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Idade média 06/02

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EA
D
Fim da Idade Média: 
Crise 
ou Transformação? 6
1. OBJETIVOS
•	 Apresentar	e	analisar	o	debate	historiográfico	em	torno	
da	"crise"	do	final	da	Idade	Média.
•	 Identificar	as	principais	mudanças	operadas	nos	cenários	
político,	econômico	e	social	a	partir	do	estabelecimento	
dos	Estados.
2. CONTEÚDOS
•	 Crise	do	século	14.	
•	 Guerra	dos	Cem	Anos	(1337-1453).	
•	 Reconstrução	política	europeia	do	final	do	século	14.
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE
Antes	de	iniciar	o	estudo	desta	unidade,	é	 importante	que	
você	leia	as	orientações	a	seguir:
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
186
1)	 Se	quiser	se	aprofundar	um	pouco	mais	sobre	o	pensa-
mento	 de	 Ernest	 Kantorowicz,	 sugerimos	 a	 consulta	 à	
obra:
•	 KANTOROWICZ,	Ernest.	Os dois corpos do rei:	estudos	
sobre	teologia	política	medieval.	São	Paulo:	Compa-
nhia	das	Letras,	1998.
2)	 O	 cineasta	 Ingmar	 Bergman	 usou	 o	 período	medieval	
como	tema	de	uma	de	suas	mais	brilhantes	obras.	Em	
O sétimo selo,	há	uma	disputa	de	xadrez	entre	a	morte	
e	um	homem	que	passara	a	questionar	a	existência	de	
Deus.	Ainda	que	esta	não	tenha	sido	uma	preocupação	
do	período,	o	 filme	 fornece	elementos	para	a	 reflexão	
sobre	o	tema	tratado	nesta	unidade.	Vale	a	pena	confe-
rir:
•	 O sétimo selo	(Det sjunde inseglet).	Suécia,	1956.	Di-
reção:	Ingmar	Bergman.
3)	 A	obra	de	Philippe	Wolff	dialoga	diretamente	com	Johan	
Huizinga	e	considera	que	a	crise	daquele	período	diz	res-
peito	a	um	momento	crucial	de	transformação.	Para	sa-
ber	mais	sobre	Wolff,	recomendamos	a	obra:
•	 WOLFF,	Philippe.	Outono da idade média ou prima-
vera dos tempos modernos?	Lisboa:	Martins	Fontes,	
1988.
4)	 Algumas	informações	preliminares	podem	ser	de	gran-
de	valia	para	uma	melhor	compreensão	dos	conteúdos	
abordados	nesta	unidade:
a)	 Albert	 Camus,	 um	 dos	 principais	 escritores	 france-
ses	do	período	"entre	guerras",	escreveu	uma	obra	
intitulada	A peste.	O	autor	parte	da	 imaginação	de	
uma	invasão	de	ratos	disseminadores	da	peste	para,	
segundo	a	interpretação	mais	corrente,	falar	de	uma	
“epidemia”	mais	apropriada	a	seu	tempo:	o	nazismo. 
b)	 O	problema	da	morte	entrou	na	reflexão	historiográ-
fica	na	década	de	70,	 como	uma	conquista	da	His-
tória	 cultural.	O	marco	para	essa	entrada	 foram	as	
187© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
obras	de	Philippe	Áries,	História da morte no ociden-
te e	O homem diante da morte.	A	partir	daí,	a	morte	
tornou-se	um	tema	pertinente	para	o	historiador.
c)	 Os	 atributos	 do	 Estado Moderno	 foram	 forjados,	
sobretudo,	pela	sociologia	de	Max	Weber.	Segundo	
esse	sociólogo,	o	Estado	Moderno	caracteriza-se	por	
um	quadro	administrativo	burocrático	cada	vez	mais	
desenvolvido,	por	um	sistema	econômico	capitalista	
e	por	agregar	o	tributo	e	o	exercício	legítimo	da	força	
física.
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Chegamos	 à	 última	 unidade	 de	 nossos	 estudos	 acerca	 da	
História	Medieval.	Vamos	relembrar	alguns	assuntos	tratados	nas	
unidades	anteriores:	as	abordagens	historiográficas	sobre	o	feuda-
lismo,	as	diferentes	etapas	da	reforma	da	Igreja	e	suas	implicações	
sociopolíticas,	a	origem	das	cruzadas	e	o	caráter	de	"guerra	santa"	
que	assumiram	essas	expedições.	
Caracterizamos	o	processo	histórico	de	desenvolvimento	co-
mercial	e	reorganização	das	cidades	medievais.	Além	disso,	identi-
ficamos	o	"Renascimento	do	século	12"	como	o	momento	da	en-
trada	dos	grupos	laicos	na	produção	intelectual.	
Nesta	unidade,	compreenderemos	que	o	estudo	do	período	
final	 da	 Idade	Média	 é	marcado	pela	 noção	de	que	houve	uma	
crise no século 14,	de	ordem	econômica,	política,	social	e	cultural.	
Inicialmente,	essa	crise	foi	sentida	nos	países	ao	norte	da	Eu-
ropa.	Mas	ela	não	ocorreu	da	mesma	forma	em	todos	os	lugares.	
Portanto,	 ao	 tratarmos	 desse	 período,	 primeiramente	 de-
vemos	saber	que	essa	temática	é	própria	do	território	francês.	O	
inaugurador	da	reflexão	sobre	essa	crise	nos	estudos	historiográfi-
cos	foi	Johan	Huizinga.	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
188
Com	base	na	obra	desse	autor,	intitulada	O outono da ida-
de média (no	Brasil,	publicada	como	O declínio da idade média),	
desenvolveram-se	as	reflexões	sobre	esses	séculos	finais	do	perí-
odo	medieval.	O	final	da	chamada	Idade	Média	é	visto	ora	como	
um	momento	de	crise,	ora	como	uma	etapa	fundamental	para	a	
transformação	da	sociedade,	marcada	pela	passagem	do	sistema 
de produção feudal para	o sistema capitalista,	e	culminando	no	
surgimento	dos	Estados Modernos.	
Diante	da	expansão	econômica	característica	dos	séculos	12	
e	13,	tidos	como	o	período	de	ouro	do	sistema	feudal,	os	séculos	
14	e	15	são	avaliados	como	o	momento	de	depressão	e	de	retra-
ção	na	produtividade.	
As	causas	e	os	limites	que	explicam	essa	recessão	são	vários,	
mas	três	fatores	são	sempre	destacados	pelos	historiadores:
•	 A	fome.	
•	 A	peste.	
•	 A	guerra.	
Essa	 é	 a	 tríade	que	define	os	 problemas	 enfrentados	pela	
população	europeia	ao	longo	desse	período	de	desarticulação	ou	
de	“rearticulação”.	
O	objetivo	desta	unidade	é	possibilitar	a	análise	dos	eventos	
produzidos	nesse	período,	sempre	com	atenção	ao	fato	de	que	o	
pano	de	fundo	de	nossa	tríade	é	um	processo	muito	sério	de	"de-
senraizamento"	e	de	"desparentalização".	Esse	processo	foi	viven-
ciado	e	sentido	por	homens	e	mulheres	do	século	14,	e	levou	a	um	
contexto	sociopolítico	que	será	chamado	de	Renascimento.	
Prepare-se,	 então,	 para	 colher	as folhas desse	outono da 
Idade Média ou as flores da primavera dos Tempos Modernos.
5. CRISE NO SÉCULO 14: A FOME
Segundo	Philippe	Wolff	(1988),	deve-se	distinguir	uma	situa-
ção	de	fome	de	uma	situação	de	penúria.	Enquanto	a	penúria	é	um	
189© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
sofrimento	decorrente	da	falta	de	alimentação	apropriada,	a	fome	
leva	à	morte	efetiva.	
O	que	ocorreu	no	século	14	 foi	uma	situação	de	 fome,	ou	
seja,	uma	falta	de	alimentação	que	provocou	um	alto	nível	de	mor-
talidade	nos	países	europeus.	O	problema	foi	decorrente,	princi-
palmente,	das	 crises	 sucessivas	na	produção	agrícola,	 contando,	
também,	com	obstáculos	sociais	à	expansão	da	produtividade.	
Desde	1280,	havia	uma	situação	de	"fome	de	terras"	na	Eu-
ropa,	motivada	pelo	 fim	dos	arroteamentos	e	pela	permanência	
da	expansão	demográfica.	
O	aumento	do	número	de	dependentes	e	o	jogo	das	heran-
ças	e	partilhas	sucessórias	acarretaram	a	multiplicação	das	explo-
rações	camponesas.	
Com	a	diminuição	da	área	para	o	cultivo	da	terra,	os	campo-
neses	precisaram	encontrar	outras	fontes	de	rendimentos,	como	
o	trabalho	artesanal,	que	era	recorrente	nos	ambientes	citadinos,	
conforme	vimos	na	Unidade	4.	
Havia	 uma	 impossibilidade	 de	 aumento	 da	 área	 cultivada,	
conjuntamente	com	o	aumento	demográfico	resultante	do	suces-
so	do	sistema	feudal	e	da	relativa	segurança	vivenciada	pelos	ho-
mens	após	o	último	ciclo	de	invasões	ao	longo	do	século	9º.	Essa	
conjunção	de	fatores	levou	a	uma	crise	da	produtividade,	que	re-
tornou	em	forma	de	fome	e	mortalidade.
Essa	crise	na	produção	agrícola	também	esteve	ligada	a	uma	
alteração	 climática	 que	 ocorreu	 nas	 três	 zonas	 climáticas	 euro-
peias	entre	os	anos	de	1480	e	1482.	Essa	alteração	conduziu	à	de-
bilidade	e	à	irregularidade	da	produção.	
Somam-se	a	esses	 fatores	as	más	condições	de	armazena-
mento	e	os	hábitos	alimentares	uniformes	(não	havia	variedade	de	
cardápio	também	em	decorrência	da	infertilidade	do	solo.	A	falta	
de	variação	de	nutrientes	debilitava	a	saúde	da	população).	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
190
É	possível	perceber,	então,	que	o	século	14	estava	diante	de	
uma	situação	que	extrapolava,	e	muito,	a	noção	de	penúria.
Philippe	 Wolff	 (1988)	 apresenta	 um	 estudo	 realizado	 por	
MauriceBerthe	 sobre	 a	 região	 espanhola	 de	Narrava,	 e	 aponta	
que,	no	ano	de	1347,	houve	uma	redução	média	de	cinquenta	por	
cento	 no	 tamanho	das	 famílias,	 em	decorrência	 da	mortalidade	
por	fome.	Isso	teve	como	consequência	a	necessidade	de	um	rea-
grupamento	familiar.
Outras interpretações para a crise e a fome do século 14 
É	importante	ressaltar	que	nem	todos	os	autores	concordam	
que	a	fome	do	século	14	tenha	decorrido,	especialmente,	do	fra-
casso	agrícola.
A	questão	da	estagnação	da	produtividade,	tida	como	uma	
das	raízes	da	"crise",	é	apresentada	por	autores	que	defendem	a	
ideia	de	que	a	economia	era	dominada	pela	agricultura.	Segundo	
eles,	a	agricultura,	por	sua	vez,	era	regida	pelos	grandes	domínios.	
Segundo	 Monique	 Bourin	 (2003),	 essa	 "explicação	 quase	
mecânica	 foi	posta	em	questão"	após	a	década	de	1990,	 sobre-
tudo	em	uma	historiografia	inglesa	ou	canadense,	que	atingiu	–	e	
apenas	superficialmente	–	os	historiadores	franceses.	
Esses	 trabalhos	concentraram	sua	atenção	no	aumento	da	
moeda	em	circulação,	no	desenvolvimento	das	pequenas	cidades,	
no	sistema	de	crédito,	na	maior	flexibilidade	das	ocupações	e	em	
uma	crescente	mobilidade	geográfica	(BOURIN,	2003).
