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1. Crimes contra a vida OBJETIVOS O aluno deverá ser capaz de: • Identificar o bem jurídico-penal vida extrauterina e intrauterina, para fins de respectiva tipificação da conduta típica, ilícita e culpável; • Aplicar, nos casos concretos apresentados, a incidência de conflito aparente de normas ou concurso de crimes com os demais crimes contra a pessoa; • Identificar as figuras típicas de homicídio, induzimento, instigação e auxílio ao suicídio; infanticídio e aborto. MULTIMÍDIA Filme recomendado sobre modalidades de homicídio: O Poderoso Chefão (1972). O Código Criminal do Império inaugurava sua Parte Especial tipificando os crimes contra o Estado, e a encerrava com os crimes contra a pessoa. Mesma orientação foi seguida pelo Código Penal republicano de 1890, o que revela, em ambos os diplomas legais, uma preeminência do Estado sobre a pessoa4. Tal hierarquia de valores foi rompida pelo Código Penal de 1940, cuja Parte Especial vigora até a presente data. Assim, a Parte Especial do CP se inicia, em seu Título I (artigos 121 a 154) com os chamados crimes contra a pessoa, os quais o sujeito passivo é a pessoa física. Os bens físicos ou morais que eles ofendem ou ameaçam estão intimamente ligados à personalidade humana. Por exceção, a pessoa jurídica pode ser sujeito passivo de difamação; de violação de domicílio (local onde a pessoa exerce sua moradia ou profissão, que pode ser pertencente à pessoa jurídica); violação de correspondência (art. 151); e correspondência comercial (art. 152). No seio dos crimes contra a pessoa, há os chamados crimes contra vida, pois a sua supressão consiste no mais grave atentado à pessoa e se encontram no CP, Título I, capítulo I, - artigos 121 a 128. capítulo 1 • 13 Tais crimes decorrem do fato de que o direito protege a vida, a incolumidade física (artigo 129) e a incolumidade moral (crimes contra a honra), assim como a liberdade individual (artigo 146). A ideia fundamental é de que a vida humana é protegida desde o momento da nidação (fixação do óvulo fecundado no útero) até o último suspiro. A vida não pode ser interrompida por ação de outrem, dolosa ou culposamente. Estão previstos, no CP, os seguintes crimes contra a vida: homicídio (art. 121), induzimento ao suicídio (art. 122), infanticídio (art. 123) e aborto (arts. 124 a 128). Além deles, o genocídio, que foi definido pela Lei 2.889/56 e é um crime contra a humanidade, pode ser definido, em sua figura essencial, como crime contra a vida. Por sua vez, o crime de homicídio é previsto também no Código Penal Militar, sendo considerado crime militar quando praticado em algumas situações definidas pelo próprio Código Penal Militar. Já a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170, art. 29) refere-se ao homicídio de determinadas pessoas (autoridades), desde que esteja presente o objetivo político do agente de atingir a estrutura política do Estado Democrático. 1.1 Homicídio 1.1.1 Noção A exemplo do Código Penal republicano, o Código Penal brasileiro de 1940 adotou a terminologia homicídio para definir o delito de matar alguém – ao contrário do que, não raro, é a orientação adotada em alguns diplomas legais estrangeiros, que criam as categorias de assassinato e homicídio para definir, respectivamente, a conduta de maior ou menor gravidade que envolve matar alguém.5 Portanto, para o ordenamento brasileiro, homicídio é a injusta morte de uma pessoa (vida extrauterina) praticada por outrem (destruição da vida humana por outro homem).6 Os elementos subjetivos e a antijuridicidade estão implícitos no próprio tipo. O homicídio, quanto ao tipo, divide-se em: a) Tipo simples – artigo 121, caput – quando não houver nenhuma circunstância especial que agrave ou atenue a pena (6 a 20 anos) 14 • capítulo 1 b) Tipos derivados i. Homicídio privilegiado - § 1º - pena especialmente atenuada – motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima; ii. Homicídio qualificado - § 2º - pena agravada (escala de 12 a 30 anos); Quanto ao elemento subjetivo: iii. Homicídio doloso – artigo 121, § § 1º e 2º: há intenção de matar (animus necandi) ou assume-se o risco de matar (dolo eventual), iv. Homicídio culposo – artigo 121, § 3º - pena detenção de 1 a 3 anos (imprudência, negligência, imperícia). ATENÇÃO (1) Quando a vítima for Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal, e o agente tiver motivação e objetivos políticos, o crime, em face do princípio da especialidade, será o do art. 29 da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83).7 (2) Com o advento da Lei 9.503/97, o homicídio culposo decorrente da direção de veículo automotor passou a subsumir-se ao disposto no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro (princípio da especialidade), punido com detenção de 2 a 4 anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir. 8 1.1.1.1 Bem Jurídico Vida (preservação da vida humana extrauterina, considerada a partir do início do parto). Se o crime for praticado contra a vida, a partir da concepção até o início do parto, o crime é de aborto. A partir do começo do parto até o último suspiro é homicídio, embora o bem jurídico atingido seja a vida, este crime atinge a vida extrauterina. O critério prevalente é o do início do parto. Nesse sentido, é considerado o parto iniciado com o rompimento da bolsa d’água, do saco amniótico. capítulo 1 • 15 Pontualmente, o artigo 123 prevê o infanticídio, que diz respeito ao homicídio especial praticado pela mãe – sob a influência do estado puerperal - e que tem como vítima o próprio filho, durante ou logo após o parto. Tanto no homicídio quanto no infanticídio é irrelevante a potencialidade de sobreviver. Portanto, basta que a criança tenha nascido com vida, mesmo que se apure que ela não teria condições de sobreviver. Recaindo a conduta sobre pessoa já sem vida (cadáver), o crime é impossível por absoluta impropriedade do objeto (art. 17 do CP). Impossível também será no caso de utilizar o agente meio absolutamente ineficaz (ex.: acionar arma de fogo inapta ou descarregada). No direito brasileiro, não é permitida a eutanásia (morte piedosa), praticada por meio de ação ou omissão. A capitulação legal seria o artigo 121, § 1º. Há previsão de aumento de pena no Art. 121, § 4º, 2ª parte, se o crime doloso de homicídio é praticado contra pessoa menor de 14 anos ou maior de 60 anos (redação dada pela Lei n. 10.741/03). Para tanto, é indispensável que a idade da vítima seja de conhecimento notório do agente do delito ao tempo da ação ou omissão, sob pena de atribuição de responsabilidade objetiva (em detrimento da responsabilidade subjetiva do mesmo). Significa dizer, preserva-se, assim, o nexo de causalidade entre a conduta e o evento. Logo, a aplicação do dispositivo não pode ser "objetiva", automática. Há, sim, a exigência do elemento subjetivo do autor do crime. A primeira parte do artigo 121, parágrafo 4º prevê causas de aumento de pena para o homicídio culposo (se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante). É interessante ressaltar que além do cap. I do título I da Parte Especial (isto é, “Dos crimes contra a vida”), o CP prevê outros crimes qualificados pelo evento morte, quando este figura uma condição de maior punibilidade, ou mesmo resulta de violência empregada para assegurar a execução, impunidade ou a vantagem de outro crime (por exemplo, o art. 157, § 3º, que versa sobre o crime de latrocínio: matar para roubar). Institutos que serão estudados oportunamente na presente disciplina (DP1). 1.1.2 Sujeito ativo Qualquer pessoa (crime comum), sozinho ou com o auxílio de alguém. 16 • capítulo 1 1.1.3 Sujeito passivo Ser vivo, nascido de mulher. É preciso quea vítima estivesse com vida ao tempo do cometimento da conduta, do contrário, a tentativa de matá-la configurará crime impossível (art. 17, CP). 1.1.4 Tipo objetivo A Ação incriminada é matar, que faz com o homicídio seja um crime de forma livre (sem forma determinada), podendo ser utilizados meios diretos ou indiretos, ou mesmo meios psíquicos. Pode ser por ação (disparo de tiro, punhalada, envenenamento, estrangulamento), ou omissão (artigo 13, § 2º, no caso de o sujeito ativo ser garantidor da não ocorrência do resultado, como, p. ex.: deixar de fornecer alimentos a um recém-nascido, tendo a obrigação de fazê-lo). Pode ser praticado também por meios morais ou psíquicos ou mesmo por meio de palavras, desde que idôneos a causar a morte. Por ex.: violenta emoção provocada dolosamente por outrem e que ocasione a morte.9 Por meios indiretos, entende-se a utilização de animais ou pessoas que não responderão por suas condutas. O estímulo de um cachorro furioso por parte de seu dono, ou a instigação de um louco inimputável, para que tirem a vida de determinada pessoa, são exemplos de cometimento do homicídio por via indireta.10 É um crime material (exige o resultado naturalístico para a sua consumação), que deixa vestígios (art. 158, CPP). A lei brasileira, a partir da lição do erro judiciário, exige nos crimes que deixam vestígios o exame de corpo de delito. Excepcionalmente, admite-se o exame de corpo de delito indireto, que é a prova testemunhal da morte.11 Mesmo que haja confissão, isto não basta para condenar por homicídio. capítulo 1 • 17 Pode haver concurso material12 de homicídio com outros delitos, tal como o de lesões corporais em terceiro, ocultação de cadáver etc. ATENÇÃO Quanto ao crime continuado, o art. 71, parágrafo único, se refere aos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, praticados com violência ou grave ameaça, e permite que o juiz, com base nas circunstâncias judiciais aumente a pena até o triplo (o aumento é maior do que o previsto no caput deste mesmo artigo (1/6 a 2/3). Entende Delmanto que a Reforma Penal de 1984 tornou prejudicada a Súmula nº 605, STF, que vedava a continuidade delitiva nos crimes contra a vida. Atualmente, já se admite conforme decisões mais recentes (v.g. RTJ 121/659, HC 83.575). 