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História e legislação do SUS e Saúde da Família Problematizando a realidade da Saúde Pública FABIO BATALHA MONTEIRO DE BARROS FABIO BATALHA MONTEIRO DE BARROS HISTÓRIA E LEGISLAÇÃO DO SUS E SAÚDE DA FAMÍLIA Problematizando a realidade da Saúde Pública 1ª edição Rio de Janeiro Junho de 2011 A obra História e Legislação do SUS e Saúde da Família de Fabio Batalha Monteiro de Barros foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não A- daptada. Compartilhe! Você tem a liberdade de copiar, transmitir ou distribuir este livro, desde que citada a obra e o autor e de que não seja para fins comerci- ais. A versão impressa mais atualizada deste livro pode ser adquirida no site da livraria em www.agbook.com.br. Adquira seu exemplar impresso direta- mente da editora. Contatos com o autor pelo e-mail fabiobmb@gmail.com Monteiro de Barros, Fabio Batalha. História e Legislação do SUS e Saúde da Família: problematizando a realidade da saúde pública / Fabio Batalha Monteiro de Barros. – Rio de Janeiro: Editora Agbook, 2011. 138 p. ISBN 978-85-911855-0-4 1. Sistema Único de Saúde – SUS. 2. Saúde Pública – Saúde Coletiva 3. Saúde da Família. 4. História da saúde – legislação em saúde II. Título Dedicatória Para minha família: Eduarda, Ian e Isis. Índice: História e Saúde .................................................................... 9 Para pensar e aprofundar... .............................................. 14 Cenário internacional ...................................................... 15 Cenário Nacional ............................................................ 22 III Conferência Nacional de Saúde ................................. 26 Privatizações na Ditadura Militar ................................... 30 Movimento de Reforma Sanitária ................................... 31 VIII Conferência Nacional de Saúde .............................. 35 Para pensar e aprofundar... .............................................. 36 O SUS na Constituição Cidadã ........................................... 37 Sala de debates ................................................................ 54 Para pensar e aprofundar... .............................................. 58 Bases legais e legislação infraconstitucional do SUS ......... 59 Lei 8.080 e o funcionamento do SUS ............................. 60 Lei 8.142 e o controle social ........................................... 95 Resolução CNS 333 e a democratização dos conselhos 100 As Normas Operacionais do SUS ..................................... 113 Para pensar e aprofundar... ............................................ 117 Planejamento e Implantação da Saúde da Família ............ 119 Política Nacional de Atenção Básica em Saúde ........... 124 Núcleos de Apoio a Saúde da Família .......................... 130 Sala de debates .............................................................. 132 Para pensar e aprofundar... ............................................ 135 Considerações finais ......................................................... 137 Livros e artigos citados ..................................................... 139 Filmes sugeridos ............................................................... 141 Sites sugeridos .................................................................. 142 Atualização e contatos ...................................................... 143 8 9 História e Saúde "Significa reconhecer que somos seres condiciona- dos mas não determinados. Reconhecer que a His- tória é tempo de possibilidade e não de determi- nismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é pro- blemático e não inexorável." (FREIRE, 2006) A discussão sobre a história do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) e a implantação da Saúde da Família no país ganha importância quando com- preendemos a história como algo vivo, parte integrante e indissociável do presente. Vamos nos referir aqui à história como processo, e este processo histórico, como útil ferramenta de análise do presente e questionadora do futuro. É neste sentido que a história será utilizada ao longo do texto, procurando problematizar a realidade da saúde pública, mergulhando no processo histó- rico da reforma sanitária brasileira, na constituição federal e na legislação infraconstitucional de organização do SUS. A visão da história como processo, do presente e futuro em constante mu- dança, nos oferece a possibilidade de, como seres conscientes de nossos condicionamentos, mas livres de qualquer determinismo, influenciar no cotidiano das práticas e das políticas de saúde. 