Essa	situação	complicada	foi	uma	porta	de	entrada	para	ou-
tros	problemas,	como,	por	exemplo,	o	surgimento	de	doenças	e	
pestilências	que	há	muito	estavam	esquecidas.	Vejamos	o	que	o	
historiador	Jérôme	Baschet	(2006,	p.	248)	diz	a	esse	respeito:
É	 difícil	 traçar	 um	 limite	 cronológico	 preciso	 entre	 o	 desenvolvi-
mento	e	o	equilíbrio	atingidos	pela	Idade	Média	Central	e	a	inver-
são	de	tendência	da	Baixa	Idade	Média.	Desde	o	fim	do	século	XIII,	
o	crescimento	rural	parece	atingir	os	seus	limites	de	possibilidades,	
191© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
chegando	[...]	a	um	'mundo	pleno',	segundo	a	expressão	de	Pierre	
Chaunu.	Depois,	ao	longo	da	primeira	metade	do	século	XIV,	as	difi-
culdades	se	acumulam.	Em	1315-17,	a	fome	geral,	esquecida	havia	
mais	de	um	século,	faz	novos	estragos,	antes	que	a	peste	negra	de	
1348	marque	com	estrondo	uma	ruptura	radical.	
É	em	direção	a	essa	“ruptura	radical”,	ocasionada	pela	peste,	
que	seguirá	nosso	estudo	agora.	
6. CRISE DO SÉCULO 14: A PESTE
O	último	foco	de	Peste	Negra	sofrido	pela	Europa	havia	termi-
nado	no	século	6º.	
No	 entanto,	 depois	 de	 oito	 séculos,	 essa	 doença	 voltou	 a	
assolar	as	cidades	europeias	e	a	se	alastrar	por	todas	as	regiões.	
Afetou	pessoas	de	todos	os	níveis	econômicos,	e	atingiu	tanto	o	
campo	como	a	cidade,	embora	muitos	autores	enfatizem	que	ela	
tomou	conta	mais	gravemente	das	cidades.	O	ano	da	disseminação	
da	doença	foi	o	de	1348	e,	segundo	Georges	Duby	(1992,	p.	256):
Se	tivéssemos	de	guardar	na	memória	apenas	uma	data	durante	
o	 longo	período	que	examino,	 seria	o	ano	de	1348.	É	neste	ano	
que	a	Peste	Negra	 invade	a	França,	e	dali	para	 frente	nada	mais	
seria	como	antes.	É	este	o	acontecimento	decisivo.	Ele	assinala	na	
realidade	o	fim	de	uma	época	da	história,	aquela	que,	por	simples	
hábito,	continuamos	a	chamar	de	Idade	Média.
A	Grande	Peste	ou	Peste	Negra,	como	ficou	conhecida,	era	a	
conjugação	da	peste	bubônica	com	a	forma	pulmonar	da	peste,	e	
resultava	num	índice	de	80%	a	100%	de	mortalidade.
Os	 homens	 da	 Idade	Média	 desconheciam	 as	 causas	 e	 os	
hospedeiros	que	propagavam	a	doença.	Diferentemente	do	escri-
tor	Albert Camus,	que	em	sua	obra	A peste já	atribuía	o	motivo	da	
infestação	aos	ratos,	acreditavam	que	ela	decorria	de	uma	punição	
divina	aos	males	morais	coletivos	da	sociedade.
Em	virtude	disso,	na	Espanha	surgiu	um	grupo	de	homens,	
chamados	pogrons,	que	se	tornou	responsável	por	perseguir	e	pu-
nir	os	judeus	–	eles	consideravam	que	os	judeus	disseminavam	a	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
192
peste	por	meio	do	envenenamento	dos	poços	de	água.	
Na	realidade,	a	epidemia	chegou	à	Europa	vinda	da	África,	
em	um	navio	comercial	que	tinha	cadáveres	infectados	pela	doen-
ça.	A	partir	de	então,	ela	se	espalhou	por	Constantinopla	e	atingiu	
a	Europa	pelo	Mediterrâneo	e	pelo	mar	do	Norte,	e,	desde	Gêno-
va,	foi	seguindo	a	rota	comercial.
Decamerão: o testemunho do impacto da Peste Negra 
Foi	 um	 italiano	 quem	deu	o	melhor	 testemunho	de	 como	
foi	o	impacto	da	peste	de	1348,	com	base	em	uma	ótica	morali-
zante.	Na	obra	Decamerão,	Giovanni Boccaccio (1313-1375)	reúne	
um	grupo	de	três	homens	e	sete	mulheres	que,	fugindo	da	peste,	
retiram-se	por	dez	dias	para	o	campo	e	passam	o	tempo	contando	
histórias	divertidas.	
As	 narrativas	 apresentam	 histórias	 pitorescas,	 muitas	 de	
cunho	sexual,	que	levaram	à	interpretação	da	obra	como	libertina	
e	erótica.	Todavia,	esquece-se,	frequentemente,	de	que	aquele	ce-
nário	retira	seus	contornos	da	certeza	de	mortalidade,	promovida	
pela	peste.
A	peste,	vista	como	um	castigo	de	Deus	ao	pecado	humano,	
transforma	as	narrativas	em	denúncia	dos	pecados	dos	homens:	
os	pecados	os	 teriam	 levado	à	praga	e	 à	mortalidade.	Contudo,	
sendo	certa	a	morte,	cabia	aproveitar	o	tempo	restante	–	e	é	isso	
o	que	fazem	os	personagens	de	Decamerão.
Logo	na	primeira	 jornada,	 a	 que	 tem	em	Pampineia	 a	 rai-
nha	da	semana	e	a	responsável	pela	narração,	Boccaccio	(1971,	p.	
09-10)	descreve	a	situação	que	seus	personagens	vivenciaram	da	
seguinte	forma:
Afirmo,	portanto,	que	tínhamos	atingido	já	o	ano	bem	farto	da	En-
carnação	do	Filho	de	Deus,	de	1348,	quando,	na	mui	excelsa	cidade	
de	Florença,	cuja	beleza	supera	a	de	qualquer	outra	da	Itália,	sobre-
veio	a	mortífera	pestilência.	Por	iniciativa	dos	corpos	superiores,	ou	
em	razão	de	nossas	iniqüidades,	a	peste,	atirada	sobre	os	homens	
por	 justa	 cólera	 divina	 e	 para	 nossa	 exemplificação,	 tivera	 início	
193© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
nas	 regiões	orientais,	há	alguns	anos.	Tal	praga	ceifara,	naquelas	
plagas,	uma	enorme	quantidade	de	pessoas	vivas.	Incansável,	fora	
de	um	lugar	para	outro;	e	estendera-se,	de	forma	miserável	para	o	
Ocidente.	Na	cidade	de	Florença,	nenhuma	prevenção	 foi	válida,	
nem	valeu	a	pena	qualquer	providência	dos	homens.	A	praga,	 a	
despeito	de	tudo,	começou	a	mostrar,	quase	ao	principiar	a	prima-
vera	do	ano	referido,	de	modo	horripilante	e	de	maneira	milagrosa,	
os	seus	efeitos.	A	cidade	ficou	purificada	de	muita	sujeira,	graças	
a	 funcionários	que	 foram	admitidos	para	esse	 trabalho.	A	entra-
da	nela	de	qualquer	enfermo	foi	proibida.	Muitos	conselhos	foram	
divulgados	 para	 a	 manutenção	 do	 bom	 estado	 sanitário.	 Pouco	
adiantaram	as	súplicas	humildes,	feitas	em	número	muito	elevado,	
às	vezes	por	outros	modos	dirigidas	a	Deus.	A	peste,	em	Florença,	
não	teve	o	mesmo	comportamento	que	no	Oriente.	Neste,	quando	
o	sangue	saía	pelo	nariz,	fosse	de	quem	fosse,	era	sinal	evidente	
de	morte	inevitável.	Em	Florença,	apareciam	no	começo,	tanto	em	
homens	como	nas	mulheres,	ou	na	virilha	ou	na	axila,	algumas	in-
chações.	Algumas	destas	cresciam	como	maçãs;	outras,	como	um	
ovo;	cresciam	umas	mais,	outras	menos;	chamava-as	o	populacho	
de	bubões.	Dessas	duas	referidas	partes	do	corpo	logo	o	tal	tumor	
mortal	passava	a	repontar	e	a	surgir	por	toda	parte.	Em	seguida,	o	
aspecto	da	doença	começou	a	alterar-se;	começou	a	colocar	man-
chas	de	cor	negra	ou	lívidas	nos	enfermos.	Tais	manchas	estavam	
nos	braços,	nas	coxas	e	em	outros	lugares	do	corpo.	Em	algumas	
pessoas,	 as	manchas	 apareciam	 grandes	 e	 esparsas;	 em	 outras,	
eram	pequenas	e	abundantes.	E	do	mesmo	modo	como,	a	prin-
cípio,	o	bubão	fora	e	ainda	era	indício	inevitável	de	morte	futura,	
também	as	manchas	passaram	a	ser	mortais,	depois,	para	os	que	
as	tinham	instaladas.	
No	 entanto,	 o	 surto	 de	 peste	 não	 se	 restringiu	 ao	 ano	 de	
1348.	Outros	ocorreram	em	1353-1355,	1357,	1377-1378,	1385-
1386,	1403	e	1419.	
Consequências da peste
Segundo	Philippe	Wolff	(1988),	apeste	acirrou	a	tensão	en-
tre	as	classes	sociais.	Os	ricos	acusavam	os	pobres	de	terem	propa-
gado	o	contágio	e	os	pobres	censuravam	os	ricos	por	só	cuidarem	
de	si	mesmos.	
Em	decorrência	da	mortalidade	de	grande	parte	da	popula-
ção,	houve	escassez	de	mão	de	obra	–	ainda	que	também	diminu-
ísse	o	número	de	bocas	a	serem	alimentadas.	Houve	a	obrigatorie-
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
194
dade	de	se	trabalhar,	os	salários	foram	congelados	e	a	mendicância	
foi	proibida	aos	homens	aptos	para	o	trabalho.
No	plano	artístico-literário,	uma	das	grandes	consequências	
da	peste	foi	o	aparecimento	de	um	tipo	de	arte	chamada	de	"dan-
ça	macabra".	Nessas	obras,	homens	e	mulheres	de	todas	as	condi-
ções	sociais	eram	arrastados	por	esqueletos	em	uma	dança	infer-
nal,	que	lhes	lembrava	de	sua	condição	mortal.	A	vida	foi	invadida	
pela	morte	e	pela	visão	dos	mortos	por	todos	os	lados.
 
Para	o	historiador	 Jacques	Chiffoleau	 (1996),	por	exemplo,	
é	possível	perceber	como	a	 imagem	da	morte	foi	modificada	no	
século	14,	sobretudo	quando	são	analisados	os	testamentos	da	re-
gião	francesa	de	Avinhão.	Houve	uma	intensificação	na	escrita	de	
testamentos	com	preâmbulos	que	se	referiam	à	morte	em	termos	
antigos,	já	usados	nos	séculos	12	e	13.	
Todavia,	a	partir	de	1348,	os	preâmbulos	tornaram-se	mais	
longos	e	multiplicaram-se	as	figuras	de	estilo	e	as	redundâncias.	O	
mais	impressionante	é	o	fato	de	o	testamenteiro	passar	a	determi-
nar	o	local	da	sepultura	e	todos	os	detalhes	dos	ritos	funerários.	
Nesse	momento,	a	palavra	cadaver	passou	a	substituir	corpus	em	
boa	parte	dos	documentos.	
Desenraizamento e desparentalização
O	detalhe	mais	assustador	na	peste,	para	além	das	questões	
fisiológicas,	era	o	fato	de	ela	ter	acentuado	o	processo	de	"desen-
raizamento”	e	de	“desparentalização”.	
Isso	porque,	com	o	crescente	número	de	infectados	e	de	ca-
dáveres	vitimados	pela	peste,	houve	um	considerável	movimento	
de	pessoas	em	fuga	dos	lugares	que	estavam	contaminados	ou	sob	
o	risco	de	contaminação.	Esse	êxodo	acentuou	o	chamado	“desen-
raizamento”	dos	homens	de	suas	comunidades	originais.	
Além	disso,	o	alto	índice	de	contágio	inibia	até	os	cuidados	
com	os	mortos	que,	na	maioria	das	vezes,	eram	abandonados	em	
suas	casas	por	seus	familiares.	Muitas	famílias	desarticularam-se	a	
195© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
ponto	de	não	sustentarem	mais	os	vínculos	sanguíneos	e	simbóli-
cos	que	as	uniam.	