1.1.5 Tipo subjetivo Dolo, consistente na vontade consciente de matar. Pode ser direto (o agente quer o resultado) ou indireto (assume o risco de produzi-lo). A consciência e a vontade representam a essência do dolo, devendo estar presentes tanto no dolo direto quanto no eventual. Para que se configure este último, é insuficiente a mera ciência da probabilidade do resultado morte ou a atuação consciente da possibilidade concreta da produção desse resultado: é indispensável que haja certa relação de vontade entre o resultado e o agente, sendo este elemento volitivo o diferenciador entre dolo e culpa. 13 O tipo básico do caput não exige qualquer finalidade específica do sujeito, podendo eventualmente constituir uma causa de diminuição de pena (§ 1º) ou qualificadora (§ 2º). A modalidade culposa encontra previsão no parágrafo 3º do artigo 121. 12 Hipótese prevista no art. 69, CP: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquele.”. Trata-se da forma mais rigorosa de tratamento do concurso de crimes, e, por este motivo, a lei penal a considera como limite máximo a ser observado no terreno do concurso de crimes. 18 • capítulo 1 1.1.6 Consumação Com a morte da vítima (crime material). Com o advento da Lei 9.434/97, regulamentada pelo decreto 368/97, seu artigo 3º dispõe que a morte se dá com a cessação da atividade encefálica. Sua execução pode ser fracionada em vários atos. A determinação do momento da morte (definição operacional da morte para o direito) já foi controvertida na doutrina. Assim, hoje, devido à necessidade de transplantes, a medicina enaltece o critério da chamada morte cerebral (em detrimento do parâmetro anterior, atinente à parada cardiorrespiratória), que ocorre quando não há nenhuma atividade cerebral, nem circulação espontânea, sendo necessários aparelhos para que a pessoa continue viva. Ressaltese, novamente, que a morte cerebral da vítima será objeto de comprovação por meio de exame de corpo de delito direto ou indireto (art. 158 CPP). 1.1.7 Tentativa Uma vez que se trata de crime material, o homicídio doloso admite tentativa. Devem estar presentes o animus necandi e o início da execução. Esta pode ser cruenta (com ferimentos) ou branca (sem ferimentos). Sendo oportuno lembrar que o instituto da tentativa é uma regra ampliativa da tipicidade penal14 – uma vez que as normas penais incriminadoras, em regra, não preveem a forma tentada –, consistindo em causa geral de diminuição de pena prevista no II do art. 14, da Parte Geral do Código Penal, no qual se diz o crime “II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente” (grifo nosso). IMPORTANTE No caso concreto, para a distinção entre lesão corporal consumada e tentativa de homicídio deve-se avaliar o elemento subjetivo (dolo). Em caso de dúvida entre tentativa e lesão corporal, ou entre aquela e exposição da vida ao perigo, opta-se pelo menos grave. capítulo 1 • 19 1.1.8 Classificação Crime comum quanto ao sujeito, doloso ou culposo, de forma livre, instantânea, material de resultado. 1.1.9 Ação penal Pública incondicionada, competindo ao júri seu julgamento. 1.1.10 Justiça Militar Com a Lei 9.299/96, o artigo 9º, parágrafo único do CPM foi alterado, passando os crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil à competência da Justiça Comum. Assim, o critério para aferição da competência da justiça militar dá-se em razão de crime praticado por militar contra militar (sujeito passivo). 1.1.11 Crime hediondo O homicídio simples quando praticado em atividade típica de grupos de extermínio, ainda que cometido por um só agente (artigo 1º, I, 1ª parte, da Lei 8.072/90, com as alterações da Lei 8.930/94) é considerado crime hediondo. O homicídio qualificado também é parte constitutiva do rol dos crimes hediondos. 1.1.12 Ementas do tipo a) Homicídio privilegiado É uma causa especial de diminuição de pena (art. 121, § 1º, CP) à qual a doutrina se encarregou de chamar de homicídio privilegiado. As circunstâncias especialíssimas elencadas no referido parágrafo minoram a sanção aplicável ao homicídio – trata-se, portanto, de minorantes, e não de elementares típicas, motivo pelo qual as privilegiadoras não se comunicam na hipótese de concurso de pessoas (art. 30, CP).15 Se estiverem presentes os pressupostos, o juiz deverá reduzir a pena de 1/6 a 1/3, de modo que – diante das circunstâncias - a pena poderá ficar abaixo do mínimo legal. 15 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 329. 20 • capítulo 1 As duas primeiras formas privilegiadas de homicídio estão ligadas aos motivos determinantes do crime, que dizem respeito aos interesses ou fins da vida coletiva que revelam menor desajuste e menor periculosidade (motivo de relevante valor social ou moral). O outro caso é o do homicídio emocional (sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima). São as seguintes modalidades de homicídio privilegiado: I. Motivo de relevante valor social: é aquele que corresponde aos interesses coletivos, ou é suscitado por específicas paixões ou preocupações sociais, nobres em si mesmas e condizentes com a atual organização da sociedade; motivo altruísta que acarreta menor reprovabilidade. Cuida-se, aqui, do motivo que não interessa somente ao agente, e sim a todo o corpo social, devendoser, ainda, relevante, notável, importante.16 Por ex.: Matar o traidor da pátria, o tirano, o facínora ou perigoso bandido para que se assegure a tranquilidade da comunidade. II. Motivo de relevante valor moral: tem uma motivação ligada a sentimentos de piedade, misericórdia e compaixão, ligado a interesse particular ou individual. É o valor considerado enobrecedor em qualquer cidadão em circunstâncias normais, conforme os princípios éticos dominantes, isto é, aquilo que a moral média considera merecedora de indulgência.17 Por ex.: homicídio de um doente terminal para livrá-lo dos sofrimentos que o atormentam (eutanásia); matar o estuprador de sua filha. III. Violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima: por emoção entende-se um estado afetivo que produz momentânea perturbação da personalidade do indivíduo e afeta seu equilíbrio psíquico, acarretando-lhe alterações somáticas.18 Neste sentido, convém destacar a previsão do art. 28, I, do CP, segundo o qual a emoção (assim como a paixão) não exclui a responsabilidade penal do agente a quem acomete. A “violenta emoção” a que se refere o presente dispositivo significa cólera ou ira que, desde que não sejam passageiras, atribuem ao homicídio a condição de privilegiado, minorando a pena de quem o pratica. A reação deve ser imediata, já que não pode haver um intervalo entre a ação e a provocação. A provocação deve ser injusta e consistir em: ofensas à honra, 16 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial, volume II: Introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 11. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2014, p. 148. 17 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 15. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 76-77. 18 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 295. capítulo 1 • 21 vias de fato, ameaças, risos de escárnio ou desprezo, apelidos vilipendiosos, expressões ambíguas, indiretas mordazes, revelação de segredos, exercício abusivo de direito, atos emulativos, entre outros. Em termos precisos, a "provocação" referida no parágrafo em comento não traduz, necessariamente, agressão, mas compreende todas e quaisquer condutas incidentes, desafiadoras e injuriosas. Pode, inclusive, ser indireta, isto é, dirigida contra terceira pessoa ou até contra um animal. Reitera-se, ainda, a necessidade de preencher os dois requisitos complementares a essa situação: (a) domínio de violenta emoção (tal emoção deve ser violenta, intensa, absorvente, exatamente aquela que oblitera os sentidos, aquela que, na linguagem popular, “cega”. Se decorrer na prática do homicídio apenas uma influência da emoção, é de se reconhecer apenas a atenuante prevista no art. 65, III, "c", do CP) 19; e (b) reação imediata (logo depois da provocação da vítima, sem hiato temporal, devendo perdurar o estado de violenta emoção). O homicídio passional ou emocional era mais comum no passado e aceito. Atualmente, com as mudanças dos costumes, rejeita-se com mais frequência. Na hipótese de concurso de pessoas, as circunstâncias subjetivas são incomunicáveis entre os agentes (art. 30). b) Homicídio qualificado As qualificadoras criam um tipo penal derivado, com penas próprias. As circunstâncias que qualificam o homicídio podem ser subjetivas ou objetivas. As circunstâncias subjetivas dizem respeito aos motivos reprováveis. Exemplo: motivo torpe (inciso I) e motivo fútil (inciso II); e aos fins com que a ação é praticada: facilitar ou assegurar a execução, ocultação, vantagem ou impunidade de outro crime (inciso V). Já as circunstâncias objetivas dizem respeito aos meios que envolvam dissimulação, crueldade, perigo de maior dano (inciso III) e aos modos que dificultem ou tornem a defesa impossível (inciso IV). A Lei 13.104/15 incluiu a qualificadora do Inciso VI, denominado feminicídio, enquanto a Lei 13142/15 incluiu o Inciso VII, quando o homicídio é praticado contra autoridade 19 JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRIVILÉGIO NEGADO PELOS JURADOS. ATENUANTE DA VIOLENTA EMOÇÃO RECONHECIDA. DECISÃO COMPATÍVEL COM A PROVA. REGIME PRISIONAL. 