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EA D Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? 6 1. OBJETIVOS • Apresentar e analisar o debate historiográfico em torno da "crise" do final da Idade Média. • Identificar as principais mudanças operadas nos cenários político, econômico e social a partir do estabelecimento dos Estados. 2. CONTEÚDOS • Crise do século 14. • Guerra dos Cem Anos (1337-1453). • Reconstrução política europeia do final do século 14. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 186 1) Se quiser se aprofundar um pouco mais sobre o pensa- mento de Ernest Kantorowicz, sugerimos a consulta à obra: • KANTOROWICZ, Ernest. Os dois corpos do rei: estudos sobre teologia política medieval. São Paulo: Compa- nhia das Letras, 1998. 2) O cineasta Ingmar Bergman usou o período medieval como tema de uma de suas mais brilhantes obras. Em O sétimo selo, há uma disputa de xadrez entre a morte e um homem que passara a questionar a existência de Deus. Ainda que esta não tenha sido uma preocupação do período, o filme fornece elementos para a reflexão sobre o tema tratado nesta unidade. Vale a pena confe- rir: • O sétimo selo (Det sjunde inseglet). Suécia, 1956. Di- reção: Ingmar Bergman. 3) A obra de Philippe Wolff dialoga diretamente com Johan Huizinga e considera que a crise daquele período diz res- peito a um momento crucial de transformação. Para sa- ber mais sobre Wolff, recomendamos a obra: • WOLFF, Philippe. Outono da idade média ou prima- vera dos tempos modernos? Lisboa: Martins Fontes, 1988. 4) Algumas informações preliminares podem ser de gran- de valia para uma melhor compreensão dos conteúdos abordados nesta unidade: a) Albert Camus, um dos principais escritores france- ses do período "entre guerras", escreveu uma obra intitulada A peste. O autor parte da imaginação de uma invasão de ratos disseminadores da peste para, segundo a interpretação mais corrente, falar de uma “epidemia” mais apropriada a seu tempo: o nazismo. b) O problema da morte entrou na reflexão historiográ- fica na década de 70, como uma conquista da His- tória cultural. O marco para essa entrada foram as 187© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? obras de Philippe Áries, História da morte no ociden- te e O homem diante da morte. A partir daí, a morte tornou-se um tema pertinente para o historiador. c) Os atributos do Estado Moderno foram forjados, sobretudo, pela sociologia de Max Weber. Segundo esse sociólogo, o Estado Moderno caracteriza-se por um quadro administrativo burocrático cada vez mais desenvolvido, por um sistema econômico capitalista e por agregar o tributo e o exercício legítimo da força física. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Chegamos à última unidade de nossos estudos acerca da História Medieval. Vamos relembrar alguns assuntos tratados nas unidades anteriores: as abordagens historiográficas sobre o feuda- lismo, as diferentes etapas da reforma da Igreja e suas implicações sociopolíticas, a origem das cruzadas e o caráter de "guerra santa" que assumiram essas expedições. Caracterizamos o processo histórico de desenvolvimento co- mercial e reorganização das cidades medievais. Além disso, identi- ficamos o "Renascimento do século 12" como o momento da en- trada dos grupos laicos na produção intelectual. Nesta unidade, compreenderemos que o estudo do período final da Idade Média é marcado pela noção de que houve uma crise no século 14, de ordem econômica, política, social e cultural. Inicialmente, essa crise foi sentida nos países ao norte da Eu- ropa. Mas ela não ocorreu da mesma forma em todos os lugares. Portanto, ao tratarmos desse período, primeiramente de- vemos saber que essa temática é própria do território francês. O inaugurador da reflexão sobre essa crise nos estudos historiográfi- cos foi Johan Huizinga. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 188 Com base na obra desse autor, intitulada O outono da ida- de média (no Brasil, publicada como O declínio da idade média), desenvolveram-se as reflexões sobre esses séculos finais do perí- odo medieval. O final da chamada Idade Média é visto ora como um momento de crise, ora como uma etapa fundamental para a transformação da sociedade, marcada pela passagem do sistema de produção feudal para o sistema capitalista, e culminando no surgimento dos Estados Modernos. Diante da expansão econômica característica dos séculos 12 e 13, tidos como o período de ouro do sistema feudal, os séculos 14 e 15 são avaliados como o momento de depressão e de retra- ção na produtividade. As causas e os limites que explicam essa recessão são vários, mas três fatores são sempre destacados pelos historiadores: • A fome. • A peste. • A guerra. Essa é a tríade que define os problemas enfrentados pela população europeia ao longo desse período de desarticulação ou de “rearticulação”. O objetivo desta unidade é possibilitar a análise dos eventos produzidos nesse período, sempre com atenção ao fato de que o pano de fundo de nossa tríade é um processo muito sério de "de- senraizamento" e de "desparentalização". Esse processo foi viven- ciado e sentido por homens e mulheres do século 14, e levou a um contexto sociopolítico que será chamado de Renascimento. Prepare-se, então, para colher as folhas desse outono da Idade Média ou as flores da primavera dos Tempos Modernos. 5. CRISE NO SÉCULO 14: A FOME Segundo Philippe Wolff (1988), deve-se distinguir uma situa- ção de fome de uma situação de penúria. Enquanto a penúria é um 189© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? sofrimento decorrente da falta de alimentação apropriada, a fome leva à morte efetiva. O que ocorreu no século 14 foi uma situação de fome, ou seja, uma falta de alimentação que provocou um alto nível de mor- talidade nos países europeus. O problema foi decorrente, princi- palmente, das crises sucessivas na produção agrícola, contando, também, com obstáculos sociais à expansão da produtividade. Desde 1280, havia uma situação de "fome de terras" na Eu- ropa, motivada pelo fim dos arroteamentos e pela permanência da expansão demográfica. O aumento do número de dependentes e o jogo das heran- ças e partilhas sucessórias acarretaram a multiplicação das explo- rações camponesas. Com a diminuição da área para o cultivo da terra, os campo- neses precisaram encontrar outras fontes de rendimentos, como o trabalho artesanal, que era recorrente nos ambientes citadinos, conforme vimos na Unidade 4. Havia uma impossibilidade de aumento da área cultivada, conjuntamente com o aumento demográfico resultante do suces- so do sistema feudal e da relativa segurança vivenciada pelos ho- mens após o último ciclo de invasões ao longo do século 9º. Essa conjunção de fatores levou a uma crise da produtividade, que re- tornou em forma de fome e mortalidade. Essa crise na produção agrícola também esteve ligada a uma alteração climática que ocorreu nas três zonas climáticas euro- peias entre os anos de 1480 e 1482. Essa alteração conduziu à de- bilidade e à irregularidade da produção. Somam-se a esses fatores as más condições de armazena- mento e os hábitos alimentares uniformes (não havia variedade de cardápio também em decorrência da infertilidade do solo. A falta de variação de nutrientes debilitava a saúde da população). © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 190 É possível perceber, então, que o século 14 estava diante de uma situação que extrapolava, e muito, a noção de penúria. Philippe Wolff (1988) apresenta um estudo realizado por MauriceBerthe sobre a região espanhola de Narrava, e aponta que, no ano de 1347, houve uma redução média de cinquenta por cento no tamanho das famílias, em decorrência da mortalidade por fome. Isso teve como consequência a necessidade de um rea- grupamento familiar. Outras interpretações para a crise e a fome do século 14 É importante ressaltar que nem todos os autores concordam que a fome do século 14 tenha decorrido, especialmente, do fra- casso agrícola. A questão da estagnação da produtividade, tida como uma das raízes da "crise", é apresentada por autores que defendem a ideia de que a economia era dominada pela agricultura. Segundo eles, a agricultura, por sua vez, era regida pelos grandes domínios. Segundo Monique Bourin (2003), essa "explicação quase mecânica foi posta em questão" após a década de 1990, sobre- tudo em uma historiografia inglesa ou canadense, que atingiu – e apenas superficialmente – os historiadores franceses. Esses trabalhos concentraram sua atenção no aumento da moeda em circulação, no desenvolvimento das pequenas cidades, no sistema de crédito, na maior flexibilidade das ocupações e em uma crescente mobilidade geográfica (BOURIN, 2003). Essa situação complicada foi uma porta de entrada para ou- tros problemas, como, por exemplo, o surgimento de doenças e pestilências que há muito estavam esquecidas. Vejamos o que o historiador Jérôme Baschet (2006, p. 248) diz a esse respeito: É difícil traçar um limite cronológico preciso entre o desenvolvi- mento e o equilíbrio atingidos pela Idade Média Central e a inver- são de tendência da Baixa Idade Média. Desde o fim do século XIII, o crescimento rural parece atingir os seus limites de possibilidades, 191© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? chegando [...] a um 'mundo pleno', segundo a expressão de Pierre Chaunu. Depois, ao longo da primeira metade do século XIV, as difi- culdades se acumulam. Em 1315-17, a fome geral, esquecida havia mais de um século, faz novos estragos, antes que a peste negra de 1348 marque com estrondo uma ruptura radical. É em direção a essa “ruptura radical”, ocasionada pela peste, que seguirá nosso estudo agora. 