O	resultado	foi	um	movimento	de	“desparentalização”,	que	
prejudicou	 seriamente	a	 reprodução	da	 família	alargada	 (núcleo	
familiar	e	demais	componentes	como	demais	familiares	e	agrega-
dos).	Os	 laços	espirituais	 contraídos	em	vida	e	mantidos	após	a	
morte	passaram	ao	segundo	plano	em	prol	da	busca	pela	própria	
sobrevivência	individual.	
Até	então,	os	vínculos	espirituais	de	parentesco	mantinham	
uma	comunidade	unida	e	coesa,	composta	por	vivos	e	mortos.	Os	
ritos	 funerários,	 por	 exemplo,	 asseguravam	 um	 lugar	 ao	 morto	
na	comunidade	dos	vivos	e	facilitavam	o	contato	com	aquele	que	
morria.	O	morto	passava	à	condição	de	ancestral,	com	um	lugar	
reservado	tanto	em	um	espaço	 físico	–	o	cemitério	–	quanto	na	
memória	dos	vivos.
Normalmente,	 esse	 contato	 entre	 vivos	 e	mortos	 se	 dava	
pela	visita	ao	cemitério	anexado	à	igreja	principal	da	comunidade.	
Em	relação	a	essa	questão,	Jacques	Chiffoleau	discorda	de	Pierre	
Chaunu	e	de	Philippe	Áries	sobre	a	explicação	para	a	teatralização	
da	morte	e	para	a	individualização	que	ocorreram	no	século	14.	
Enquanto	para	Áries	a	teatralização	da	morte	se	explica	por	
um	 "sentimento	 agudo	 do	 fracasso	 individual"	 e,	 para	 Chaunu,	
pela	"multiplicação	da	visão	da	morte",	para	Chiffoleau	(1996,	p.	
128)	a	questão	se	explicava	pela
[...]	descoberta,	tornada,	certamente,	mais	fácil	pela	conjuntura	de	
uma	solidariedade	nova:	desenraizados,	sem	antepassados,	dora-
vante	os	cidadãos	ganham	sozinhos	o	reino	das	Trevas.	As	antigas	
regras	que	socializam	o	luto	já	não	têm	função.	Eles	são	então	for-
çados	 a	 abandonar	 as	 velhas	 solidariedades	 e	protestam	melan-
colicamente	contra	a	perda	dos	pais,	contra	a	impossibilidade	em	
que	se	encontram	de	novamente	se	juntar	aos	antepassados,	de	se	
parecer	com	eles,	de	identificar-se com eles.	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
196
Em	Boccaccio	(1971,	p.	11-12),	é	apresentada	essa	situação	
de	ruptura	da	solidariedade	da	linhagem	e	do	vínculo	entre	vivos	e	
mortos,	e	mesmo	entre	pais	e	filhos.	Vínculos	que	se	fundamenta-
vam	em	uma	noção	de	tradição	e	autoridade	que	mantinha	unida	
a	comunidade	composta	por	vivos	e	mortos:
Alguns	faziam	alarde	de	sentimento	mais	cruel	(como	se,	porven-
tura,	tal	sentimento	fosse	o	mais	seguro),	e	diziam	que	não	havia	
remédio	 melhor,	 nem	 tão	 eficaz,	 contra	 as	 pestilências,	 do	 que	
abandonar	 o	 lugar	 onde	 se	 encontravam,	 antes	que	essas	 pesti-
lências	ali	surgissem.	Induzidos	por	essa	forma	de	pensar,	não	se	
importando	fosse	com	o	que	fosse,	a	não	ser	com	eles	mesmos,	
inúmeros	homens	e	mulheres	deixaram	a	própria	cidade,	as	pró-
prias	moradias,	os	seus	lugares,	seus	parentes	e	suas	coisas,	e	fo-
ram	em	busca	daquilo	que	a	outrem	pertencia,	ou,	pelo	menos,	
que	era	de	seu	condado.	Para	eles,	era	como	se	a	cólera	de	Deus	
estivesse	destinada	não	a	castigar	a	 iniqüidade	dos	homens	com	
aquela	peste,	onde	eles	estivessem,	e	sim	a	oprimir,	comovido,	so-
mente	os	que	teimassem	em	ficar	dentro	dos	muros	de	sua	cidade.	
Ou	como	se	essa	cólera	fosse	apenas	um	aviso	para	que	ninguém	
permanecesse	 em	 determinada	 cidade,	 por	 ter	 chegado	 a	 hora	
derradeira	dessa	mesma	cidade.	Como,	de	tais	opinantes,	nem	to-
dos	morriam,	e	que,	assim	sendo,	nem	todos	continuavam	a	viver,	
muitos	sujeitos,	de	cada	cidade,	e	em	toda	parte,	caíam	enfermos	
e,	quase	abandonados	à	própria	sorte,	definhavam	inteiramente.	
Eles	mesmos,	quando	estavam	sãos,	deram	exemplo	aos	que	con-
tinuavam	sadios,	para	que	fugissem	daqueles	que	tombavam	sob	
as	garras	do	mal.	Vamos	pôr	de	lado	as	circunstâncias	de	um	cida-
dão	ter	repugnância	de	outro;	de	quase	nenhum	vizinho	socorrer	
o	outro;	de	os	parentes,	juntos,	pouquíssimas	vezes	ou	jamais	se	
visitarem,	e,	quando	faziam	visita	um	ao	outro,	ainda	assim	só	o	fa-
zem	de	longe.	Tal	inquietação	entrara,	com	tanto	estardalhaço,	no	
peito	dos	homens	e	das	mulheres,	que	um	irmão	deixava	o	outro;	o	
tio	deixava	o	sobrinho;	a	irmã,	a	irmã;	e,	freqüentemente,	a	esposa	
abandonava	o	marido.	Pais	e	mães	sentiam-se	enojados	em	visitar	
e	prestar	ajuda	aos	filhos,	como	se	o	não	foram	(é	esta	é	a	coisa	
pior,	difícil	de	se	crer).
Além	da	"desparentalização"	expressa	nesse	 fragmento	de	
Boccaccio,	a	peste	também	trouxe	como	consequência	um	deslo-
camento	da	população,	que	fugia	da	doença.
As	pessoas,	muitas	vezes,	não	podiam	ser	enterradas	ao	lado	
de	 seus	parentes.	Podemos	pensar	que	os	dois	processos	 se	 in-
terligaram	e	tornaram	possível	o	surgimento	de	uma	identificação	
197© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
para	além	do	parentesco,	e,	paulatinamente,	mais	centrada	no	ter-
ritório	ocupado.	
7. GUERRA DOS CEM ANOS (1337-1453)
Estamos	caminhando	para	a	formação	dos	Estados	Moder-
nos,	na	qual	as	guerras	desempenharam	um	papel	central.
A	guerra	é	um	tema	fundamental	para	o	período	que	estu-
damos,	porque,	além	de	reforçar	a	desestrutura	que	se	instalava,	
abre	uma	brecha	para	questionarmos	se	o	Estado	não	haveria	tido	
naquele	momento	a	sua	primeira	aparição.
Até	então,	o	Estado	não	existia	como	uma	estrutura	burocrá-
tica,	que	congregasse	um	corpo	militar	em	torno	do	governante	
e	 que	 tivesse	 um	espaço	 territorial	 definitivo,	 onde	 exercesse	 o	
poder	sobre	a	população	ali	estabelecida.
A	Guerra dos Cem anos,	 a	mais	 conhecida	disputa	ocorri-
da	dos	séculos	14	e	15,	envolveu	três	regiõesdistintas.	Teve	por	
consequência	a	modificação	nas	técnicas	de	batalha	e	a	formação	
de	um	aparato	tributário	que	impulsionava	os	feitos	de	guerra	e	
fortalecia	os	reinos	envolvidos.
Para	Georges	Duby	(1992),	a	guerra	fez	com	que	o	sistema	
fiscal	se	tornasse	mais	pesado.	Até	a	Guerra	dos	Cem	Anos,	o	sis-
tema	militar	 baseava-se	 no	 soldo.	 Com	 o	 desenvolvimento	 dos	
eventos	da	batalha,	foi	necessária	a	contratação	e	a	formação	de	
mercenários	para	suprir	os	ataques.	
A	 Guerra	 dos	 Cem	 Anos	 abrangeu	 uma	 série	 de	 conflitos	
diferentes,	 envolvendo	 as	 regiões	 da	 França,	 da	 Inglaterra	 e	 de	
Navarra.	Teve	uma	dupla	motivação:	uma	disputa	territorial,	com	
a	possessão	da	região	da	Guiena	pelos	franceses,	e	uma	disputa	
dinástica,	 cujo	 início	 foi	a	morte	de	Felipe,	o	Belo,	último	rei	da	
linhagem	capetíngia,	no	ano	de	1328.	
Felipe,	o	Belo,	morreu	sem	deixar	herdeiros	diretos.	Por	isso,	
a	coroa	foi	entregue	a	um	de	seus	primos,	Felipe	de	Valois.	Essa	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
198
transferência	não	 foi	 questionada	 imediatamente,	mas	 levou	ao	
questionamento	do	direito	de	sucessão,	tal	qual	fora	estabelecido	
pela	lei	sálica	e	que	vigorava	até	então.	
De	acordo	com	esse	sistema,	a	sucessão	não	poderia	ser	fei-
ta	 seguindo	 a	 linhagem	por	 parte	 de	uma	mulher.	 Se	 isso	 fosse	
possível,	dois	outros	nomes	estariam	aptos	a	serem	coroados	reis	
da	França:	o	rei	da	Inglaterra,	Eduardo	III,	que	era	filho	de	Isabel,	
(filha	de	Felipe,	o	Belo);	e	Carlos	de	Navarra,	filho	de	Joana,	a	neta	
primogênita	do	falecido	rei.	
Ainda	que	não	tenha	havido	uma	contestação	imediata	à	su-
cessão	da	coroa,	 já	que	Felipe	VI	 (como	fora	chamado	Felipe	de	
Valois)	fora	consagrado	rei	em	Reims,	esse	problema	levou	à	rei-
vindicação	do	trono	por	parte	de	Eduardo	III	e	de	Carlos	de	Navar-
ra.	Isso	causou	a	guerra	que	aqui	analisamos.	
A	 reivindicação	do	 trono	por	 parte	de	 Eduardo	 III	 ocorreu	
em	1337,	quando	Felipe	VI	confiscou	a	Guiena	de	Eduardo	III.	Em	
decorrência	da	tomada	do	território,	o	problema	sucessório	veio	
à	tona	e	o	rei	da	Inglaterra	proclamou-se,	também,	rei	da	França.	
A	partir	de	então,	teve	início	a	Guerra	dos	Cem	Anos.	Ela	foi	
dividida	pela	historiografia	em	quatro	períodos,	os	quais	conhece-
remos	agora.	
Primeiro período da Guerra dos Cem Anos
Esse	 período	 compreendeu	 os	 anos	 de	 1337	 a	 1360	 e	 foi	
marcado	pela	derrota	 francesa.	 Iniciada	na	batalha	de	Cécy,	 tra-
vada	entre	franceses	e	ingleses,	a	guerra	tomou	novos	rumos	com	
a	prisão,	em	Poitiers,	de	João,	o	Bom,	herdeiro	do	trono	francês	
após	o	falecimento	de	Felipe	VI.	Houve	a	assinatura	do	tratado	de	
Calais,	no	qual	João,	o	Bom,	deixou	a	Eduardo	III	a	plena	soberania	
de	parte	do	seu	reino.	
Carlos	de	Navarra,	por	sua	vez,	era	irmão	da	segunda	mulher	
de	Felipe	VI	e,	em	1352,	desposou	a	irmã	do	rei	João,	o	Bom.	Esse	
199© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
casamento	foi	uma	tentativa	de	ampliar	o	que	lhe	cabia	na	heran-
ça	capetíngia,	além	de	representar	a	possibilidade	de	readquirir	os	
direitos	sucessórios	de	sua	mãe	sobre	a	região	de	Champagne	e	de	
estender	pela	Normandia	as	possessões	de	seu	pai.	