1. INCONFUNDÍVEL O PRIVILÉGIO PREVISTO NO § 1º DO ART. 121 DO CÓDIGO PENAL COM A ATENUANTE REFERIDA NO ART. 65, INCISO III, ALÍNEA C, DO MESMO DIPLOMA LEGAL. A PRIMEIRA REGRA INCIDE QUANDO O AGENTE COMETE O CRIME SOB O DOMÍNIO DE VIOLENTA EMOÇÃO, LOGO EM SEGUIDA A INJUSTA PROVOCAÇÃO DA VÍTIMA; A SEGUNDA, QUANDO APENAS INFLUENCIADO POR ESSE SENTIMENTO, DISPENSADO O REQUISITO TEMPORAL. (TJ-DF - APR: 19980110369450 DF, Relator: GETULIO PINHEIRO. Data de Julgamento: 22/02/2007, 2ª Turma Criminal, Data de Publicação: DJU 22/03/2007. Pág. : 116). 22 • capítulo 1 ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição ATENÇÃO Muitas das situações do § 2º são previstas também como agravantes. Deve-se seguir a regra do non bis in idem. Por ex.: se o homicídio for qualificado por motivo fútil, não haverá aumento na 2ª fase pelo agravante do motivo fútil porque este fato já qualificou o crime (vide artigo 61, do código penal). O fato de não haver razão para matar não significa que a pena deve ser agravada, pois de outra forma, teríamos apenas dois tipos de homicídio, qualificado e privilegiado, quando, na verdade, além destes, há o tipo simples. Circunstâncias qualificadoras I. Mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe (inciso I) Motivo torpe é aquele que repugna o senso comum, o senso ético, abjeto, moralmente condenável, indigno, asqueroso, desprezível e que causa aversão. 20 Trata-se do motivo que deriva de uma paixão antissocial: inveja, cobiça etc. Ex.: Matar para ganhar herança. O inciso I faz referência, ainda, a qualquer situação análoga ao motivo torpe, que tenha equivalência em torpeza à situação de matar mediante paga. Homicídio mercenário é aquele em que o agente não tem motivos para querer a morte da vítima, mas mata apenas em função de dinheiro. Requer a participação de duas pessoas (“crime de concurso necessário” ou “bilateral”), no qual é indispensável a participação de, no mínimo, duas pessoas (mandante e executor: aquele paga ou promete futura recompensa; este aceita, praticando o combinado). Existe divergência tanto na doutrina quanto na jurisprudência sobre se a qualificadora em tela é simples circunstância, com aplicação restrita 20 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 492. capítulo 1 • 23 ao executor do crime,21 que é quem mata motivado pela remuneração, ou se será aplicada também ao mandante, configurando verdadeira elementar subjetiva do tipo.22 Na paga, o agente recebe previamente a recompensa pelo cometimento do crime; o que não ocorre na promessa de recompensa, em que há a expectativa de paga, condicionada à concretização do homicídio conforme combinado.23 Neste sentido, ressalte-se que a natureza da paga feita ou promessa de recompensa também é bastante discutida: a) Para uns, pode ser ela de qualquer espécie, compreendendo tudo quanto possa ser objeto de paga ou promessa. Não depende igualmente de prévia fixação. Pode ser deixada à escolha do mandante. Não constitui condição essencial da recompensa ter valor econômico, bastando, por exemplo, a simples promessa de futuro casamento, com a própria pessoa instigadora ou com terceira. b) Predomina, no entanto, o entendimento segundo o qual a recompensa deve ter natureza econômica. Quanto a ciúme e vingança, Celso Delmanto afirma que o ciúme não pode ser considerado um motivo torpe, poiso ciúme “advém do amor, que não pode ser considerado sentimento vil”. Para a maioria dos autores, o ciúme não deve ser considerado fútil, pois não é motivo de irrelevante importância. A vingança por si só, desacompanhada de outros motivos, não basta para caracterizar o delito como torpe, vai depender do motivo da vingança, da natureza do mal. 21 III - Os dados que compõem o tipo básico ou fundamental (inserido no caput) são elementares (essentialia delicti); aqueles que integram o acréscimo, estruturando o tipo derivado (qualificado ou privilegiado) são circunstâncias (accidentalia delicti). IV - No homicídio, a qualificadora de ter sido o delito praticado mediante paga ou promessa de recompensa é circunstância de caráter pessoal e, portanto, ex vi art. 30 do C.P., incomunicável. V - É nulo o julgamento pelo Júri em que o Conselho de Sentença acolhe a comunicabilidade automática de circunstância pessoal com desdobramento na fixação da resposta penal in concreto. Ordem concedida. (STJ - HC: 78404 RJ 2007/0049121-0, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 27/11/2008, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/02/2009) 22 CUNHA, op. cit., p. 27. 23 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 15. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 76-77. 24 • capítulo 1 II. Motivo fútil (inciso II) É o motivo insignificante (não significa injusto), que normalmente não leva a este tipo de reação por parte do agente; é o motivo notavelmente desproporcionado ou inadequado com relação ao crime. Diz-se que, na futilidade, não há simetria relevante entre a razão delinquente e o fato perpetrado pelo agente.24 Ex.: matar porque a vítima tinha rido do acusado ao vê-lo caindo do cavalo; rompimento de namoro ou noivado; desentendimento banal e corriqueiro; porque a companheira se recusou a acompanhá-lo na visita a parentes; matar um garoto porque ele furtava goiabas. III. Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum (inciso III) Diz respeito aos meios (instrumentos) utilizados pelo agente para a prática do delito (é diferente de modo, que é forma de conduta). Veneno é qualquer substância mineral, vegetal ou animal que, introduzida no organismo, seja capaz de causar perigo de vida, dano à saúde por meio de ação química, bioquímica ou mecânica. Bitencourt ressalta que “uma substância teoricamente inócua pode assumir a condição de venenosa, segundo as condições especiais da vítima”25, logo, o termo veneno para fins penais representa aquilo que funciona como um veneno no organismo da vítima. Para a incidência da qualificadora, deve ser comprovado pela perícia que a causa mortis foi a administração de veneno. Ainda, o envenenamento somente constituirá meio insidioso (dando, portanto, aplicabilidade à presente qualificadora) se a vítima desconhecer a circunstância de estar sendo envenenada – uma vez que o êxito deste meio reside justamente na dissimulação de seu uso.26 Explosivo “qualquer corpo capaz de se transformar rapidamente em gás à temperatura elevada”. Ex.: derivados de nitroglicerina (dinamite). Asfixia resulta de obstáculo à passagem do ar por meio das vias respiratórias ou dos pulmões. Exemplos: enforcamento, estrangulamento, afogamento, submersão e esganadura. 24 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 492. 25 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 15. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 87. 26 Idem, mesma página. capítulo 1 • 25 Tortura é meio supliciante empregado, a exasperação do sofrimento da vítima por atos de inútil crueldade. Se o agente atuar com dolo com relação à tortura, responderá pelo crime de tortura qualificado pelo resultado (art. 1º, § 3º, da Lei 9.455/97). Meio insidioso é o meio “dissimulado em sua eficiência maléfica”27 . Consiste no instrumento escolhido para que o agente consiga êxito em sua empreitada criminosa sem que a vítima tome conhecimento disso. 28 Meio cruel é o que “aumenta o sofrimento da vítima, ou revela uma brutalidade fora do comum, em contraste com o mais elementar sentimento de piedade” 29. Ou seja, para além do fato de o indivíduo ter sua vida ceifada pela conduta criminosa de outro, há a causação de inútil e desnecessário sofrimento para esta vítima, o que torna o fato ainda mais reprovável. Meio de que podia resultar perigo comum, é aquele que além de atingir a vítima escolhida, pode criar uma situação de perigo a indistinto número de pessoas, sendo o fogo e o explosivo indicados como exemplos de meios cuja capacidade de destruição não pode ser controlada pelo agente. IV. À traição, emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido (inciso IV) Refere-se ao modo da atividade executiva, de que resulte dificuldade ou impossibilidade de defesa da vítima. Traição é deslealdade, a forma inesperada: pode ser tanto objetiva (o agente ataca a vítima de costas, ou enquanto ela dorme), como também subjetiva (vítima moralmente surpreendida, pois é atacada por um agente em quem confiava, até então), perfídia. A vítima não tem motivos para desconfiar, o ataque é súbito e sorrateiro. Ex.: atacar a vítima pelas costas, de forma inesperada. Emboscada: espreita, tocaia, o agente aguarda, oculto, sua vítima, para surpreendê-la. Dissimulação: o agente, em seu modo de agir, encobre sua intenção, ocultação da intenção hostil, utilização de um ardil para surpreender sua vítima, enganando-a. Ex.: Demonstrar falsa amizade, simular que vai fazer as pazes com outro antes de atirar. 