6. CRISE DO SÉCULO 14: A PESTE O último foco de Peste Negra sofrido pela Europa havia termi- nado no século 6º. No entanto, depois de oito séculos, essa doença voltou a assolar as cidades europeias e a se alastrar por todas as regiões. Afetou pessoas de todos os níveis econômicos, e atingiu tanto o campo como a cidade, embora muitos autores enfatizem que ela tomou conta mais gravemente das cidades. O ano da disseminação da doença foi o de 1348 e, segundo Georges Duby (1992, p. 256): Se tivéssemos de guardar na memória apenas uma data durante o longo período que examino, seria o ano de 1348. É neste ano que a Peste Negra invade a França, e dali para frente nada mais seria como antes. É este o acontecimento decisivo. Ele assinala na realidade o fim de uma época da história, aquela que, por simples hábito, continuamos a chamar de Idade Média. A Grande Peste ou Peste Negra, como ficou conhecida, era a conjugação da peste bubônica com a forma pulmonar da peste, e resultava num índice de 80% a 100% de mortalidade. Os homens da Idade Média desconheciam as causas e os hospedeiros que propagavam a doença. Diferentemente do escri- tor Albert Camus, que em sua obra A peste já atribuía o motivo da infestação aos ratos, acreditavam que ela decorria de uma punição divina aos males morais coletivos da sociedade. Em virtude disso, na Espanha surgiu um grupo de homens, chamados pogrons, que se tornou responsável por perseguir e pu- nir os judeus – eles consideravam que os judeus disseminavam a © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 192 peste por meio do envenenamento dos poços de água. Na realidade, a epidemia chegou à Europa vinda da África, em um navio comercial que tinha cadáveres infectados pela doen- ça. A partir de então, ela se espalhou por Constantinopla e atingiu a Europa pelo Mediterrâneo e pelo mar do Norte, e, desde Gêno- va, foi seguindo a rota comercial. Decamerão: o testemunho do impacto da Peste Negra Foi um italiano quem deu o melhor testemunho de como foi o impacto da peste de 1348, com base em uma ótica morali- zante. Na obra Decamerão, Giovanni Boccaccio (1313-1375) reúne um grupo de três homens e sete mulheres que, fugindo da peste, retiram-se por dez dias para o campo e passam o tempo contando histórias divertidas. As narrativas apresentam histórias pitorescas, muitas de cunho sexual, que levaram à interpretação da obra como libertina e erótica. Todavia, esquece-se, frequentemente, de que aquele ce- nário retira seus contornos da certeza de mortalidade, promovida pela peste. A peste, vista como um castigo de Deus ao pecado humano, transforma as narrativas em denúncia dos pecados dos homens: os pecados os teriam levado à praga e à mortalidade. Contudo, sendo certa a morte, cabia aproveitar o tempo restante – e é isso o que fazem os personagens de Decamerão. Logo na primeira jornada, a que tem em Pampineia a rai- nha da semana e a responsável pela narração, Boccaccio (1971, p. 09-10) descreve a situação que seus personagens vivenciaram da seguinte forma: Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da En- carnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobre- veio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razão de nossas iniqüidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início 193© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável para o Ocidente. Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo, começou a mostrar, quase ao principiar a prima- vera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade ficou purificada de muita sujeira, graças a funcionários que foram admitidos para esse trabalho. A entra- da nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos conselhos foram divulgados para a manutenção do bom estado sanitário. Pouco adiantaram as súplicas humildes, feitas em número muito elevado, às vezes por outros modos dirigidas a Deus. A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas in- chações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar man- chas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a prin- cípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte futura, também as manchas passaram a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas. No entanto, o surto de peste não se restringiu ao ano de 1348. Outros ocorreram em 1353-1355, 1357, 1377-1378, 1385- 1386, 1403 e 1419. Consequências da peste Segundo Philippe Wolff (1988), apeste acirrou a tensão en- tre as classes sociais. Os ricos acusavam os pobres de terem propa- gado o contágio e os pobres censuravam os ricos por só cuidarem de si mesmos. Em decorrência da mortalidade de grande parte da popula- ção, houve escassez de mão de obra – ainda que também diminu- ísse o número de bocas a serem alimentadas. Houve a obrigatorie- © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 194 dade de se trabalhar, os salários foram congelados e a mendicância foi proibida aos homens aptos para o trabalho. No plano artístico-literário, uma das grandes consequências da peste foi o aparecimento de um tipo de arte chamada de "dan- ça macabra". Nessas obras, homens e mulheres de todas as condi- ções sociais eram arrastados por esqueletos em uma dança infer- nal, que lhes lembrava de sua condição mortal. A vida foi invadida pela morte e pela visão dos mortos por todos os lados. Para o historiador Jacques Chiffoleau (1996), por exemplo, é possível perceber como a imagem da morte foi modificada no século 14, sobretudo quando são analisados os testamentos da re- gião francesa de Avinhão. Houve uma intensificação na escrita de testamentos com preâmbulos que se referiam à morte em termos antigos, já usados nos séculos 12 e 13. Todavia, a partir de 1348, os preâmbulos tornaram-se mais longos e multiplicaram-se as figuras de estilo e as redundâncias. O mais impressionante é o fato de o testamenteiro passar a determi- nar o local da sepultura e todos os detalhes dos ritos funerários. Nesse momento, a palavra cadaver passou a substituir corpus em boa parte dos documentos. Desenraizamento e desparentalização O detalhe mais assustador na peste, para além das questões fisiológicas, era o fato de ela ter acentuado o processo de "desen- raizamento” e de “desparentalização”. Isso porque, com o crescente número de infectados e de ca- dáveres vitimados pela peste, houve um considerável movimento de pessoas em fuga dos lugares que estavam contaminados ou sob o risco de contaminação. Esse êxodo acentuou o chamado “desen- raizamento” dos homens de suas comunidades originais. Além disso, o alto índice de contágio inibia até os cuidados com os mortos que, na maioria das vezes, eram abandonados em suas casas por seus familiares. Muitas famílias desarticularam-se a 195© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? ponto de não sustentarem mais os vínculos sanguíneos e simbóli- cos que as uniam. O resultado foi um movimento de “desparentalização”, que prejudicou seriamente a reprodução da família alargada (núcleo familiar e demais componentes como demais familiares e agrega- dos). Os laços espirituais contraídos em vida e mantidos após a morte passaram ao segundo plano em prol da busca pela própria sobrevivência individual. Até então, os vínculos espirituais de parentesco mantinham uma comunidade unida e coesa, composta por vivos e mortos. Os ritos funerários, por exemplo, asseguravam um lugar ao morto na comunidade dos vivos e facilitavam o contato com aquele que morria. O morto passava à condição de ancestral, com um lugar reservado tanto em um espaço físico – o cemitério – quanto na memória dos vivos. Normalmente, esse contato entre vivos e mortos se dava pela visita ao cemitério anexado à igreja principal da comunidade. Em relação a essa questão, Jacques Chiffoleau discorda de Pierre Chaunu e de Philippe Áries sobre a explicação para a teatralização da morte e para a individualização que ocorreram no século 14. Enquanto para Áries a teatralização da morte se explica por um "sentimento agudo do fracasso individual" e, para Chaunu, pela "multiplicação da visão da morte", para Chiffoleau (1996, p. 128) a questão se explicava pela [...] descoberta, tornada, certamente, mais fácil pela conjuntura de uma solidariedade nova: desenraizados, sem antepassados, dora- vante os cidadãos ganham sozinhos o reino das Trevas. As antigas regras que socializam o luto já não têm função. Eles são então for- çados a abandonar as velhas solidariedades e protestam melan- colicamente contra a perda dos pais, contra a impossibilidade em que se encontram de novamente se juntar aos antepassados, de se parecer com eles, de identificar-se com eles. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 196 Em Boccaccio (1971, p. 11-12), é apresentada essa situação de ruptura da solidariedade da linhagem e do vínculo entre vivos e mortos, e mesmo entre pais e filhos. Vínculos que se fundamenta- vam em uma noção de tradição e autoridade que mantinha unida a comunidade composta por vivos e mortos: Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se, porven- tura, tal sentimento fosse o mais seguro), e diziam que não havia remédio melhor, nem tão eficaz, contra as pestilências, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes que essas pesti- lências ali surgissem. Induzidos por essa forma de pensar, não se importando fosse com o que fosse, a não ser com eles mesmos, inúmeros homens e mulheres deixaram a própria cidade, as pró- prias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas, e fo- ram em busca daquilo que a outrem pertencia, ou, pelo menos, que era de seu condado. Para eles, era como se a cólera de Deus estivesse destinada não a castigar a iniqüidade dos homens com aquela peste, onde eles estivessem, e sim a oprimir, comovido, so- mente os que teimassem em ficar dentro dos muros de sua cidade. Ou como se essa cólera fosse apenas um aviso para que ninguém permanecesse em determinada cidade, por ter chegado a hora derradeira dessa mesma cidade. Como, de tais opinantes, nem to- dos morriam, e que, assim sendo, nem todos continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em toda parte, caíam enfermos e, quase abandonados à própria sorte, definhavam inteiramente. Eles mesmos, quando estavam sãos, deram exemplo aos que con- tinuavam sadios, para que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal. Vamos pôr de lado as circunstâncias de um cida- dão ter repugnância de outro; de quase nenhum vizinho socorrer o outro; de os parentes, juntos, pouquíssimas vezes ou jamais se visitarem, e, quando faziam visita um ao outro, ainda assim só o fa- zem de longe. Tal inquietação entrara, com tanto estardalhaço, no peito dos homens e das mulheres, que um irmão deixava o outro; o tio deixava o sobrinho; a irmã, a irmã; e, freqüentemente, a esposa abandonava o marido. Pais e mães sentiam-se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos, como se o não foram (é esta é a coisa pior, difícil de se crer). Além da "desparentalização" expressa nesse fragmento de Boccaccio, a peste também trouxe como consequência um deslo- camento da população, que fugia da doença. As pessoas, muitas vezes, não podiam ser enterradas ao lado de seus parentes. Podemos pensar que os dois processos se in- terligaram e tornaram possível o surgimento de uma identificação 197© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? para além do parentesco, e, paulatinamente, mais centrada no ter- ritório ocupado. 7. GUERRA DOS CEM ANOS (1337-1453) Estamos caminhando para a formação dos Estados Moder- nos, na qual as guerras desempenharam um papel central. A guerra é um tema fundamental para o período que estu- damos, porque, além de reforçar a desestrutura que se instalava, abre uma brecha para questionarmos se o Estado não haveria tido naquele momento a sua primeira aparição. Até então, o Estado não existia como uma estrutura burocrá- tica, que congregasse um corpo militar em torno do governante e que tivesse um espaço territorial definitivo, onde exercesse o poder sobre a população ali estabelecida. A Guerra dos Cem anos, a mais conhecida disputa ocorri- da dos séculos 14 e 15, envolveu três regiõesdistintas. Teve por consequência a modificação nas técnicas de batalha e a formação de um aparato tributário que impulsionava os feitos de guerra e fortalecia os reinos envolvidos. Para Georges Duby (1992), a guerra fez com que o sistema fiscal se tornasse mais pesado. Até a Guerra dos Cem Anos, o sis- tema militar baseava-se no soldo. Com o desenvolvimento dos eventos da batalha, foi necessária a contratação e a formação de mercenários para suprir os ataques. A Guerra dos Cem Anos abrangeu uma série de conflitos diferentes, envolvendo as regiões da França, da Inglaterra e de Navarra. Teve uma dupla motivação: uma disputa territorial, com a possessão da região da Guiena pelos franceses, e uma disputa dinástica, cujo início foi a morte de Felipe, o Belo, último rei da linhagem capetíngia, no ano de 1328. Felipe, o Belo, morreu sem deixar herdeiros diretos. Por isso, a coroa foi entregue a um de seus primos, Felipe de Valois. Essa © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 198 transferência não foi questionada imediatamente, mas levou ao questionamento do direito de sucessão, tal qual fora estabelecido pela lei sálica e que vigorava até então. De acordo com esse sistema, a sucessão não poderia ser fei- ta seguindo a linhagem por parte de uma mulher. Se isso fosse possível, dois outros nomes estariam aptos a serem coroados reis da França: o rei da Inglaterra, Eduardo III, que era filho de Isabel, (filha de Felipe, o Belo); e Carlos de Navarra, filho de Joana, a neta primogênita do falecido rei. Ainda que não tenha havido uma contestação imediata à su- cessão da coroa, já que Felipe VI (como fora chamado Felipe de Valois) fora consagrado rei em Reims, esse problema levou à rei- vindicação do trono por parte de Eduardo III e de Carlos de Navar- ra. Isso causou a guerra que aqui analisamos. A reivindicação do trono por parte de Eduardo III ocorreu em 1337, quando Felipe VI confiscou a Guiena de Eduardo III. Em decorrência da tomada do território, o problema sucessório veio à tona e o rei da Inglaterra proclamou-se, também, rei da França. A partir de então, teve início a Guerra dos Cem Anos. Ela foi dividida pela historiografia em quatro períodos, os quais conhece- remos agora. Primeiro período da Guerra dos Cem Anos Esse período compreendeu os anos de 1337 a 1360 e foi marcado pela derrota francesa. Iniciada na batalha de Cécy, tra- vada entre franceses e ingleses, a guerra tomou novos rumos com a prisão, em Poitiers, de João, o Bom, herdeiro do trono francês após o falecimento de Felipe VI. Houve a assinatura do tratado de Calais, no qual João, o Bom, deixou a Eduardo III a plena soberania de parte do seu reino. Carlos de Navarra, por sua vez, era irmão da segunda mulher de Felipe VI e, em 1352, desposou a irmã do rei João, o Bom. Esse 199© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? casamento foi uma tentativa de ampliar o que lhe cabia na heran- ça capetíngia, além de representar a possibilidade de readquirir os direitos sucessórios de sua mãe sobre a região de Champagne e de estender pela Normandia as possessões de seu pai. Em 1356, temendo uma traição, João manda encarcerar Car- los. No entanto, em decorrência de suas boas alianças, Carlos foi solto em 1357, e, a partir de então, entrou em entendimento com os ingleses para poder se apoderar da Normandia e da Champag- ne. Nesse ínterim, estando o trono francês vago, o reino foi diri- gido pelo delfim Carlos, filho de João, o Bom. Diante das ameaças de Étienne Marcel, que exigia uma reforma extrema para o reino da França, Carlos foge de Paris, deixando a França sem rei. Em 1360, Eduardo III tentou entrar em Reims, mas a cidade estava fechada e, em troca da renúncia à coroa, recebeu moedas de ouro e a soberania sobre a Aquitânia para liberar João. O tra- tado assinado entre França e Inglaterra resultou em vantagens ao rei Eduardo III, que conquistou a soberania sobre diversas regiões francesas. Segundo período da Guerra dos Cem Anos O segundo momento da guerra, entre 1364-1380, foi mar- cado pela vitória francesa. Em 1364, Carlos V tornou-se rei e re- tomou a guerra contra os ingleses. Entre 1369 e 1373, Eduardo III havia perdido quase todas as regiões, sobretudo porque a França recebeu ajuda da Escócia, de Flandres e de Castela. Dessa forma, a dominação inglesa na França foi reduzida. Simultaneamente, a Inglaterra enfrentava problemas inter- nos em decorrência do aumento de influência da aristocracia. Em 1388, o herdeiro de Eduardo III, Ricardo II, teve de se humilhar diante da grande nobreza, e acabou sendo morto em 1399. Henri- que IV assumiu o reino e fundou a dinastia dos Lancaster. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 200 Terceiro período da Guerra dos Cem Anos O início do terceiro momento da guerra (1380-1422) foi marcado, especialmente, por conflitos internos tanto na Inglaterra quanto na França. A situação interna francesa não era das melhores, mesmo com as vitórias conquistadas sobre os ingleses. Carlos VI, herdeiro do trono, ainda estava na minoridade e enlouqueceu em 1392. Isso abriu a possibilidade de disputa pelo poder e deu início a uma guerra interna. Havia uma rivalidade en- tre duas regiões francesas e suas aristocracias: Orléans e Borgo- nha. Ambas as facções – Armagnacs e Borguinhões – apelaram aos ingleses para ajudar na solução do conflito. Nesse momento, os ingleses estavam sob o reinado de Hen- rique V, que invadiu a França e os levou à derrota em Azincourt. Vemos, então, uma França dividida em dois setores: de um lado uma França sob o poder dos Lancaster, herdeiros do trono in- glês que ainda reivindicavam o trono francês; de outro, uma Fran- ça governada pelo delfim Carlos a partir da Borgonha. Quarto período da Guerra dos Cem Anos Esse é o momento mais crucial da guerra, entre 1422 e 1453, no qual desponta o nome de um dos personagens mais conheci- dos e consagrados pela historiografia francesa, sobretudo a histo- riografia do século 19: Joana D’Arc. Joana D'Arc morava em um dos cantões (áreas limítrofes desse conflito): Domrémy. Era filha de um camponês rico e influen- te na paróquia e ficou conhecida pela grande devoção à fé católica e pela forte ligação com o mundo sobrenatural. Ainda em Domrémy, Joana rompeu um casamento e consa- grou-se a Deus. Constantemente, ouvia vozes que lhe diziam para seguir em direção ao rio Loire, o lugar onde ocorria a resistência à invasão inglesa. 201© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? Joana lutou na guerra pela legitimidade do delfim, que se intitulava rei, mas que não havia sido consagrado em decorrên- cia das disputas. Ao ser recebida pelo delfim em Chinon, este lhe prometeu a sagração. Ela foi sagrada chefe de guerra e a seguir foi enviada a Orléans, que era o coração do poder dos primeiros Capetos. Em 17 de julho, Carlos VII recebeu a unção real em Reims, mas Joana D'Arc não teve vida longa. Foi feita prisioneira pelos ingleses em 24 de maio de 1430. Depois de passar por um inter- rogatório, morreu queimada na fogueira em 30 de maio de 1431. O pensamento de Georges Duby (1992, p. 276) demonstra que Joana D’Arc tem sido vista, desde Michelet (século 19), como uma mulher do povo, que lutava para defender a soberania de seu rei: A paroquiana de Domrémy levara a palavra do povo. Dando o exemplo da devoção, convidando à penitência, para lavar o reino do pecado que o conspurcara, ela dissera o que o povo pensava da função real e do Estado, que deviam permanecer sob estreito controle do poder divino. E dissera-o tão bem que sua breve pas- sagem teve espantosas conseqüências. Ela pereceu. Mas por seu intermédio o milagrebruscamente se dera. Dissipando o desânimo, o milagre invertera o curso das coisas humanas, desencadeando um movimento profundo que o suplício não pode conter, e que em poucos anos levou à total liberação do reino e à expulsão do ocupante. Joana unira a França. 8. RECONSTRUÇÃO POLÍTICA DA EUROPA NOS SÉCU- LOS 14 E 15 Resta-nos refletir sobre a construção dos Estados territoriais nos séculos 14 e 15. Pairam dúvidas sobre essa questão. Não há consenso sobre a existência, naqueles séculos de crise, de um apa- rato administrativo centralizado e desenvolvido que pudesse ser considerado um Estado. Também cogita-se a possibilidade de que já estivesse ocorrendo naquele período a gestação dos Estados Absolutistas. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 202 Um Estado, no sentido dado pelos sociólogos e retomado pelos historiadores, resulta da conjunção de alguns fatores impor- tantes: • delimitação territorial, com fronteiras bem definidas; • população que reconhece o pertencimento àquele terri- tório específico; • governo que tem o monopólio do exercício da violência física legítima e que é responsável pela arrecadação de impostos (que teriam como objetivo a promoção da or- dem pública e do bem comum). A forma como essas questões são vistas pela historiografia é que encaminhará a reflexão sobre a emergência dos Estados nos séculos 14 e 15. Apresentaremos agora dois posicionamentos so- bre essa questão. Formação dos Estados Modernos segundo Perry Anderson A perspectiva marxista enfatiza que os séculos 14 e 15, mar- cados pela crise, deram origem aos Estados Absolutistas do sécu- lo 16. Esse é o posicionamento, por exemplo, de Perry Anderson (1985, p. 15), para quem: A longa crise da economia e da sociedade européias durante os séculos XIV e XV marcou as dificuldades e os limites do modo de produção feudal no último período da Idade Média. Qual foi o re- sultado político final das convulsões continentais dessa época? No curso do século XVI, o Estado absolutista emergiu no Ocidente. As monarquias absolutistas teriam introduzido os exércitos regulares, uma burocracia permanente, um sistema tributário na- cional e a codificação do direito. Além disso, teriam dado início à unificação de mercado. Portanto, pode-se dizer que há um Estado quando este vem acompanhado pelo capitalismo como sistema econômico, ou, se- gundo os marxistas, como modo de produção. Tornou-se essencial para os debates historiográficos dessa corrente compreender o que levou à passagem do feudalismo ao capitalismo. Assim seria possí- vel dimensionar de forma mais exata a emergência do Estado. 203© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? Entretanto, Anderson aponta que a política e a economia permaneceram dominadas pela mesma classe durante o início da Idade Moderna, ainda que tenham passado por transformações profundas. Para ele, o Estado Absolutista foi mais uma roupagem da dominação da aristocracia feudal sobre o campesinato: O Estado absolutista nunca foi um árbitro entre a aristo- cracia e a burguesia, e menos ainda um instrumento da burguesia nascente contra a aristocracia: ele era a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada (ANDER- SON, 1985, p. 16). Estaríamos diante da apresentação de uma longa Idade Mé- dia, que só terminaria, de fato, com a Revolução Francesa e com a tomada do poder pela burguesia? Vejamos outra linha de pensa- mento sobre o tema. Formação do Estado Moderno segundo Jérôme Baschet Jérôme Baschet (2006, p. 268-269) é categórico ao afirmar que, ainda que o poder monárquico tenha se fortalecido ao longo dos séculos 14 e 15, não se pode atribuir às monarquias feudais os atributos dos Estados Modernos. Em resumo, a relação de força entre a monarquia, a aristocracia e a Igreja é tal que parece aventureiro fa- zer renascer o Estado no Ocidente, na acepção do termo retida aqui [sociologia de Max Weber e Pierre Bourdieu], antes do século XVII, no melhor dos casos. Durante a Baixa Idade Média existe um reforço dos po- deres monárquicos, mas este ainda está longe de levar à constituição dos Estados europeus. Mesmo a afirma- ção veemente da idéia de Estado, sob a forma de uma soberania real absoluta, não pressupõe a existência do Estado; ela apenas dá a medida dos esforços realizados para fazê-lo advir. Baschet (2006) retoma, em sua obra, a tese de Kantorowicz sobre os dois corpos do rei. Segundo ele, no século 14 houve o desenvolvimento de rituais ligados à figura do rei, relacionados à efígie real e à doutrina jurídica dos dois corpos do rei. Os cadáve- res reais passaram a ser substituídos, nos funerais, por uma efígie © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 204 que portava as vestes e as insígnias reais. “Quanto ao corpo natu- ral, este era enterrado despido ou seminu” (RUBIM, 2010, p. 157) Com isso, defendia-se a ideia de que o rei vivo era a união de um corpo físico e mortal com um corpo político. O corpo político "encarnava" no corpo físico, e permanecia imortal. Esses rituais tinham por meta assegurar a continuidade di- nástica do poder real e foram associados à fórmula forjada a pro- pósito da morte de Carlos VIII, em 1498: "O rei está morto, viva o rei!". O corpo político, que não morria e era saudado, era a "coroa" ou o "reino", enquanto o corpo físico do rei se esvaecia. Portanto, para Jérôme Baschet (2006), ainda que se desen- volvessem novos rituais régios e que houvesse a ascensão de trata- dos preocupados com a arte de governar (os chamados "Espelhos de príncipe”), não se pode atribuir àqueles governos as caracterís- ticas de Estados na acepção do período moderno. Baschet (2006, p. 274) não associa o Estado Absolutista a uma nova roupagem da dominação da aristocracia feudal, como fizera Perry Anderson (1985). No entanto, ele não deixa de consi- derar a conquista da América, por exemplo, como um movimento que expande a civilização feudal, promovendo o deslocamento do Ocidente rumo à América, sem que fossem alteradas as estruturas daquele sistema: Existe, então, uma continuidade entre o desenvolvimento da Idade Média Central e a dinâmica reencontrada no fim da Idade Média, de modo que o elã que conduz à Conquista das Américas é funda- mentalmente o mesmo que aquele que vemos em marcha desde o século XI. A colonização ultra-atlântica não é o resultado de um mundo novo, nascido sobre o húmus em que se decompõe uma Idade Média agonizante. Para além das transformações, das crises e dos obstáculos, é a sociedade feudal, prosseguindo a trajetória observada desde a aurora do segundo milênio, que empurra a Eu- ropa para o mar. 205© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? 9. TEXTO COMPLEMENTAR O texto a seguir trata de uma temática muito interessante: a morte. É interessante o fato de que esse tema tenha ganhado maior atenção apenas com a Escola dos Annales e a inclusão de novos objetos na pesquisa histórica. A leitura desse texto contri- buirá bastante para o aprofundamento das reflexões sobre esse tema fundamental. Aproveitamos para agradecer ao professor Ricardo da Costa, que gentilmente nos autorizou a utilizar o texto. A Morte e as Representações do Além na Idade Média: Inferno e Paraíso na obra Doutrina para crianças (c. 1275) de Ramon Llull ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Figura 1 A serena morte de Santa Elisabeth da Turíngia (1207-1231) (FR 2813) fol. 269v. Grandes Chroniques de France. France, Paris, XIV e s. (60 x 65 mm) A morte nos faz cair em seu alçapão, É uma mão que nos agarra E nunca mais nos solta. A morte para todos faz capa escura, E faz da terra uma toalha; © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 206 Sem distinção ela nosserve, Põe os segredos a descoberto, A morte liberta o escravo, A morte submete rei e papa E paga a cada um seu salário, E devolve ao pobre o que ele perde E toma do rico o que ele abocanha. (Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII, 1996: 50, vv. 361-372) Nascemos, vivemos e morremos. Esta é uma certeza, uma verdade a-histórica, universal e comum a todas as culturas ditas humanas que já existiram, existem e ainda existirão na face da Terra. Outra característica humana é que sempre pensamos e refletimos sobre a finitude da vida, sempre estivemos perplexos com a morte. A morte. Ela iguala a todos, ricos e pobres, homens e mulheres. Para além dela, o Além: ele é um mistério, uma incerteza, um tabu (RODRIGUES, 1983: 17). Essa herança milenar sofreu um rude golpe com a modernidade. Hoje, nossa sociedade, dita ocidental, cada vez mais tenta prolongar a vida, não envelhecer, se distanciar da morte, e