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EA D 4 Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia 1. OBJETIVOS • Apresentar o processo histórico de formação, expansão e declínio do Império Carolíngio. • Conhecer a organização política do império de Carlos Magno. 2. CONTEÚDOS • Formação do Império Carolíngio. • Governo de Carlos Magno. • Declínio do Império Carolíngio. 3. ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 106 1) Para melhor compreender o conteúdo que será estuda- do nesta unidade, pesquise sobre o Reino Franco, sobre Carlos Magno e seu contexto. Lembre-se: um professor e/ou pesquisador de História deve sempre estar atento aos contextos. Compreendendo-os, o estudo dos even- tos históricos fica muito mais completo e fácil. 2) Se você quiser conhecer mais sobre os diferentes impé- rios do período medieval, consulte o verbete "Império" do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, dirigido por Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt. A referência bibliográfica completa consta na Bibliografia Básica do nosso Plano de Ensino. 3) Único filho do imperador bizantino Leão IV, Constantino VI disputou o trono com sua própria mãe, Irene, regente desde a morte de Leão IV, em 780. Se você quiser saber mais sobre a vida do imperador, acesse o site disponível em: <http://brasiliavirtual.info/tudo-sobre/constantino- vi>. Acesso em: 28 jan. 2008. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, você acompanhou o processo de esta- belecimento dos povos germânicos na Europa Ocidental durante o período medieval. Conheceu um pouco mais a respeito do debate historiográfico em torno da "queda do Império Romano" e pôde analisar os motivos que precipitaram os deslocamentos germânicos, bem como as características dos primeiros reinos estabelecidos. Nesta unidade, estudaremos a principal organização política da Alta Idade Média: o Império Carolíngio. Herdeira da tradição franca, a Dinastia Carolíngia formalizou um novo modo de legiti- mação do poder real, reconstituindo sobre outras bases a centrali- dade político-administrativa no Ocidente. Além disso, foi inovado- ra na divulgação das tradições culturais. 107© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Em resumo, apresentaremos o processo de formação, ex- pansão e desagregação do Império Carolíngio, dando destaque à organização política instituída por Carlos Magno. Está pronto? Vamos lá? 5. A FORMAÇÃO DO REINO CAROLÍNGIO Dentre os primeiros reinos estabelecidos no século 5º em terras ocidentais, o Reino Franco foi o mais resistente e duradouro. Mesmo subdividido em três reinos – Nêustria, Austrásia e Borgon- ha –, o território entre o Rio Loire e o Rio Reno constituía um cen- tro de poder importante e com tendência à expansão. Segundo Geary (2005), o reino da Nêustria equivalia à região central da Gália, abrangendo as cidades de Soissons, Paris, Tours e Rouen; o reino da Austrásia incluía as regiões a leste do rio Reno e as cidades de Champagne, Reims e Metz; enquanto o reino da Borgonha abrangia o antigo território burgúndio e tinha Orléans como sua principal cidade. O mesmo autor afirma que, desde o reinado de Clóvis (481- 511), as elites dessas regiões reconheceram-se como francas, in- dependentemente de suas ascendências ou vínculos militares. Esse reconhecimento permitiu a integração entre elas por meio de arranjos matrimoniais e tratados de cooperação militar. No entanto, as rixas não foram deixadas de lado e muitas vezes o cenário era marcado por conflitos violentos, que tomavam forma de guerras civis. Apesar de partilharem a identidade franca, esses reinos passaram por guerras civis. Tais guerras foram descri- tas na obra História dos Francos, de Gregório de Tours. Foi em um desses conflitos que Pepino de Herstal, então pre- feito do palácio da Austrásia, reclamou o direto de governar os fran- cos, colocando-se como o principal antagonista da continuidade suc- essória merovíngia. Devido às guerras frequentes entre os territórios © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 108 comandados pelos merovíngios, seu poder central se enfraqueceu e aqueles funcionários que administravam seus palácios começaram a adquirir cada vez mais espaço como líderes políticos. Lembremo-nos de que o título de Maior Palatii ou “prefeito do palácio” designava o representante real responsável pela ad- ministração do palácio, de seus bens e terras adjacentes, uma es- pécie de alto funcionário real (BANNIARD, 1980). Os merovíngios eram assim chamados por alegarem descend- er do lendário rei franco Meroveu, conhecido por dominar as tribos vizinhas. Mas foi a partir de Clóvis que o nome familiar passou a ser conhecido, sendo assumido e divulgado por seus sucessores. Este foi o caso de Pepino. Apesar de ele não ser rei, gover- nou os francos mesmo com sua autoridade sendo questionada nas regiões ao sul do Rio Loire e na Borgonha. Sua força política cresceu significativamente, a ponto de lhe permitir deixar o governo como herança para seus filhos. Após sua morte, em 714, seu filho bastardo Carlos Martel passou a adminis- trar o reino, com firme desejo de expandi-lo. De acordo com Balard (2002, p. 40), ele "martelou as revoltas neustrasianas e suprimiu a independência dos frísios e dos alamanos, assim como a dos bor- gonheses e dos provençais". A evolução sintomática da nova linha sucessória do governo dos francos reafirmava o progresso contínuo de seu poder, apesar de sua falta de legitimidade para reclamar pelo “sangue” o direito de usar a coroa. Esse quadro se alterou com a chegada ao poder do filho de Carlos Martel, Pepino, o Breve. Ao suceder o pai, em 741, Pep- ino tomou a frente dos combates para dominar os príncipes lo- cais revoltosos e questionadores de sua legitimidade. Imbuído do desejo paterno de expandir o Reino Franco, lutou contra saxões e bávaros, na tentativa de anexar novos territórios ao reino e provar sua dignidade como governante. 109© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Em 747, certo da necessidade de portar o título real, Pepino se fez eleger rei pela Assembleia dos Grandes, seguindo a velha tradição tribal. Logo em seguida, em 750, apelou ao papa Zacarias para que este lhe concedesse o direito de ser rei. Naquele mo- mento, o último merovíngio (Childerico III) estava enfermo, reti- rado em um monastério. Portanto, não representava perigo para as intenções de Pepino. Diante da concordância do papa, Pepino, o Breve, foi sagra- do rei pelo bispo Bonifácio, em 751, coincidentemente no ano de morte de Childerico. Contudo, essa não foi a única vez que Pepino recorreu à sagração para legitimar o uso do título real. Em 753, aproveitando-se do pedido de apoio do papa Estevão II contra os Lombardos, Pepino obteve, em troca, a sagração feita pelas mãos do próprio papa na Igreja de Saint-Denis. A partir de então, a linha sucessória pepinida, depois con- hecida como Dinastia Carolíngia, consagrou-se como governante legítima dos territórios francos. Nesse momento, surgiu também uma nova forma de legitimidade real, a sagração feita pela unção divina. O carisma e a virtude da sucessão pelo sangue sagrado de- ram lugar ao carisma da graça divina, como se Deus materializasse o reconhecimento da legitimidade real por meio da unção conce- dida pelo papa ou seu representante. Como afirma Balard (2002, p. 45), a partir desse momento "não são mais os grandes que fazem os reis, mas Deus". 