27 Exposição de Motivos do Código Penal, item 38. 28 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial, volume II: Introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 11. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2014, p. 160. 29 Exposição de Motivos do Código Penal, item 38. 26 • capítulo 1 Outro meio ou recurso: análogo aos anteriores, que dificultem a defesa da vítima. Ex.: atacar a vítima enquanto dorme, ou por esta estar imobilizada por ação de terceiros, ou mesmo incapacitada de se defender. V. Para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (inciso V) Assegurar a execução: o que agrava a pena não é a prática efetiva de outro crime, mas o fim de cometer outro crime. Para tentar um sequestro, mata uma pessoa que tenta evitá-lo → responderá pela forma qualificada ainda que desista de consumar o rapto. Ex.: mata quem vai impedir o roubo. Assegurar a ocultação/impunidade: a intenção do agente é destruir a prova de outro crime, ou evitar as consequências penais dele decorrentes. Ex.: matar a testemunha de um crime; matar o marido para estuprar a mulher; matar o perito que descobriu o crime. Garantir vantagem: o propósito do agente é garantir a fruição de qualquer vantagem, patrimonial ou não, direta ou indireta, resultante de outro crime. Ex.: mata um parceiro para ter mais vantagens com o produto do crime. Não é necessário que o crime fim chegue efetivamente a ser praticado, basta que o crime meio tenha sido com aquela finalidade. Caso ambos (crimes meio e fim) sejam praticados, haverá concurso de crimes. O especial fim de agir constitui elemento subjetivo do tipo (dolo específico). Conforme o artigo 108 do CP, subsiste a qualificadora ainda que venha a extinguir-se, por qualquer causa, a punibilidade do outro crime. VI. Feminicídio (inciso VI) A Lei 13.104/2015 incluiu o crime de feminicídio, no Código Penal, como hipótese qualificadora do homicídio. Acrescentou-se, assim, ao art. 121, § 2°, a alínea VI, bem assim o do art. 121 e o § 2°-A. O feminicídio foi incluído no Código em decorrência de compromissos internacionais que o Brasilassumiu na ratificação de tratados e convenções que buscam promover a igualdade de gênero e reprimir a violência à mulher, como por exemplo, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher ou Convenção de Belém, no âmbito latino americano e, na esfera universal, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher de 1993 adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. capítulo 1 • 27 Cumpre agregar que femicídio ou feminicídio é utilizado indistintamente nos países latino-americanos para designar a morte de mulheres em razão de gênero. No entanto, cuidar-se-iam de expressões distintas. O femicídio teria sido a designação dada por Diane Russel (femicide, em inglês), em 1970, para destacar a morte violenta de mulheres, com o fito de dar visibilidade à opressão, discriminação e morte de mulheres em razão da condição de gênero. Dessa forma, o femicídio é toda morte de mulher por motivo sexista. 30 Por outro lado, a palavra feminicídio teria sido criada por Marcela Lagarde para designar igualmente a morte de mulheres em razão de gênero. No entanto, o feminicídio denotaria uma conotação política, qual seja, o descaso do Estado em dar efetivo cumprimento aos compromissos internacionais assumidos nessa matéria, bem como a omissão em processar e punir os executores de fatos dessa natureza. Para Marcela Lagarde, o feminicídio seria um verdadeiro crime de Estado. 31 De toda sorte, em ambos os casos – femicídio ou feminicídio –, o que se pretende destacar é a morte de mulheres em razão da sua condição de gênero no contexto de uma cultura de violência sistemática contra a mulher. Nesse sentido, existiriam modalidades de feminicídio, quais sejam: o íntimo, não-íntimo, infantil, familiar, por conexão, sexual sistêmico, por prostituição ou ocupação estigmatizada, por tráfico de pessoas, por contrabando de pessoas, transfóbico, lesbofóbico, racista e, por fim, por mutilação genital feminina. 32 Nesse contexto social e criminológico, cumpre ressaltar que todo feminicídio é um homicídio, mas nem todo homicídio de mulher é um feminicídio. Explica-se: a morte, ainda que violenta, de uma mulher decorrente, por exemplo, de um acidente de trabalho, em nada se relaciona a sua condição de mulher. Portanto, para caracterizar a qualificadora do feminicídio, deve-se atentar para especial motivação que move a conduta contra o sujeito passivo: a condição de mulher. “Isto significa que o agente femicida, ou seus atos, reúne um ou vários padrões culturais arraigados em ideias misóginas de superioridade masculina, de discriminação contra a mulher e de desprezo a ela ou à sua vida.”33 30 Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/01/protocolo_ feminicidio.pdf>. Acessado em: dez. 2015 31 Idem, ibidem. 32 Para mais informações ver: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/ 2013/01/protocolo_ feminicidio.pdf>. Acessado em: dez. 2015. 33 Idem, ibidem 28 • capítulo 1 A lei é taxativa ao designar a mulher como sujeito passivo desse crime. É controverso assinalar se a doutrina ou a jurisprudência poderia interpretar o elemento “mulher” como normativo ao invés de descritivo, incluindo, assim, o homicídio contra transgênico. Ademais, a lei especifica em quais circunstâncias há “condição de sexo feminino”: 1º nos casos de violência doméstica e familiar; e 2º quando há menosprezo ou discriminação à condição de mulher (cf. art. 121, § 2-A, inc. I e II, do CP). Na primeira hipótese – violência doméstica e familiar –, por uma interpretação teleológica, faz-se referência à Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Nesse sentido, o art. 5° da Lei Maria da Penha define a violência doméstica e familiar. 34 A segunda hipótese caracterizadora do feminicídio diz respeito ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Menosprezo significa depreciação, desdém, indiferença, e discriminação é o ato de tratar de forma injusta, desigual. Nesse inciso, especificamente, não há necessidade de vínculo afetivo entre a mulher e agente misógino, diferentemente da hipótese anterior. Em que pesem a relevância e a gravidade da questão, duas críticas podem ser formuladas à inovação trazida pela Lei n. Lei 13.104/2015. A primeira diz respeito a tendência, verificada nos últimos anos, de reformas penais pontuais – ou securitárias –, que, no escopo de proteger determinado segmento ou setor da sociedade, olvida de igual proteção de outros grupos, no caso, igualmente vulneráveis e igualmente vítimas de mortes violentas. 35 A segunda crítica, também relacionada com os efeitos negativos de um Direito Penal securitário, consiste na carência de uma visão sistemática da codificação penal. Isto redunda, não raro, em termos práticos, em uma maior desproteção ao invés de um maior rigor punitivo pretendido pelo legislador. Explica-se. As hipóteses, agora enquadradas na qualificadora do feminicídio, conduziam – como visto nos exemplos anteriores –, a imputação de homicídios dupla ou até triplamente qualificado (motivo torpe ou fútil, meio insidioso, 34 Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.” 35 Nesse sentido, o PLS n. 236, acima referido, prevê a inclusão de uma qualificadora, no homicídio, nos seguintes termos: “por preconceito de raça, cor, etnia, orientação sexual e identidade de gênero, deficiência, condição de vulnerabilidade social, religião, procedência regional ou nacional, ou por outro motivo torpe; ou em contexto de violência doméstica ou familiar.” capítulo 1 • 29 cruel ou perigoso, ou de forma covarde ou traiçoeira), além da circunstância agravante do art. 61, inc. II, al. “e” ou “f”, do CP. Doravante, é possível se que possa sustentar – inclusive com efeitos benéficos da lei penal no tempo –, a favor do autor do crime contra a mulher, ter o mesmo dado a morte à vitima tão somente em razão da sua condição de sexo feminino, especializando, pois, esta qualificadora e afastando a incidência das demais (princípio da especialidade), bem assim da mencionada agravante (princípio do ne bis in idem). VII. Contra autoridades e agentes das Forças Armadas e de segurança pública, sistema prisional, Força Nacional e seus familiares (inciso VII) A Lei 13.142/2015 inseriu ao § 2° do art. 121, a alínea VII. Trata-se de uma qualificadora quando o crime é praticado contra autoridade ou agente das Forças Armadas, da segurança pública, integrantes do sistema prisional ou da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição. Registra-se que esta qualificadora faz expressa referência a dois dispositivos da Constituição Federal de 1988: o art. 142 e o art. 144. O primeiro dispõe sobre as Forças Armadas e diz: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Por sua vez, o art. 144, dispõesobre as autoridades e agentes de segurança pública: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.” Cumpre mencionar que o § 8°, do art. 144, da Constituição, faz referência à guarda municipal e, o § 10, refere-se à segurança viária. Considerando que a qualificadora não faz menção somente ao caput do 144 da Constituição Federal, deve-se entender que ela abarcaria, igualmente, as autoridades e agentes da 30 • capítulo 1 guarda municipal36 e da segurança viária37, e pessoas a eles relacionados, o que ampliaria, sobremodo, o raio de incidência dessa qualificadora. Por outro lado, como visto, os integrantes do sistema prisional também são mencionados pela qualificadora em questão. Como membros do sistema prisional entende-se “não apenas os agentes presentes no dia a dia da execução penal (diretor da penitenciária, agentes, guardas etc.), mas também aqueles que atuam em certas etapas da execução penal (integrantes da comissão técnica de classificação, comissão de exame criminológico, conselho penitenciário etc.)”