10 Neste sentido, o estudo da história como processo vivo, em curto, médio ou longo prazo, em permanente construção, abre espaço para historicizar con- ceitos que inicialmente nos parecem dados, permanentes ou imutáveis. Ao estudar e compreender a história do SUS, a existência de diferentes profis- sões, os problemas no financiamento do sistema, por exemplo, descobre-se que nada é como está, mas tudo está sendo, e a única permanência é a cons- tante mudança. "Nossos sensos estéticos, nossas reações à violên- cia, nossos sentimentos de medo, nossos cuidados com saúde, nossas preocupações com higiene, com horários, com exatidão e cálculo, nossas preferên- cias amorosas e sexuais, enfim, coisas que parecem täo familiares e naturais aos nossos olhos, näo exis- tiram sempre e têm por trás de si um passado rico em detalhes e em variações. O passado não está apenas no passado: ele constitui nossa sensibilida- de e continua de certa forma, como veremos, a ser presente." (RODRIGUES, 1999) Não apenas políticas ou práticas sociais mais coletivas estão sujeitas ao processo histórico. Os cuidados com o corpo, por exemplo, sempre fizeram parte da humanidade, assim como seus cuidadores. Embora a concepção de corpo e sua relação com a saúde tenha se modificado ao longo dos séculos e milênios, sempre existiram pessoas que se dedicavam a arte de curar os males do corpo e da alma, por muitas vezes até simultaneamente. 11 Conceitos de corpo, saúde e doença são construídos social e historicamente, obedecem a um jogo de forças e interesses e, a partir destas resultantes transformam-se ao longo dos tempos. A compreensão da dinâmica destes conceitos e dos interesses que estão em jogo, é fundamental para a análise histórica da realidade. Esta dinâmica de forças e interesses que atuam sobre a realidade se asseme- lha bastante à análise vetorial da física newtoniana. Em uma metáfora do processo histórico a partir da física, a resultante das forças/interesses/grupos organizados que atuam sobre determinadoponto/assunto/política/prática determinam a velocidade, direção e intensidade do movimen- to/acontecimentos. A implantação do SUS, por exemplo, foi a resultante de diversos (por vezes conflitantes) interesses de gestores municipais, estaduais, federais, de políti- cos, de interesses e forças do capital privado por meio de hospitais e clíni- cas particulares, planos de saúde, da indústria farmacêutica, das associações de moradores, das organizações de categorias profissionais, da mídia, do poder judiciário etc. Esta visão complexa da realidade, como um grande campo de forças, em permanente disputa, de vetores de intensidade, direção e sentidos diferentes permite uma análise mais crítica e aprofundada da realidade, das práticas e políticas de saúde vigentes no país. 12 De acordo com a segunda Lei de Newton, ou princípio fundamental da Dinâmica, um corpo qualquer desenvolve velocidade e sentido na medida da resultante das forças aplicadas sobre ele. As políticas e práticas de saúde, a criação do SUS, do Programa de Saúde da Família, seus problemas, desa- fios e sucessos, por exemplo, são determinados pela resultante de centenas de forças e interesses que atuam sobre ele. Sua mais lenta ou rápida implan- tação depende em grande parte, das forças que estão em jogo neste campo. Frei Betto, faz uma análise das forças, ou do poder, de forma interessante. Para ele, o Estado, ou as políticas de Estado, como é o SUS, por exemplo, são como feijoada... só funcionam sob pressão. (Betto, 2006). Campo vetorial dado por vetores da forma (-y, x) Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vector_field.svg - domínio público. 