6. A EXPANSÃO DO REINO FRANCO: LUTAS E CON- QUISTAS O Reino Carolíngio, identificado como Reino Franco após a an- exação dos reinos da Nêustria e da Borgonha por parte de Carlos Martel, só adquiriu legitimidadepara o porte do título real após as sagrações de Pepino, o Breve. Entretanto, o peso das conquistas de © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 110 novos espaços geográficos foi fundamental na confirmação do pod- er e da sucessão por parte dos descendentes de Carlos Martel. A expansão geográfica foi uma das características que se manteve ao longo da sucessão carolíngia. Primeiramente com Pe- pino de Herstal, que buscou, em 690, restituir o terreno invadido pelos frísios ao norte da Gália. A partir de 714, já com Carlos Mar- tel, ocorreu a incorporação de territórios saxões, frísios, bávaros e, ainda, a contenção da expansão árabe no sul da Gália – com a famosa batalha de Poitiers, em 732. Quando Pepino sucedeu o pai, Carlos Martel, os territórios que estavam sob o governo franco se estendiam para além do Rio Reno, incluindo terrenos bávaros e saxões, apesar de estes sempre reorganizarem resistências diante da investida franca. Como o pai, Pepino concentrou seus esforços no sul da Gália, vislumbrando a anexação de territórios que hoje conhecemos como Itália. Incumbido de restituir os territórios de Ravena e de Roma ao domínio papal, Pepino promoveu duas campanhas militares de sucesso (754 e 756) contra os lombardos. Essas campanhas lhe renderam o título de “protetor da Sé Romana”, o que garantiu a ele e a seus descendentes a manutenção de boas relações com a Igreja episcopal. Além dos territórios lombardos de interesse papal, Pepino ain- da retomou o controle sobre a Aquitânia, a Septimânia e a Provença (Essas regiões correspondem ao sul do atual território francês). Assim, essa relação de proximidade com a Igreja Romana, com uma constante troca de favores, permitiu uma renovação no empreendimento público da conquista territorial: o batismo e a conversão dos povos conquistados pelo cristianismo. Não satisfeitos em garantir tão somente a proteção aos pa- pas ou aos seus territórios, os novos líderes francos obrigavam os povos a aceitarem o cristianismo como verdadeira fé e promoviam grandes movimentos de evangelização nos territórios anexados. Como afirma Balard (2002, p. 41), 111© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia [...] não contentes em cuidar do elemento mais vivo da Igreja [pro- moção do batismo], os mestres encorajavam a reunião de concílios para assegurar uma melhor disciplina eclesiástica, preparar uma re- forma litúrgica e, sobretudo, regular o problema das confiscações de terras da Igreja. Essa aproximação com a Igreja, promovida por Pepino, foi ainda reforçada quando este fez uma doação oficial de 22 cidades da atual Itália central para o papado, que as conservou sob seu domínio até 1870. A assistência militar e a doação de territórios feita por Pepino, como sugerem Balard (2002) e Banniard (1980), foram fruto da apresentação feita pelo papa Estevão II ao rei fran- co do falso documento conhecido como Doação de Constantino. Reconhecido como um documento forjado, preparado na chancelaria pontifical provavelmente entre 750 e 760, ele foi apre- sentado pelo papado como um édito imperial romano elaborado pelo Imperador Constantino I (272-337). Nele, Constantino I, an- tes de partir para o Oriente, teria renunciado a Roma em favor do papa Silvestre (314-335) e seus sucessores, outorgando-lhes o privilégio de usar a coroa imperial. Vamos acompanhar, a seguir, alguns trechos desse documento: Concedemos ao nosso Santo Padre Silvestre, sumo pontífice e papa universal de Roma e a todos os pontífices seus sucessores que até o fim do mundo reinarem na sede de São Pedro, o nosso impe- rial palácio de Latrão (o primeiro de todos os palácios do mundo), depois o diadema, isto é, nossa coroa e ao mesmo tempo o gorro frígio, quer dizer, a tiara e o manto que os imperadores costumam usar; além disso o manto purpúreo e a túnica escarlate e todo traje imperial e também a dignidade de cavaleiro imperial, outorgando- lhe também os cetros imperiais e todas as insígnias e estandartes e diversos ornamentos e todas as prerrogativas da excelência impe- rial e a glória de nosso poder. [...] Concedemos ao já mencionado pontífice Silvestre, papa universal, e deixamos e estabelecemos em seus poder, por decreto imperial, como possessões de direito da Santa Igreja romana, não só nosso palácio, como já foi dito, mas também a cidade de Roma e todas as províncias, distritos e cidades da Itália e do Ocidente (Doação de Constantino ou Edictum Cons- tantini ad Silvestrem Papam in. PEDRERO-SÁNCHES, 2000). Diante das revelações desse documento, Pepino viu-se no dever de garantir o que por direito foi anunciado pela antiga auto- © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 112 ridade imperial, comprometendo-se em fazer cumprir, mesmo que à força, o que fora determinado pelo documento. Além disso, ao reconhecer e defender o direito da Igreja so- bre Roma, Pepino reafirmava a autoridade dela em todo o Ocidente, inclusive no que tangia à validação do título real que ele mesmo sustentava. Dessa maneira, Pepino deixou aos seus dois filhos, Car- lomano I e Carlos Magno, um reino extenso e uma autoridade refor- çada pelas estreitas relações que construiu com o papado. Você está pensando que a expansão franca terminou aqui? Ao contrário! Foi com o reinado de Carlos Magno, entre 768 e 814, que o império dos francos alcança sua maior dimensão geográfica, capaz de reestruturar o ideal de um império ocidental. Mas, an- tes de falarmos da estruturação do império, veremos como Carlos Magno deu continuidade à política expansionista de seu pai, Pe- pino, o Breve. Acompanhe o mapa a seguir (Figura 1). Fonte: Enciclopédia Britânica (1994). Figura 1 A conquista franca até 814. 113© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Na Figura 1, colorido em amarelo, está o território herdado de Pepino, o Breve, resultado de anos de expansão. No entanto, observe que sob a liderança de Carlos Magno o reino se estendeu quase duas vezes mais, e em diversas direções – especialmente rumo ao Oriente, até as margens do Rio Danúbio. Com a morte do irmão Carlomano, em 771, Carlos Magno tornou-se o único governante dos territórios francos e deu início às campanhas militares de conquista e estabelecimento de fron- teiras. A primeira e mais duradoura investida militar foi contra os saxões. Motivada pelo movimento de evangelização cristã, essa campanha foi iniciada em 772. Liderados por Carlos Magno, os francos tomaram e destruíram o santuário pagão de Irminsul. Po- rém, apesar da destruição do principal santuário em terreno saxão, seus nativos não se curvaram imediatamente, reorganizando con- stantes revoltas contra a presença franca. Entre 778 e 779, a Saxônia parecia-se mais com um barril de pólvora prestes a explodir do que com um território franco or- ganizado. Tanto que, nos sete anos seguintes, ocorreram mais de vinte expedições na tentativa de controlar as constantes revoltas. Com certo requinte de crueldade, essas campanhas chegaram ao fim em 785, quando os saxões se submeteram ao rei franco em face da execução maciça de 4500 guerreiros. Após esse momento, a Saxônia foi incorporada ao reino fran- co e submetida a um regime de exceção, organizado a partir da ca- pitular De Partibus Saxoniae, promulgada em 782 (BALARD, 2002). Capitulares eram documentos oficiais proclamados publicamente com a função de estabelecer alguma ordem do governante franco. Tinham esse nome por serem organizadas em capítulos. Vejamos, a seguir, alguns trechos dessa capitular: Qualquer um que cometer infração dentro de uma igreja será posto à morte. Qualquer um que por desprezo ao cristianismo se recusar a respeitar o período da quaresma [...] será posto a morte. Qualquer um que porinstigação do diabo e por partilhar os precon- © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 114 ceitos dos pagãos queimar uma de suas faces, homem ou mulher, ou dar sua carne a comer ou a comer ele mesmo, sob pretexto de ser um feiticeiro [...] será punido com a pena capital. Qualquer um que jogar às chamas o corpo de um defunto, seguindo o rito pagão [...] será condenado à morte. Todo saxão não batizado [...] que re- cusar o batismo, querendo permanecer pagão, será posto a morte. Qualquer um que faltar com a fidelidade devida ao rei será punido com a pena capital. Todas as crianças deverão ser batizadas no ano de [...]