.38 A alteração do tipo penal do homicídio foi resultante do Projeto de Lei n. 846 de 2015. É interessante observar que a redação originária do PL 846 previa apenas uma hipótese majorante ao crime de homicídio, e tão somente quando o crime fosse cometido contra as autoridades do artigo 144, da Constituição Federal. Na ocasião, o argumento era o de que se fazia necessário o recrudescimento da pena para crimes cometidos contra as autoridades de segurança pública. Portanto, conforme os motivos que ensejaram o Projeto de Lei, a alteração normativa seria um elemento a ser agregado ao combate ao crime organizado, “fortalecendo a sociedade e gerando sensível aumento da sensação de segurança e efetiva sensação de diminuição da impunidade.”39 Todavia, em razão de emendas no curso de sua tramitação, a ideia original foi abandonada, passando, assim, a constar como uma nova qualificadora do homicídio. As críticas a serem dirigidas a esta qualificadora assemelham-se à anterior. Cuida-se de uma tendência securitária do Direito Penal, em detrimento de uma concepção sistêmica da disciplina. Nesse passo, duas observações podem ser feitas. A primeira é a de que, de fato, a morte de uma autoridade ou agente das Forças Armadas, segurança pública etc., ou de pessoas a elas relacionadas, em razão dessa condição, é altamente reprovável. Há, indubitavelmente, torpeza nesse tipo de homicídio. Contudo, não se deve olvidar de uma perspectiva mais 36 Art. 144, § 8°, Constituição Federal: Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. 37 Art. 144, § 10, Constituição Federal: A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e II - compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei. 38 BITENCOURT, Cezar Roberto. Qualificadora de homicídio contra policial não protege a pessoa, e sim a função. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-29/cezar-bitencourt-homicidio-policial-protege-funcaopublica>. Acessado em: dez. 2015. 39 <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1312213&filename=Avulso+- PL+846/2015>. Acessado em: dez. 2015. capítulo 1 • 31 ampla e, consequentemente, mais grave, qual seja, a de que o Brasil é um país extremamente violento, ou seja, que nós temos uma das maiores taxas de policiais que morrem em serviço, mas, também, uma das polícias que mais matam no mundo.40 Diante dessa lamentável constatação, parece pouco crível que a mera introdução dessa hipótese qualificadora possa servir a fins preventivos ou, de todo modo, deter a espiral da violência no cotidiano brasileiro. Demais disso, critica-se a previsão da qualificadora operar quando o homicídio é praticado contra autoridade ou agente das Forças Armadas, da segurança pública, integrantes do sistema prisional ou da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, olvidando-se de igual proteção para outras autoridades e agentes que exerçam funções públicas na órbita penal e processual penal. Dito por outras palavras, não se compreende o porquê do legislador penal não estender a hipótese para magistrados, membros do Ministério Público, Defensores Públicos, advogados criminalistas, respectivos servidores que auxiliam em tais misteres, bem assim pessoas a eles relacionados, quando a morte é dada em razão de tais funções. DESTAQUES 1. Comunicabilidade das circunstâncias qualificadoras aos partícipes As qualificadoras referentes aos motivos determinantes do crime (subjetivas) são incomunicáveis entre os partícipes, por serem de caráter pessoal (art. 26). As qualificadoras objetivas só se comunicam quando entram na esfera de conhecimento do co-autor ou partícipe, já que todas as qualificadoras devem estar cobertas pelo dolo dos agentes. 2. Coexistência de homicídio qualificado com privilegiado Há um consenso no sentido de que as qualificadoras subjetivas (motivo fútil, torpe e o inciso V) são inconciliáveis com o privilégio, pois há impossibilidade concreta de coexistirem. A jurisprudência dos Tribunais Superiores é pacífica no sentido de considerar possível o homicídio privilegiado-qualificado (STF, HC 71.147). 40 Cf. GOMES, Luiz Flavio. <http://institutoavantebrasil.com.br/letalidade-da-acao-policial-notas-para-reflexao> Acessado em: dez. de 2015. 32 • capítulo 1 O privilégio pode concorrer com as qualificadoras objetivas (fogo, veneno, meio cruel) do homicídio, mas não com as subjetivas, e como este privilégio é subjetivo deve prevalecer. Logo, neste caso, aplica-se a pena do homicídio qualificado com a redução de 1/6 a 1/3. c) Homicídio culposo A vida é protegida de toda forma ilícita de ataque. Apenas colocar a vida em perigo já constitui crime previsto no artigo 132, por exemplo. A pessoa que vive em sociedade tem o dever objetivo de cuidado, o dever de ser cauteloso. Sempre que uma conduta traduzir uma violação do dever objetivo de cuidado, sendo previsível ao homem mediano que aquilo causaria a morte de alguém, ocorre o homicídio culposo. No crime culposo a conduta é violadora do dever objetivo de cautela, muito mais que o resultado, uma vez que este não é visado pelo agente, apesar de só existir crime culposo se há o resultado concreto. Não existe tentativa. O resultado tem que ser ao menos previsível e não ter sido previsto para que seja caracterizado o crime culposo (culpa inconsciente), ou então ter sido previsto mas não ter sido evitado, acreditando o agente levianamente que o resultado não ocorreria (culpa consciente). i. Elementos do crime culposo a) comportamento humano voluntário, positivo ou negativo; b) descumprimento do cuidado objetivo necessário, manifestado pela imprudência, negligência ou imperícia; c) previsibilidade objetiva do resultado; d) morte involuntária. ii. Homicídio Culposo no Código Brasileiro de Trânsito A maioria dos crimes culposos ocorre em acidentes de trânsito, mas apenas infringir a norma de trânsito não basta, é preciso que ocorra o resultado. Os crimes de trânsito atualmente estão regulados na Lei 9.503/97, sendo o homicídio culposo na conduçãode veículo automotor previsto no artigo 302. Há situações em que a morte causada a título de culpa não constitui homicídio culposo, mas sim qualifica outro crime: Ex.: lesão corporal seguida de morte (artigo 129, § 3º), estupro seguido de morte (artigo 213 c/c artigo 223, parágrafo único). capítulo 1 • 33 d) Homicídio culposo majorado O homicídio culposo será majorado, sendo sua pena aumentada de 1/3 (um terço) se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. i. Se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício Para Damásio de Jesus, esta qualificadora citada na letra “a” só se aplica aos profissionais no exercício de suas funções. É a chamada culpa profissional, a causa de aumento só tem aplicação no caso de homicídio culposo. ii. Se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, ou não procura diminuir as consequências de seu ato Caso o agente fuja, mesmo que a vítima posteriormente tenha recebido socorro de 3º, responderá pela qualificadora. Em vez de aplicar-se o crime artigo 135, a omissão de socorro configura causa especial de aumento de pena. A norma do artigo 121, § 4º é especial em relação à do artigo 135. Se o cidadão atropelar sem culpa e não prestar socorro, responderá por omissão de socorro (artigo 135) e não por homicídio culposo. Quando o próprio agente, dolosa ou culposamente, cria a situação de perigo para a vítima, ele não responde pelo artigo 135. O deixar de prestar socorro, nos casos de dolo, é pós fato não punível. Quando for culposo, ele criou a situação, e por isso poderá ser punido, prevalecendo a norma do artigo 121, § 4º, sobre a do artigo 135. Ingerência: artigo 13, § 2º, c, junto com a qualificadora do artigo 121, § 4º: Tudo dependerá do dolo do agente. Se omitir socorro com dolo, responderá pelo artigo 13, § 2º, c: atropela um inimigo sem saber e deixar de prestar socorro depois de reconhecer o desafeto, deixando-o morrer. iii. Foge para evitar prisão em flagrante Trata-se de elemento subjetivo do tipo, que é a finalidade de evitar a prisão. Se o agente fugir para não ser linchado por populares, sob a ameaça de pessoas em volta, há estado de necessidade que exclui o crime. 