13 A capacidade de exercer pressão (força) é diretamente proporcional à orga- nização de determinado grupo/coletivo. Quanto menos organizado, menor a força exercida, mais lentos os avanços e maiores as chances de retrocessos. Quanto mais coletivo o movimento, maior poder de organização, maior a capacidade de exercer pressão, maiores as chances para conquistas sociais. E é justamente isso que prova o processo histórico. Todas as conquistas sociais foram resultantes do exercício coletivo e orga- nizado de diversas forças/grupos sociais. Como sabiamente diz a cultura popular, "nada cai do céu", tudo depende da força, da pressão, de disputas entre diferentes projetos/interesses. Embora a grande mídia e o neoliberalismo tentem nos fazer acreditar que devemos ser mais individualistas e que movimentos coletivos são perda de tempo..., não há outra saída senão o diálogo, a aproximação das pessoas e a ação coletiva organizada. Exemplos disso são os centros/diretórios acadê- micos das universidades, associações de moradores, sindicatos e tantos outros movimentos sociais. Pode-se dizer que o Movimento de Reforma Sanitária brasileira foi um exemplo bem sucedido de forças organizadas na direção da construção de um projeto de sociedade mais justo no campo da saúde. Ao longo deste texto, procuraremos entender a história do SUS, seu funcionamento, seus avanços, dentre eles o Saúde da Família, e claro, seus problemas. 14 Para pensar e aprofundar... As relações de poder estão presentes em quais situações do cotidiano? Que lições a análise do processo histórico pode nos oferecer? Por que o SUS existe? Por que não um modelo diferente? O que tínhamos antes desse sistema? Como ele foi construído, quais os interesses em jogo? 15 Cenário internacional O Brasil não está isolado do resto do mundo. A análise das conjunturas políticas, sociais e culturais, em nível regional, nacional e internacional é relevante para entender a concepção do SUS como política social no país. Neste sentido, é importante também considerarmos o SUS como política social, para além do campo da saúde. Normalmente conhecemos o funcio- namento desse sistema na prática hospitalar e ambulatorial, e mesmo nas políticas específicas do campo da saúde. No entanto, a criação e implanta- ção do SUS recebeu influências e produziu interferências em outros setores e políticas sociais e econômicas. O sonho de saúde como direito social, direito humano universal se desen- volveu ao longo das décadas do século XX, especialmente na Europa. O período após a revolução francesa, a revolução industrial, no pós-guerra, a necessidade de reconstrução de parte da Europa, influenciaram fortemente no desenvolvimento dos chamados "welfare states" ou Estados de Bem- Estar Social. A proteção social, antes vista como uma forma de caridade, concentrada principalmente nas irmandades assistenciais religiosas, foi sendo ampliada como política de Estado, no campo que chamamos de segu- ridade social. Não é coincidência que na Constituição brasileira a seção sobre saúde está inscrita exatamente no capítulo que trata da seguridade social, como se verá mais adiante. Neste capítulo estão também as seções sobre Assistência So- 16 cial e a Previdência Social. A crise dos estados de bem-estar social é tam- bém a crise do SUS, e não está dissociada da crise financeira global capita- lista. "A implementação das políticas de saúde do Brasil, orientada por princípios universalistas, equânimes e democráticos após a institucionalização do Sis- tema Único de Saúde, insere-se no escopo da dis- cussão sobre conformação das políticas sociais no capitalismo. As contradições inerentes ao conflito entre capital e trabalho, as múltiplas correlações de forças e as determinações estruturais que permeiam a luta política constituem elementos centrais para a análise das políticas sociais. Este é um campo onde se torna necessário considerar a conjuntura em que são produzidas as relações sociais produtivas, ten- do em vista sua intrínseca dinamicidade. [...] As políticas sociais sintetizam a contradição entre mo- do e relações de produção nas sociedades capitalis- tas, conformando-se historicamente a partir das correlações de forças estabelecidas na arena políti- ca." (PIRES et DEMO, 2006) Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 25, já tratava da saúde como direito humano, conceito que seria reafirmado em posteriores conferências internacionais. 