Em	1356,	temendo	uma	traição,	João	manda	encarcerar	Car-
los.	No	entanto,	em	decorrência	de	suas	boas	alianças,	Carlos	foi	
solto	em	1357,	e,	a	partir	de	então,	entrou	em	entendimento	com	
os	ingleses	para	poder	se	apoderar	da	Normandia	e	da	Champag-
ne.	
Nesse	ínterim,	estando	o	trono	francês	vago,	o	reino	foi	diri-
gido	pelo	delfim	Carlos,	filho	de	João,	o	Bom.	Diante	das	ameaças	
de	Étienne	Marcel,	que	exigia	uma	reforma	extrema	para	o	reino	
da	França,	Carlos	foge	de	Paris,	deixando	a	França	sem	rei.
Em	1360,	Eduardo	III	tentou	entrar	em	Reims,	mas	a	cidade	
estava	fechada	e,	em	troca	da	renúncia	à	coroa,	recebeu	moedas	
de	ouro	e	a	soberania	sobre	a	Aquitânia	para	liberar	João.	O	tra-
tado	assinado	entre	França	e	Inglaterra	resultou	em	vantagens	ao	
rei	Eduardo	III,	que	conquistou	a	soberania	sobre	diversas	regiões	
francesas.	
Segundo período da Guerra dos Cem Anos
O	segundo	momento	da	guerra,	entre	1364-1380,	 foi	mar-
cado	pela	vitória	francesa.	Em	1364,	Carlos	V	tornou-se	rei	e	re-
tomou	a	guerra	contra	os	ingleses.	Entre	1369	e	1373,	Eduardo	III	
havia	perdido	quase	todas	as	regiões,	sobretudo	porque	a	França	
recebeu	ajuda	da	Escócia,	de	Flandres	e	de	Castela.	Dessa	forma,	a	
dominação	inglesa	na	França	foi	reduzida.	
Simultaneamente,	a	 Inglaterra	enfrentava	problemas	 inter-
nos	em	decorrência	do	aumento	de	influência	da	aristocracia.	Em	
1388,	o	herdeiro	de	 Eduardo	 III,	 Ricardo	 II,	 teve	de	 se	humilhar	
diante	da	grande	nobreza,	e	acabou	sendo	morto	em	1399.	Henri-
que	IV	assumiu	o	reino	e	fundou	a	dinastia	dos	Lancaster.	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
200
Terceiro período da Guerra dos Cem Anos
O	 início	 do	 terceiro	 momento	 da	 guerra	 (1380-1422)	 foi	
marcado,	especialmente,	por	conflitos	internos	tanto	na	Inglaterra	
quanto	na	França.
A	 situação	 interna	 francesa	não	era	das	melhores,	mesmo	
com	as	vitórias	conquistadas	sobre	os	ingleses.	
Carlos	VI,	herdeiro	do	trono,	ainda	estava	na	minoridade	e	
enlouqueceu	em	1392.	Isso	abriu	a	possibilidade	de	disputa	pelo	
poder	e	deu	início	a	uma	guerra	interna.	Havia	uma	rivalidade	en-
tre	duas	regiões	 francesas	e	suas	aristocracias:	Orléans	e	Borgo-
nha.	Ambas	as	facções	–	Armagnacs	e	Borguinhões	–	apelaram	aos	
ingleses	para	ajudar	na	solução	do	conflito.	
Nesse	momento,	os	ingleses	estavam	sob	o	reinado	de	Hen-
rique	V,	que	invadiu	a	França	e	os	levou	à	derrota	em	Azincourt.	
Vemos,	então,	uma	França	dividida	em	dois	setores:	de	um	
lado	uma	França	sob	o	poder	dos	Lancaster,	herdeiros	do	trono	in-
glês	que	ainda	reivindicavam	o	trono	francês;	de	outro,	uma	Fran-
ça	governada	pelo	delfim	Carlos	a	partir	da	Borgonha.	
Quarto período da Guerra dos Cem Anos
Esse	é	o	momento	mais	crucial	da	guerra,	entre	1422	e	1453,	
no	qual	desponta	o	nome	de	um	dos	personagens	mais	conheci-
dos	e	consagrados	pela	historiografia	francesa,	sobretudo	a	histo-
riografia	do	século	19:	Joana D’Arc.
Joana	 D'Arc	 morava	 em	 um	 dos	 cantões	 (áreas	 limítrofes	
desse	conflito):	Domrémy.	Era	filha	de	um	camponês	rico	e	influen-
te	na	paróquia	e	ficou	conhecida	pela	grande	devoção	à	fé	católica	
e	pela	forte	ligação	com	o	mundo	sobrenatural.	
Ainda	em	Domrémy,	Joana	rompeu	um	casamento	e	consa-
grou-se	a	Deus.	Constantemente,	ouvia	vozes	que	lhe	diziam	para	
seguir	em	direção	ao	rio	Loire,	o	lugar	onde	ocorria	a	resistência	à	
invasão	inglesa.
201© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
Joana	 lutou	na	guerra	pela	 legitimidade	do	delfim,	que	 se	
intitulava	 rei,	mas	que	não	havia	 sido	 consagrado	em	decorrên-
cia	das	disputas.	Ao	ser	recebida	pelo	delfim	em	Chinon,	este	lhe	
prometeu	a	sagração.	Ela	 foi	 sagrada	chefe	de	guerra	e	a	 seguir	
foi	enviada	a	Orléans,	que	era	o	coração	do	poder	dos	primeiros	
Capetos.	
Em	17	de	julho,	Carlos	VII	recebeu	a	unção	real	em	Reims,	
mas	 Joana	D'Arc	 não	 teve	 vida	 longa.	 Foi	 feita	 prisioneira	 pelos	
ingleses	em	24	de	maio	de	1430.	Depois	de	passar	por	um	inter-
rogatório,	morreu	queimada	na	fogueira	em	30	de	maio	de	1431.
O	pensamento	de	Georges	Duby	(1992,	p.	276)	demonstra	
que	Joana	D’Arc	tem	sido	vista,	desde	Michelet	(século	19),	como	
uma	mulher	do	povo,	que	lutava	para	defender	a	soberania	de	seu	
rei:	
A	 paroquiana	 de	 Domrémy	 levara	 a	 palavra	 do	 povo.	 Dando	 o	
exemplo	da	devoção,	convidando	à	penitência,	para	lavar	o	reino	
do	pecado	que	o	conspurcara,	ela	dissera	o	que	o	povo	pensava	
da	função	real	e	do	Estado,	que	deviam	permanecer	sob	estreito	
controle	do	poder	divino.	E	dissera-o	tão	bem	que	sua	breve	pas-
sagem	teve	espantosas	conseqüências.	Ela	pereceu.	Mas	por	seu	
intermédio	o	milagrebruscamente	se	dera.	Dissipando	o	desânimo,	
o	milagre	 invertera	o	 curso	das	 coisas	humanas,	desencadeando	
um	movimento	profundo	que	o	 suplício	não	pode	 conter,	 e	que	
em	poucos	anos	levou	à	total	 liberação	do	reino	e	à	expulsão	do	
ocupante.	Joana	unira	a	França.
8. RECONSTRUÇÃO POLÍTICA DA EUROPA NOS SÉCU-
LOS 14 E 15
Resta-nos	refletir	sobre	a	construção	dos	Estados	territoriais	
nos	séculos	14	e	15.	Pairam	dúvidas	sobre	essa	questão.	Não	há	
consenso	sobre	a	existência,	naqueles	séculos	de	crise,	de	um	apa-
rato	administrativo	centralizado	e	desenvolvido	que	pudesse	ser	
considerado	um	Estado.	Também	cogita-se	a	possibilidade	de	que	
já	 estivesse	 ocorrendo	 naquele	 período	 a	 gestação	 dos	 Estados	
Absolutistas.	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
202
Um	Estado,	 no	 sentido	dado	pelos	 sociólogos	 e	 retomado	
pelos	historiadores,	resulta	da	conjunção	de	alguns	fatores	impor-
tantes:	
•	 delimitação	territorial,	com	fronteiras	bem	definidas;	
•	 população	que	reconhece	o	pertencimento	àquele	terri-
tório	específico;	
•	 governo	que	tem	o	monopólio	do	exercício	da	violência	
física	 legítima	e	que	é	 responsável	pela	arrecadação	de	
impostos	 (que	teriam	como	objetivo	a	promoção	da	or-
dem	pública	e	do	bem	comum).	
A	forma	como	essas	questões	são	vistas	pela	historiografia	é	
que	encaminhará	a	reflexão	sobre	a	emergência	dos	Estados	nos	
séculos	14	e	15.	Apresentaremos	agora	dois	posicionamentos	so-
bre	essa	questão.	
Formação dos Estados Modernos segundo Perry Anderson
A	perspectiva marxista	enfatiza	que	os	séculos	14	e	15,	mar-
cados	pela	crise,	deram	origem	aos	Estados	Absolutistas	do	sécu-
lo	16.	Esse	é	o	posicionamento,	por	exemplo,	de	Perry Anderson	
(1985,	p.	15),	para	quem:
A	 longa	 crise	da	economia	e	da	 sociedade	européias	durante	os	
séculos	XIV	e	XV	marcou	as	dificuldades	e	os	limites	do	modo	de	
produção	feudal	no	último	período	da	Idade	Média.	Qual	foi	o	re-
sultado	político	final	das	convulsões	continentais	dessa	época?	No	
curso	do	século	XVI,	o	Estado	absolutista	emergiu	no	Ocidente.
As	monarquias	absolutistas	teriam	introduzido	os	exércitos	
regulares,	uma	burocracia	permanente,	um	sistema	tributário	na-
cional	e	a	codificação	do	direito.	Além	disso,	teriam	dado	início	à	
unificação	de	mercado.	
Portanto,	pode-se	dizer	que	há	um	Estado	quando	este	vem	
acompanhado	pelo	 capitalismo	 como	 sistema	econômico,	ou,	 se-
gundo	os	marxistas,	como	modo	de	produção.	Tornou-se	essencial	
para	os	debates	historiográficos	dessa	corrente	compreender	o	que	
levou	à	passagem	do	feudalismo	ao	capitalismo.	Assim	seria	possí-
vel	dimensionar	de	forma	mais	exata	a	emergência	do	Estado.	
203© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
Entretanto,	 Anderson	 aponta	 que	 a	 política	 e	 a	 economia	
permaneceram	dominadas	pela	mesma	classe	durante	o	início	da	
Idade	Moderna,	 ainda	que	 tenham	passado	por	 transformações	
profundas.	Para	ele,	o	Estado	Absolutista	foi	mais	uma	roupagem	
da	dominação	da	aristocracia	feudal	sobre	o	campesinato:
O	Estado	absolutista	nunca	foi	um	árbitro	entre	a	aristo-
cracia	e	a	burguesia,	e	menos	ainda	um	instrumento	da	
burguesia	nascente	contra	a	aristocracia:	ele	era	a	nova	
carapaça	política	de	uma	nobreza	atemorizada	(ANDER-
SON,	1985,	p.	16).	
Estaríamos	diante	da	apresentação	de	uma	longa	Idade	Mé-
dia,	que	só	terminaria,	de	fato,	com	a	Revolução	Francesa	e	com	a	
tomada	do	poder	pela	burguesia?	Vejamos	outra	linha	de	pensa-
mento	sobre	o	tema.
Formação do Estado Moderno segundo Jérôme Baschet
Jérôme	Baschet	(2006,	p.	268-269)	é	categórico	ao	afirmar	
que,	ainda	que	o	poder	monárquico	tenha	se	fortalecido	ao	longo	
dos	séculos	14	e	15,	não	se	pode	atribuir	às	monarquias	feudais	os	
atributos	dos	Estados	Modernos.	
Em	 resumo,	 a	 relação	 de	 força	 entre	 a	monarquia,	 a	
aristocracia	e	a	 Igreja	é	 tal	que	parece	aventureiro	 fa-
zer	 renascer	 o	 Estado	 no	 Ocidente,	 na	 acepção	 do	
termo	 retida	 aqui	 [sociologia	 de	Max	Weber	 e	 Pierre	
Bourdieu],	antes	do	século	XVII,	no	melhor	dos	casos.	