principalmente não pensar nela, esquecê-la. Afinal, to- dos os mitos foram destruídos e pisoteados, apesar de a brevidade da existência ter sido reafirmada. Hoje afirma-se que após o “sono eterno” há o nada, o ani- quilamento. Resta então viver a vida, gozar os prazeres dos sentidos corporais. Hoje há uma crise, crise de paradigmas metafísicos. Hoje, sobretudo no mundo ocidental, muitos morrem mentalmente jovens e não pensam sobre o sentido de nossa existência. Porém, os atuais movimentos populares religiosos, também uma permanência ao longo da história humana (DELUMEAU, 1997), reciclam as preocupações com o além e com o destino das almas dos homens. Sabemos que a crença ou a descrença no Além modifica o comportamento humano. Quando não se acredita numa outra vida há um determinado tipo de atitude diante situações do cotidiano; quando se acredita também, especialmente quando o tempo em questão é a Idade Média ocidental (OEXLE, 1996: 28). Nesse período, o mundo era considerado um local de combate contra o Diabo, um combate pela salvação da alma (LE GOFF, 2002: 22). São elementos (mentais) interferindo em ações (materiais), aspectos culturais e, sobretudo, religiosos, que alteram e modificam o comportamento social. E depois da morte? O que há? O que já pensamos a respeito? A Idade Média foi rica nesse campo subjetivo. Criou imagens que forjaram nossa cultura ocidental (ARIÈS, 1989: 65) e muitos de nossos conceitos, especialmente os espaciais. Essa geografia do além, como já foi chamada (LE GOFF, 1993), delimitou nosso imaginário, circunscreveu nossas atitudes, ocupou nossos sonhos e pesadelos (PATLAGEAN, 1993: 291-318), enfim, inundou os corações de milhares de ho- mens, pelo menos desde que Agostinho (354-430) interpretou o sonho de sua mãe Mônica (COSTA, 1995: 21-35). Na Idade Média a morte era o grande momento de transição. Transição funda- mental, das coisas passageiras para as eternas. Praticamente ausente na icono- grafia medieval (LE GOFF, 1984, vol. II: 325) – como as crianças (COSTA, 2002: 13-20) – a morte era um rito de passagem. Ela era aguardada no leito de casa. O 207© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? moribundo deveria ficar deitado de costas porque assim seu rosto estaria voltado para o céu (ARIÈS, 1989: 22). A morte era uma grande cerimônia pública, um ritual compartilhado por toda a família, por todos da casa. Os medievais sabiam de sua chegada, pressentiam sua vinda, tinham visões que anunciavam sua morte (DUBY, 1986: 80-83). Pre- monições. Assim, tinham tempo para preparar seu ritual coletivo. Pois ninguém morria só. A morte era uma festa, momento máximo do convívio social (DUBY, 1990: 65-66). Todos deveriam acompanhar a passagem do mori- bundo para o além, inclusive as crianças (ARIÈS, 1989: 24). Lágrimas e choro apenas por parte das mulheres: elas deveriam ficar perto do corpo e gritar, rasgar as vestes, arrancar os cabelos. Era sua função pública (DUBY, 1997: 20-21). Seu gemido era um gemido ritual. Elas eram agentes essenciais do rito funerário (LE ROY LADURIE, s/d: 282), um antigo ritual que era uma fruição, uma chegada lenta e regrada. Era mesmo um prelúdio, a mudança para um estado superior (DUBY, 1987: 10), caso aquela alma fosse agraciada por Deus. Portanto, a pre- ocupação, a angústia maior, não era com a morte e sim com a salvação da alma (LE ROY LADURIE, s/d: 289). I. A morte do usurário Figura 2 A morte do Usurário e do Mendigo. Gautier de Coincy (1177-1236). La Vie et les miracles de Notre-Dame. França (c. 1260-1270). In: VORONOVA, Tamara e STERLIGOV, Andréï. Manuscrits enluminés ocidentaux VIII-XVI siècles à la Bibliotèque nationale de Russie de Saint-Pétersbourg. England/Russie: Edits. D'Art Aurora/Parkstone, 1996, p. 69. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 208 Dois momentos distintos: a morte do usurário e do mendigo. Inversão de papéis, subversão social que o cristianismo sugere para o Além: em seu leito de morte, com sua pobre e tosca coberta, em seu leito de morte o pobre vislumbra a Virgem e os Santos (acima à direita). A seguir, abaixo, à direita, o clérigo que o assistiu, agradece à Virgem pela graça concedida. Por sua vez, o usurário (acima, à es- querda), coberto por uma fina estampa xadrez, com um rico travesseiro colorido a lhe amparar a cabeça e cercado pelos que aguardam sua morte para serem agraciados com seus bens, é levado por três diabos (abaixo, à esquerda), um deles negro, para as profundezas do Inferno. Os diabos causam tanto desregra- mento ao corpo social que o contorno de seus corpos ultrapassa as linhas do quadro. Por fim, há dois tempos distintos: enquanto o usura ainda está sendo levado pelo diabo, o mendigo já partiu para o Paraíso. A recompensa pela vida virtuosa vem mais rápida; a punição pela vida pecaminosa é sempre lenta, como deve ser o suplício. Um dos temas mais recorrentes na iconografia medieval a respeito da morte foi a morte do usurário. Maldito entre os malditos, pecador entre os pecadores, o usurário era o exemplo dos exemplos para moralizar o cristão. Jacques de Vitry († 1240) nos conta: Um outro usurário riquíssimo, começando a lutar contra a morte, pôs-se a afligir, a sofrer e a implorar à sua alma para que esta não o deixasse, pois ele a havia satisfeito, e lhe prometia ouro, prata e as delícias deste mundo se ainda quisesse ficar com ele. Mas que ela não lhe pedisse, em seu favor, dinheiro nem a menor esmola para os pobres. Vendo, enfim, que não a podia reter, se encoleriza e, indignado, lhe diz: “Preparei-lhe uma boa residência com abundância de riquezas, mas você se tornou tão louca e tão miserável que não quer repousar nessa boa residência. Vá embora! Eu a entrego a todos os demônios que estão no Inferno.” Pouco depois entregou o espírito nas mãos dos demônios e foi enterrado no Inferno (Citado em LE GOFF, 1989: 13). A morte do usurário foi sempre tema para os moralistas medievais. Os pregado- res do século XIII utilizavam a usura para lembrar aos vivos o momento da morte e a existência do Inferno, como este exemplo de Ramon Llull (1232-1316): Uma vez aconteceu que um usurário fez seu testamento e não se arrependeu de seus erros, pelo contrário, deixou tudo o que tinha a um filho que muito amava, mas que tinha grande prazer com a morte de seu pai. O filho daquele usurário viveu longamente. Um dia aconteceu que ele lembrou o quanto seu pai fora usu- rário, o quanto lhe havia deixado tudo o que tinha e como ele havia tido grande prazer com a morte de seu pai. Aquele homem esteve muito tempo nesta consideração, e maravilhou-se forte- mente de seu pai ter mais amado entrar no Inferno que deserdá-lo e maravilhou- -se consigo mesmo por ter tido prazer com a morte de seu pai que tanto o amava. Tão longamente esteve nesta consideração que percebeu que seu pai o havia amado loucamente, e que Deus o punira, fazendo com que seu filho o odiassee amasse mais os bens que lhe deixou do que a vida e a salvação de seu pai. (RAMON LLULL. Félix ou o Livro das Maravilhas, Livro VIII, cap. 48) 209© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? Figura 3 Hieronymus Bosch (c. 1450-1516). A Morte e o Avarento (c. 1490). Óleo na madeira (93 x 31 cm) - National Gallery of Art, Washington. Apesar de pertencer a outro tempo, Bosch olha para trás e retrata temas medievais, embora com perspectiva distinta. Na cena, um anjo suplicante (à direita) intercede junto à luz de Cristo pela alma do avaro que, mesmo em seu leito de morte, recebe de um monstro o lucro sujo de sua usura. Repare na face macilenta da morte, vestida de branco e portando uma fina seta, e nos estranhos seis seres que espreitam a cena, desde o anjo maléfico de negro acima da capa, até o homem- rato que recebe a moeda do contador do usurário no cofre. Observe que mesmo com todo o ambiente sinistro da pintura, ainda há esperança para o avaro, coisa impensável trezentos anos antes. Duas imagens significativas (figuras 2 e 3): da morte do usurário do século XIII para a do avarento do século XV há um abismo conceitual imenso, em que pese a permanência do tema. Observe: na pintura de Bosch um anjo de Deus in- tercede pelo usurário impenitente. Por quê? O pintor quer reabilitar a riqueza? Enquanto a pobreza é elevada na iluminura do século XIII e o rico usurário não tem outro destino senão o Inferno, no século XV Bosch destaca a intervenção angélica pela alma do usurário, isto é, existe a possibilidade de ele ser salvo mesmo sendo impenitente, mesmo ainda recebendo seu lucro no leito de morte. Além disso, Bosch ressalta a figura macilenta da Morte, seguindo a tradição de seu tempo, fascinado pela Dança Macabra. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 210 São atitudes diferentes diante do lucro. Por outro lado, no século XIII a morte é coletiva: usura e mendigo estão cercados – o segundo por santos e pela Virgem. Já o avaro de Bosch tem apenas seu contador. Está só. Apesar de colocá-lo cercado de figuras diabólicas, Bosch faz o espectador olhar para o alto, para o Cristo e Seu delicado feixe de luz. Portanto, na pintura de Bosch há um fio de esperança para o usurário impenitente, há espaço para seu perdão. No século XIII, século do cristianismo, isso seria inimaginável (LE GOFF, 1989). Assim, a morte na Idade Média era uma agonia apenas para o usurário. Ela era temida porque era imprevisível, mas desejada pelo cristão quando anunciada, em sonhos ou visões. Ramon explica a seu filho o porquê do temor da morte e a necessidade (a virtude) de se temer a Deus: Filho, sabes por que a morte é temível? Porque não podes fugir dela e não sa- bes quando ela te levará. Assim, se temes a morte, que não pode te matar mas somente teu corpo, temerás a Deus, filho, que pode colocar teu corpo e tua alma no fogo perdurável. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XXXVI, 9). Naturalmente, essa era a morte no leito lenta e domesticada daquele que havia sobrevivido ao infanticídio, às intempéries da natureza, às doenças e às fomes. Mas havia também a morte na guerra, a morte antecipada, momento supremo do cavaleiro. Eles iam alegres, cantantes e ansiosos em direção à morte. Os trova- dores nos contam da felicidade daqueles cavaleiros rudes quando da chegada da primavera e do momento do combate. Bertrand de Born (1159-1197) nos fala das flores e folhas coloridas, das aves que cantavam e dos cavaleiros que gritavam “Avante”: Digo-vos, já não encontro tanto sabor no comer, no beber, no dormir como quando ouço o grito “Avante!” elevar-se dos dois lados, o relinchar dos cavalos sem cavaleiros na sombra e os brados “Socorro! Socorro!” quando vejo cair, para lá dos fossos, grandes e pequenos na erva; quando vejo, enfim, os mortos que, nas entranhas, têm ainda cravados os restos das lanças, com as suas flâmulas. (citado em BLOCH, 1987: 307) Assim a Idade Média tratou da morte: um rito de passagem para a morada defi- nitiva da alma, a derradeira peregrinação do homem-viajante medieval (ZIERER, 2002). Tudo indica que o sentimento mais comum em relação a essa cerimônia é a palavra serenidade. Como o mundo dos vivos estava ligado ao dos mortos – e o papel dos mosteiros era exatamente o de interceder junto ao além pela sociedade terrestre – a morte era encarada com tranqüilidade e resignação. Paz. A morte então foi domesticada nas consciências (ARIÈS, 1989: 19-20). Pelo me- nos na de cavaleiros e clérigos. A morte foi esperada e reconhecida (LAUWERS, 2002: 243), até mesmo desejada. Foi preciso a Idade Média chegar a seu fim para que novas formas (negativas) de compreensão da morte tomassem conta dos espíritos, como, por exemplo, o conceito de macabro, a Dança da Morte Macabra, que tomou conta dos afrescos e das gravuras em madeira, e exprimia a profunda angústia dos tempos da Peste Negra e da Guerra dos Cem Anos (HUIZINGA, s/d: 145-157). 211© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? Figura 4 Liber Chronicum, de Hartmann Schedel (séc. XV). In: Représentations diverses de la mort (Patrick Pollefey) As ordens mendicantes tiveram seu papel na difusão dessa nova espiritualidade e concepção do além no século XIII. Os pregadores franciscanos e dominicanos lembravam às massas a corruptibilidade de todas as coisas. O cadáver putrefa- to era a imagem preferida dos sermões. Carne associada ao pó e aos vermes (HUIZINGA, s/d: 145). Neste aspecto, a mensagem que Ramon Llull ensina a seu filho a respeito da morte é muito próxima da espiritualidade franciscana, além de muito contunden- te: Filho, cogita na morte para que não sejas orgulhoso, pois a morte inclina o corpo a grande vileza, tornando-o impotente, e coloca-o sob a terra, fazendo-o comida de vermes e horrível de se ver, tocar e cheirar, tornando-o pó e cinza. (RAMON LULL. Doutrina para crianças, cap. LXXXVIII, 2). II. Da Morte para o Além O que esperava o crente após sua ressurreição? Melhor perguntar assim: o que o crente acreditava que o aguardava no Além? Nessa viagem da alma, nes- sa transposição de um mundo para outro (ZIERER, 2002), nessa passagem do mundo das imperfeições e das coisas corruptíveis para o mundo da perfeição e das coisas eternas e incorruptíveis, os homens imaginaram o Além de diferentes maneiras, muitos especialmente influenciados pelas leituras da Bíblia – especial- mente pelo Novo Testamento (Mt 25, 31-46; Jo 5, 25-29; Lc 23, 43; 2 Co 12, 4; Ap 2, 7) (LE GOFF, 2002: 22). Adriana Zierer analisou estas imagens e concluiu que algumas percepções cons- truídas nos livros apócrifos dos séculos II e III ajudaram a elaborar o imaginário cristão medieval do Além (ZIERER, 2002): © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 212 Quadro 1 Apocalipse de Baruch (séc. II) Apocalipse de Esdras (séc. II) Apocalipse de Pedro (séc. II) Apocalipse de Paulo (séc. III) IV Livro de Esdras(séc. II) Baruch vai ao céu, pede ao anjo que o guie até o Éden Esdras vê uma cidade num vale cheia de coisas boas; sete anjos levam-no ao inferno. Ele desce 70 degraus, vê portas arden- tes e um rio de fogo com uma ponte onde caem os maus Pedro vê os bem-aven- turados na montanha sagrada; eles vivem num lugar luzen- te, cheio de especiarias e plantas; há um rio de fogo com rodas de fogo para castigar os pecadores e mergulhá- los Anjos levam as almas dos justos, que repousam temporaria- mente no Paraíso ter- restre, onde corre um rio de leite e mel. Há sete castigos para os condena- dos: sede, frio, calor, vermes, mau cheiro uma roda de fogo e um rio onde eles são afo- gados Os justos repousam de 7 maneiras diferentes em um lugar si- lencioso. Os maus serão castigadosde 7 maneiras Ao pensarem o Além, ao preocuparem-se com o pós-morte, os medievais torna- ram a realidade transcendente: como o mundo dos vivos, o mundo material, era efêmero, era um mundo de aparências, era uma representação – uma imagem, uma idéia de algo (ABBAGNANO, 1998: 853) – a vida no mundo deveria voltar- -se para o verdadeiro significado oculto por trás do véu da matéria. Esse sentido da vida humana era dado pelo mundo do Além. Assim, ao invés de buscarem na natureza um conjunto de regras e princípios, os medievais pretendiam sondar os mistérios das coisas, sua simbologia (PER- NOUD, s/d: 160). Faziam isso para recordarem-se que o mundo foi criado num ato de amor, que funcionava por amor – o amor que move o Sol e as outras estre- las (DANTE ALIGHIERI, 1998, canto XXXIII: 234) – e essa contemplação deveria orientar os espíritos de volta para Deus, salvando-os do Inferno. Para muitos, especialmente os neoplatônicos, o mundo sensível era apenas uma sombra, um indício, um caminho para se passar do sensível ao inteligível, da sombra para a luz (GREGORY, 2002: 265-266). Assim, a realidade encontrava- -se justamente no Além (LE GOFF, 1984, volume II: 325). A verdade era que Inferno e Paraíso existiam e eram imutáveis e eternos; o mundo não. 213© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? III. O Inferno Figura 5 Dante. A Divina Comédia. O Inferno. Canto XVIII. MS. Holkham misc. 48 (formerly Norfolk, Holkham Hall, MS. 514), p. 27. À esquerda, Dante e Virgílio observam no oitavo círculo do Inferno (chamado de Malebolge - “maus bornais”’) os rufiões, sedutores, aduladores, flageladores, todos golpeados por “diabos chifrudos com relhos grosseiros” e imersos em esterco. * Ramon Llull termina seu livro Doutrina para crianças (c. 1275), dedicado a seu filho Domingos, com uma descrição do Inferno e do Paraíso. Na pedagogia me- dieval, a lembrança do Além domesticava os espíritos, tornava-os mais serenos, mostrava-os que esse tempo era efêmero, que deveriam se preocupar com a salvação de suas almas. A educação pretendia oferecer uma base metafísica e moral, ocupando a mente e o coração da criança (D’HAUCOURT, 1994: 87). Ao descrever o Inferno para seu filho, Llull dá pistas interessantes para o histo- riador. Sua geografia infernal é bem hierarquizada. Logo de início ele divide o Inferno em quatro espaços: O Inferno está no meio de um lugar que fica dentro do coração da Terra. Tal lugar é trancado e fechado, e ali existe pena por todos os tempos. Esta pena acontece em quatro lugares: o Inferno, onde estão os danados que nunca sairão; o Inferno chamado Purgatório, onde o homem cumpre penitência pelas coisas que não cumpriu neste mundo; o terceiro Inferno, chamado Abraão, lugar onde entra- ram os profetas que viveram antes do Filho de Deus ser encarnado, e o quarto Inferno, onde entraram as crianças que não foram batizadas. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 1) Nesta descrição geográfica mesclam-se o novo e o antigo. O Purgatório é a gran- de novidade: em 1254 este novo lugar do Além já havia sido objeto de definição por parte do papa Inocêncio IV (LE GOFF, 1993: 329-330). O terceiro inferno, Abraão, recebe este nome devido a uma passagem bíblica, a história do mau rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31). Ali encontra-se a expressão judaica “seio de Abraão”, que corresponde à locução bíblica “reunir-se a seus pais” (Jz 2, 10; Gn 15, 15; 47, 30; Dt 31, 16). Na história contada por Jesus, o pobre morre e é levado pelos anjos ao seio de Abraão; o rico é enterrado e vai para a “mansão dos mortos”. Ali, “em meio a tor- mentos”, o rico vê Abraão e Lázaro, e pede água para refrescar a língua. Abraão lhe diz que ele era rico e Lázaro pobre, agora, no Além, Lázaro é consolado e ele atormentado. Além do mais, há um “grande abismo” entre o paradisíaco seio de Abraão e a mansão dos mortos (Lc 16, 23-26), e quem está do lado infernal pode ver o que perdeu, aumentando ainda mais o seu sofrimento. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 214 Assim, na Bíblia, o seio de Abraão é um lugar próximo do Paraíso. O mesmo sucede com o cristianismo primitivo. Em sua Vida de São Martinho (séc. IV), Sulpício Severo tem duas passagens onde comenta o enterro de São Martinho de Tours (c. 316-397): Após essas palavras, ele (Martinho) viu o diabo à suas costas. “Por que estais aí besta sangrenta?”, disse ele, “Tu não acharás nada em mim, maldito, pois o seio de Abraão me acolhe” (...) Martinho é aplaudido pelos salmos divinos; Martinho é honrado pelos hinos celestes; aqueles lá (do mundo) serão precipitados após seus triunfos (nesse mundo) dentro do cruel Tártaro; Martinho é acolhido alegre- mente no seio de Abraão; Martinho, pobre e modesto, penetra rico no céu. De lá, espero, ele nos protege (SULPÍCIO SEVERO, 1967, vol. 1: 343 e 345). No entanto, essa tradição sofreu uma mudança geográfica com o passar do tem- po. Por exemplo, no final do século XII, aquela passagem bíblica foi reinterpre- tada por Pedro, o Devorador (†1179), discípulo de Pedro Lombardo († 1160), chanceler da Igreja de Paris, professor de Notre-Dame de 1159 a 1179. Em sua Historia Escolástica ele nos conta: Lázaro, diz ele, foi colocado no seio de Abraão. Estava com efeito na zona supe- rior do lugar infernal, onde há um pouco de luz e nenhuma pena material. Era aí que estavam as almas dos predestinados, antes da descida do Cristo aos infer- nos. A esse lugar, por causa da tranqüilidade que nele reina, chamou-se seio de Abraão, como chamamos o seio materno. Deu-se-lhe o nome de Abraão porque ele foi a primeira via de fé (citado em LE GOFF, 1993: 190). Pedro, o Devorador foi um dos criadores do Purgatório como lugar determinado – ao lado de Odon d’Ourscamp (†1171). Assim, Ramon Llull mantém a tradição bíblica do “seio de Abraão”, mas coloca-o como um dos lugares do Inferno ao lado do novo espaço, o Purgatório, além do limbo das crianças que não foram ba- tizadas (ROQUER, 1960: 841). O seio de Abraão seria então o lugar das espera dos justos. Nas palavras de Le Goff, o seio de Abraão foi “primeira encarnação cristã do Purgatório.” (LE GOFF, 1993: 61), próximo do Paraíso (para o cristianis- mo primitivo) ou no Inferno (no século XIII). De qualquer modo, as concepções espaciais dos cristãos medievais em relação ao Além eram mesmo muito contra- ditórias (GURIÉVITCH, 1990: 112). Bem, estas divisões que Llull cria para o Inferno tentavam responder a uma im- portante questão para os teólogos medievais: como coordenar a eternidade com o tempo? Mais precisamente: o que acontece com os profetas que viveram antes de Cristo, se Ele é a única fonte de salvação e redenção? Estariam salvos mes- mo tendo vivido antes da vinda redentora de Jesus? Se a resposta fosse afirmativa, criar-se-ia o seguinte problema: Cristo redimiu os homens no tempo; se os homens que viveram antes de Cristo estão redimi- dos antes de Sua encarnação, Ele então encarnou-Se no tempo desnecessaria- mente. Assim, os medievais, Llull inclusive, responderam não: os profetas que viveram antes da vinda de Cristo deveriam aguardá-Lo em um espaço infernal chamado Abraão. Somente após o retorno de Cristo e sua descida aos infernos para resgatá-los eles poderiam ir para o céu. Llull segue então a tradição judaico- -cristã: Amável filho saiba e creia que quando a alma de Nosso Senhor Deus Jesus Cristo deixou Seu corpo morto na cruz, incontinenti desceu aos infernos e vendo Adão, Abraão e os outros profetas e santos, arrancou-os à força dos demônios e de sua prisão e colocou-os na Glória Celestial que não terá fim. No momento que 215© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? Adão viu chegar seu Senhor e Seu Criador para livrá-los dos trabalhos e da dor onde estiveram cinco mil anos, disse: ‘estas são as mãos que me criaram e me formaram e este é o Senhor queSe lembrou de nós em Sua Glória.’” (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 3) A descida de Cristo aos Infernos foi popularizada na Idade Média pelo apócrifo Evangelho de Nicodemo (LE GOFF, 1993: 63). É possível que Llull tenha conhe- cido essa versão. Para que seu filho imagine as penas infernais, Llull utiliza a analogia, típica forma de pensar da Teologia (ROQUER, 1960: 764) e da Idade Média - se pensava que a lei de criação fora a analogia (GURIÉVITCH, 1990: 80). Como se sabe, o raciocínio é analogante na medida em que conclui em virtude de uma semelhança entre os objetos sobre os quais raciocina, objetos que são diferentes, embora estes se assemelhem sob algum aspecto, ponto de partida da analogia. Analogia é uma síntese da semelhança e da diferença. Mas o que é mais importante é que a analogia se refere a um conceito, de modo que se uma das coisas significadas pelo conceito está ao nosso alcance e a outra não, pode-se conhecer a segunda pela primeira, como por um espelho. Naturalmente, no caso em questão, o filho de Llull não tinha conhecimento das representações do Inferno e do Paraíso. Assim, para demonstrar o espaço do Além, o filósofo se vale inicialmente da imagem do mar. O Inferno é como um mar borbulhante e cheio de fogo ardente, com grandes peixes que devoram os homens. Llull pede ao filho que imagine “... os gritos, as vozes e o pavor daqueles homens que não poderão se defender daqueles peixes, dragões infernais, dos quais não se poderá fugir.” (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 2). Imersos nessa água borbulhante, os danados, como os legumes no óleo fervendo, senti- rão muita dor (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 4). A porta do Inferno é como a boca de um dragão, cheia de dentes: pecadores e infiéis nunca cessam de cair ali (XCIX, 5). Do mar para o fogo. A segunda analogia relaciona as penas infernais com o fogo. A fornalha onde cozinham o pão e onde moldam o vidro, o chumbo, o ouro e a prata. A vida cotidiana do ferreiro serve de motivo para que Llull peça ao filho para imaginar o pavor dos homens no inferno: Filho, para que tenhas temor do fogo infernal que dura todo o tempo, vê a forna- lha onde fazem o vidro e o forno onde cozinham o pão, e considera estar uma hora naquele fogo (...) Quando vires fundir o chumbo, o ouro e a prata, imagina um buraco cheio de chumbo ou ouro fundido. Se tu estivesses na boca desse buraco, terias pavor quando te ligassem as mãos e os pés e o colocassem em um saco, amarrando uma grande pedra em teu colo e te jogando no buraco. Logo, tenhas pavor, filho, desse fosso cheio de ouro e prata fundida, onde estão os homens que por ouro e prata perderam a glória de Deus. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 7-8) Os diabos devoram os homens no Inferno. Como seu filho pode imaginar isso? Llull recorre à imagem dos cães devorando a carniça: Quando fores para fora dos muros da cidade e encontrares as bestas mortas que o homem expulsa para o vale, verás muitos cães, grandes e pequenos, que roerão aquelas bestas, as orelhas, os olhos, a cara, os braços e as pernas, e entrarão do ventre e roerão teus ossos e comerão teu coração e tuas entranhas, então é certo, filho, que cogites nos infernados, que estarão pelos campos e vi- rão os demônios semelhantes aos cães, leões e serpentes, e morderão aqueles © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 216 homens, suas cabeças, seus braços e seus membros e não poderão morrer nem escapar daquela pena. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. XCIX, 10) Hoje todas essas descrições do Inferno e do sofrimento dos condenados pare- cem muito aterrorizantes para serem incutidas na mente de uma criança com cerca de dez anos. Mas na educação do século XIII, a lembrança das penas infernais era um bom motivo pedagógico para que as crianças aprendessem que deveria amar a Deus acima de tudo, que deveria fazer as coisas tendo Deus como primeiro motivo (SANTANACH I SUÑOL). Pois para as mentes do século XIII, amor e temor caminhavam juntos: mesmo o bom príncipe deveria ter como primeira virtude o temor, o temor a Deus; mesmo a sabedoria estava entrelaçada com o temor (VILLALBA, 2002). Assim, era muito natural que se enfatizasse o caráter punitivo de Deus - deve-se levar em conta também o caráter moral e catequético da obra Doutrina para crianças. IV. O Paraíso Figura 6 Dante. A Divina Comédia. O Paraíso. Canto XXXIII. MS. Holkham misc. 48 (formerly Norfolk, Holkham Hall, MS. 514), p. 147. São Bernardo (à esquerda) pede à Virgem que fortaleça a visão de Dante para que ele possa ter a visão da imagem de Deus. Dante (à esquerda, abaixo) vislumbra-O por um instante como a representação da Trindade (três círculos de cores), cercado por um exército de anjos. Ao iniciar e findar o último capítulo da Doutrina para crianças, sobre o Paraíso, Ramon Lull diz a seu filho que suas mãos não podem escrever toda a glória do Paraíso (C, 1) e que quanto mais fala da glória celestial, mais percebe sua inca- pacidade de contar e significar a glória do Céu (C, 11). Humildade. Mas além des- sa virtude tipicamente cristã e medieval, ele também mostra assim a dificuldade humana de conceber o puro deleite espiritual da contemplação divina, dificuldade também encontrada por Dante – e magnificamente resolvida. Após esse mea culpa resignado, Llull inicia o tema com as faculdades intelec- tivas da alma: no Paraíso, Deus demonstra-Se (em Sua Unidade, Trindade e Essência) à lembrança, ao entendimento e ao desejo da alma. Fica claro que a intelectualidade no paraíso luliano é importante para a elevação mística até Deus – a partir do século XII alguns intelectuais relacionaram os espaços celes- tes com o intelecto, como, por exemplo, Honório de Autun e sua terceira esfera celeste intelectual (GURIÉVITCH, 1990: 94). As almas dos bem-aventurados têm suas capacidades estendidas e plenamente realizadas na trindade operacional da alma (os atos de lembrar, entender e desejar). Há uma complementaridade simbólica perfeita do número três: a Trindade de Deus integra-se com a trindade da alma e do corpo humano: 217© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? Filho, se tu entrasses no Paraíso, teus olhos corporais veriam os corpos de Nos- so Senhor Deus Jesus Cristo, teus olhos espirituais veriam a Sua alma, e teu en- tendimento veria uma semelhança de Sua natureza com a da Deidade. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. C, 4) Quando a alma cumpre sua finalidade - a glória de contemplar a Deus - se des- lumbra encantada com o espetáculo das luzes que o rodeiam: Filho, verás Nossa Senhora Santa Maria diante de Nosso Senhor Deus Jesus Cristo, e verás uma procissão e uma fileira de todos os anjos, arcanjos, márti- res, profetas, virgens, confessores e abades; e ouvirás que todos, com cantos de muito grande doçura, louvam e bendizem Nosso Senhor Deus, por todos os tempos, como Deus estará no céu e durará em Sua glória, perduravelmente sem fim. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. C, 5) O deleite celestial da visão completa-se com o da audição. Na contemplação do Paraíso, o eleito se deliciaria com a música dos astros bem-aventurados naquela procissão ao redor do Cristo – na iluminura do Paraíso de Dante (figura 6), a pro- cissão é composta por anjos. Imaginar a música no Paraíso tem uma explicação: no século XIII entendia-se o universo como uma harmonia musical, cada estrela tinha seu próprio som, sua própria nota, pois o amor divino no momento da cria- ção do mundo tornara-o uma perfeita sinfonia celeste – a harmonia das esferas celestes é descrita, por exemplo, por Honório de Autun, em sua obra De imagine mundi (séc. XII) (BOEHNER & GILSON, 2000: 278). Somado a esse resplendor, a esse espetáculo harmônico, o corpo seria glorifi- cado com a liberdade total, liberdade de espaço, de movimento, deausência de qualquer necessidade: Amável filho, se entrares no Paraíso, terás teu corpo glorificado, pois nunca mor- rerás, e estarás onde desejares estar, e passarás por qualquer lugar que de- sejares; e imediatamente quando desejares estar num lugar, imediatamente lá estarás; serás mais brilhante que o sol; não terás fome, sede, calor, frio, dor ou qualquer paixão, e estarás todos os tempos nesta bem-aventurança que serás ainda muito maior (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. C, 7). Por fim, Llull faz uma interessantíssima analogia dessa bem-aventurança do Pa- raíso com o jogo de xadrez! Para que seu filho imagine a grandiosidade da felici- dade de poder contemplar Deus em Sua glória, ele pede que Domingos faça uma multiplicação com as casas do jogo de xadrez: Quando estiveres sentado diante o tabuleiro de xadrez, faça este cálculo: com- para a primeira casa com toda a bem-aventurança deste mundo, na segunda co- loca toda a bem-aventurança que existiria em dois séculos semelhantes a esse, e na terceira casa coloca toda a bem-aventurança de quatro mundos; e assim multiplica a bem-aventurança por todas as casas do tabuleiro; e quando as casas do tabuleiro não te bastarem, faz mais casas das estrelas do céu, das gotas de água do mar, dos grãos de areia e de todos os pontos que couberem entre o céu e a terra; e quando tudo isso não te bastares para multiplicar o número, pega todos os números que estiveram, estão e estarão no tempo pretérito, presente e futuro. Caso possas fazer isso, ainda assim não será o suficiente para comparar a glória de todos os séculos ditos acima com a glória do Paraíso, pois toda esta glória dita acima será finita, e a celestial Glória nunca terá fim. (RAMON LLULL, Doutrina para crianças, cap. C, 9) Na Idade Média o xadrez gozou de uma popularidade jamais igualada no futuro (LAUAND, 1988: 23). Com profundo sentido alegórico, a simbologia desse jogo © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 218 representava a guerra, a sociedade, a conquista amorosa (COSTA) e o drama moral do homem (LAUAND, 1988: 24). Tomando como ponto de partida o xadrez, Llull faz com que seu filho trilhe uma viagem imaginária, das casas do tabuleiro para o céu, para o mar, e finalmen- te para o tempo (“todos os números que estiveram, estão e estarão no tempo pretérito, presente e futuro”). Além disso, a proposta de soma que Llull sugere a Domingos tem origem em uma antiga história indiana ligada à invenção do jogo de xadrez (por volta do século VI a.C.) – a exemplo das influências orientais já mapeadas quando da redação do Livro das Bestas (BONNER, 1989, vol. II: 13; COSTA). Antigas lendas ligam a invenção do xadrez a números astronômicos associados às casas dos tabuleiros. A título de exemplo, uma versão que circula ainda hoje diz que Sissa, brâmane indiano, inventou o jogo de xadrez para curar o tédio do rei Kaíde. Este ficou tão satisfeito com o presente que prometeu dar ao brâmane qualquer coisa que quisesse. Sissa pediu então um grão de trigo para a primeira casa do tabuleiro, dois grãos para a segunda, quatro para a terceira, oito para a quarta, sempre dobrando, até a casa sessenta e quatro – a mesma soma que Llull sugere ao filho no trecho da Doutrina para crianças para que imagine a bem- -aventurança do Paraíso. O rei Kaíde ficou surpreso com um pedido que parecia tão humilde e concor- dou. No entanto, quando foram feitas as contas, o rei viu que nem todos os tesouros da Índia juntos poderiam pagar o pedido de Sissa! O resultado da soma - associar 1 à primeira casa do tabuleiro, 2 à segunda, 4 à terceira, 8 à quarta, 16 à quinta, etc. – é um exemplo dos chamados números monstruosos: 18.446.744.073.709.551.615. O tesoureiro do rei disse que seriam necessárias 16.384 cidades, cada uma com 1.024 celeiros de 174.762 medidas e 32.768 grãos em cada medida. A coroa teria que semear 65 vezes toda a terra para obter mais de dezoito quinquilhões de grãos de trigo! (MATTOS). Dessa forma, Llull se baseia naquele antigo conto indiano para sua projeção do Além, que tem como base o raciocínio. Sua capacidade de imaginar o Paraíso tem como eixo norteador o intelecto. Pelo contrário, sua percepção do Inferno é calcada basicamente nos sentidos corporais, nas dores do corpo do danado. Há, portanto, uma clara associação simbólica invertida nos dois textos: Inferno/senti- dos corporais (coisas inferiores porque ligadas ao corpo) e Paraíso/capacidades intelectuais (coisas superiores porque ligadas às faculdades da alma). Conclusão Na Idade Média a morte foi domesticada nos corações. Desejada pelos guerrei- ros, aguardada pelos religiosos, temida por ser inesperada, a morte foi sentida como um rito de passagem para um outro mundo, o Além. Os medievais perce- biam o Além como uma realidade: a Idade Média foi o tempo do Além. A preocu- pação com o pós-morte foi uma constante em suas vidas. E de todos os homens, o usurário foi o contramodelo social escolhido para representar as opções da geografia do Além, qual a localização das vidas futuras dos crentes. Assim, o Além espelhou, em certa medida, todo o emaranhado imaginário de esperanças, de expectativas e de angústias de toda uma sociedade, daquela sociedade dita medieval. O dilema da finitude humana sempre fez parte do âmbito religioso; as religiões lidaram com a questão da morte e do Além. Da imagem da morte e suas re- 219© Fim da Idade Média: Crise ou Transformação? presentações – um tema cheio de silêncios voluntários e involuntários (VOVEL- LE, 1996: 18-19) – o Além é um espaço-espelho da sociedade que o imagina. Espaço-reflexo perfeito (Paraíso) mas também invertido (Inferno). Curiosamente há também uma inversão no espaço perfeito, pois no caso do cristianismo, no Paraíso “os últimos serão os primeiros” (Mt 20, 16) e as crianças estarão à frente dos adultos (Mt 18, 1-4). Tratava-se de uma proposta revolucionária, subversiva, pois alterava a hierarquia social que estruturava a sociedade. As representações do Além que Ramon Llull apresentou a seu filho têm dois importantes acréscimos ao imaginário medieval: as influências dos contos orien- tais e o tema da intelectualidade ligado à contemplação divina. Ao ressaltar as faculdades intelectivas da alma, o beato maiorquino dá um passo em direção ao racionalismo, sem, no entanto, deixar de lado a espiritualidade mística de tons franciscanos tão característica da síntese realizada pelo seu tempo, o século XIII. Pensar o mundo dos mortos era a melhor forma de melhorar o dos vivos, de torná-lo mais semelhante aos desejos de Deus (adaptado de COSTA, 2011). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Com base em seus estudos anteriores, faça uma reflexão sobre a importân- cia do entendimento dos sistemas de produção para a análise do sistema feudal e do sistema capitalista. 2) Qual foi a importância da fome e da peste para a crise do século 14? 3) O que foi a Guerra dos Cem Anos? 4) Você compreendeu os conceitos de desenraizamento e desparentalização? Resuma-os. 5) Como foram constituídos os Estados Nacionais no século 14? 6) O Estado moderno, tal como o conhecemos, é uma instituição advinda de uma construção histórica, na qual repousam os pilares de nossa sociedade. Diante disso, reflita: que contribuições nos traz o estudo dessa época? Quais as ligações do nascimento do Estado moderno com o modo de vida da so- ciedade contemporânea? © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 220 11. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, acompanhamos as discussões em torno dos temas referentes aos séculos 14 e 15. De acordo com Johan Huizin- ga, esse período foi marcado por uma crise do modo de produção feudal e daquele modelo de
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