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EA D 2 Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo 1. OBJETIVOS • Perceber as mudanças históricas pelas quais o Império Romano passou ao longo do século 3º. • Identificar as continuidades conceituais e teóricas entre o cristianismo e a filosofia romana imperial e grega. • Compreender a importância do período para a consolida- ção e a estruturação de uma ortodoxia cristã constituída ao longo da Antiguidade Tardia. 2. CONTEÚDOS • Final do Baixo Império Romano e a perseguição aos cris- tãos por Diocleciano. • A conversão de Constantino e o fim da perseguição aos cristãos. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 62 • Os primeiros concílios ecumênicos e as controvérsias doutrinárias. • A expansão do cristianismo para o Ocidente, alguns de seus principais teóricos e o conflito com o paganismo. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Procure acompanhar o conteúdo desta unidade sem se ater apenas ao que aprendeu no Ensino Médio. Abra-se a novas perspectivas de aprendizagem. 2) Agostinho de Hipona é uma das figuras centrais de nos- sos estudos sobre o Medievo. Antes de iniciarmos o es- tudo da unidade, é importante adquirirmos algumas in- formações suplementares sobre Agostinho e o contexto histórico em que esteve inserido: • A partir do ano 303, o imperador romano Diocle- ciano deflagrou uma forte perseguição aos cristãos. Esse ato deu origem à controvérsia donatista do Norte da África, que teve em Agostinho seu maior opositor. Os donatistas defendiam a pureza moral de seus membros em decorrência de sua recusa em queimar os exemplares da Escritura como havia sido determinado por Diocleciano. Os bispos eleitos e que haviam participado desse movimento no tempo da "grande perseguição" eram considerados traido- res pelos donatistas e, com isso, deveriam ser subs- tituídos em seus cargos por bispos puros, ou seja, donatistas. • Para saber mais sobre o donatismo e Santo Agosti- nho, sugerimos a leitura de algumas obras: BROWN, P. Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005. 63© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo SANTO AGOSTINHO. Instrução aos catecúmenos. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997. 3) Os dados a seguir ajudarão você a compreender melhor o conteúdo que trabalharemos. Leia-os atentamente e complemente seu conhecimento. a) No ano de 325, trezentos bispos reuniram-se no Concílio de Niceia para discutir sobre a natureza de Jesus (humana, divina ou dupla). Dos trezentos bis- pos, a maioria era oriental. Apenas três deles vieram do Ocidente (Gália, Hispânia e Itália). Porém, as de- terminações de Niceia tiveram uma aceitação geral. Por isso, ele é considerado o primeiro concílio ecu- mênico. b) A cidade de Constantinopla foi construída na época de Constantino para ser uma das moradas do impe- rador. Ao longo do século 6º, ganhou importância e tornou-se a capital do Império Oriental, equipa- rada a Roma, tal qual expresso no terceiro cânone do Concílio de Constantinopla de 381: "O bispo de Constantinopla tem o primado de honra logo depois do Bispo de Roma, visto que Constantinopla é uma nova Roma" (Zilles, U. (Ed.) Documentos dos oito pri- meiros concílios ecumênicos. Porto Alegre: EDIPU- CRS, 2000, p. 30). c) Foi no Concílio de Constantinopla de 381 que o cris- tianismo se tornou a religião oficial do Império. Esse foi o segundo concílio ecumênico. d) A defesa da consubstancialidade estava vinculada ao debate sobre o termo grego usado pelos filósofos Plotino e Porfírio, homoousios, (termo usado pelos filósofos, cujo significado equivale ao de consubstan- cialidade). Com ele, atribuía-se um vínculo ontológi- co de natureza entre os membros e designava "seres pertencentes à mesma classe enquanto partilham entre si o mesmo tipo de conteúdos" (MONDONI, D. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Loyola, © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 64 2001, p. 123). Em latim, o termo empregado para substituir ousia foi substantia, que significa “aquilo que dá origem, que subsiste, que sustenta”. e) Leia o capítulo 19 da obra A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, para entender a inversão feita por Agos- tinho no conceito de "república" de Cícero. Se qui- ser se aprofundar mais no tema, pode ler também a obra: CÍCERO, Marco Túlio. Da república. Tradução de Amador Cisneiros. Bauru: Edipro, 1995. f) Caso queira se aprofundar no tema da relação en- tre a religião e a arte de governar, recomendamos a consulta à obra: SENELLART, M. As artes de governar. São Paulo: Edi- tora 34, 2005. 4) Alguns autores serão citados no decorrer do conteúdo, e é importante que você obtenha um conhecimento pré- vio a respeito deles. Observe as informações a seguir so- bre dois expoentes do período que estudamos: Eusébio de Cesareia Eusébio de Cesareia viveu entre 263 e 340 e foi ordenado bispo de Cesareia em 313. Sua produção escrita inclui diver- sas obras, dentre as quais as mais importantes são História Eclesiástica e Vida de Constantino. Eusébio é conhecido por ter passado, com sua escrita, a ideia de uma Igreja triunfante e que caminhava rumo à unidade política graças ao pulso firme do imperador (imagem disponível em: <http://www.cot. org.br/igreja/img/eusebio-de-cesareiajpg.jpg>. Acesso em: 16 fev. 2011). Tertuliano Uma das principais figuras do cristianismo do século 2º, Quin- to Septimo Florêncio Tertuliano, mais conhecido como Ter- tuliano, contribuiu significativamente para o debate em torno do Ministério da Trindade (imagem disponível em: <http:// wapedia.mobi/thumb/3ad1500/pt/fixed/171/235/Tertullian_2. jpg?format=jp>. Acesso em: 16 fev. 2011). 65© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, vimos que o conceito de “Idade Média” foi construído com base em um aparato historiográfico que situa os acontecimentos do período sob uma determinada perspectiva. Agora, vamos refletir sobre os eventos que marcaram o que se convencionou chamar de Idade Média. Nessa análise, teremos em vista a construção de uma sociedade cristã, com vínculos de parentesco, de amizade e de política, em grande medida determi- nados por uma Instituição que é a “herdeira legítima” do Império Romano: a Igreja. Certamente, esse processo de conquista dos territórios sob administração romana e de expansão da religião nascida no Orien- te foi lento e dependeu de acordos, avanços e retrocessos nas re- lações entre Igreja e Império. O próprio dogma cristão teve seu nascimento ao longo da Idade Média e sofreu várias contestações e adaptações para se fortalecer e ser condizente com a estrutura institucional que se formava. Desse modo, podemos afirmar que o cristianismo tam- bém foi uma construção histórica. Vimos também que o período que vai do final do século 3º ao início do século 6º foi crucial para a vitória do cristianismo como religião oficial do Império e para sua expansão aos territórios mais ocidentais do mundo que eles conheciam na época. Denominamos esse momento de “Antiguidade Tardia”, por ser um momento em que ainda havia uma sociedade romana em evidência, regida por leis determinadas pelo imperador romano. Ao mesmo tempo, um episcopado começava a se estruturar e a ganhar força entre uma população urbana, fora da elite pagã. Lembremo-nos de que já não estamos diante de um cená- rio totalmente marcado pela força de um Império pagão, mas, ao © História MedievalI Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 66 mesmo tempo, ainda não temos nesse momento a Igreja comple- tamente estruturada e estabelecida. As duas instituições caminha- vam lado a lado. Dessa forma, a sociedade ainda não se identificava total- mente como cristã, mas assistia-se ao aumento de cristãos e da importância dos bispos como figuras públicas de grande destaque, inclusive no meio político. Nesta unidade, conheceremos os movimentos de ruptura e de continuidade que marcaram esse importante momento para a formação da sociedade cristã medieval. Mas tenham sempre em mente que, em História, as rupturas são frutos de longos proces- sos e que na continuidade há alterações importantes a serem con- sideradas. 5. O BAIXO IMPÉRIO ROMANO E A PERSEGUIÇÃO AOS CRISTÃOS POR DIOCLECIANO Os séculos 2º e 3º da Era Cristã foram marcados por momen- tos de grande instabilidade na política imperial. Entre a morte do Imperador Cômodo em 192 e a chegada ao poder de Diocleciano em 284, o Império Romano sofreu as pressões dos bárbaros ao lon- go do rio Danúbio, o fortalecimento do Exército e a insegurança ge- neralizada provocada pela inflação e pelo aumento dos impostos. Esse período de instabilidade e tentativas de solucionar os problemas administrativos do Império foi chamado pela historio- grafia de "crise do século 3". Segundo Patrick Geary (1989), a crise do Império Romano foi marcada pela pressão do Exército na escolha e na deposição dos imperadores, o que resultou em conflitos para a determinação dos candidatos à insígnia imperial. Esses conflitos tinham sua ori- gem na responsabilidade desses imperadores para com o enrique- cimento dos soldados e sua condução à vitória frente aos ataques vindos do Norte e do Oriente. 67© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo Diocleciano, que esteve no poder entre 284 e 305, tomou como tarefa a reestruturação do Império e, para tanto, estabele- ceu algumas medidas importantes. Uma delas foi a divisão dos ter- ritórios administrados pelo Império em duas porções: • As regiões situadas ao Oriente, cujas principais cidades eram Alexandria (Egito), Antióquia (Síria), Éfeso (Ásia Me- nor) e Constantinopla, ficariam a cargo do próprio Diocle- ciano. • As cidades do Ocidente – Roma e as regiões do Norte da África, da Gália (atual França), da Hispania (atual Penínsu- la Ibérica) e da Bretanha (sul da Inglaterra) – ficariam sob responsabilidade de Maximiano. Por volta de 292, esse dispositivo foi complementado com a chamada "tetrarquia". Nela, quatro homens seriam responsá- veis pela administração do Império em sua divisão Leste-Oeste, ou seja, Oriente-Ocidente. Assim, Diocleciano, Maximiano, Galério e Constâncio par- tilhariam o Império, os dois últimos somente ganhariam o título imperial em caso de morte ou desistência dos "augustos". Essa su- cessão regida pela lei substituiu a sucessão hereditária utilizada até então – até que, após a morte de Constâncio, a hereditarieda- de passou a prevalecer novamente. Diocleciano ficou conhecido como o imperador que levou a cabo a "grande perseguição" contra os cristãos. Em 303, ele publi- cou um édito que ordenava a queima de todos os exemplares das Escrituras e a destruição dos locais de culto cristãos. Pelo édito, os cristãos estavam proibidos de se reunir, eram destituídos do direito de cidadania e seus bispos seriam aprisiona- dos. A repercussão da "grande perseguição" foi sentida mais for- temente no Oriente, uma vez que foi primeiramente nessa região que o cristianismo nasceu e ganhou força entre a classe média ur- bana. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 68 Desse modo, um importante tema de estudo para esse perí- odo é o deslocamento do cristianismo para o Ocidente, que o fez, segundo Jacques Le Goff (1980), se adaptar a um contexto muito diverso daquele no qual surgira. A divergência entre o cristianismo oriental e o ocidental foi analisada por Peter Brown (1985). Segundo ele, o cristianismo não decorria da divisão administrativa realizada por Diocleciano. Se hoje temos uma relação de estranhamento com o Oriente e não compreendemos muito bem o modo de vida das sociedades orien- tais, durante o primeiro milênio essa relação de estranhamento não existia. Aproveitando o ensejo, pesquise o significado do termo “al- teridade”. Estabeleça uma relação entre o conceito de alteridade e o de “identidade”, e verá como essa relação é bem aplicável nesta nossa reflexão. Prosseguindo: se não havia o estranhamento entre Orien- te e Ocidente, existia em relação àqueles que habitavam o Norte das cidades mediterrâneas. Configurava-se uma divisão na direção Norte/Sul, marcada pelo pertencimento ou exclusão na política e na cultura romana. Isso acontecia porque o Mediterrâneo fornecia às cidades do Império Romano, fossem aquelas do Oriente, fossem as do Ociden- te, uma unidade fundamental na cultura e no reconhecimento espa- cial. Essa unidade só foi rompida posteriormente, quando a história das duas porções mediterrâneas foi marcada pelo deslocamento ao Norte, ocasionado pela instalação dos povos germânicos. Com a morte de Constâncio, sucessor de Diocleciano, o po- der imperial foi assumido por seu filho Constantino. A ascensão de Constantino foi uma etapa crucial tanto para o reconhecimento do cristianismo quanto para a pacificação do Império e sua reunifi- cação. A partir daí, essa religião até então marginalizada transfor- mou-se em uma instituição envolvida com as questões do poder, pregando um discurso universalista de igualdade, que passou a ser tão grande quanto o próprio Império. 69© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo 6. A CONVERSÃO DE CONSTANTINO E O FIM DA PER- SEGUIÇÃO AOS CRISTÃOS Segundo o historiador Paul Veyne (2007, p. 9), "um dos mo- mentos decisivos da história ocidental e mesmo mundial produziu- se em 312 na imensidão do Império Romano". Essa data remete à conversão de Constantino ao cristianismo, que transformou o trono romano cristão e a Igreja em uma força política. Constantino foi o primeiro imperador a se converter pessoalmente ao cristianismo. A conversão de Constantino não tornou o cristianismo a re- ligião oficial de todo o Império, mas foi uma atitude fundamental, pois tornou possível a expansão do cristianismo e o reconhecimen- to de sua importância e de sua igualdade em relação ao paganis- mo ainda dominante. Constantino também não foi o único responsável pelo fim da perseguição aos cristãos, mas favoreceu o cristianismo em face do paganismo, bem como se esforçou para centralizá-lo. E o que faria um imperador aderir a uma religião até então marginalizada e vista com péssimos olhos pela maioria dos habi- tantes do Império Romano? Constantino teria visto no cristianismo a possibilidade de mudar a História? Teria sido um oportunista? É importante que nos lembremos de que, no momento da conversão de Constantino, apenas 5% ou 6% da população era cristã. Certamente, Constantino foi um grande político, embora suas ações não o tenham beneficiado na mesma medida em que beneficiaram o cristianismo. Segundo Bury (apud Veyne, 2007), a conversão de Constan- tino foi um dos atos mais audaciosos da História, pois com ele o imperador desafiou e desprezou a opinião da grande maioria dos habitantes do Império. É importante ressaltar a mudança realizada por essa conversão, que colocou o cristianismo no primeiro plano da cena histórica e fez da salvação dos homens a finalidade do próprio ato de governar. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 70 A conversão foi narrada por dois autores cristãos, seus con- temporâneos, mas o relato mais conhecidofoi o de Eusébio de Cesareia. Segundo ele, Constantino é o salvador dos cristãos, que chegou depois de um período conturbado de guerras, pestes e fome, consequências diretas do castigo de Deus contra os homens. Vejamos o que Eusébio (2005, p. 308) diz sobre Constantino: Constantino foi o primeiro dos dois [Licínio] – primeiro também em honra e dignidade imperiais – que mostrou moderação com os oprimidos pelos tiranos em Roma. Depois de invocar como aliado em suas orações ao Deus do céu e a seu Verbo, e ainda ao próprio Salvador de todos, Jesus Cristo, avançou com todo seu exército, tentando alcançar para os romanos sua liberdade ancestral. A invocação de Deus e de Jesus Cristo por Constantino in- seriu-se no cenário