Durante	a	Baixa	Idade	Média	existe	um	reforço	dos	po-
deres	monárquicos,	mas	este	ainda	está	longe	de	levar	
à	constituição	dos	Estados	europeus.	Mesmo	a	afirma-
ção	veemente	da	idéia	de	Estado,	sob	a	forma	de	uma	
soberania	real	absoluta,	não	pressupõe	a	existência	do	
Estado;	ela	apenas	dá	a	medida	dos	esforços	realizados	
para	fazê-lo	advir.
Baschet	(2006)	retoma,	em	sua	obra,	a	tese	de	Kantorowicz	
sobre	os	dois corpos do rei.	Segundo	ele,	no	século	14	houve	o	
desenvolvimento	de	rituais	ligados	à	figura	do	rei,	relacionados	à	
efígie	real	e	à	doutrina	jurídica	dos	dois	corpos	do	rei.	Os	cadáve-
res	reais	passaram	a	ser	substituídos,	nos	funerais,	por	uma	efígie	
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
204
que	portava	as	vestes	e	as	insígnias	reais.	“Quanto	ao	corpo	natu-
ral,	este	era	enterrado	despido	ou	seminu”	(RUBIM,	2010,	p.	157)	
Com	isso,	defendia-se	a	ideia	de	que	o	rei	vivo	era	a	união	de	
um	corpo	físico	e	mortal	com	um	corpo	político.	O	corpo	político	
"encarnava"	no	corpo	físico,	e	permanecia	imortal.	
Esses	rituais	tinham	por	meta	assegurar	a	continuidade	di-
nástica	do	poder	real	e	foram	associados	à	fórmula	forjada	a	pro-
pósito	da	morte	de	Carlos	VIII,	em	1498:	"O	rei	está	morto,	viva	o	
rei!".	O	corpo	político,	que	não	morria	e	era	saudado,	era	a	"coroa"	
ou	o	"reino",	enquanto	o	corpo	físico	do	rei	se	esvaecia.
Portanto,	para	Jérôme	Baschet	(2006),	ainda	que	se	desen-
volvessem	novos	rituais	régios	e	que	houvesse	a	ascensão	de	trata-
dos	preocupados	com	a	arte de governar (os	chamados	"Espelhos	
de	príncipe”),	não	se	pode	atribuir	àqueles	governos	as	caracterís-
ticas	de	Estados	na	acepção	do	período	moderno.	
	Baschet	 (2006,	p.	274)	não	associa	o	Estado	Absolutista	a	
uma	nova	roupagem	da	dominação	da	aristocracia	 feudal,	como	
fizera	Perry	Anderson	(1985).	No	entanto,	ele	não	deixa	de	consi-
derar	a	conquista	da	América,	por	exemplo,	como	um	movimento	
que	expande	a	civilização	feudal,	promovendo	o	deslocamento	do	
Ocidente	rumo	à	América,	sem	que	fossem	alteradas	as	estruturas	
daquele	sistema:
Existe,	então,	uma	continuidade	entre	o	desenvolvimento	da	Idade	
Média	Central	e	a	dinâmica	reencontrada	no	fim	da	Idade	Média,	
de	modo	que	o	elã	que	conduz	à	Conquista	das	Américas	é	funda-
mentalmente	o	mesmo	que	aquele	que	vemos	em	marcha	desde	
o	século	XI.	A	colonização	ultra-atlântica	não	é	o	resultado	de	um	
mundo	novo,	nascido	sobre	o	húmus	em	que	se	decompõe	uma	
Idade	Média	agonizante.	Para	além	das	transformações,	das	crises	
e	dos	obstáculos,	é	a	sociedade	feudal,	prosseguindo	a	trajetória	
observada	desde	a	aurora	do	segundo	milênio,	que	empurra	a	Eu-
ropa	para	o	mar.
205© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
9. TEXTO COMPLEMENTAR
O	texto	a	seguir	trata	de	uma	temática	muito	interessante:	
a	morte.	É	 interessante	o	fato	de	que	esse	tema	tenha	ganhado	
maior	atenção	apenas	com	a	Escola	dos	Annales	e	a	 inclusão	de	
novos	objetos	na	pesquisa	histórica.	A	leitura	desse	texto	contri-
buirá	bastante	para	o	aprofundamento	das	 reflexões	 sobre	esse	
tema	fundamental.
Aproveitamos	para	agradecer	ao	professor	Ricardo	da	Costa,	
que	gentilmente	nos	autorizou	a	utilizar	o	texto.	
A Morte e as Representações do Além na Idade Média: 
Inferno e Paraíso na obra Doutrina para crianças (c. 1275) de 
Ramon Llull –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Figura	1	A serena morte de Santa Elisabeth da Turíngia (1207-1231) (FR	2813)	fol.	269v.	
Grandes	Chroniques	de	France.	France,	Paris,	XIV	e	s.	(60	x	65	mm)	
A morte nos faz cair em seu alçapão, 
É uma mão que nos agarra 
E nunca mais nos solta. 
A morte para todos faz capa escura, 
E faz da terra uma toalha; 
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
206
Sem distinção ela nosserve, 
Põe os segredos a descoberto, 
A morte liberta o escravo, 
A morte submete rei e papa 
E paga a cada um seu salário, 
E devolve ao pobre o que ele perde 
E toma do rico o que ele abocanha. 
(Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII, 1996: 50, vv. 
361-372) 
Nascemos, vivemos e morremos. Esta é uma certeza, uma verdade a-histórica, 
universal e comum a todas as culturas ditas humanas que já existiram, existem 
e ainda existirão na face da Terra. Outra característica humana é que sempre 
pensamos e refletimos sobre a finitude da vida, sempre estivemos perplexos 
com a morte. 
A morte. Ela iguala a todos, ricos e pobres, homens e mulheres. Para além dela, 
o Além: ele é um mistério, uma incerteza, um tabu (RODRIGUES, 1983: 17). 
Essa herança milenar sofreu um rude golpe com a modernidade. Hoje, nossa 
sociedade, dita ocidental, cada vez mais tenta prolongar a vida, não envelhecer, 
se distanciar da morte, e principalmente não pensar nela, esquecê-la. Afinal, to-
dos os mitos foram destruídos e pisoteados, apesar de a brevidade da existência 
ter sido reafirmada. Hoje afirma-se que após o “sono eterno” há o nada, o ani-
quilamento. Resta então viver a vida, gozar os prazeres dos sentidos corporais. 
Hoje há uma crise, crise de paradigmas metafísicos. Hoje, sobretudo no mundo 
ocidental, muitos morrem mentalmente jovens e não pensam sobre o sentido de 
nossa existência. 
Porém, os atuais movimentos populares religiosos, também uma permanência 
ao longo da história humana (DELUMEAU, 1997), reciclam as preocupações 
com o além e com o destino das almas dos homens. Sabemos que a crença 
ou a descrença no Além modifica o comportamento humano. Quando não se 
acredita numa outra vida há um determinado tipo de atitude diante situações 
do cotidiano; quando se acredita também, especialmente quando o tempo em 
questão é a Idade Média ocidental (OEXLE, 1996: 28). Nesse período, o mundo 
era considerado um local de combate contra o Diabo, um combate pela salvação 
da alma (LE GOFF, 2002: 22). São elementos (mentais) interferindo em ações 
(materiais), aspectos culturais e, sobretudo, religiosos, que alteram e modificam 
o comportamento social. 
E depois da morte? O que há? O que já pensamos a respeito? A Idade Média foi 
rica nesse campo subjetivo. Criou imagens que forjaram nossa cultura ocidental 
(ARIÈS, 1989: 65) e muitos de nossos conceitos, especialmente os espaciais. 
Essa geografia do além, como já foi chamada (LE GOFF, 1993), delimitou nosso 
imaginário, circunscreveu nossas atitudes, ocupou nossos sonhos e pesadelos 
(PATLAGEAN, 1993: 291-318), enfim, inundou os corações de milhares de ho-
mens, pelo menos desde que Agostinho (354-430) interpretou o sonho de sua 
mãe Mônica (COSTA, 1995: 21-35). 
Na Idade Média a morte era o grande momento de transição. Transição funda-
mental, das coisas passageiras para as eternas. Praticamente ausente na icono-
grafia medieval (LE GOFF, 1984, vol. II: 325) – como as crianças (COSTA, 2002: 
13-20) – a morte era um rito de passagem. Ela era aguardada no leito de casa. O 
207© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
moribundo deveria ficar deitado de costas porque assim seu rosto estaria voltado 
para o céu (ARIÈS, 1989: 22). 
A morte era uma grande cerimônia pública, um ritual compartilhado por toda a 
família, por todos da casa. Os medievais sabiam de sua chegada, pressentiam 
sua vinda, tinham visões que anunciavam sua morte (DUBY, 1986: 80-83). Pre-
monições. Assim, tinham tempo para preparar seu ritual coletivo. 
Pois ninguém morria só. A morte era uma festa, momento máximo do convívio 
social (DUBY, 1990: 65-66). Todos deveriam acompanhar a passagem do mori-
bundo para o além, inclusive as crianças (ARIÈS, 1989: 24). Lágrimas e choro 
apenas por parte das mulheres: elas deveriam ficar perto do corpo e gritar, rasgar 
as vestes, arrancar os cabelos. Era sua função pública (DUBY, 1997: 20-21). 
Seu gemido era um gemido ritual. Elas eram agentes essenciais do rito funerário 
(LE ROY LADURIE, s/d: 282), um antigo ritual que era uma fruição, uma chegada 
lenta e regrada. Era mesmo um prelúdio, a mudança para um estado superior 
(DUBY, 1987: 10), caso aquela alma fosse agraciada por Deus. Portanto, a pre-
ocupação, a angústia maior, não era com a morte e sim com a salvação da alma 
(LE ROY LADURIE, s/d: 289). 
I. A morte do usurário
Figura	2	A morte do Usurário e do Mendigo.	Gautier	de	Coincy	(1177-1236).	La	Vie	et	les	
miracles	 de	 Notre-Dame.	 França	 (c.	 1260-1270).	 In:	 VORONOVA,	 Tamara	 e	 STERLIGOV,	
Andréï.	Manuscrits	 enluminés	 ocidentaux	 VIII-XVI	 siècles	 à	 la	 Bibliotèque	 nationale	 de	
Russie	de	Saint-Pétersbourg.	England/Russie:	Edits.	D'Art	Aurora/Parkstone,	1996,	p.	69.
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
208
Dois momentos distintos: a morte do usurário e do mendigo. Inversão de papéis, 
subversão social que o cristianismo sugere para o Além: em seu leito de morte, 
com sua pobre e tosca coberta, em seu leito de morte o pobre vislumbra a Virgem 
e os Santos (acima à direita). A seguir, abaixo, à direita, o clérigo que o assistiu, 
agradece à Virgem pela graça concedida. Por sua vez, o usurário (acima, à es-
querda), coberto por uma fina estampa xadrez, com um rico travesseiro colorido 
a lhe amparar a cabeça e cercado pelos que aguardam sua morte para serem 
agraciados com seus bens, é levado por três diabos (abaixo, à esquerda), um 
deles negro, para as profundezas do Inferno. Os diabos causam tanto desregra-
mento ao corpo social que o contorno de seus corpos ultrapassa as linhas do 
quadro. Por fim, há dois tempos distintos: enquanto o usura ainda está sendo 
levado pelo diabo, o mendigo já partiu para o Paraíso. A recompensa pela vida 
virtuosa vem mais rápida; a punição pela vida pecaminosa é sempre lenta, como 
deve ser o suplício.
Um dos temas mais recorrentes na iconografia medieval a respeito da morte foi 
a morte do usurário. Maldito entre os malditos, pecador entre os pecadores, o 
usurário era o exemplo dos exemplos para moralizar o cristão. Jacques de Vitry 
(† 1240) nos conta: 
Um outro usurário riquíssimo, começando a lutar contra a morte, pôs-se a afligir, 
a sofrer e a implorar à sua alma para que esta não o deixasse, pois ele a havia 
satisfeito, e lhe prometia ouro, prata e as delícias deste mundo se ainda quisesse 
ficar com ele. Mas que ela não lhe pedisse, em seu favor, dinheiro nem a menor 
esmola para os pobres. Vendo, enfim, que não a podia reter, se encoleriza e, 
indignado, lhe diz:
“Preparei-lhe uma boa residência com abundância de riquezas, mas você se 
tornou tão louca e tão miserável que não quer repousar nessa boa residência. Vá 
embora! Eu a entrego a todos os demônios que estão no Inferno.” Pouco depois 
entregou o espírito nas mãos dos demônios e foi enterrado no Inferno (Citado em 
LE GOFF, 1989: 13).