34 • capítulo 1 d) Perdão judicial O perdão judicial previsto no parágrafo 5º do artigo 121, aplicável ao homicídio culposo (quando as consequências do crime já atingem o agente de forma tão grave que a sanção penal se torna desnecessária), é um instituto que permite ao juiz deixar de aplicar a pena (é causa de extinção da punibilidade (era. 107, IX, CP e Súmula 18, STJ). É também previsto no caso de lesão culposa, (§ 8º do artigo 129). e) Homicídio praticado por milícia privada ou por grupo de extermínio Consoante o art. 121, § 6º, do CP, a pena do homicídio deve ser aumenta, de um terço até a metade, “se o crime for praticado por milícia privada, sob pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio”. Cuida-se de causa de aumento de pena – destinada ao homicídio doloso – que foi introduzida pela Lei n. 12.720/2012, com o objetivo de dispor sobre o “crime de extermínio de seres humanos”, bem assim introduzir o citado § 6º, do art. 121, e o § 7º, do art. 129, ambos do CP. A propósito, o art. 288-A, do CP – introduzido, como dito, pela Lei n. 12.720/12 – tipifica a constituição de milícia privada: “Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código. Pena: reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.” Caso o integrante da “milícia privada” ou do “grupo de extermínio”, conforme acima definido, perpetre, de fato, delito de homicídio, além de estar incurso na pena de reclusão do art. 288-A, do CP, responderá pela morte dolosa, com a incidência da majorante ora analisada.41 Cumpre acrescentar, no particular, que além da causa de aumento de pena sob consideração, o homicídio praticado em “situação de grupo de extermínio”, seja simples ou qualificado, passou a ser considerado “crime hediondo”, consoante o art. 1º, inc. I., da Lei n. 8.072/90, com a redação dada pela Lei n. 8.930/94. 41 Em sentido contrário: “(...) se o agente for condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada, ainda que tenha cometido um homicídio, não poderá sofrer a majorante por tal crime ter sido praticado por integrante de milícia privada, pois representaria uma dupla punição por um mesmo fundamento. Em outros termos, essa majorante somente pode ser aplicada se o autor do homicídio for reconhecido no julgamento do homicídio como suposto integrante de milícia privada, mas que não tenha sido condenado por esse crime.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 119). capítulo 1 • 35 f) Aumento de pena no feminicídio Conforme exposto acima, a Lei n. 13.104/2015 introduziu a hipótese qualificadora do feminicídio, no art. 121, § 2º, inc. VI, consistente na morte dolosa contra mulher por razões da sua condição de sexo feminino. Nestes termos, a Lei n. 13.104 também dispôs da elevação da pena do homicídio qualificado nessas circunstâncias, quando o fato for praticado: 1º durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; 2º contra mulher menor de quatorze anos, maior de sessenta ou com deficiência; e 3º na presença de descendente ou de ascendente da vítima. Como se pode verificar, cuidar-se-iam de situações nas quais a morte por razões da condição de sexo feminino guardariam maior reprovabilidade. No primeiro caso, justifica-se a majorante em razão do estado gravídico da mulher, bem assim pelo período de amamentação. Na segunda hipótese, ao lado da condição de mulher, haveria uma maior vulnerabilidade em função da idade (menor de quatorze ou maior de sessenta anos de idade) ou de deficiências físicas ou psíquicas. Por fim, a prática do feminicídio na presença de parentes na linha vertical (descendente ou ascendente) evidenciaria inequívoco desvalor da ação, em função do abalo psíquico diante da violência de viso. Deve-se atentar, contudo, no tocante à dosimetria da pena, para que não se incorra em indevido bis in idem, na medida em que os dados constantes da majorante ora analisada também podem constituir circunstância judicial ou agravante do crime. g) Ação penal Em quaisquer das modalidades do homicídio, a ação penal é pública incondicionada. 1.2 Induzimento, instigação e auxílio ao suicídio Suicídio é a supressão voluntária e consciente da própria vida. Compõe-se da vontade que a pessoa tem de se matar e da prática de certos atos por parte desta pessoa. O fato de uma pessoa se matar é um indiferente legal. Não sendo incriminada a ação de matar-se ou a tentativa de suicídio, a participação em tais atos não poderia ser punível, pois não há participação punível senão em fato delituoso. 36 • capítulo 1 Todavia, as legislações modernas, atendendo ao valor excepcional da vida humana, passaram a prever uma figura sui generis, que é a participação no suicídio de outra pessoa. A maioria das legislações não pune a tentativa de suicídio, que é, entretanto, considerada como fato ilícito por atingir um bem jurídico indisponível, e por não ser o exercício de nenhum direito subjetivo, permitindo a lei a coação para impedi-lo. Em seu estudo sobre o suicídio, Emile Durkheim sustenta que o suicídio é resultado de distúrbio entre o indivíduo e a sociedade. Tanto mais fortemente esteja o indivíduo integrado no grupo social, menor será a probabilidade de suicídio. Quem se depara com uma pessoa tentando se matar pode tentar impedir o ato. O crime de constrangimento ilegal está previsto no art. 146 do CP, e a lei exclui expressamente desta disposição, em seu § 3º, II: “a coação exercida para impedir suicídio”. No artigo 122 do CP, a lei impõe umasanção àquele que colabora no suicídio de outrem. Se há a intervenção do agente no suicídio da vítima, desde que não seja na fase de execução, esta colaboração é punida por este artigo. Este auxílio deve ser doloso e prestado nos atos preparatórios. Se a colaboração se der na fase de execução será homicídio. É exemplo emprestar a arma sem saber que a pessoa vai se matar não é crime. Ao mesmo tempo, o agente responderá por homicídio no caso em que praticar atos de execução, tais como ajudar a dar um tiro, acabar de enterrar a faca, abrir a torneira de gás e o suicida fechar a janela. Agora, passar-se-á à análise dos elementos do tipo penal em questão. 1.2.1 Bem jurídico Preservação da vida humana, bem indisponível. 1.2.2 Sujeito ativo Qualquer pessoa, excluindo-se aquele que se suicida ou tenta se matar. Trata-se de uma forma especial do delito de homicídio, com a diferença de que o agente não pratica o ato consumativo da morte, que cabe à própria vítima. capítulo 1 • 37 1.2.3 Sujeito passivo O homem capaz de ser induzido, instigado ou auxiliado, ou seja, que tenha alguma capacidade de resistência à conduta do sujeito ativo, sendo indispensável que tenha capacidade de discernimento para entender o ato que pratica. Quando o suicida é inimputável ou menor sem compreensão, não ocorrerá este delito, mas, sim, um homicídio típico, face à nula capacidade de resistência da vítima. Neste caso, fala-se até em autoria mediata, na qual a vítima é mero instrumento do agente. O induzimento deve ser dirigido para uma pessoa determinada ou a um grupo determinado, não ocorre o crime quando se trata de induzimento/instigação de caráter geral e indeterminado. Ex.: Quando um autor de obra literária leva os leitores ao suicídio, tal como ocorreu com Goethe, em Werther, livro que teve sua venda proibida na cidade de Leipzig, em razão dos inúmeros suicídios que a leitura motivou. 1.2.4 Tipo objetivo Induzir é criar a ideia do suicídio na cabeça do agente; instigar é reforçar uma ideia preexistente (participação moral); auxiliar é ajudar materialmente. É um tipo misto alternativo: se instigar e também auxiliar responderá por um só crime. O meio deve ser idôneo, capaz de influir moralmente sobre a vítima, sendo esta uma das causas do suicídio, caso contrário, não haveria nexo causal. Se a vontade da pessoa for irreversível, a instigação não é punida, só o sendo se a pessoa ainda estiver em dúvida. Pratica crime ainda quem auxilia o suicida. O auxílio deve ter sido efetivo para o suicídio, para que o agente seja punido. Deve-se diferenciar, entretanto, o suicídio quando o ato consumativo da morte for praticado pela própria vítima, do homicídio em que o agente pratica ato ou colabora diretamente no próprio ato executivo do suicídio. É indispensável, para a existência do crime, o resultado naturalístico: a morte ou lesão corporal de natureza grave. Este resultado é imprescindível à tipicidade, e deve ser querido pelo agente. Alguns entendem que a ocorrência da morte ou da lesão grave não integra o tipo, mas constitui condição de punibilidade. A consequência é a mesma, pois se estas não ocorrerem, não há crime. 38 • capítulo 1 A maioria da doutrina nega a possibilidade da prática deste crime por omissão, enquanto que outros, como Nelson Hungria, admitem-na se o agente for de alguma forma garantidor, tendo a obrigação de impedir o resultado. Se deixar de fazê-lo, estará de alguma forma instigando. Ex.: pai que vê o filho se suicidar e nada faz; guarda que deixa o preso suicidar-se. Da mesma maneira para formas omissivas de instigação, nas quais o não fazer reforçaria a ideia de suicídio. Ex.: enfermeiro que, violando as regras do estabelecimento, que manda recolher as armas de todas as pessoas internadas, deixa o revólver para que o doente se mate. Há provocação direta ao suicídio nos casos de coação, física ou moral, resistível, e quando o agente inflige à vítima maus-tratos e sofrimento, para o fim de levá-la, em desespero, ao suicídio. Frise-se que não basta a ameaça de revelar determinados fatos ou o rompimento amoroso, é necessário o dolo. Ainda, haverá homicídio e não induzimento, se a vítima age por erro provocado pelo agente. Ex.: Tício entrega a Caio arma carregada, alegando que é inofensiva e levando o outro a dispará-la contra si mesmo. 1.2.5 Tipo subjetivo O dolo é a vontade de induzir, instigar, ou auxiliar a vítima na prática do suicídio. Elemento subjetivo do tipo: conduta séria do agente no sentido de que a vítima venha a se matar. Para Hungria, nada impede a prática do crime com dolo eventual: por exemplo, carcereiro que não toma providências quanto à greve de fome de um preso. Não há forma culposa. 