de conflitos pela posse do trono romano. Por determinação de Diocleciano, Constantino dividia o Império com Licínio, que governava as regiões orientais. Maxêncio, sem fazer parte do poder oficial, havia conquistado o governo da Itália, que era território de Constantino. Nessa batalha, Constantino acabou se convertendo após um sonho e saiu vitorioso do conflito. No sonho, o Deus dos cristãos lhe prometeu a vitória se ele se declarasse publicamente cristão. A declaração de Constantino foi feita e o Exército ganhou um novo signo para adornar seus escudos: o cristograma. Ele era re- presentado pelas duas primeiras letras de Cristo, em grego, super- postas e cruzadas. Analisemos o que a historiografia considerou ao atribuir suma importância ao Édito de Milão para a determinação da Era Cristã. Paul Veune (2007) afirma que a entrada solene de Constan- tino como cristão em Roma, em 29 de outubro de 312, marcou a fronteira entre a Antiguidade pagã e a Era Cristã. Em 313, Licínio – que permanecia pagão – e Constantino reuniram-se em Milão para entrar em acordo sobre a tolerância que deveria haver entre cristãos e pagãos. Porém, ainda que esse acordo tenha sido fundamental para que os cristãos recobrassem 71© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo o que haviam perdido nos tempos de perseguição, não se pode dizer que o Édito de Milão tenha sido o responsável direto pelo final das perseguições. A tolerância aos cristãos havia sido um pressuposto do Édito de Tolerância de Galério, em 311. O Édito de Milão validou os pres- supostos estabelecidos naquela ocasião e trouxe instruções com- plementares destinadas aos altos funcionários das províncias: por exemplo, ordenou a restituição dos bens das igrejas confiscadas no período das perseguições. Entretanto, o ano de 313 foi considerado uma data impor- tante por provocar uma curiosa inversão. Se até 312 o cristianismo era a religião tolerada, a partir daí foi o paganismo que se tornou “tolerável” frente a um imperador declaradamente cristão. Em 324, Constantino venceu Licínio e reuniu as duas metades do Im- pério sob seu governo cristão. Após a reunificação do Império, Constantino não modificou sua postura de tolerância e, com isso, promoveu um período de paz, rara no Império até então. A paz de Constantino foi expressa justamente nessa tolerância do imperador em relação ao paganis- mo, ainda que, em seus textos oficiais, declarasse o paganismo su- persticioso e inferior ao cristianismo. Constantino não forçou a conversão de ninguém. Nomeou pagãos para os mais altos cargos do Império, não fez nenhuma lei contra eles e permitiu que o Senado continuasse dando crédito aos cultos públicos. Constantino morreu em 337. Graças a ele, a cristianização do Império pôde se desenvolver. Durante seu governo, a Igreja ga- nhou outro papel: de instituição tolerável, passou a ser uma ins- tituição protegida pelo Império e suplantou a preponderância do paganismo. Em 197, Tertuliano defendia que o homem não nascia cris- tão, mas escolhia o cristianismo. Três séculos mais tarde, o batis- © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 72 mo transformou-se em um dos sacramentos mais importantes da Igreja, juntamente com a eucaristia. Os catecúmenos, ou seja, aqueles que escolhiam ser cristãos, eram instruídos com livros que foram escritos para orientar os bis- pos na educação daqueles que abraçariam a fé cristã. Foi nesse pe- ríodo que começou a defesa do batismo da criança, baseando-se no fato de que, embora não se nascesse cristão, nascia-se pecador e isso legitimava o batismo daqueles que nem ao menos podiam declarar uma vontade. Agostinho foi um dos defenderam o batis- mo das crianças. No século 6º, as crianças já eram batizadas. Naquele período, a declaração explícita da vontade de se converter era um pressu- posto fundamental para se tornar cristão. Desenvolveu-se, então, um tipo de relação social que ainda hoje conhecemos, mas que foi completamente inédito para o período: o apadrinhamento. Apadrinhamento era o nome que se dava à relação entre padrinhos e crianças. Compadrio era a relação entre os pais e os padrinhos. A historiadora Anita Guerreau-Jalabert considera essa relação uma das formas de "parentesco espiritual" construídas pelo cristianismo. Inclusive, seguia as mesmas regras que regiam o parentesco consanguíneo. Durante seu surgimento, o cristianismo era a religião de uma população situada à margem das esferas de poder. Ao longo do século 4º, galgou as estruturas políticas a ponto de ser defendido pelos homens mais eminentes do período. Assim, seus sacramentos começaram a se desenvolver e os catecúmenos começaram a ser instruídos antes do batismo. Os dogmas cristãos começaram a ser pensados, ganharam respaldo civil e expandiram-se para as terras mediterrâneas ocidentais. No próximo tópico, aprofundaremos o estudo desse assunto. 73© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo 7. OS PRIMEIROS CONCÍLIOS ECUMÊNICOS E AS CONTROVÉRSIAS DOUTRINÁRIAS Com a unificação do Império sob Constantino, em 324, e com o imperador assumindo a função de protetor dos cristãos e encarre- gado dos afazeres eclesiásticos, os dogmas cristãos começaram a ser formados com base na reunião de concílios ecumênicos, cuja função era discutir e decidir aquilo em que os cristãos deveriam acreditar. O primeiro deles foi o Concílio de Niceia, de 325, que discutiu e condenou a doutrina de Ário, chamada de arianismo. Essa doutri- na foi uma das mais importantes em relação à questão cristológica. Logo na abertura do concílio reunido por Constantino na ci- dade de Niceia, temos a condenação de Ário e a determinação de uma profissão de fé (o credo), constantemente retomada nos con- cílios ao longo da Idade Média: Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis: e em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido do Pai como Unigênito, isto é substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro, gerado e não feito, da mesma substância do Pai, segundo os gregos, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas no céu e da terra foram feitas, o qual por nós homens e para nossa salvação desceu, se encarnou, se fez homem, padeceu e ressuscitou no terceiro dia, subiu aos céus, para vir julgar os vivos e os mortos. (Cremos) também no Espírito Santo (ZILLES, 2000, p. 17). Com base na leitura dessa declaração de fé, você saberia di- zer qual era a doutrina defendida por Ário em relação à existência do Filho de Deus? Você saberia dizer o porquê da ênfase em deter- minados temas pelos trezentos bispos que foram a Niceia? Vamos refletir para que seja possível responder às questões anteriores. Ário viveu entre 260 e 335 e foi patriarca de Alexandria. Segundo sua doutrina trinitária, o Pai era o único não gerado, não criado, eterno e sem princípio. Ele seria anterior ao Filho. Logo, se este era posteriorao Pai, ele deveria ter sido criado. Então, Cristo teve uma origem, uma existência no tempo. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 74 Com isso, era possível atribuir uma mutabilidade e uma hu- manidade ao Filho. Se somente o Pai era eterno, imutável e cria- dor, Cristo não poderia ser divino e seria, assim como o homem, uma criatura de Deus. Esse pensamento valeu a Ário uma primeira condenação no sínodo de Alexandria de 318. Todavia, ele viajou até Cesareia e Nicomédia, divulgando seu posicionamento. Em 325, antes de Niceia, o sínodo de Nicomédia foi favorável à Ário, enquanto o de Antioquia confirmou sua excomunhão. Arianos e seus oponentes tinham dois critérios na defesa de suas posições. O primeiro era, sem dúvida, a Escritura. Essa era a fonte comum sobre a qual recaía a possibilidade de interpretações e de construções dos dogmas que deveriam ser levados adiante pela comunidade cristã. A própria composição das Escrituras ainda não estava conso- lidada – alguns defendiam que somente o Novo Testamento deve- ria ser considerado fonte de autoridade. O segundo critério era a reunião – primeiramente, em sí- nodos. Após a conquista de Constantino, em concílios. Ali se reu- niam os bispos para, coletivamente, tratar das questões de fé e das questões administrativas concernentes à estrutura da Igreja, à eleição dos bispos e ao uso dos bens. Nesse debate contra Ário, os argumentos usados por Ataná- sio (o maior opositor da doutrina ariana) reforçavam que o arianis- mo minava a Trindade porque considerava apenas uma das pes- soas como realmente divina, ocasionando uma desigualdade de substância e de existência entre seus membros. Como você pôde perceber, o Concílio de Niceia determinou que o Filho havia sido gerado e não criado, pois com isso se pre- servava a consubstancialidade entre os dois. Ou seja: afirmou-se que a natureza do Filho era a mesma que a do Pai. 75© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo Por isso, ele era tão divino quanto o Pai. Era Deus que se engajara no mundo e que, por um ato de amor e misericórdia pela criatura humana, encarnara para a remissão dos pecados e para a salvação da humanidade. Assim, em Niceia, temos a primeira dis- cussão sobre um dogma – a divindade de Cristo – e a primeira con- denação de uma doutrina (que passou a ser vista como herética). Ário foi declarado um heresiarca e exilado na Ilíria. Todavia, o arianismo não deixou de existir após o concílio de Niceia. Alguns bispos continuaram defendendo esse posicionamento e mesmo os povos germânicos que adentraram o Império ao longo do século 5º, como os visigodos, eram arianos. Assim, os sucessores de Constantino no Império, Constâncio II e Juliano, também eram simpatizantes dessa doutrina. O próprio Constantino, após 328, adotou uma política a favor do arianismo e reabilitou o heresiarca. Mas, para a consolidação da doutrina cris- tã, prevaleceram as determinações de Niceia, que foram reforça- das e ampliadas com os concílios subsequentes. Não podemos nos esquecer de que, em 380, o Imperador Te- odósio teve um papel central na finalização da controvérsia ariana: ele tornou o cristianismo a religião oficial do Império. Assim, tere- mos de esperar até o Concílio de Calcedônia, em 451, convocado pelo Imperador Marciano, para consolidar a questão cristológica: a) “O Filho é um só e mesmo”; b) Este Filho é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem; c) como homem, é unidade de alma racional e corpo; d) nasceu da Virgem Maria (Theotokós), como ensina Éfeso; e) afirma a dualidade de naturezas: em duas naturezas sem confusão e sem mudança, sem divisão e sem sepa- ração. Portanto, em Cristo há uma pessoa e duas naturezas (ZILLES, 2000, p. 52). Somente com o Concílio de Calcedônia temos a possibilidade de imputar condenação às heresias referentes à natureza de Cristo e à dúvida sobre o vínculo entre as três pessoas da Trindade. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 76 8. A EXPANSÃO DO CRISTIANISMO PARA O OCIDEN- TE, ALGUNS DE SEUS PRINCIPAIS TEÓRICOS E O CON- FLITO COM O PAGANISMO Tanto no Ocidente quanto no Oriente, a consolidação do cristianismo e sua ascensão ao status de religião oficial do Império foi decorrente de diversos fatores. Na construção das heresias e da doutrina cristã, o que temos é a retomada de termos e significados da Filosofia Grega e Helenís- tica para pensar as questões próprias ao cristianismo. Da mesma forma, os métodos exegéticos e de combate já eram conhecidos pelos antigos. Por exemplo, o método do comentário e do debate argumentativo. No Ocidente, um cristão que se destacou no combate pela doutrina cristã foi Agostinho. Juntamente com Ambrósio de Mi- lão, ele contribuiu para fazer do Antigo e do Novo Testamento as duas fontes de autoridade para a doutrina cristã. Agostinho teve uma história de vida interessante, que ilustra bem esse momen- to de mudanças e continuidades. Nasceu em 354, na cidade de Tagaste, situada no Norte da África. Estudou em Cartago, uma das mais importantes cidades afri- canas da orla do Mediterrâneo, e tornou-se professor de retórica. Filho de uma cristã e de um pagão, Agostinho desenvolveu seus estudos em línguas clássicas sob o patronato de um homem importante de sua cidade e permaneceu pagão até dar-se conta de que a filosofia de Cícero não era capaz de responder a todas as suas inquietações. Por exemplo, às relacionadas ao problema do mal. Foi então que se converteu ao maniqueísmo, que depois ele mesmo combateu com vigor. O maniqueísmo, um pensamento gnóstico proveniente do Oriente, defendia a existência de duas substâncias: a do Bem e a do Mal. Ambas eram criadoras e viviam em uma luta permanente entre si. 77© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo Agostinho aderiu ao maniqueísmo por achar que essa dou- trina supria seu desejo pelo conhecimento da verdade. Foi somen- te com sua mudança para Milão, para ser professor de retórica, que Agostinho vislumbrou a possibilidade de que o cristianismo defendido por Ambrósio, bispo de Milão, não fosse uma religião grosseira como até então considerara. Em Milão, entrou em contato com o neoplatonismo e com a interpretação alegórica das Escrituras. Esses conhecimentos abri- ram oportunidades para que ele pensasse o problema do mal de forma diferenciada: não com base na substância, como os mani- queus, mas como ausência do bem advinda da corrupção da von- tade humana. Com base nisso, ele converteu-se ao cristianismo e, tal qual Ambrósio, abraçou a defesa da unidade das Escrituras. Como cris- tão, lutou contra o maniqueísmo, o arianismo, o paganismo, que ainda era a religião de grande parte dos funcionários públicos do Império, e contra o donatismo, que foi uma controvérsia originária do Norte da África. Em 410, Agostinho vivenciou, juntamente com os pagãos italianos, o saque de Roma por Alarico. Esse fato trouxe o acir- ramento das disputas entre pagãos e cristãos. Para responder às acusações feitas pelos pagãos de que o cristianismo não era uma religião eficaz para conduzir o Império, Agostinho redigiu sua obra A Cidade de Deus – contra os pagãos. Segundo Étienne Gilson (1965), os argumentos usados pelos pagãos ressaltavam o fato de que a doutrina cristã incentivava a renúncia ao mundo e, dessa forma, desviava os cidadãos do servi- ço militar. Do mesmo modo, incentivava o cultivo de virtudes con- trárias ao impulso do Estado, como a mansidão, a não retribuição do mal com o mal, o dar a outra face, a humildade e o pacifismo. Outro argumento lembrava que o destino de Roma sempre estivera atrelado ao culto politeísta e que o saque de Roma era um castigo dosdeuses traídos pelos homens. E foi um cristão quem © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 78 apresentou o fato inegável de que o saque ocorreu somente após a conversão do Império ao cristianismo. Marcelino dirigiu essas objeções a Agostinho e o bispo de Hipona, em resposta, redigiu um total de vinte e dois livros para responder às críticas dos pagãos e para inverter as acusações de que seria o cristianismo o responsável pela desagregação política romana. Ele atribuía aos próprios pagãos a responsabilidade pela decadência romana, a começar por seus costumes viciados. Para tanto, Agostinho utilizou como exemplo os próprios es- critores romanos para demonstrar o quanto os vícios existiam ali antes mesmo da cristianização do Império ou do saque de Roma. Nessa circunstância, o cristianismo teria contribuído para a manutenção e para o fortalecimento do Estado, uma vez que obri- garia o cidadão a agir virtuosamente e a procurar a salvação da sociedade política, se não por amor à própria vida virtuosa, por amor e temor a Deus. Esse é o cenário que serviu de pano de fundo para Agostinho escrever sua obra A cidade de Deus – contra os pagãos. Nela, in- seriu a história político-social da humanidade em um plano divino – tal qual já havia sido feito por Eusébio de Cesareia – que trans- cendia e escapava ao próprio conhecimento humano. Nessa obra, Agostinho não só respondeu aos pagãos a partir de suas próprias fontes de conhecimento e usando seus próprios argumentos, mas modificou por completo o conceito de república e de sociedade política humana, cujos fundamentos estavam em Cícero. 