A morte do usurário foi sempre tema para os moralistas medievais. Os pregado-
res do século XIII utilizavam a usura para lembrar aos vivos o momento da morte 
e a existência do Inferno, como este exemplo de Ramon Llull (1232-1316): 
Uma vez aconteceu que um usurário fez seu testamento e não se arrependeu de 
seus erros, pelo contrário, deixou tudo o que tinha a um filho que muito amava, 
mas que tinha grande prazer com a morte de seu pai. O filho daquele usurário 
viveu longamente. Um dia aconteceu que ele lembrou o quanto seu pai fora usu-
rário, o quanto lhe havia deixado tudo o que tinha e como ele havia tido grande 
prazer com a morte de seu pai.
Aquele homem esteve muito tempo nesta consideração, e maravilhou-se forte-
mente de seu pai ter mais amado entrar no Inferno que deserdá-lo e maravilhou-
-se consigo mesmo por ter tido prazer com a morte de seu pai que tanto o amava. 
Tão longamente esteve nesta consideração que percebeu que seu pai o havia 
amado loucamente, e que Deus o punira, fazendo com que seu filho o odiassee amasse mais os bens que lhe deixou do que a vida e a salvação de seu pai. 
(RAMON LLULL. Félix ou o Livro das Maravilhas, Livro VIII, cap. 48)
209© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
Figura	3	Hieronymus Bosch (c. 1450-1516). A Morte e o Avarento (c. 1490).	Óleo	na	madeira	
(93	x	31	cm)	-	National	Gallery	of	Art,	Washington.	Apesar	de	pertencer	a	outro	tempo,	
Bosch	 olha	 para	 trás	 e	 retrata	 temas	medievais,	 embora	 com	 perspectiva	 distinta.	 Na	
cena,	um	anjo	suplicante	(à	direita)	intercede	junto	à	luz	de	Cristo	pela	alma	do	avaro	que,	
mesmo	em	seu	leito	de	morte,	recebe	de	um	monstro	o	lucro	sujo	de	sua	usura.	Repare	na	
face	macilenta	da	morte,	vestida	de	branco	e	portando	uma	fina	seta,	e	nos	estranhos	seis	
seres	que	espreitam	a	cena,	desde	o	anjo	maléfico	de	negro	acima	da	capa,	até	o	homem-
rato	que	 recebe	a	moeda	do	contador	do	usurário	no	cofre.	Observe	que	mesmo	com	
todo	o	ambiente	sinistro	da	pintura,	ainda	há	esperança	para	o	avaro,	coisa	 impensável	
trezentos	anos	antes.	
Duas imagens significativas (figuras 2 e 3): da morte do usurário do século XIII 
para a do avarento do século XV há um abismo conceitual imenso, em que pese 
a permanência do tema. Observe: na pintura de Bosch um anjo de Deus in-
tercede pelo usurário impenitente. Por quê? O pintor quer reabilitar a riqueza? 
Enquanto a pobreza é elevada na iluminura do século XIII e o rico usurário não 
tem outro destino senão o Inferno, no século XV Bosch destaca a intervenção 
angélica pela alma do usurário, isto é, existe a possibilidade de ele ser salvo 
mesmo sendo impenitente, mesmo ainda recebendo seu lucro no leito de morte. 
Além disso, Bosch ressalta a figura macilenta da Morte, seguindo a tradição de 
seu tempo, fascinado pela Dança Macabra. 
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
210
São atitudes diferentes diante do lucro. Por outro lado, no século XIII a morte é 
coletiva: usura e mendigo estão cercados – o segundo por santos e pela Virgem. 
Já o avaro de Bosch tem apenas seu contador. Está só. Apesar de colocá-lo 
cercado de figuras diabólicas, Bosch faz o espectador olhar para o alto, para o 
Cristo e Seu delicado feixe de luz. Portanto, na pintura de Bosch há um fio de 
esperança para o usurário impenitente, há espaço para seu perdão. No século 
XIII, século do cristianismo, isso seria inimaginável (LE GOFF, 1989). 
Assim, a morte na Idade Média era uma agonia apenas para o usurário. Ela era 
temida porque era imprevisível, mas desejada pelo cristão quando anunciada, 
em sonhos ou visões. Ramon explica a seu filho o porquê do temor da morte e a 
necessidade (a virtude) de se temer a Deus: 
Filho, sabes por que a morte é temível? Porque não podes fugir dela e não sa-
bes quando ela te levará. Assim, se temes a morte, que não pode te matar mas 
somente teu corpo, temerás a Deus, filho, que pode colocar teu corpo e tua alma 
no fogo perdurável. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XXXVI, 9).
Naturalmente, essa era a morte no leito lenta e domesticada daquele que havia 
sobrevivido ao infanticídio, às intempéries da natureza, às doenças e às fomes. 
Mas havia também a morte na guerra, a morte antecipada, momento supremo do 
cavaleiro. Eles iam alegres, cantantes e ansiosos em direção à morte. Os trova-
dores nos contam da felicidade daqueles cavaleiros rudes quando da chegada 
da primavera e do momento do combate. 
Bertrand de Born (1159-1197) nos fala das flores e folhas coloridas, das aves que 
cantavam e dos cavaleiros que gritavam “Avante”: 
Digo-vos, já não encontro tanto sabor 
no comer, no beber, no dormir 
como quando ouço o grito “Avante!” 
elevar-se dos dois lados, o relinchar dos cavalos sem cavaleiros na sombra 
e os brados “Socorro! Socorro!” 
quando vejo cair, para lá dos fossos, grandes e pequenos na erva; 
quando vejo, enfim, os mortos que, nas entranhas, 
têm ainda cravados os restos das lanças, com as suas flâmulas. 
(citado em BLOCH, 1987: 307) 
Assim a Idade Média tratou da morte: um rito de passagem para a morada defi-
nitiva da alma, a derradeira peregrinação do homem-viajante medieval (ZIERER, 
2002). Tudo indica que o sentimento mais comum em relação a essa cerimônia 
é a palavra serenidade. Como o mundo dos vivos estava ligado ao dos mortos 
– e o papel dos mosteiros era exatamente o de interceder junto ao além pela 
sociedade terrestre – a morte era encarada com tranqüilidade e resignação. Paz. 
A morte então foi domesticada nas consciências (ARIÈS, 1989: 19-20). Pelo me-
nos na de cavaleiros e clérigos. A morte foi esperada e reconhecida (LAUWERS, 
2002: 243), até mesmo desejada. Foi preciso a Idade Média chegar a seu fim 
para que novas formas (negativas) de compreensão da morte tomassem conta 
dos espíritos, como, por exemplo, o conceito de macabro, a Dança da Morte 
Macabra, que tomou conta dos afrescos e das gravuras em madeira, e exprimia 
a profunda angústia dos tempos da Peste Negra e da Guerra dos Cem Anos 
(HUIZINGA, s/d: 145-157). 
211© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
Figura	4	Liber Chronicum, de Hartmann Schedel (séc. XV).	In:	Représentations	diverses	de	
la	mort	(Patrick	Pollefey)	
As ordens mendicantes tiveram seu papel na difusão dessa nova espiritualidade 
e concepção do além no século XIII. Os pregadores franciscanos e dominicanos 
lembravam às massas a corruptibilidade de todas as coisas. O cadáver putrefa-
to era a imagem preferida dos sermões. Carne associada ao pó e aos vermes 
(HUIZINGA, s/d: 145). 
Neste aspecto, a mensagem que Ramon Llull ensina a seu filho a respeito da 
morte é muito próxima da espiritualidade franciscana, além de muito contunden-
te: 
Filho, cogita na morte para que não sejas orgulhoso, 
pois a morte inclina o corpo a grande vileza, 
tornando-o impotente, e coloca-o sob a terra, 
fazendo-o comida de vermes e horrível de se ver, 
tocar e cheirar, tornando-o pó e cinza. 
(RAMON LULL. Doutrina para crianças, cap. LXXXVIII, 2). 
II. Da Morte para o Além
O que esperava o crente após sua ressurreição? Melhor perguntar assim: o que 
o crente acreditava que o aguardava no Além? Nessa viagem da alma, nes-
sa transposição de um mundo para outro (ZIERER, 2002), nessa passagem do 
mundo das imperfeições e das coisas corruptíveis para o mundo da perfeição e 
das coisas eternas e incorruptíveis, os homens imaginaram o Além de diferentes 
maneiras, muitos especialmente influenciados pelas leituras da Bíblia – especial-
mente pelo Novo Testamento (Mt 25, 31-46; Jo 5, 25-29; Lc 23, 43; 2 Co 12, 4; 
Ap 2, 7) (LE GOFF, 2002: 22). 
Adriana Zierer analisou estas imagens e concluiu que algumas percepções cons-
truídas nos livros apócrifos dos séculos II e III ajudaram a elaborar o imaginário 
cristão medieval do Além (ZIERER, 2002): 
© História Medieval II
 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
212
Quadro 1
Apocalipse 
de Baruch 
(séc. II)
Apocalipse 
de Esdras 
(séc. II)
Apocalipse 
de Pedro 
(séc. II) 
Apocalipse 
de Paulo 
(séc. III) 
IV Livro de 
Esdras(séc. 
II) 
Baruch vai 
ao céu, pede 
ao anjo que 
o guie até o 
Éden
Esdras vê 
uma cidade 
num vale 
cheia de 
coisas boas; 
sete anjos 
levam-no ao 
inferno. Ele 
desce 70 
degraus, vê 
portas arden-
tes e um rio 
de fogo com 
uma ponte 
onde caem 
os maus
Pedro vê os 
bem-aven-
turados na 
montanha 
sagrada; eles 
vivem num 
lugar luzen-
te, cheio de 
especiarias 
e plantas; 
há um rio de 
fogo com 
rodas de fogo 
para castigar 
os pecadores 
e mergulhá-
los
Anjos levam 
as almas dos 
justos, que 
repousam 
temporaria-
mente no 
Paraíso ter-
restre, onde 
corre um rio 
de leite e 
mel. Há sete 
castigos para 
os condena-
dos: sede, 
frio, calor, 
vermes, mau 
cheiro uma 
roda de fogo 
e um rio onde 
eles são afo-
gados
Os justos 
repousam de 
7 maneiras 
diferentes em 
um lugar si-
lencioso. Os 
maus serão 
castigadosde 
7 maneiras
Ao pensarem o Além, ao preocuparem-se com o pós-morte, os medievais torna-
ram a realidade transcendente: como o mundo dos vivos, o mundo material, era 
efêmero, era um mundo de aparências, era uma representação – uma imagem, 
uma idéia de algo (ABBAGNANO, 1998: 853) – a vida no mundo deveria voltar-
-se para o verdadeiro significado oculto por trás do véu da matéria. Esse sentido 
da vida humana era dado pelo mundo do Além. 
Assim, ao invés de buscarem na natureza um conjunto de regras e princípios, 
os medievais pretendiam sondar os mistérios das coisas, sua simbologia (PER-
NOUD, s/d: 160). Faziam isso para recordarem-se que o mundo foi criado num 
ato de amor, que funcionava por amor – o amor que move o Sol e as outras estre-
las (DANTE ALIGHIERI, 1998, canto XXXIII: 234) – e essa contemplação deveria 
orientar os espíritos de volta para Deus, salvando-os do Inferno. 
Para muitos, especialmente os neoplatônicos, o mundo sensível era apenas uma 
sombra, um indício, um caminho para se passar do sensível ao inteligível, da 
sombra para a luz (GREGORY, 2002: 265-266). Assim, a realidade encontrava-
-se justamente no Além (LE GOFF, 1984, volume II: 325). A verdade era que 
Inferno e Paraíso existiam e eram imutáveis e eternos; o mundo não. 
213© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
III. O Inferno
Figura	5	Dante. A Divina Comédia. O Inferno. Canto	XVIII.	MS.	Holkham	misc.	48	(formerly	
Norfolk,	Holkham	Hall,	MS.	514),	p.	27.	À	esquerda,	Dante	e	Virgílio	observam	no	oitavo	
círculo	 do	 Inferno	 (chamado	 de	 Malebolge	 -	 “maus	 bornais”’)	 os	 rufiões,	 sedutores,	
aduladores,	flageladores,	todos	golpeados	por	“diabos	chifrudos	com	relhos	grosseiros”	e	
imersos	em	esterco.
*
Ramon Llull termina seu livro Doutrina para crianças (c. 1275), dedicado a seu 
filho Domingos, com uma descrição do Inferno e do Paraíso. Na pedagogia me-
dieval, a lembrança do Além domesticava os espíritos, tornava-os mais serenos, 
mostrava-os que esse tempo era efêmero, que deveriam se preocupar com a 
salvação de suas almas. A educação pretendia oferecer uma base metafísica 
e moral, ocupando a mente e o coração da criança (D’HAUCOURT, 1994: 87). 
Ao descrever o Inferno para seu filho, Llull dá pistas interessantes para o histo-
riador. Sua geografia infernal é bem hierarquizada. Logo de início ele divide o 
Inferno em quatro espaços: 
O Inferno está no meio de um lugar que fica dentro do coração da Terra. Tal lugar 
é trancado e fechado, e ali existe pena por todos os tempos. Esta pena acontece 
em quatro lugares: o Inferno, onde estão os danados que nunca sairão; o Inferno 
chamado Purgatório, onde o homem cumpre penitência pelas coisas que não 
cumpriu neste mundo; o terceiro Inferno, chamado Abraão, lugar onde entra-
ram os profetas que viveram antes do Filho de Deus ser encarnado, e o quarto 
Inferno, onde entraram as crianças que não foram batizadas. (RAMON LLULL, 
Doutrina para crianças, cap. XCIX, 1) 
Nesta descrição geográfica mesclam-se o novo e o antigo. O Purgatório é a gran-
de novidade: em 1254 este novo lugar do Além já havia sido objeto de definição 
por parte do papa Inocêncio IV (LE GOFF, 1993: 329-330). O terceiro inferno, 
Abraão, recebe este nome devido a uma passagem bíblica, a história do mau 
rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31). Ali encontra-se a expressão judaica “seio 
de Abraão”, que corresponde à locução bíblica “reunir-se a seus pais” (Jz 2, 10; 
Gn 15, 15; 47, 30; Dt 31, 16). 
Na história contada por Jesus, o pobre morre e é levado pelos anjos ao seio de 
Abraão; o rico é enterrado e vai para a “mansão dos mortos”. Ali, “em meio a tor-
mentos”, o rico vê Abraão e Lázaro, e pede água para refrescar a língua. Abraão 
lhe diz que ele era rico e Lázaro pobre, agora, no Além, Lázaro é consolado e ele 
atormentado. Além do mais, há um “grande abismo” entre o paradisíaco seio de 
Abraão e a mansão dos mortos (Lc 16, 23-26), e quem está do lado infernal pode 
ver o que perdeu, aumentando ainda mais o seu sofrimento. 
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Assim, na Bíblia, o seio de Abraão é um lugar próximo do Paraíso. O mesmo 
sucede com o cristianismo primitivo. Em sua Vida de São Martinho (séc. IV), 
Sulpício Severo tem duas passagens onde comenta o enterro de São Martinho 
de Tours (c. 316-397): 
Após essas palavras, ele (Martinho) viu o diabo à suas costas. “Por que estais aí 
besta sangrenta?”, disse ele, “Tu não acharás nada em mim, maldito, pois o seio 
de Abraão me acolhe” (...) Martinho é aplaudido pelos salmos divinos; Martinho 
é honrado pelos hinos celestes; aqueles lá (do mundo) serão precipitados após 
seus triunfos (nesse mundo) dentro do cruel Tártaro; Martinho é acolhido alegre-
mente no seio de Abraão; Martinho, pobre e modesto, penetra rico no céu. De lá, 
espero, ele nos protege (SULPÍCIO SEVERO, 1967, vol. 1: 343 e 345). 
No entanto, essa tradição sofreu uma mudança geográfica com o passar do tem-
po. Por exemplo, no final do século XII, aquela passagem bíblica foi reinterpre-
tada por Pedro, o Devorador (†1179), discípulo de Pedro Lombardo († 1160), 
chanceler da Igreja de Paris, professor de Notre-Dame de 1159 a 1179. Em sua 
Historia Escolástica ele nos conta: 
Lázaro, diz ele, foi colocado no seio de Abraão. Estava com efeito na zona supe-
rior do lugar infernal, onde há um pouco de luz e nenhuma pena material. Era aí 
que estavam as almas dos predestinados, antes da descida do Cristo aos infer-
nos. A esse lugar, por causa da tranqüilidade que nele reina, chamou-se seio de 
Abraão, como chamamos o seio materno. Deu-se-lhe o nome de Abraão porque 
ele foi a primeira via de fé (citado em LE GOFF, 1993: 190). 
Pedro, o Devorador foi um dos criadores do Purgatório como lugar determinado 
– ao lado de Odon d’Ourscamp (†1171). Assim, Ramon Llull mantém a tradição 
bíblica do “seio de Abraão”, mas coloca-o como um dos lugares do Inferno ao 
lado do novo espaço, o Purgatório, além do limbo das crianças que não foram ba-
tizadas (ROQUER, 1960: 841). O seio de Abraão seria então o lugar das espera 
dos justos. Nas palavras de Le Goff, o seio de Abraão foi “primeira encarnação 
cristã do Purgatório.” (LE GOFF, 1993: 61), próximo do Paraíso (para o cristianis-
mo primitivo) ou no Inferno (no século XIII). De qualquer modo, as concepções 
espaciais dos cristãos medievais em relação ao Além eram mesmo muito contra-
ditórias (GURIÉVITCH, 1990: 112). 
Bem, estas divisões que Llull cria para o Inferno tentavam responder a uma im-
portante questão para os teólogos medievais: como coordenar a eternidade com 
o tempo? Mais precisamente: o que acontece com os profetas que viveram antes 
de Cristo, se Ele é a única fonte de salvação e redenção? Estariam salvos mes-
mo tendo vivido antes da vinda redentora de Jesus? 
Se a resposta fosse afirmativa, criar-se-ia o seguinte problema: Cristo redimiu 
os homens no tempo; se os homens que viveram antes de Cristo estão redimi-
dos antes de Sua encarnação, Ele então encarnou-Se no tempo desnecessaria-
mente. Assim, os medievais, Llull inclusive, responderam não: os profetas que 
viveram antes da vinda de Cristo deveriam aguardá-Lo em um espaço infernal 
chamado Abraão. Somente após o retorno de Cristo e sua descida aos infernos 
para resgatá-los eles poderiam ir para o céu. Llull segue então a tradição judaico-
-cristã: 
Amável filho saiba e creia que quando a alma de Nosso Senhor Deus Jesus 
Cristo deixou Seu corpo morto na cruz, incontinenti desceu aos infernos e vendo 
Adão, Abraão e os outros profetas e santos, arrancou-os à força dos demônios e 
de sua prisão e colocou-os na Glória Celestial que não terá fim. No momento que 
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Adão viu chegar seu Senhor e Seu Criador para livrá-los dos trabalhos e da dor 
onde estiveram cinco mil anos, disse: ‘estas são as mãos que me criaram e me 
formaram e este é o Senhor queSe lembrou de nós em Sua Glória.’” (RAMON 
LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 3) 
A descida de Cristo aos Infernos foi popularizada na Idade Média pelo apócrifo 
Evangelho de Nicodemo (LE GOFF, 1993: 63). É possível que Llull tenha conhe-
cido essa versão. Para que seu filho imagine as penas infernais, Llull utiliza a 
analogia, típica forma de pensar da Teologia (ROQUER, 1960: 764) e da Idade 
Média - se pensava que a lei de criação fora a analogia (GURIÉVITCH, 1990: 
80). Como se sabe, o raciocínio é analogante na medida em que conclui em 
virtude de uma semelhança entre os objetos sobre os quais raciocina, objetos 
que são diferentes, embora estes se assemelhem sob algum aspecto, ponto de 
partida da analogia. Analogia é uma síntese da semelhança e da diferença. 
Mas o que é mais importante é que a analogia se refere a um conceito, de modo 
que se uma das coisas significadas pelo conceito está ao nosso alcance e a outra 
não, pode-se conhecer a segunda pela primeira, como por um espelho. 
Naturalmente, no caso em questão, o filho de Llull não tinha conhecimento das 
representações do Inferno e do Paraíso. Assim, para demonstrar o espaço do 
Além, o filósofo se vale inicialmente da imagem do mar. O Inferno é como um 
mar borbulhante e cheio de fogo ardente, com grandes peixes que devoram os 
homens. 
Llull pede ao filho que imagine “... os gritos, as vozes e o pavor daqueles homens 
que não poderão se defender daqueles peixes, dragões infernais, dos quais não 
se poderá fugir.” (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 2). Imersos 
nessa água borbulhante, os danados, como os legumes no óleo fervendo, senti-
rão muita dor (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 4). A porta do 
Inferno é como a boca de um dragão, cheia de dentes: pecadores e infiéis nunca 
cessam de cair ali (XCIX, 5). 
Do mar para o fogo. A segunda analogia relaciona as penas infernais com o fogo. 
A fornalha onde cozinham o pão e onde moldam o vidro, o chumbo, o ouro e a 
prata. A vida cotidiana do ferreiro serve de motivo para que Llull peça ao filho 
para imaginar o pavor dos homens no inferno: 
Filho, para que tenhas temor do fogo infernal que dura todo o tempo, vê a forna-
lha onde fazem o vidro e o forno onde cozinham o pão, e considera estar uma 
hora naquele fogo (...) Quando vires fundir o chumbo, o ouro e a prata, imagina 
um buraco cheio de chumbo ou ouro fundido. Se tu estivesses na boca desse 
buraco, terias pavor quando te ligassem as mãos e os pés e o colocassem em 
um saco, amarrando uma grande pedra em teu colo e te jogando no buraco. 
Logo, tenhas pavor, filho, desse fosso cheio de ouro e prata fundida, onde estão 
os homens que por ouro e prata perderam a glória de Deus. (RAMON LLULL, 
Doutrina para crianças, cap. XCIX, 7-8) 
Os diabos devoram os homens no Inferno. Como seu filho pode imaginar isso? 
Llull recorre à imagem dos cães devorando a carniça: 
Quando fores para fora dos muros da cidade e encontrares as bestas mortas 
que o homem expulsa para o vale, verás muitos cães, grandes e pequenos, que 
roerão aquelas bestas, as orelhas, os olhos, a cara, os braços e as pernas, e 
entrarão do ventre e roerão teus ossos e comerão teu coração e tuas entranhas, 
então é certo, filho, que cogites nos infernados, que estarão pelos campos e vi-
rão os demônios semelhantes aos cães, leões e serpentes, e morderão aqueles 
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homens, suas cabeças, seus braços e seus membros e não poderão morrer nem 
escapar daquela pena. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 10) 
Hoje todas essas descrições do Inferno e do sofrimento dos condenados pare-
cem muito aterrorizantes para serem incutidas na mente de uma criança com 
cerca de dez anos. Mas na educação do século XIII, a lembrança das penas 
infernais era um bom motivo pedagógico para que as crianças aprendessem 
que deveria amar a Deus acima de tudo, que deveria fazer as coisas tendo Deus 
como primeiro motivo (SANTANACH I SUÑOL). 
Pois para as mentes do século XIII, amor e temor caminhavam juntos: mesmo o 
bom príncipe deveria ter como primeira virtude o temor, o temor a Deus; mesmo 
a sabedoria estava entrelaçada com o temor (VILLALBA, 2002). Assim, era muito 
natural que se enfatizasse o caráter punitivo de Deus - deve-se levar em conta 
também o caráter moral e catequético da obra Doutrina para crianças. 
IV. O Paraíso
Figura 6 Dante. A Divina Comédia. O Paraíso. Canto XXXIII. MS. Holkham misc. 