1.2.6 Consumação e tentativa A consumação se dá com a morte da vítima ou com a produção de lesões graves. Se a vítima, ao tentar o suicídio auxiliada pelo agente sofre lesões corporais de natureza leve, ou não sofre nenhuma lesão, o fato não é punível, por ser atípico. Impossível a tentativa, pois a lei subordina a incriminação do fato à superveniência do suicídio ou ao menos da lesão corporal. capítulo 1 • 39 1.2.7 Formas qualificadas O Artigo 122, parágrafo único estabelece que a pena é duplicada, se o crime é praticado por motivo egoístico, que significa que o agente vai obter alguma vantagem pessoal com o suicídio (ex.: induz o marido de sua amante a se matar, ou induz o concorrente ao suicídio), seja ou não de ordem material. Também será duplicada se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. Considera-se menor aquele que tem menos de 18 anos, mas para Damásio, se a vítima for menor de 14 anos, não será este crime, mas sim homicídio, conforme a presunção do artigo 224, fazendo analogia ao caso de estupro. Deve-se verificar se a pessoa tem ou não capacidade de discernimento. Exemplo típico de resistência diminuída: o embriagado. 1.2.8 Ação penal Pública incondicionada, cabendo ao júri seu julgamento por se tratar de modalidade de crime contra a vida. DESTAQUE 1. Suicídio a dois Quando duas pessoas decidem fazer um pacto de morte em virtude de amor impossível: a) Nenhum dos dois pratica ato de execução em relação a outro, cada um tomou seu próprio veneno. Quando há um pacto, presume-se que os dois estão se induzindo e instigando mutuamente: o que teve a ideia é o induzidor e o que aceitou é o instigador: • se ninguém sofrer lesão grave não é típico o fato; • se um deles sofrer lesão grave, o outro responde pelo artigo 122; • se os dois sofrerem lesões, responderão ambos por este artigo. b) Apenas um pratica ato de execução (ex.: fecha a janela e liga o gás) • se só o executor sobreviver, responderá por homicídio; • se quem sobreviveu foi o outro, responderá pelo artigo 122; • se os dois sobreviverem: o que praticou ato executório responderá por tentativa de homicídio, o outro responderá pelo induzimento se o executor sofrer lesão grave. 40 • capítulo 1 c) Ambos praticam atos de execução (ex.: um fecha a janela e o outro abre o gás). • se só um sobreviver, responderá por homicídio; • se os dois sobreviverem responderão por tentativa de homicídio; • se um desiste de se matar e o outro persiste com a ação suicida: se o que desistiu conseguir retirar sua participação, ficará impune. Mas se quem desistiu foi aquele que induziu ao suicídio será punido. 2. Testemunhas de Jeová Interessante problema é de um adepto da seita das Testemunhas de Jeová que, após ferir-se gravemente em um acidente de trânsito, necessitando uma transfusão de sangue, recusa-se a fazê-lo sob o argumento de que prefere morrer ao ser contaminado com sangue de outra pessoa. Em resumo: a) Sendo imprescindível a transfusão, mesmo sendo a vítima maior e capaz, tal comportamento deve ser encarado como tentativa de suicídio, devendo o médico intervir, pois está na posição de garantidor; b) Os pais, subtraindo o filho menor da necessária intervenção cirúrgica, responderão por homicídio,pois naturais garantidores do filho, sendo inaceitável a tese a da inexigibilidade de conduta diversa. 1.3 Infanticídio Infanticídio é o homicídio praticado pela genitora contra o próprio filho, influenciada pelo estado puerperal, durante ou logo após o parto. Portanto, trata- se de uma espécie derivada do homicídio, na medida em que o núcleo de ambos é o mesmo: matar alguém. Um dos princípios do concurso aparente de normas, o da especialidade, aqui deve ser invocado, fazendo com que a norma especial do art. 123 derrogue a norma geral do homicídio (art. 121). 1.3.1 Bem jurídico Vida (preservação da vida humana). Especificamente, a vida do nascente (aquele que está nascendo) e do neonato (recém-nascido). capítulo 1 • 41 1.3.2 Sujeito ativo Trata-se de crime próprio, em que somente a mãe (parturiente), sob a influência do estado puerperal, pode ser sujeito ativo. 1.3.3 Sujeito passivo O recém-nascido ou o feto que está nascendo, não o feto sem vida nem o abortado ou inviável. Antes do início do parto, qualquer atentado à vida será aborto, a partir do início do parto, quando se rompe a bolsa d’água, o crime será de infanticídio se praticado pela mãe. O nascituro deve nascer com vida, senão é crime impossível. 1.3.4 Tipo objetivo O delito pode ser praticado por qualquer meio, até por omissão (artigo 13, § 2º, “a”), mas deve ser logo após o parto (elemento normativo temporal). Parto é o conjunto dos processos (mecânicos, fisiológicos e psicológicos) por meio dos quais o feto a termo ou viável separa-se do organismo materno e passa ao mundo exterior. Há certa dificuldade na conceituação do que seja “logo após”. Entende a maioria da doutrina compreender todo o período do estado puerperal, circunstância a ser analisada pelos peritos médicos no caso concreto. Por fim, para que se configure o delito em estudo, não basta que a mãe mate o filho durante ou logo após o parto, sob a influência do estado puerperal: é preciso, também, que haja uma relação de causa e efeito entre tal estado e o crime, pois nem sempre ele produz perturbações psíquicas na parturiente. Aliás, sobre o tema, esclarece a Exposição de Motivos (item 40): “Esta cláusula [influência do estado puerperal], como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em consequência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de autoinibição da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio”. 42 • capítulo 1 É interessante observar que diferente de outros países, a nossa lei não adotou o critério psicológico, o qual se assenta no desejo de preservar a honra, mas sim o critério fisiopsicológico,42 levando em conta o desequilíbrio fisiopsíquico oriundo do processo de parto. Dependendo do grau de desequilíbrio fisiopsíquico oriundo do parto, pode a gestante ser considerada portadora de doença ou perturbação da saúde mental, aplicando-se as disposições dos arts. 26 caput e parágrafo único, do CP caso tenha ela, em razão da causa biológica, retirada total ou parcialmente a capacidade de entendimento ou de autodeterminação.43 1.3.5 Tipo subjetivo Dolo direto ou eventual. A mãe deve estar sob a influência do estado puerperal (elemento fisiopatológico). Não há forma culposa. Se a mãe for negligente e o filho morrer será homicídio culposo. 1.3.6 Consumação e tentativa Consuma-se com a morte do recém-nascido e a tentativa é admitida. 1.3.7 Concurso de pessoas Se um terceiro eventualmente participa de um infanticídio, sendo este um crime próprio, a doutrina se divide em três correntes: a) O partícipe responderá também pelo infanticídio, baseando-se no artigo 30 do CP, que diz que as circunstâncias pessoais, quando elementares do crime, se comunicam (Delmanto, Damásio, Frederico Marques). b) A condição de mãe e a influência do estado puerperal é personalíssima, não se comunicando ao terceiro, que responderá por homicídio (Aníbal Bruno, Heleno Fragoso, Nelson Hungria). c) Faz-se uma distinção com relação ao terceiro, se este só auxiliar, sendo partícipe, responde por infanticídio, se participa dos atos executórios, sendo coautor, responde por homicídio (Magalhães Noronha). 42 NORONHA, op. cit., p. 45-46. 43 CUNHA, op. cit., p. 43. capítulo 1 • 43 1.3.8 Outros crimes Há outro crime que estabelece relação com este – o do artigo 134, só que neste caso e intenção é abandonar o filho e não matá-lo. A mãe poderá responder pelo artigo 134 e se resultar na morte do bebê responderá pelo artigo 134, § 2º. 1.3.9 Agravantes genéricas Não se aplicam a este crime as agravantes previstas no artigo 61, II, letras “e” e “h”, pois a relação de parentesco já constitui o crime e a qualidade de criança do sujeito passivo também. 1.4 Aborto Aborto é a interrupção da gravidez, com a morte do produto da concepção, que é protegido pela normal penal, que pune o aborto desde o momento da nidação até o início do parto. Para Heleno Fragoso, o momento inicial é a partir da nidação (implantação do ovo no útero), pois até o ovo se fixar no útero, a interrupção deste processo não é aborto. O DIU e algumas pílulas autorizadas pelo Ministério da Saúde atuam após a fecundação, mas antes da nidação. Nos EUA, a Suprema Corte decidiu, em 1973, não ser admissível, de acordo com a Constituição, a proibição do aborto nos 3 primeiros meses de gravidez, enquanto que do 3º ao 6º mês só poderá ser realizado se estiver em risco a vida ou a saúde da gestante. Roberto Lyra afirmava que “a exacerbação do castigo conduz às práticas clandestinas, valoriza seus agentes, aumenta os seus perigos, oculta os seus males, desorienta a política social, desmoraliza a ameaça penal, prestigia a moral prática que tolera e não considera e não considera desonesto o abortamento”. Exige-se exame de corpo de delito para a comprovação da materialidade do crime. O CP prevê 3 hipóteses de aborto: aborto provocado pela gestante (art. 124, 1ª parte); aborto com o consentimento da gestante (art. 124, 2ª Parte e art. 126); aborto sem o consentimento da gestante (artigo 125). 44 • capítulo 1 1.4.1 Bem jurídico O bem jurídico protegido é a vida humana em formação (intrauterina) e no aborto sem o consentimento da gestante está se protegendo também a sua liberdade de escolha e integridade física. 