9. TEXTO COMPLEMENTAR Agora, você terá a oportunidade de ler o texto da historiado- ra Rossana Alves Baptista Pinheiro (doutoranda em História pela UNICAMP) a respeito da obra de João Cassiano. Aproveitamos para enfatizar nossos mais estimados agradecimentos às contribuições 79© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo feitas pela historiadora, que, por meio de seu texto, aproximou- nos do universo da pesquisa na área da Alta Idade Média. Essa leitura complementar será de grande valia para o estudo desta unidade e da Unidade 3. Vamos lá? Entre Oriente e Ocidente Romano: João Cassiano, um intermediário privilegiado –––––––––––––––––––––––––––––– João Cassiano é um autor importante para aqueles que desejam estudar o perío- do conhecido como Antiguidade Tardia. Nascido em aproximadamente 360, ele e seu amigo Germano ganharam os desertos egípcios, que, no momento, despon- tava como a moradia de homens ilustres do monasticismo. Peregrinaram tam- bém pela Síria, Palestina e Constantinopla, onde, em 404, Cassiano foi ordenado diácono por João Crisóstomo. Em decorrência da perseguição e condenação sofridas por este, Cassiano e Germano foram até Roma a fim de conquistarem a simpatia do Papa para a causa de Crisóstomo. Em 415, Cassiano estabelecia-se em Marselha, sul da França, onde passou os anos de sua vida como abade do mosteiro de São Vítor. Ele chegou à Provença em um momento de disputas para a consolidação e forta- lecimento da Igreja, tanto gaulesa quanto marselhesa. Duas questões norteavam a controvérsia: a supremacia metropolitana e a caracterização da função episco- pal. O conflito começou em 395, quando Arles tornou-se a prefeitura das Gálias e seu bispo, o metropolita da região. Este cargo era até então ocupado pelo bispo de Vienne e, neste período, Marselha era uma cidade importante cultural e economicamente. Nesta disputa, Prócolo de Marselha defendia a primazia de sua diocese sobre as igrejas que contribuíra para fundar e a influência sobre as igrejas mais antigas e importantes como Arles, Vienne e Lyon. O bispo de Mar- selha também defendia um episcopado determinado pela formação monástica e pelo ideal ascético. Por outro lado, Pátroclo de Arles se pautava na autoridade conciliar de Nicéia para garantir a supremacia de Arles, já que, desde 325, fora estabelecido que a organização eclesiástica deveria acompanhar a civil. Desta disputa resultou uma composição interessante. Marselha e Arles tornaram-se os dois maiores centros de autoridade eclesiástica da Provença, cabendo a Arles o papel de capital administrativa da Gália e de metrópole eclesiástica da região. Os bispos eleitos para ocuparem as principais dioceses começaram a ter uma formação monástica e ascética, o que demonstrava a vitória das pretensões de Prócolo de aproximar os ideais monásticos e ascéticos do episcopado. Foi a convite de Prócolo que João Cassiano se estabeleceu no mosteiro de São Vítor. Ali, ele contribuiu para a existência de um ambiente intelectual cristão, com raízes na herança cultural grega, tendo em vista sua formação e seu conheci- mento da situação oriental, bem como da língua grega. Cassiano escreveu duas obras importantes para a institucionalização do monasticismo na região: As ins- tituições cenobíticas, entre 420 e 424 e as Conferências, em aproximadamente 425. Com elas, transformou-se em um intérprete privilegiado do monasticismo egípcio e sírio na Provença, consagrou-se como o intermediário entre um Oriente cristão e um Ocidente que se cristianizava e desenvolvia suas instituições ecle- siásticas e ajudou no processo de monastização do episcopado em decorrência © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 80 de suas relações com os monges de Lérins, em especial, Honorato e Euquério, para os quais dedicou o segundo volume de suas conferências. Sua terceira obra foi um tratado polêmico contra a doutrina da encarnação de Nestório. Escrita a pedido do Papa Celestino, nela Cassiano deveria fazer uma tradução da doutrina do bispo de Constantinopla para os latinos. A obra con- verteu-se na divulgação do erro doutrinário de Nestório e ele foi condenado no concílio de Éfeso de 431. Nesta obra, a tradição é defendida pela referência à autoridade do Antigo e do Novo Testamento e dos textos da Patrística. Com ela, João Cassiano deixou à Nestório o campo da heresia. Entre suas referências teóricas encontram-se Evrágio Pôntico, monge conside- rado origenista e criador da doutrina dos oito vícios, Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo e o estóico Epitecto. Tais referências fizeram de Cassiano o divulga- dor e o vulgarizador deste “ecletismo doutrinal” no Sul da Gália. João Cassiano foi também considerado uma das bases intelectuais do semi-pelagianismo, devi- do ao seu posicionamento sobre a graça e o livre-arbítrio que, se não era com- pletamente distinto do de Agostinho, dava oportunidades à iniciativa humana, inconcebíveis