. Qualquer um que negligenciar a apresentação de uma cri- ança ao batismo no curso de um ano, sem o conselho ou a dispensa de um padre, pagará ao fisco uma multa de 120 soldos (de ouro) se for de nascimento nobre, de 60 se for simplesmente um homem livre (MANGIN, 2008). Carlos Magno também combateu os lombardos, sitiando sua capital durante anos, até que, em 774, tomou para si o título de rei dos lombardos. Procurou apaziguar os conflitos na Aquitânia, tentando estender seus domínios sobre os territórios hispano-mu- çulmano e basco. Porém, como ocorreu na região saxã, sua política de exceção gerava mais motins do que sujeições. Segundo Balard (2002), em virtude dessas constantes insur- reições, Carlos Magno "tomou algumas medidas oportunas des- tinadas a acalmar sua oposição interna e derrubar as irredutíveis no exterior". A principal delas foi transformar seus dois filhos em reis: aos lombardos deu Pepino, o Corcunda, e à Aquitânia, Luís. Em seguida, estabeleceu um regime de controle e restrições aos povos conquistados, cujo caráter você acompanhou no trecho da capitular De Partibus Saxoniae. Mesmo com todo esse controle, representado principalmente por sua dedicação ao conflito contra os saxões e pela inserção de seus herdeiros no controle direto de regiões estratégicas ao sul do reino, novos complôs foram organizados. O mais desestabilizador deles foi a tentativa de assassinato cometida contra Carlos Magno por seu próprio filho, Pepino, o Cor- cunda. De acordo com Balard (2002, p. 45), "a recuperação foi, uma vez mais, assegurada graças a uma mistura de versatilidade e força" por parte de Carlos Magno. Balard (2002) prossegue afirmando que: 115© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Para suprimir toda a possibilidade de complô, Carlos Magno fez to- dos seus submetidos prestarem juramento de fidelidade, abando- nando o regime de exceção instalado anteriormente para colocar em seu lugar um sistema de pacificação. Esse sistema de pacificação consistia em garantir, por meio do saque aos inimigos, a recompensa de seus fiéis servidores e assim fazer multiplicar o interesse de outros em prestar o juramento de fidelidade ao rei. Dessa maneira, a vitória na batalha permitia aos seus servidores o aumento de suas riquezas e a Carlos Magno o crescimento de sua autoridade e prestígio, uma vez que partilhava com eles aquilo que era considerado seu ganho exclusivo. 7. O IMPÉRIO CAROLÍNGIO: ESTABELECIMENTO E DECLÍNIO Você deve estar se perguntando: como um reino se trans- forma em império? Será que envolve apenas uma questão espa- cial? Um império é sempre maior que um reino? Ou são outros os elementos definidores dessa condição? Bem, se acompanharmos cuidadosamente o exemplo do Império Carolíngio, perceberemos que ideias políticas circulantes durante o reinado de Carlos Magno já especulavam a natureza do poder imperial e a possibilidade de uma restauração do império com base na referência romana. Entretanto, há diferenças significativas entre uma ideia e a ação política. Vejamos, então, como o ideal de império deixou o mundo das ideias e se estabeleceu como realidade entre o final do século 8º e início do século 9º. Segundo Balard (2002), foi no meio eclesiástico que nasce- ram as primeiras ideias políticas de restauração do império, prin- cipalmente após a posse do título real promovida pelas unções de Pepino, o Breve, nos anos de 751 e 754. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 116 Alcuíno, monge de origem anglo-saxônica e principal con- selheiro intelectual de Carlos Magno, foi um dos primeiros a comparar o processo de restauração real promovido pela unção com a possibilidade de uma restauração do império que seguisse os moldes do Império Romano. Essa comparação foi possível graças ao epíteto imperial ro- mano Magnus (grande) recebido por Carlos do papa Adriano I du- rante a confirmação das doações territoriais ao papado em 774. Segundo Balard (2002, p. 46): Existiam dois movimentos ideológicos, um em torno de Carlos Magno e outro em torno do papado, que procuravam, de forma ob- scura ou consciente, não se sabe, guiar o rei dos francos em direção ao poder que Alcuíno qualificou em 778 de império". Esses dois "movimentos ideológicos" apresentados por Balard tinham intenções diferentes, apesar de buscarem o mes- mo objetivo: a restauração do império a partir da figura central de Carlos Magno. Para o papado, restaurar o Império do Ocidente permitiria retomar sua autoridade espiritual diante do patriarca de Con- stantinopla e do Império do Oriente. Já para o séquito político de Carlos Magno, esse título representaria o reconhecimento unâ- nime de sua autoridade, fosse por parte do Império do Oriente, fosse por parte da Igreja Romana. Observemos que a definição de império presente entre es- ses homens não estava alicerçada apenas em uma determinada extensão territorial, mas sim na capacidade de seu portador para exercer de forma única e absoluta a autoridade sobre seu ter- ritório, sendo unânime entre seu povo e seu exército. Essa definição será ainda adensada pela ideia de que o im- perador recebia essa autoridade da única força onipotente do uni- verso: Deus. Do reconhecimento dado por Deus, nasceu a base do poder real carolíngio e foi também dele que emergiu a fundamen- tação de seu poder imperial. 117© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia O "projeto" de tornar Carlos Magno imperador batia de fr- ente com a tradição inquestionável do Império do Oriente, her- deiro legítimo da dignidade imperial romana. Porém, esse em- pecilho logo foi desfeito, quando a imperatriz Irene, mãe do futuro imperador do Oriente Constantino VI, ainda infante, tomou o pod- er em seu lugar. Para o Ocidente, especialmente para o papado e para os francos, esse era o pretexto que faltava para afirmar que não havia mais imperador. Além desse fato, ainda tivemos a fuga do papa Leão III. O papa havia escapado de Roma, onde estava aprisionado por alguns aristocratas romanos. Ao escapar, refugiou-se junto a Carlos Mag- no em Paderborn, onde provavelmente deliberaram a respeito da questão imperial. Dos três poderes conhecidos no Ocidente, "o império, o pa- pado e a realeza, somente este último, representado pelo rei dos francos, tinha ainda lugar. Cabia então a Carlos Magno restaurar o segundo e tomar o primeiro que se encontrava vago" (BALARD, 2002, p. 58). Foi o que ocorreu no fim do ano 800, durante as comemorações da natividade de Cristo. Especificamente no dia 25 de dezembro, na Basílica de São Pedro, em Roma, o papa colocou a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos e pronunciou a fórmula: “vida e vitória para Carlos, sereníssimo augusto, coroado por Deus, grande e pacífico Im- perador, governante do Império Romano, igualmente pela miser- icórdia de Deus, rei dos francos e dos lombardos” (Monumenta Germaniae Historica, 2008). Em seguida, a multidão o aclamou Carlos como o novo imperador e o papa prostrou-se a seus pés. De acordo com Eginhardo (770-840), biógrafo de Carlos Mag- no, oimperador teria saído da cerimônia furioso com as inovações feitas no ritual. Segundo Pedrero-Sánches (2000, p. 287), Eginhar- do foi "uma das figuras mais importantes da cultura carolíngia. Foi mestre dos mais completos: político, teólogo, hagiógrafo, abade leigo e, sobretudo, biógrafo de Carlos Magno". Leiamos um trecho de Eginhardo sobre Carlos Magno: © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 118 Vindo à Roma para restabelecer a situação da Igreja, que tinha sido fortemente comprometida, ele ficou aí durante todo o inverno. E, nessa época, ele recebeu o título de imperador e augusto. Ele, inicial- mente, se opôs ao que se afirmou naquele dia, embora fosse este o motivo essencial da festa, não teria entrado na igreja, se tivesse podi- do saber de antemão a intenção pontífice (EGINHARDO, 2008). Era seu desejo que o cerimonial seguisse a ordem tradicional praticada em Bizâncio, na qual a aclamação da multidão e do exér- cito precedia a coroação pelo patriarca, demonstrando, assim, que o poder vinha do povo e das vitórias do imperador. Mas não podemos esquecer que, como vimos, a essa concep- ção de poder imperial foi incorporada a noção cristã de que é Deus quem concede o poder ao imperador. Durante a coroação, Leão III