48 (formerly Norfolk, Holkham Hall, MS. 514), p. 147. São Bernardo (à esquerda) 
pede à Virgem que fortaleça a visão de Dante para que ele possa ter a visão da 
imagem de Deus. Dante (à esquerda, abaixo) vislumbra-O por um instante como 
a representação da Trindade (três círculos de cores), cercado por um exército 
de anjos. 
Ao iniciar e findar o último capítulo da Doutrina para crianças, sobre o Paraíso, 
Ramon Lull diz a seu filho que suas mãos não podem escrever toda a glória do 
Paraíso (C, 1) e que quanto mais fala da glória celestial, mais percebe sua inca-
pacidade de contar e significar a glória do Céu (C, 11). Humildade. Mas além des-
sa virtude tipicamente cristã e medieval, ele também mostra assim a dificuldade 
humana de conceber o puro deleite espiritual da contemplação divina, dificuldade 
também encontrada por Dante – e magnificamente resolvida. 
Após esse mea culpa resignado, Llull inicia o tema com as faculdades intelec-
tivas da alma: no Paraíso, Deus demonstra-Se (em Sua Unidade, Trindade e 
Essência) à lembrança, ao entendimento e ao desejo da alma. Fica claro que 
a intelectualidade no paraíso luliano é importante para a elevação mística até 
Deus – a partir do século XII alguns intelectuais relacionaram os espaços celes-
tes com o intelecto, como, por exemplo, Honório de Autun e sua terceira esfera 
celeste intelectual (GURIÉVITCH, 1990: 94). As almas dos bem-aventurados têm 
suas capacidades estendidas e plenamente realizadas na trindade operacional 
da alma (os atos de lembrar, entender e desejar). Há uma complementaridade 
simbólica perfeita do número três: a Trindade de Deus integra-se com a trindade 
da alma e do corpo humano: 
217© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação?
Filho, se tu entrasses no Paraíso, teus olhos corporais veriam os corpos de Nos-
so Senhor Deus Jesus Cristo, teus olhos espirituais veriam a Sua alma, e teu en-
tendimento veria uma semelhança de Sua natureza com a da Deidade. (RAMON 
LLULL, Doutrina para crianças, cap. C, 4) 
Quando a alma cumpre sua finalidade - a glória de contemplar a Deus - se des-
lumbra encantada com o espetáculo das luzes que o rodeiam: 
Filho, verás Nossa Senhora Santa Maria diante de Nosso Senhor Deus Jesus 
Cristo, e verás uma procissão e uma fileira de todos os anjos, arcanjos, márti-
res, profetas, virgens, confessores e abades; e ouvirás que todos, com cantos 
de muito grande doçura, louvam e bendizem Nosso Senhor Deus, por todos os 
tempos, como Deus estará no céu e durará em Sua glória, perduravelmente sem 
fim. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. C, 5) 
O deleite celestial da visão completa-se com o da audição. Na contemplação do 
Paraíso, o eleito se deliciaria com a música dos astros bem-aventurados naquela 
procissão ao redor do Cristo – na iluminura do Paraíso de Dante (figura 6), a pro-
cissão é composta por anjos. Imaginar a música no Paraíso tem uma explicação: 
no século XIII entendia-se o universo como uma harmonia musical, cada estrela 
tinha seu próprio som, sua própria nota, pois o amor divino no momento da cria-
ção do mundo tornara-o uma perfeita sinfonia celeste – a harmonia das esferas 
celestes é descrita, por exemplo, por Honório de Autun, em sua obra De imagine 
mundi (séc. XII) (BOEHNER & GILSON, 2000: 278). 
Somado a esse resplendor, a esse espetáculo harmônico, o corpo seria glorifi-
cado com a liberdade total, liberdade de espaço, de movimento, deausência de 
qualquer necessidade: 
Amável filho, se entrares no Paraíso, terás teu corpo glorificado, pois nunca mor-
rerás, e estarás onde desejares estar, e passarás por qualquer lugar que de-
sejares; e imediatamente quando desejares estar num lugar, imediatamente lá 
estarás; serás mais brilhante que o sol; não terás fome, sede, calor, frio, dor ou 
qualquer paixão, e estarás todos os tempos nesta bem-aventurança que serás 
ainda muito maior (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. C, 7). 
Por fim, Llull faz uma interessantíssima analogia dessa bem-aventurança do Pa-
raíso com o jogo de xadrez! Para que seu filho imagine a grandiosidade da felici-
dade de poder contemplar Deus em Sua glória, ele pede que Domingos faça uma 
multiplicação com as casas do jogo de xadrez: 
Quando estiveres sentado diante o tabuleiro de xadrez, faça este cálculo: com-
para a primeira casa com toda a bem-aventurança deste mundo, na segunda co-
loca toda a bem-aventurança que existiria em dois séculos semelhantes a esse, 
e na terceira casa coloca toda a bem-aventurança de quatro mundos; e assim 
multiplica a bem-aventurança por todas as casas do tabuleiro; e quando as casas 
do tabuleiro não te bastarem, faz mais casas das estrelas do céu, das gotas de 
água do mar, dos grãos de areia e de todos os pontos que couberem entre o céu 
e a terra; e quando tudo isso não te bastares para multiplicar o número, pega 
todos os números que estiveram, estão e estarão no tempo pretérito, presente e 
futuro. Caso possas fazer isso, ainda assim não será o suficiente para comparar 
a glória de todos os séculos ditos acima com a glória do Paraíso, pois toda esta 
glória dita acima será finita, e a celestial Glória nunca terá fim. (RAMON LLULL, 
Doutrina para crianças, cap. C, 9) 
Na Idade Média o xadrez gozou de uma popularidade jamais igualada no futuro 
(LAUAND, 1988: 23). Com profundo sentido alegórico, a simbologia desse jogo 
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representava a guerra, a sociedade, a conquista amorosa (COSTA) e o drama 
moral do homem (LAUAND, 1988: 24). 
Tomando como ponto de partida o xadrez, Llull faz com que seu filho trilhe uma 
viagem imaginária, das casas do tabuleiro para o céu, para o mar, e finalmen-
te para o tempo (“todos os números que estiveram, estão e estarão no tempo 
pretérito, presente e futuro”). Além disso, a proposta de soma que Llull sugere a 
Domingos tem origem em uma antiga história indiana ligada à invenção do jogo 
de xadrez (por volta do século VI a.C.) – a exemplo das influências orientais já 
mapeadas quando da redação do Livro das Bestas (BONNER, 1989, vol. II: 13; 
COSTA). 
Antigas lendas ligam a invenção do xadrez a números astronômicos associados 
às casas dos tabuleiros. A título de exemplo, uma versão que circula ainda hoje 
diz que Sissa, brâmane indiano, inventou o jogo de xadrez para curar o tédio do 
rei Kaíde. Este ficou tão satisfeito com o presente que prometeu dar ao brâmane 
qualquer coisa que quisesse. Sissa pediu então um grão de trigo para a primeira 
casa do tabuleiro, dois grãos para a segunda, quatro para a terceira, oito para 
a quarta, sempre dobrando, até a casa sessenta e quatro – a mesma soma que 
Llull sugere ao filho no trecho da Doutrina para crianças para que imagine a bem-
-aventurança do Paraíso. 
O rei Kaíde ficou surpreso com um pedido que parecia tão humilde e concor-
dou. No entanto, quando foram feitas as contas, o rei viu que nem todos os 
tesouros da Índia juntos poderiam pagar o pedido de Sissa! O resultado da 
soma - associar 1 à primeira casa do tabuleiro, 2 à segunda, 4 à terceira, 8 à 
quarta, 16 à quinta, etc. – é um exemplo dos chamados números monstruosos: 
18.446.744.073.709.551.615. O tesoureiro do rei disse que seriam necessárias 
16.384 cidades, cada uma com 1.024 celeiros de 174.762 medidas e 32.768 
grãos em cada medida. A coroa teria que semear 65 vezes toda a terra para obter 
mais de dezoito quinquilhões de grãos de trigo! (MATTOS). 
Dessa forma, Llull se baseia naquele antigo conto indiano para sua projeção do 
Além, que tem como base o raciocínio. Sua capacidade de imaginar o Paraíso 
tem como eixo norteador o intelecto. Pelo contrário, sua percepção do Inferno é 
calcada basicamente nos sentidos corporais, nas dores do corpo do danado. Há, 
portanto, uma clara associação simbólica invertida nos dois textos: Inferno/senti-
dos corporais (coisas inferiores porque ligadas ao corpo) e Paraíso/capacidades 
intelectuais (coisas superiores porque ligadas às faculdades da alma). 
Conclusão
Na Idade Média a morte foi domesticada nos corações. Desejada pelos guerrei-
ros, aguardada pelos religiosos, temida por ser inesperada, a morte foi sentida 
como um rito de passagem para um outro mundo, o Além. Os medievais perce-
biam o Além como uma realidade: a Idade Média foi o tempo do Além. A preocu-
pação com o pós-morte foi uma constante em suas vidas. E de todos os homens, 
o usurário foi o contramodelo social escolhido para representar as opções da 
geografia do Além, qual a localização das vidas futuras dos crentes. Assim, o 
Além espelhou, em certa medida, todo o emaranhado imaginário de esperanças, 
de expectativas e de angústias de toda uma sociedade, daquela sociedade dita 
medieval. 
O dilema da finitude humana sempre fez parte do âmbito religioso; as religiões 
lidaram com a questão da morte e do Além. Da imagem da morte e suas re-
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presentações – um tema cheio de silêncios voluntários e involuntários (VOVEL-
LE, 1996: 18-19) – o Além é um espaço-espelho da sociedade que o imagina. 
Espaço-reflexo perfeito (Paraíso) mas também invertido (Inferno). Curiosamente 
há também uma inversão no espaço perfeito, pois no caso do cristianismo, no 
Paraíso “os últimos serão os primeiros” (Mt 20, 16) e as crianças estarão à frente 
dos adultos (Mt 18, 1-4). Tratava-se de uma proposta revolucionária, subversiva, 
pois alterava a hierarquia social que estruturava a sociedade. 
As representações do Além que Ramon Llull apresentou a seu filho têm dois 
importantes acréscimos ao imaginário medieval: as influências dos contos orien-
tais e o tema da intelectualidade ligado à contemplação divina. Ao ressaltar as 
faculdades intelectivas da alma, o beato maiorquino dá um passo em direção ao 
racionalismo, sem, no entanto, deixar de lado a espiritualidade mística de tons 
franciscanos tão característica da síntese realizada pelo seu tempo, o século 
XIII. Pensar o mundo dos mortos era a melhor forma de melhorar o dos vivos, 
de torná-lo mais semelhante aos desejos de Deus (adaptado de COSTA, 2011).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira,	a	seguir,	as	questões	propostas	para	verificar	o	seu	
desempenho	no	estudo	desta	unidade:
1)	 Com	base	em	seus	estudos	anteriores,	faça	uma	reflexão	sobre	a	importân-
cia	do	entendimento	dos	sistemas	de	produção	para	a	análise	do	sistema	
feudal	e	do	sistema	capitalista.	
2)	 Qual	foi	a	importância	da	fome	e	da	peste	para	a	crise	do	século	14?
3)	 O	que	foi	a	Guerra	dos	Cem	Anos?
4)	 Você	compreendeu	os	conceitos	de	desenraizamento	e	desparentalização?	
Resuma-os.
5)	 Como	foram	constituídos	os	Estados	Nacionais	no	século	14?
6)	 O	Estado	moderno,	tal	como	o	conhecemos,	é	uma	instituição	advinda	de	
uma	construção	histórica,	na	qual	repousam	os	pilares	de	nossa	sociedade.	
Diante	disso,	reflita:	que	contribuições	nos	traz	o	estudo	dessa	época?	Quais	
as	ligações	do	nascimento	do	Estado	moderno	com	o	modo	de	vida	da	so-
ciedade	contemporânea?	
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11. CONSIDERAÇÕES
Nesta	unidade,	acompanhamos	as	discussões	em	torno	dos	
temas	referentes	aos	séculos	14	e	15.	De	acordo	com	Johan	Huizin-
ga,	esse	período	foi	marcado	por	uma	crise	do	modo	de	produção	
feudal	e	daquele	modelo	de

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