pelo hiponense. É importante ressaltar que, enquanto na questão contra Nestório Cassiano tenha sido procurado pelo Papa e foi considerado uma autoridade, e sua doutrina ortodoxa, na controvérsia semi-pelagianista, o ensina- mento que divulgou foi condenado em 529 no II Concílio de Orange, que contou com a presença e participação de Cesário de Arles. A partir das obras de João Cassiano é possível desenvolver uma investigação sobre as questões mais importantes que nortearam o século V, a saber, a conso- lidação de uma instituição, responsável pela expansão do cristianismo às terras mais ocidentais do Mediterrâneo, a defesa de um episcopado moralmente apto ao comando da sociedade, as controvérsias doutrinárias, responsáveis pelo for- talecimento de determinados pressupostos. Embora suas obras tenham como objetivo a divulgação dos modos de vida monásticos orientais, não se pode per- der de vista que elas foram escritas a pedido de bispos do Sul da Gália ou foram a eles dedicadas. Em algumas ocasiões, inclusive, Cassiano ressaltou a possi- bilidade de adaptações na tradição, tendo em vista um cenário novo, com novas necessidades e condições. Por outro lado, neste período, não era raro que os bispos fossem escolhidos no meio monástico,cabendo aqui a hipótese de que o bispo era aquele que unia com perfeição as vidas ativa e contemplativa, já que a contemplação das questões divinas e o reconhecimento da Verdade Revelada e da tradição forneciam a legitimidade para a atuação junto às comunidades cristãs. E esta monasticização do episcopado parece ter sido uma saída adota- da, sobretudo, pela Gália de Cassiano, até o século VI (PINHEIRO, 2007, texto cedido pela autora). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 81© Antiguidade Tardia: Entre a Tradição do Cristianismo Imperial e o Paganismo 1) Compreende bem o conceito de alteridade? Pesquise o significado desse termo, estabelecendo sua relação com o conceito de “identidade” nos estu- dos antropológicos. 2) O que faria um imperador aderir a uma religião até então marginalizada e vista com péssimos olhos pela maioria dos habitantes do Império Romano? Constantino teria visto no cristianismo a possibilidade de mudar a história? Teria sido um oportunista? A partir do que estudamos, discorra sobre os motivos que levaram Constantino a se converter ao cristianismo. 3) Se Ário estivesse correto, Cristo não seria divino e teria sido criado por Deus, assim como os homens. Como saber, então, em que acreditar? Qual foi o critério adotado para se certificar sobre quem postulava a verdade sobre a pessoa do “Filho”? 4) Já se sente apto a traçar o caminho percorrido pelo cristianismo e estabele- cer seus pontos de embate e de apoio? Faça um pequeno esboço dessa tra- jetória. Com essas anotações, poderá se preparar para o estudo da disciplina História Medieval II. 11. CONSIDERAÇÕES Ao longo desta unidade, acompanhamos os avanços e as di- ficuldades enfrentadas pelo cristianismo ao longo do período cha- mado pela historiografia de Antiguidade Tardia. Vimos que de seita marginalizada e abraçada por uma cama- da média e baixa da população, o cristianismo tornou-se a religião de um imperador que a promoveu, a incentivou e a defendeu fren- te ao paganismo. Com isso, tornou-se pertinente o questionamen- to acerca do que era "ser cristão" e sobre quais deveriam ser as crenças dos seguidores do cristianismo. Também pudemos aprender que a partir daí começaram as discussões sobre o dogma cristão e as controvérsias doutrinárias acerca dos pontos mais cruciais defendidos pelo cristianismo. Essas interpretações diferenciadas ocorriam com base em uma mesma fonte de estudos, as Escrituras, e, para tanto, eram usados méto- dos de interpretação desenvolvidos ao longo do Império Romano. Os conceitos e modos de vida eram retirados da filosofia pagã do período helenístico da História Antiga, sobretudo o Estoicismo. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 82 Compreendemos, ainda, que Agostinho viveu em um perío- do já muito diferente daquele de Eusébio de Cesareia, ainda que tenha continuado a tradição de escrita da História cristã sob a perspectiva do plano salvífico de Deus para a humanidade. Enquanto Eusébio escrevia com vistas à defesa da continui- dade da Igreja de seu tempo – a época dos mártires – e à exaltação do triunfo da Igreja, Agostinho via-se, ainda, às voltas com a defesa do cristianismo face aos pagãos e às interpretações cristãs hetero- doxas, apesar de estar em um império efetivamente cristão. Agostinho morreu em 430 e seu pensamento foi um divisor de águas entre a tradição que se desenvolveu desde o século 2º, com autores como Irineu de Lyon, Tertuliano, Justino, e o mundo dos reinos germânicos que se iniciava e tinha na figura desse pen- sador sua maior fonte de referência doutrinária. Essa é a nova etapa da História Ocidental que iremos encon- trar nas próximas unidades. 12. E-REFERÊNCIA HIRSCHBERGER, J. Santo Agostinho: O Mestre do Ocidente – História da Filosofia na Idade Média. Disponível em: <http://www.consciencia.org/filosofia_medieval4_santo_ agostinho.shtml>. Acesso em: 16 fev. 2011. 13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROWN, P. 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