afirmou que todo o poder vinha de Deus e era a pessoa do papa que intermediava essa concessão. Porém, mesmo diante dessa tentativa de afirmar a superio- ridade do poder espiritual sobre o poder temporal, Carlos Magno seguiu separando-os, fazendo triunfar sua concepção mais laica de império. Essa concepção ficou mais evidente quando, em 813, o pró- prio Carlos Magno coroou o filho Luís, o Piedoso, como imperador, na capela do seu palácio em Aix-la-Chapelle, sem a intervenção do soberano pontífice. Entretanto, ao longo de seu governo, Luís, o Piedoso (814- 840), reconheceu a importância de ser antes de tudo um impe- rador cristão. Em 816, tomou o título expressivo de imperador Augusto e foi ungido pelo papa Estevão IV em Reims. Ajudado de perto por eclesiásticos que o aconselhavam so- bre a necessidade de manter a unidade imperial, Luís fazia crescer a prática evangelizadora na intenção de manter a coesão dos terri- tórios conquistados pelo cristianismo. Territórios continuaram a ser anexados ao império pelo me- nos até 825, em expedições contra os croatas, em 817, contra os 119© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia bretões, entre 818 e 824, e contra os muçulmanos, na Espanha, entre 822 e 824. As guerras – e, principalmente, as vitórias – ga- rantiam ao novo imperador riqueza e autoridade junto aos seus homens. Além disso, a proximidade cada vez mais evidente com al- gumas autoridades eclesiásticas parecia garantir a efetividade do exercício imperial. Tanto que este passou a intervir decisivamente na reorganização da própria Igreja na busca por uma maior mora- lização. Entre 816 e 819, o imperador convocou uma série de concí- lios em Aix-la-Chapelle, que impuseram o sistema de cânones aos clérigos das catedrais e a regra beneditina a todos os monastérios, ordenando a disciplina canônica a todos os clérigos. Segundo Ba- lard (2002, p. 51), Ao mesmo tempo, ele renunciou ao tornar precárias as terras da Igreja, passando para cada abadia ou bispo o mínimo vital. A pro- priedade eclesiástica recomeçou a crescer sem risco [...]. Assim, a Igreja reformava-se e subtraía a influência dos laicos, mas contra- riamente ao que queria Carlos Magno, poderia vir a ser um poder exterior ao império. Convencido da necessidade de manter a unidade do império cristão, Luís emitiu, em 817, a Ordinatio Imperii (capitular que trata das disposições sucessórias do Império Carolíngio). Segundo essa capitular, um dos descendentes de Luís poderia sucedê-lo e usar o título imperial, enquanto os outros assumiriam reinos subordi- nados ao imperador; o papa deveria coroar o eleito, garantindo a unidade do império pela unção. O direito à sucessão imperial coube a seu primogênito, Lo- tário. Os sub-reinos da Baviera e da Aquitânia foram respectiva- mente assumidos pelos outros filhos, Luís e Pepino. A Itália per- manecia sob o controle do sobrinho de Luís, o Piedoso: o duque Bernardo. Aquele território lhe fora conferido por Carlos Magno, e foi de lá que partiram as primeiras revoltas contra a nova prática sucessória. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 120 Na teoria, esses três reinos seriam partes do Império e deve- riam se submeter inteiramente ao imperador. Na sua condição de fiéis, os reis deveriam total obediência a Lotário. Segundo Michel Parisse (2002, p. 609), "o que Luís instituía era a noção nova de um imperador reinando acima dos reis, separando assim o imperium dos regna que lhe eram submissos”. Desse modo, o império tornava-se uma entidade política governada por delegação e não mais um patrimônio a ser dividido como outros bens materiais. Porém, foi do descontentamento com esse novo modo de sucessão que surgiram as primeiras desordens no governo de Luís, o Piedoso. Primeiramente, ocorreu a revolta dos aristocratas da Itália, preocupados com o destino do reino governado por Bernardo, so- brinho de Luís. Em seguida, a preocupação de Luís com a herança de seu caçula fez que ele aplicasse o princípio de divisão territorial, criando uma crise com os outros filhos, que acaba por levá-los à guerra. Luís perdeu o conflito em junho de 833, mas continuou firme em seu plano de criar um reino para seu filho mais novo, Carlos – fu- turo Carlos, o Calvo. Com a morte de Pepino, Luís passou por cima do programa sucessório, segundo o qual o neto deveria assumir o lugar do pai, e deu o governo da Aquitânia a Carlos. A aristocracia local revoltou-se e conquistou a independência da região. Em 840, com a morte de Luís, o Piedoso, as guerras entre os irmãos intensificaram-se. Isso não impediu a tentativa frustrada de Lotário de fazer valer a unidade imperial. Enquanto isso, outros principados foram surgindo, anunciando o completo desmantela- mento do Império. Frente a isso, na tentativa de resgatar a ordem e preservar a unidade política, os irmãos Lotário, Luís, o Germânico e Carlos, o Calvo, fazem um acordo em outubro de 843. Esse acordo ficou conhecido com o Tratado de Verdun (Verdun era o nome da cidade onde ocorreu o encontro). 121© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Segundo esse acordo, o império seria divido em três partes iguais, distribuídas da seguinte forma: o território a leste do Rio Reno foi atribuído a Luís, o Germânico; a região oeste, onde esta- vam as antigas regiões da Nêustria e da Aquitânia, foi destinada a Carlos, o Calvo; e a região central do império, envolvendo os ter- ritórios entre a Frísia e a Provença (onde se encontravam as capi- tais Aix-la-Chapelle e Roma), ficou sob o domínio de Lotário, que portaria o título imperial. Portanto, a ficção da unidade imperial era mantida, mas, de fato, o que se observava era a independência político-administrati- va de cada reino. Veja, a seguir, como ficou a divisão instituída pelo Tratado de Verdun (Figura 2): Fonte: CD ROM - Atlas de História Geral, Editora Ática. Figura 2 Mapa da divisão territorial instituída pelo Tratado de Verdun. Segundo Michel Parisse (2002), quando Lotário deixou a co- roa imperial ao seu filho primogênito, Luís, este dispunha apenas © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 122 da Itália, e, além disso, não deixou descendentes. Assim, o papel do papado tornou-se decisivo para a transmissão do título impe- rial, já que cabia ao papa ungir o novo imperador. Nesse sentido, a ideia de império tornava-se cada vez mais importante para os papas, que buscavam o fortalecimento do poder centralizado e a proteção à Igreja. A disputa pelacoroa tornou-se ferrenha entre Carlos, o Calvo, e Lotário II. Dela saiu vitorioso Carlos, uma vez que dispunha de mais territórios e representava, aos olhos do papado, a possibilidade de restituição da unidade imperial. Entretanto, o governo de Carlos, o Calvo, não duraria muito. Governando por apenas dois anos (875-877), ele enfrentou in- úmeras derrotas frente aos filhos de Luís, o Germânico, e à região italiana, não conseguindo resguardar o título imperial, que passou às mãos de um dos filhos de seu irmão Luís: Carlos, o Gordo. Se- gundo Parisse (2002, p. 609), de posse do título de imperador, ele [...] teve a oportunidade de pela última vez reunir sob sua autori- dade única os reinos francos, reconstituindo, assim, o Império de seu avô Luís, o Piedoso. Após sua morte, em 888, o Império dos Carolíngios, moribundo, transmitiu-se como um título já vazio de poder efetivo, na Germânia a Aroldo, depois na Itália a Lamberto de Spoleto (morto em 898), Luís da Provença (901) e Berengário do Freiuli (915-924). 8. A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DE CARLOS MAGNO Após acompanhar a trajetória de formação, expansão e de- clínio do Império Carolíngio, você deve se perguntar: como foi pos- sível manter tal Império, visto que concepções diversas do exercí- cio governamental motivaram seus dirigentes? A resposta para essa pergunta é um tanto complexa, princi- palmente porque temos uma evolução política importante entre o governo de Carlos Magno e o de seu filho Luís, o Piedoso. Foi sob a condução desses dois homens que o Império construiu sua unidade política definitiva, com cerca de um milhão e duzentos mil quilômet- ros de extensão e quinze milhões de habitantes (BALARD, 2002). 123© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Mesmo antes do reinado de Carlos Magno, entre os francos vigorava a noção de que o poder era exercido conjuntamente pela aristocracia, formada pelos homens livres, e pelo rei. Com base no reinado de Carlos Magno e com a contínua expansão territorial de seu domínio, esta concepção de exercício conjunto foi renovada com a multiplicação dos juramentos de fidelidade ao rei. Juramentos de fidelidade –––––––––––––––––––––––––––––– “Todo o mundo sabe que eu não tenho do que me alimentar e me vestir. Por essa razão, eu peço por vossa bondade a permissão de me remeter aos vossos cuidados e me recomendar a vós. Eu o faço sob as seguintes condições: em troca dos serviços que eu poderei vos prestar, você deve me dar assistência em suprimentos e vestimentas; e enquanto eu viver, eu devo servir-lo e ser submisso como pode fazer um homem livre, sem que me seja permitido, durante minha vida, subtrair-me de vossa autoridade e proteção” (MANGIN, 2008). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Desde 757, o então rei franco, Pepino, exigia esse juramento de seus homens, especialmente em momentos de crise. Com Car- los Magno, esse procedimento tornou-se obrigatório para todos os homens livres de seu território, independentemente de sua situa- ção política. Por meio do juramento prestado em uma cerimônia de recomendação, Carlos Magno assegurava-se da subordinação e da obediência dos homens livres em todo o território franco. Para auxiliar na manutenção dessa coesão, Carlos estabele- ceu também uma rede de agentes oficiais, algo como “funcionári- os reais” que auxiliavam tanto na administração de seus domínios quanto na de seus palácios, e colaboravam para garantir o respeito à sua autoridade. Essa rede de agentes oficiais era formada por agentes inter- nos ao palácio, tais como: o senescal, que supervisionava os agen- tes domésticos, como os camareiros; o tesoureiro, que guardava e administrava o tesouro real; e o comandante das armas, que cui- dava do transporte e do abastecimento do exército real (BALARD, 2002). Externamente, o império continha cerca de trezentos con- dados, divididos entre a direção de condes e os vigários. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 124 Suas funções abrangiam desde a execução das ordens reais até a convocação dos homens livres de seus teritórios para as ex- pedições armadas. A maioria desses condes provinha de sua pró- pria família e exercia funções que representavam o poder central, como a de juiz e a de coletor de impostos. Contudo, o controle imperial não se restringiu apenas à or- ganização administrativa dos teritórios. Para manter a centrali- dade do poder e garantir sua autoridade, Carlos Magno utilizou instrumentos escritos e humanos, tanto para orientar quanto para superviosionar a ação de seus agentes oficiais (LE GOFF, 2005). Como intrumentos escritos, figuravam as capitulares e as ordena- ções administrativas. As capitulares estavam presentes desde o reinado do pai, Pe- pino, o Breve. Mas foi com Carlos Magno que elas deixaram de ser proclamações verbais, tornando-se documentos escritos difíceis de serem alterados em suas proclamações originais. Já o instrumento humano era composto pelos missi dominici (enviados do mestre), enviados reais responsáveis por investigar os abusos dos agentes locais e inspecionar sua administração. Na maioria das vezes, os missi andavam em duplas compostas por um aristocrata laico e um eclesiástico que dispunham da confiança do imperador. Entretanto, as inovações de Carlos Magno não pararam por aí. Para controlar o excesso de poder de seus condes, ele também utilizava outros meios: o advogado laico e a própria disseminação da recomendação (vassalagem). As imunidades, em teoria, impediam o conde de entrar nas terras de bispos e em abadias para exercer seu domínio. Ao ad- vogado laico cabia fazer o direito à imunidade ser de fato cum- prido, principalmente defendendo os bens eclesiásticos das expro- priações condais. 125© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia A vassalagem, que consistia em sistematizar a união da fide- lidade jurada pelo homem livre a um benefício, normalmente com- posto por um bem fundiário (terras), auxiliava no estabelecimento de um compromisso mútuo entre condes e homens livres e, tam- bém, entre o imperador e seus fiéis na batalha (vassi dominici). Assim, Carlos Magno criou toda uma hierarquia de subordi- nação, controlando de um lado a aristocracia, por meio do acom- panhamento dos missi dominici, e de outro, os homens livres com a direção dos vassi dominici na batalha. "Concepção e organização políticas eram sustentadas por poderosos meios de ação. O exército era o principal deles, uma vez que a guerra era uma das mais importantes instituições públicas" (BALARD, 2002, p. 57). Por meio de guerra, o Império conquistava mais territórios, reforçava sua aproximação com os homens livres, e ainda garantia à aristocracia e aos vassalos ganhos consideráveis em forma de benefícios fundiários ou outros bens materiais. Mas, com as divisões do território imperial promovidas pe- los netos de Carlos Magno, o equilíbrio na distribuição dos bens fundiários se perdeu, assim como o foco sobre qual dos herdeiros seria, de fato, o representante do poder imperial. 9. TEXTO COMPLEMENTAR Como complemento ao estudo desta unidade, você terá acesso a um interessante texto de José D'Assunção Barros, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Utilizaremos aqui alguns excertos do texto, segundo a conveniência para nosso estudo. Esses trechos vêm acompanhados de nossos comentários. Caso você tenha interesse em ler o artigo na íntegra, encontrará o endereço disponível no Tópico E-Referências. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 126 Cristianismo e Política na Idade Média: as relações entre o papado e o império ––––––––––––––––––––––––––––––––––– Introdução Papado e Império, na Idade Média: eis aqui dois projetos universais para uma mesma cristandade ocidentalque começa a se consolidar desde os primórdios medievais. Do jogo de avanços e recuos entre os poderes conquistados por cada um destes dois projetos – um jogo político tão intenso e vívido na Idade Média, mesmo que algumas vezes apenas ao nível do Imaginário – já não parecerá ha- ver grandes resquícios à medida que se adentra a Modernidade. De fato, quanto mais nos afastamos da Idade Média, o ‘Império’ parece se dissolver mais e mais na História, convertendo-se a princípio em mera ficção política, desaparecendo a seguir, apesar da sua polêmica ressurgência em projetos políticos bem posterio- res, tal como ocorreria com o projeto ariano do III Reich proposto pelos Nazistas já em pleno século XX. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Observe que o autor nos informa que, mesmo forte, a alian- ça entre o Império e Igreja não resistiu às mudanças no contexto histórico. No entanto, novas tentativas foram feitas com o intuito de retomar a parceria. Podemos afirmar, então, que houve "um retor- no da História", que a História se repete? Não. Contextos diferentes, História diferente. Eis com que o historiador deve se preocupar. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Falaremos aqui, naturalmente, de uma idéia muito específica de Império – an- corada em uma história que remonta ao Império Romano e à constituição do Império Carolíngio por Carlos Magno [...] O presente artigo propõe-se a examinar, em torno das idéias de Império e de Papado, a história de uma oposição que assinalou uma presença significativa e recorrente no decurso de toda a Idade Média. A abordagem empregada, atenta às inter-relações entre poder, discurso e imaginário, busca combinar a perspec- tiva da nova História Política à História do Imaginário. O problema examinado, ao situar Papado e Império como dois projetos ao mesmo tempo concorrentes e interdependentes diante de um conjunto de circunstâncias e necessidades políti- cas, corresponderá ao estudo da dinâmica histórica de uma relação que precisou ser construída, de forma complexa, a partir do confronto e da aliança. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– “...inter-relação entre poder, discurso e imaginário" [...] “Pa- pado e Império como projetos concorrentes e interdependent- es...". Os conceitos utilizados pelo autor evidenciam sua atenção para os novos paradigmas historiográficos e para a análise não uni- lateral da aliança entre a Igreja e o Império. Barros observa que a aliança foi possível mesmo não havendo concordância entre todos os interesses imperiais e eclesiásticos. 127© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 1. Império: uma antiga noção e sua especial importância na Roma Antiga A oposição entre Império e Papado no decurso da Idade Média – bem como suas interações várias – desenvolveu-se de maneira particularmente complexa sob o signo de dois grandes projetos que se postulavam como universais: o de uma Igreja Romana que passaria a se apresentar na Europa Medieval como o grande fator da unidade da cristandade ocidental, e o de um Império do Ocidente que já não existia mais a partir da deposição de Rômulo Augusto em 476 d.C., mas que a partir daí nunca deixaria de pairar sobre o imaginário político dos novos reinos que, nesta parte ocidental do antigo Império Romano, dava agora origem aos inúmeros reinos europeus. Esta história deve ser recuperada a partir de seus primórdios, que remontam à Antiguidade Romana. [...] Com o desenvolvimento histórico do Império Romano, contudo, e particular- mente quando este adota o Cristianismo como religião oficial a partir de Cons- tantino [...] um novo matiz vinha se juntar a esta idéia: o de universalidade. Em que pese que o Império Romano tenha sempre se confrontado no plano político com outras realidades políticas que também se postulavam como imperiais, a verdade é que a aliança com o Cristianismo nos últimos séculos da Antiguidade Romana reforçara a idéia de um Império Universal, que almeja estender sobre todos o seu domínio, e sobre os seus eleitos uma proteção igualmente universal. Contudo, precisamente neste momento histórico em que a idéia de universalida- de cristã vem ao encontro da idéia de universalidade imperial, o poder de Roma já não era o mesmo. Uma série de processos históricos que aqui não poderão ser abordados, e dos quais a pressão e entrada no Império Romano de inúme- ros povos é apenas um dos muitos fatores, terminou por produzir uma ruptura que separou de um lado o chamado Império Romano do Ocidente, e de outro o chamado Império Romano do Oriente (futuro Império Bizantino). Estes eventos trouxeram uma complexidade peculiar: havia agora dois Impérios com projetos universais similares, com uma base cristã em comum, e edificados sobre uma cultura e uma história comum. Adicionalmente, a divisão entre um Império oci- dental e um Império Oriental produzira também a emergência entre duas Igrejas cristãs: uma que passava a estar sediada em Roma, outra que passava a estar sediada em Bizâncio. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Ideia de universalidade. Império do Ocidente, Império do Oriente e no centro a Igreja. Todos com intuitos de expandir suas influências. É interessante como podemos, neste momento, traçar um paralelo com a situação atual: EUA e Europa (Ocidente) versus Oriente (potências petrolíferas e armamentícias). Embora a Igreja hoje não esteja no centro da questão, ele- mentos religiosos são colocados em cena, principalmente quando o Ocidente quer prejudicar a imagem do Oriente, generalizando todos como fundamentalistas. Eis um tipo de visão que precisa ser eliminada de nossas interpretações. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 128 –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 2. A aliança entre Império e Papado na Alta Idade Média A ascensão do reino Franco no cenário Europeu veio se combinar a um contexto em que a Igreja Romana [...] via-se afrontada por duas grandes ameaças que eram os povos lombardos, recém chegados à península, e o Império Bizantino, que controlava a chamada Igreja Cristã oriental. A sobrevivência da Igreja ro- mana era ameaçada neste contexto de muitas maneiras – tanto territorialmente como doutrinariamente – e por isto o projeto do Papado de se projetar como força cristã universal no âmbito do ocidente poderia se combinar perfeitamente com o projeto de expansão do povo franco, já cristianizado [...] Vinte anos depois, Carlos Magno encetaria uma aliança similar com o Papa Adriano I, a partir de um intrincado contexto de alianças e oposições que estão registrados em diversos anais da época, como o Liber Pontificalis. Fonte singular para uma compreensão dos aspectos políticos e simbólicos envolvidos nestes acontecimentos é a Carta de Doação de Constantino, documento forjado nas oficinas do próprio Papado de Adriano I como se fosse uma antiga carta em que o Imperador Constantino havia doado terras da Itália Central ao papa Silvestre. Este documento e a Carta de Pepino de 754, por ocasião da primeira aliança franca com a Igreja Romana, ancoraram a assinatura de um terceiro documento em que Carlos Magno estabelecia a sua própria aliança com Adriano I. A partir daí andam juntos os dois projetos – o de expansão do Reino Franco e o de uni- versalismo espiritual da Igreja Romana sobre as populações cristãs do Ocidente – estabelecendo-se uma aliança que irá culminar com a coroação imperial de Carlos Magno no ano 800 [...] –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Acordos assinados, documentos de ambas as partes para garantir a aliança e o projeto universalista. Dentre eles, um docu- mento forjado. Ambos os lados tinham conhecimento da falsidade de tal documento? Sem ele, será que o acordo entre as instituições seria realmenteefetivado? Em História não há lugar para "será?" Deduções são caras ao pesquisador. No entanto, há que se recon- hecer que tal documento foi um importante elo na concretização da união entre o Império e a Igreja. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A coroação de Carlos Magno em 800, diga-se de passagem, representa apenas um momento especial no processo de concretização de uma política carolíngia... Entre outros aspectos sinalizadores, já se vê claramente a idéia de que a auto- ridade do rei franco se refere “aos fiéis de Deus e do rei”, situando no mesmo plano as duas fidelidades (FAVIER, 2004, p. 471). Assumido o título imperial por Carlos Magno a partir de 800, citaremos [...] a elaboração da Capitular de 817 – intitulada Ordinatio Imperii. Neste documento mandado redigir por Luís o Piedoso, três anos depois da morte de Carlos Magno e já tendo sido sagrado imperador na própria vida do primeiro imperador franco, busca-se delinear com maior precisão os mecanismos de sucessão imperial no ocidente, associando-os a um único herdeiro.[...] 129© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Essa idéia de um Imperador acima dos reis era já antiga [...] Contudo, agora esta idéia assumia novas conotações que buscavam delimitar mais claramente a separação do imperium em relação aos regna [...] Documento ímpar para a sistematização do imaginário imperial surge no Império de Henrique III, quando se põe por escrito em 1030 um Livro de Cerimônias da Corte Imperial, que buscava estabelecer uma minuciosa ritualística com claras referências na pompa imperial de Bizâncio. De igual maneira, no século seguinte iria ser recuperado um Ordo de Consagração Imperial do início do século X, mul- tiplicando ainda mais a ritualística e os objetos simbólicos a estarem presentes na sagração. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Imperador dos fiéis de Deus e do rei. Distinção entre império e reino. Documentos que sustentam a importância do cargo de im- perador. Observe que a questão universalista está presente mesmo depois da morte de Carlos Magno. A relevância do cargo de imper- ador evidencia uma postura diferenciada em relação aos súditos e às regiões aliadas. A ideia de um “simples reino” já não satisfaz os sucessores de Carlos Magno. No entanto, apenas se deve enfren- tar uma batalha de poderes com armas realmente eficazes. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 3. As tensões entre Império e Papado na Baixa Idade Média Em que pese toda uma ritualística que procurava reunir o imaginário imperial e o simbolismo cristão através de uma aliança entre o Império e o Papado, a verda- de é que a questão da sagração imperial oferecia um profícuo terreno para que começassem a surgir conflitos entre o poder espiritual e o poder temporal. Era o Imperador que fazia o Papa [...] ou era o Papa que deveria fazer o Imperador, como declararia Gregório VII, já em 1076, em um documento denominado Dic- tatus Papae? [...] De fato, o complexo panorama das relações entre a Igreja e os diversos poderes temporais, nos vários territórios europeus, mostravam desde os primórdios do século XI uma situação pouco cômoda para a Igreja. Na França, os primeiros reis Capetos [...] tinham adquirido o hábito de vender pelos melhores preços os cargos eclesiásticos reais que estavam sob seu controle, e com freqüência impu- nham pela força os candidatos episcopais de sua preferência. Na Inglaterra, as aristocracias locais da primeira metade do século XI haviam praticamente se as- senhorado das dignidades eclesiásticas. [...] Neste contexto, os bispos estavam inteiramente sujeitos ao Imperador ou a outros governantes temporais, que lhes concediam a investidura através de dois instrumentos simbólicos importantes – o báculo e o anel – ... O “báculo” era o símbolo da jurisdição; o “anel” o símbolo da união mística com a Igreja. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Unir os poderes temporais ao poder espiritual tinha um pre- ço. A interferência laica na instituição episcopal foi ampla e mais © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 130 uma vez questionada. No entanto, símbolos foram utilizados para visualizar e fechar os pactos. Lembremos que as simbologias sem- pre foram importantes em ambos os poderes. Ao ver um dos sím- bolos, os praticantes do cristianismo e mesmo aqueles contrários às práticas religiosas reconheciam a união estabelecida. O "ver", muitas vezes, era mais importante do que o saber. Era a certeza da presença dos dois reinos na localidade. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Vazando transversalmente a sociedade eclesiástica de alto a baixo, a interferên- cia dos poderes temporais na Igreja era manifesta, e mesmo as paróquias rurais estavam integradas aos poderes senhoriais através do controle dos grandes pro- prietários que eram herdeiros dos fundadores destas igrejas. [...] O quadro geral, portanto, era em todos os níveis o de uma intrincada confusão entre a função eclesiástica propriamente dita e o benefício temporal, fosse este concedido pelo imperador, pelo rei, ou mesmo pelo grande senhor. [...] Dois conceitos importantes que surgem da situação de confusão entre os interesses temporais e a função religiosa, no âmbito de uma moral eclesiástica, referem-se às idéias de simonia e nicolaísmo. O conceito de “simonia”, que no seu sentido mais estendido referia-se tanto ao tráfico de coisas santas e seu desvio para finalidades profanas como à compra de funções eclesiásticas, adap- tava-se à situação dos clérigos, ou mesmo de leigos, que haviam comprado suas dignidades eclesiásticas àqueles que controlavam o direito de investidura. Na contrapartida, os clérigos investidos desta maneira também procuravam obter vantagens a partir da venda de cargos menores que passavam a estar sob sua jurisdição, além de obter pagamentos pelos sacramentos que deviam administrar em razão de sua função eclesiástica. O “nicolaísmo” representava outro ponto importante de interferência entre o sa- grado e o temporal, pois se referia aos padres que viviam amancebados e que, freqüentemente, geravam filhos que poderiam postular direitos diversos. Alguns cargos, inclusive, eram transferidos hereditariamente. Na segunda metade do século XI, tanto a simonia como o nicolaísmo eram questões que movimentavam polêmicas que clamavam por uma solução nos meios eclesiásticos, e a reforma gregoriana, já em curso, iria centrar-se diretamente nestes pontos. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Observe que não foi apenas o poder laico que fez uso da si- monia, mas também a própria Igreja. Lembremo-nos de que aque- les eclesiásticos que faziam uso dessa prática foram, geralmente, os mesmos que tiveram seus cargos "comprados". Observemos também que não se tratava, então, de um uso pecaminoso do poder sagrado. Afinal, a vocação para a vida sac- erdotal não estava em jogo. Não estamos falando da Igreja apenas como símbolo maior das coisas divinas e sagradas, mas de uma 131© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia Igreja inserida em um contexto laico. Naquele contexto histórico essa postura não deixou de causar controvérsias e houve a ne- cessidade de mudanças. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Em 1073, quando Gregório VII ascende a Papa, [...] A atuação de Gregório VII, neste contexto, seria especialmente importante em três pontos centrais: o esforço de definir com clareza os direitos e responsabilidades do papado, a substituição do direito da Igreja Germânica pelo Direito Canônico, e a conquista da garantia de liberdade de eleição para o cargo de Papa (BOLTON, 1985, p.21). Como grande reformador e homem consciente das transformações de seu tem- po, Gregório VII percebeu que a sobrevivência e as possibilidades de desen- volvimento da Igreja enquanto Instituiçãodependeriam seriamente de resolver algumas questões cruciais, e a primeira delas relacionava-se precisamente à necessidade de fixar a autonomia da Igreja em relação ao Império ou a qualquer outro poder temporal [...] Ao mesmo tempo, percebia que era preciso que o Papa- do retomasse claramente a idéia de que era o sumo pontífice o líder máximo da Cristandade, acima de imperadores e reis. Em função desta última preocupação deve ser entendida a sua preocupação em reformular toda a imagística do papa- do, apropriando-se inclusive de símbolos e imagens do poder imperial. [...] Compreende-se dentro deste programa que uma das primeiras preocupações de Gregório VII tenha sido a de proibir enfaticamente a investidura leiga, isto é, a escolha de bispos e abades por príncipes e imperadores. O Dictatus Papae de 1076, que consubstancia esta proposta, causou imediata reação do Imperador Henrique IV, que deu o Papa como deposto. Este, reciprocamente, declarou o Imperador como deposto e excomungado, e assim concretizava-se na prática a própria questão de que tratava o Dictatus Papae: quem teria o direito de nomear ou depor o outro: o Imperador ou o Papa? O gesto de Gregório VII ao depor Henrique IV era ainda mais contundente, pois proibia os vassalos de lhe prestar serviço, ameaçando-os com a mesma excomunhão que já destinara ao Impera- dor. A conselho de seus assessores, Henrique IV capitulou e foi ao Castelo de Canossa em 1077, pedindo ao Papa um perdão que foi prontamente concedido, resolvendo momentaneamente a questão em favor da Igreja. O conflito entre o papa Gregório VII e Henrique VII foi contudo apenas um dos diversos confrontos da época entre o Papado e o Império, que estão na base da chamada Querela das Investiduras. [...] (BARROS, 2011). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– As mudanças têm início com o papado de Gregório VII. Por suas ações, vemos uma preocupação da Igreja em tentar retomar todo seu poderio como instituição voltada para as coisas sagradas. É claro que, para obter êxito em suas investidas, ela fez uso de manobras políticas: deposição e excomunhão de um imperador e utilização de símbolos imperiais para evidenciar seu poder. Esse uso diferenciado de símbolos não foi exclusivo da Igreja. Com o advento das nações (alguns séculos à frente), a França, por © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 132 exemplo, usou símbolos e conceitos do Império Romano para criar sua identidade. Assim, de acordo com Barros (2011) o passado foi usado como instrumento para se reescrever a História. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Conclusão Papado e Império, como pudemos ver através deste artigo, constituíram dois projetos universalistas cuja compreensão se mostra essencial para apreender a especificidade do período medieval. O paradoxo que parece se constituir da simultânea interdependência e concorrência entre estes dois projetos universa- listas irá se dissolver a partir do período moderno por algumas razões. De um lado, a noção de Império perderá cada vez mais a sua importância para uma realidade política européia que terá como noção estruturante mais importante a dimensão do “reino”. Já o Papado seguirá, até os dias de hoje, como importante força política e cultural que continua a interferir de alguma maneira nas realida- des nacionais que se desdobram no mundo moderno, particularmente no âmbito das nações católicas. Contudo, já teremos aqui uma capacidade de interferir nos destinos das nações ocidentais que estará muito longe do extraordinário poder do Papado no período medieval, uma vez que agora o catolicismo já se achará inserido em um quadro político-cultural no qual a própria Cristandade já se encontra dividida entre a Igreja católica e as diversas alternativas religiosas que emergem da Reforma, sem contar os abalos provocados pelos cismas do final da Idade Média e do início do período moderno. De resto, já não se evocará mais no mundo moderno, e menos ainda nos tempos contemporâneos, a tensa relação entre a idéia de “Império”, cuja importância recua para o imaginário, e a idéia de Papado, uma realidade ainda forte mas já não mais capaz de almejar o monopólio da religiosidade cristã no ocidente moderno. Desde então, a relação entre Papado e Império tornou-se apenas um tema de indiscutível importância para a História. Notas 1. No mundo romano, originalmente o vocábulo Imperium estava associado ao poder exercido por um indivíduo encarregado de governar, e neste sentido se des- dobrava em dois aspectos: o poder de controlar a unidade do comando militar (imperium militae) e a unidade de comando jurídico (imperium domi). Imperium era portanto um atributo inerente aos reis, que exerciam poder absoluto no interior do território sob sua jurisdição e também sobre o exército sob o seu comando. No mundo romano, com a instituição da República verifica-se a distribuição do Imperium entre cônsules e pretores, de modo a evitar a concentração do poder em um único indivíduo, esta só ocorrendo em ocasiões excepcionais nas quais fosse necessário o empossamento de um ditador. De qualquer modo, com o tempo a palavra “imperium” vai se deslocando de poder exercido por um ou mais indivíduos em nome do Estado para um sentido mais amplo, de poder que emana do Estado Romano e desdobra-se em magistraturas e poderes vários, inclusive aqueles en- carregados de governar os territórios e províncias formados com a expansão das conquistas. Neste sentido, Imperium vai incorporando a significação de um poder que abarca outros poderes, ou mesmo que submete outros poderes. Na plenitude de sua expansão, Roma já deve ser vista como o centro integrador / explorador de distintos sistemas regionais, de modo que a palavra Império atinge aqui o termo de seu desenvolvimento semântico, expressando a posição cosmopolita de Roma em 133© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia relação às diversas territorialidades e realidades sociais por ela controladas. Para a questão da Idéia de Império, ver FOLZ, 1953. 2.Para o caso do Império Romano, observa Grimal que a expressão passa a designar no período do Principado “não só o espaço no interior do qual Roma exercia o seu poder, como este mesmo poder” (Cf. GRIMAL, 1999, p. 9). 3. Na verdade, a idéia de universalidade do Império Romano remonta a tempos anteriores. Com o Principado, fortalece-se a idéia de que Roma estaria destinada a sujeitar o mundo conhecido, e já nesta época Imperium relaciona-se não ape- nas ao território submetido à lei romana e administrado diretamente, como tam- bém aos povos que reconheciam a autoridade do Império e a ele se submetiam através de relações de Patrocinium. 4. Para um estudo da Querela das Investiduras, ver FLICHE, 1964. Referências Bibliográficas BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. FLICHE, Augustin. La Querelle des Investidures. Paris: Aubier, 1964. FOLZ, Robert. L’Idée d’Empire em Occident du V au XIV siècle. Paris: Aubier, 1953. GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Lisboa: Edições 70, 1990. LE GOFF, Jacques. Nota sobre sociedade tripartida, ideologia monárquica e re- novação econômica na Cristandade do século IX ao século XII. In: LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa: Estampa,1980. SOUTHERN, Richard W. Western Society and the Churchs in the Middle Ages. New York: Penguin, 1970. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Faça um resumo sobre a formação e a expansão do Reino Carolíngio. Obser- ve atentamente as referências do contexto. 2) Qual a relevância da aliança com a Igreja para o fortalecimentoda Dinastia Carolíngia? 3) Elabore um quadro em que possam ser visualizadas as principais caracterís- ticas da política carolíngia. 4) Qual a importância dos juramentos de fidelidade para a manutenção do po- derio político carolíngio? © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 134 11. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, acompanhamos toda a estruturação do poder da Dinastia Carolíngia sobre o Ocidente Medieval e, prin- cipalmente, sua contribuição para a fundamentação da ideia de império que superasse a herança romana. Além disso, destacamos o elemento central da estruturação política carolíngia – a guerra – e sua importante vinculação à vas- salagem como forma de manutenção da estrutura sócio-política do império. Na próxima unidade, continuaremos estudando a temática carolíngia: poderemos acompanhar mais de perto as contribuições culturais empreendidas pelo programa de Renovatio Regni Fran- corum. 12. E-REFERÊNCIAS BARROS, J. A. Cristianismo e política na Idade Média: as relações entre o papado e o império. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/search/ authors/view?firstName=Jos%C3%A9%20D%E2%80%99Assun%C3%A7%C3%A3o&mid dleName=&lastName=Barros&affiliation=Universidade%20Federal%20Rural%20do%20 Rio%20de%20Janeiro&country=>. Acesso em: 21 fev. 2011. EGINHARDO. Vita et Gesta Caroli Magni. Disponível em: <http://www.thelatinlibrary. com/ein.html>. Acesso em: 28 jan. 2008. MANGIN, J. F. Juramentos de fidelidade. Disponível em: <http://pagesperso-orange.fr/ jean-francois.mangin/carolingiens/caro_3.htm>. Acesso em: 28 jan. 2008. ______. De Partibus Saxoniae. Disponível em: <http://pagesperso-orange.fr/jean- francois.mangin/carolingiens/caro_2.htm>. Acesso em: 28 jan. 2008. MONUMENTA GERMANIAE HISTORICA. Annales Laurienses. Disponível em: <http:// www.mgh.de/>. Acesso em: 23 jan. 2008. 13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALARD, M; GENET, J-P; ROUCHE, M. Le Moyen Age en Occident. Paris: Hachette, 2002. BANNIARD, M. A alta idade média ocidental. Lisboa: Europa-América, 1980. EDITORA ÁTICA. Atlas de história geral. São Paulo: Ática, 1996. CD-ROM. 135© Reino ou Império: A Dinastia Carolíngia ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA. A conquista franca até 814. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica Editores Ltda., 1994. GEARY, P. O mito das nações. São Paulo: Conrad, 2005. LE GOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Bauru: Edusc, 2005. PARISSE, M. Império. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J. (Coord.). Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo. Bauru: Edusc/ Imprensa Oficial São Paulo, 2002. v. 1. PEDRERO-SÁNCHES, M. História da idade média: textos e testemunhas. São Paulo: Unesp, 2000. TOURS, G. Histoire des Francs. Paris: Les Belles Lettres, 1999. (Les Classique de L’Histoire de France au Moyen Age). Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
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