1.4.2 Sujeito ativo Fora o aborto provocado pela gestante, cujo sujeito ativo é a própria gestante, nos outros casos o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Coautoria: A questão do enquadramento de terceiro que auxilia a gestante é discutida. Auxiliar significa, no caso, oferecer os instrumentos, acompanhá-la até a clínica, pagar o aborto e dar os remédios. O entendimento jurisprudencial dominante é que este 3º não responde pelo art. 126, mas sim pelo art. 124. A importância desta distinção é que se a gestante vier a sofrer lesões graves, ou mesmo vir a morrer, o 3º que auxilia continuará sujeito ao art. 124, não tendo qualquer aumento em sua pena (em virtude da prescrição isso é relevante). Ex.: Namorado que acompanhou a gestante até a clínica de aborto – responderia pelo art. 124, e não pelo art. 126, enquanto que a enfermeira responderia junto com o médico. 1.4.3 Sujeito passivo O sujeito passivo do crime de aborto é o feto. Discute-se se a sociedade é sujeito passivo. No aborto sem consentimento da gestante, ela também é sujeito passivo. 1.4.4 Tipo objetivo A ação de provocar (dar causa, originar) tem forma livre e pode ser praticada por qualquer meio, comissivo ou omissivo. Os meios podem ser químicos ou físicos, diretos ou indiretos, incluindo psíquicos (ex.: susto e terror). É imprescindível que o meio seja hábil à produção do resultado. Se o meio é absolutamente ineficaz (ex.: rezas, simpatias, ingestão de substâncias inócuas), há crime impossível (art. 17 do CP). Da mesma forma, manobras abortivas em mulher não grávida, ou sobre feto já morto, em razão da impropriedadedo objeto. capítulo 1 • 45 O crime consiste na morte dada ao nascituro intra uterum ou pela provocação de sua expulsão. Pressupõe a gravidez (é elementar), sendo necessário que o feto esteja vivo. O aborto por omissão se dá quando, por exemplo, o médico, que é garantidor da não ocorrência do resultado, não tenta manter a gravidez da mulher que está em processo de aborto espontâneo. O termo inicial para a prática do delito em exame é o começo da gravidez. Do ponto de vista biológico, o início da gravidez seria o momento da fecundação, todavia, do prisma jurídico se considera o momento da nidação, ou seja, na implantação do óvulo fecundado no endométrio. Parte da doutrina, porém, entende que o limite mínimo da proteção jurídica é o da fecundação. O termo final é o início do parto – contrações da dilatação (parto normal) ou o corte abdominal (cesariana). Não há tutela penal especial na gravidez “molar”, em que há desenvolvimento anormal do ovo, e na gravidez extrauterina, que representa um estado patológico. A gravidez interrompida deve ser normal, e não patológica. 1.4.5 Tipo subjetivo Dolo genérico - direto e eventual, no caso do agente, embora não queira o resultado morte do feto com fim específico de sua conduta, o aceita como possível ou provável. Ex.: sujeito que, pretendendo promover um nascimento prematuro, para fins de herança, prevê a possibilidade da morte do feto e aceita o risco de sua produção. Não há forma culposa. Entretanto, o terceiro que culposamente provoca o aborto, responde por lesão corporal culposa (art. 129, § 6º do CP).¬ No aborto qualificado pelo resultado (art. 127), o crime é preterdoloso: há dolo no antecedente (aborto) e culpa no subsequente (lesão grave ou morte). 1.4.6 Consumação e tentativa Com a morte do feto ou destruição do óvulo se consuma o crime. A expulsão do produto da concepção não é imprescindível para a consumação do delito. O aborto é crime material. Admite-se tentativa. 46 • capítulo 1 1.4.7 Aborto provocado pela gestante e aborto consentido Este artigo contém duas figuras: aborto provocado pela gestante ou aborto praticado pela própria gestante (1ª parte); aborto consentido (2ª parte). Neste caso, quem pratica os atos materiais do aborto incide no art. 126. A coautoria não é admissível no aborto provocado pela gestante, embora se admita a participação. Para Delmanto, quem instiga, indica, auxilia, acompanha ou paga, será coparticipe do art. 124, enquanto que a coautoria do art. 126 está reservada a quem eventualmente auxilie o autor na execução material do aborto (ex.: enfermeira, anestesista). 1.4.8 Aborto praticado por terceiro sem consentimento da gestante Admite duas formas: não concordância real (violência, grave ameaça ou fraude); não concordância presumida (menor de 14 anos, alienada ou débil mental) – vide parágrafo único do art. 126. Exemplos de fraude: o agente ministra à mulher grávida substância abortiva ou nela realiza intervenção cirúrgica para extração do feto sem seu conhecimento. 1.4.9 Aborto praticado por terceiro com o consentimento da gestante – aborto consensual É sancionado de forma menos severa. Enquanto a grávida responde pelo crime do art. 124, o médico responde por este – exceção à regra geral do concurso de pessoas. Presume-se que não houve consentimento se a gestante não é maior de 14 anos, ou se é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. A violência, neste caso, refere-se àquela utilizada para a obtenção do consentimento e não para a realização do aborto. Se assim fosse, o crime seria o de aborto não consentido (art. 125). Discute-se se os pais podem consentir. O eventual erro quanto ao consentimento é erro de tipo. Se o crime for praticado por médico, caberá a pena de interdição temporária de direitos (art. 47, II, pois há, neste caso, violação de profissão ou dever a ela inerente – art. 56). capítulo 1 • 47 1.4.10 Aborto qualificado pelo resultado O artigo 127 prevê que as penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de 1/3, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Trata-se de forma preterdolosa. Esta qualificadora somente é aplicável aos arts. 125 e 126, e não ao art. 124. O partícipe do crime de aborto provocado pela gestante, portanto, não responde pelo resultado mais grave. A lesão leve é absorvida pelo crime do caput. É necessário que este resultado tenha sido causado ao menos com culpa (CP, art. 19). O evento mais grave não deve ter sido querido pelo agente, nem mesmo eventualmente, pois se ocorrer dolo com relação ao resultado mais grave, haverá concurso de crimes. No caso específico de que, dos meios empregados para provocar o aborto não advenha a morte do feto, embora ocorra a lesão corporal grave ou a morte da gestante, a doutrina se divide. Para alguns autores, haveria crime de aborto qualificado tentado, enquanto que outros fazem menção ao fato de que o crime qualificado pelo resultado não admite tentativa, concluindo que nesta hipótese haveria aborto qualificado pelo resultado consumado (art. 127, CP). Homicídio de mulher grávida: se o agente sabia da gravidez, pode haver aborto na forma de dolo eventual, respondendo o agente pelo concurso formal entre o homicídio simples + aborto sem o consentimento da vítima. Em caso de agressão à mulher grávida, se o agente conhecia a circunstância e assumiu o risco da morte do feto como resultado de sua conduta, responde por concurso formal de delitos (lesão corporal dolosa e aborto consumado ou tentado). Quem desfere violento pontapé no ventre de mulher, visível e sabidamente grávida, comete o crime de aborto e não de lesão corporal gravíssima pelo resultado aborto, pois age com dolo eventual. Entretanto, se quis apenas praticar lesão corporal na mulher, cuja gravidez desconhecia ou não podia conhecer, e sobrevém o aborto em decorrência da violência, o crime será o de lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º, V). Tentativa de suicídio de gestante: se o suicídio não se consumar, por circunstâncias alheias à sua vontade, ela responderá pelo delito de aborto (tentado ou consumado), se é consciente da situação e das consequências de seus atos. 48 • capítulo 1 1.4.11 Aborto legal Exige-se que seja o aborto praticado por médico. Somente é lícito o aborto praticado pelo médico, muito embora seja aplicável a regra genérica de estado de necessidade do art. 20 do CP para o caso da enfermeira que provoca o aborto para salvar a vida da mãe. Nestas hipóteses, o legislador exclui a antijuridicidade da conduta. Não há crime, portanto, pela ausência do elemento antijuridicidade. São as seguintes as hipóteses de aborto legal: a) Aborto necessário ou terapêutico: hipótese em que médico o pratica se não há outro meio de salvar a vida da gestante. É a intervenção cirúrgica realizada com o objetivo de salvar a vida da gestante. Os requisitos são: que a vida da gestante corra perigo e não haja outro meio de salvar a vida da gestante. Constitui caso especial do estado de necessidade, no qual é dispensável a concordância da gestante ou de seu representante legal, se o perigo de vida for iminente (art. 146, § 3º, I). O erro do médico, mesmo que derive de culpa, constituirá descriminante putativa. b) Aborto sentimental, ético ou humanitário: ocorra caso a gravidez resulte de estupro e o aborto seja precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal. Os requisitos são: gravidez consequente de estupro; prévio consentimento da gestante ou de seu representante legal. A lei não exige autorização judicial para a prática do aborto sentimental, ficando a intervenção ao arbítrio do médico. Normalmente, o médico cauteloso deve requerer que a gestante assine um papel, ou exige o registro de ocorrência. Se o médico for induzido
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