem REVISTA DO PROFESSOR, 42 jul./set. 2007(91):Porto Alegre, 23 38-42, RELATO DE EXPERI NCIAS passo e que o caminho é longo, mas nesse projeto apren demos, respeitamos e vi ven ciamos que o diferente pode e deve ser tratado, com muito carinho, como expressa a professora Roberta. Nossa expectativa enquanto escola especial é de que muitas outras experiências possam ser realizadas e que a inclusão possa realmente se efetivar neste país, que durante muitos anos excluiu todo aquele que não se adequava às normas. Segundo Ângela Jacobson – di retora da Escola Infantil – a escola inclusiva é o lugar onde todas as crianças devem aprender juntas sempre que possível, pois inde pendente da situação, devemos respeitar e aceitar as diferenças. Pensando assim, o trabalho foi bemsucedido e a inclusão é vá lida, basta querermos, e pode ser feita. Pois é desde pequenos que percebemos que o diferente não é tão diferente. Nossos alunos têm um déficit cognitivo, não podemos negálo. Nem vamos fazêlo, mas isso não diz quem eles são. Não define até onde irão. Eles necessitam de relações verdadeiras, não de pie dade; de escolas onde construam o conhecimento, não de paterna lismo. Precisam ser respeitados em suas diferenças e valorizados por elas, com a certeza de que podem aprender, podem ser (ser gente, ser feliz) e podem fazer, fazer parte deste mundo como cidadãos de direitos e deveres. Como nos ensina Beyer, possibilitar sua convivência com outras crianças significa trazê-lasparaomundo tal como ele é, com todas as suas diversidadesediferenças.Signifi ca romper com a falsa delimitação do normal e do anormal, do sadio edodoente, do não-deficiente e do defi ciente. Significa admitir que todos pertencemos à mesma espécie, e que somos, também, muito diferentes uns dos outros! Ficou muito claro para nós que a inclusão é possível quando se tem propostas adequadas e estimu ladoras, quando se respeitam as características individuais de cada sujeito e são valorizadas suas ca racterísticas como ser humano. O abismo da diferença some nos no vos laços de amizade. As diferen ças tornamse os elos que fazem a ligação entre as pessoas, na busca de relacionamentos onde possam haver trocas e não dominação de um ou outro. REFER NCIAS BEYER, H. O. Inclusão e Avaliação na Escola de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais. Porto Alegre: Mediação, 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: Cartas Pedagógicas e Outros Escritos. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. HERMANN, Beto. CD Oficininha. Disponível em:<http://muitas-coisinhas-educa cao.blogspot. com/2007/01/cd-ofici ni nha.html>. Acesso em: maio de 2006. Amizade e respeito unem alunos de escolas diferentes Hora do lanche é uma oportunidade para trabalhar a noção de inclusão
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