17 "Toda pessoa tem direito a um padrão de vida ca- paz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensá- veis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu con- trole." (Declaração Internacional dos Direitos Hu- manos, 1948) Seguro desemprego, férias remuneradas, carga horária semanal de trabalho, aposentadoria, saúde, educação, assistência social e diversos outros direitos e políticas em vigor hoje no país têm estreita relação com o movimento em torno do Estado de bem-estar social. O Brasil, como país periférico, e em tempos de crise do capitalismo moderno, ficou longe de implantar totalmen- te as características de bem-estar social dos países europeus. Mais especifi- camente no campo da saúde, um marco internacional importante foi o rela- tório Lalonde. "O Informe Lalonde influenciou as políticas sanitá- rias de outros países como da Inglaterra e Estados Unidos e estabeleceu as bases para a conformação de um novo paradigma formalizado na URSS, na Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde de Alma Ata, em 1978, com a proposta de 'Saúde para Todos no ano 2000' e a 'Estratégia de AtençãoPrimária de Saúde". (HEIDMANN, 2006) 18 O ministro da saúde do Canadá, Marc Lalonde, escreveu seu relatório sobre o sistema de saúde canadense, propondo críticas ao tradicional modelo de visão biomédico da saúde, centrado apenas na assistência médica, e apon- tando componentes de caráter social, coletivo, ambiental, como fatores determinantes da saúde da população. "Este relatório [Lalonde] certamente influencia, em 1977, a Assembléia Mundial de Saúde a lançar o slogan "Saúde para todos no ano 2000", baseado na extensão de cobertura dos serviços de atenção simplificada. Em 1978, em Alma Ata é realizada a I Conferência Internacional sobre Atenção Primá- ria em Saúde, que reconhece a saúde como direito de todos e que seus determinantes são intersetori- ais." (PEDROSA, 2004) Estavam em disputa diferentes visões sobre o papel do Estado e direitos sociais. A realização da I Conferência sobre Atenção Primária em Saúde em Alma-Ata, no Cazaquistão (antiga URSS), traduzia as disputas entre visões comunistas e capitalistas, típicas do período da guerra fria. A China e a URSS, entre outros países comunistas divulgavam seus modelos de atenção à saúde como contraponto ao modelo liberal capitalista. Dando um salto no tempo, é possível perceber como em 2010 nos EUA, com as propostas do governo Obama de reforma do sistema de saúde, sur- gem críticas rotulando o projeto como de caráter comunista. Para os interes- ses do capital, saúde é um negócio, e o acesso aos bens e serviços de saúde 19 deve ser uma conquista individual daquele que pode pagar pelos serviços, mesmo que isso custe a vida de milhões de pessoas. "Os Estados Unidos são o único país desenvolvido sem cobertura universal de saúde. Até a reforma que acaba de ser aprovada no Congresso, cerca de 15% da população, mais ou menos 46 milhões de pessoas, não tinham cobertura alguma. [...] Nos anos 30, Franklin Delano Roosevelt enfrentou a crise com um papel ativo do Estado na proteção dos desempregados e dos mais pobres. Trinta anos depois, nos anos 60, foi a vez de Johnson implantar o Medicare para 20 milhões de cidadãos e medidas legais contra a discriminação dos afroamericanos. E agora Obama. Os três presidentes democratas fo- ram taxados de comunistas." (Carta Maior, 2010) A declaração de Alma-Ata reafirmou a saúde como direito humano funda- mental, considerando-a como a mais importante meta social da humanidade. Os cuidados primários de saúde foram definidos como prioridade interna- cional para todos os países e a participação da população no planejamento e execução dos serviços foi considerada como fundamental. Por sua impor- tância histórica e seus reflexos no SUS, é importante a leitura de alguns de seus principais artigos: "Declaração de Alma-Ata - Conferência Interna- cional sobre Cuidados Primários de Saúde - Alma- Ata, URSS, 6-12 de setembro de 1978 20 I) A Conferência enfatiza que a saúde - estado de completo bem- estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental, e que a conse- cução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização re- quer a ação de muitos outros setores sociais e eco- nômicos, além do setor saúde. II) A chocante desigualdade existente no estado de saúde dos povos, particularmente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como dentro dos países, é política, social e economica- mente inaceitável e constitui, por isso, objeto da preocupação comum de todos os países. IV) É direito e dever dos povos participar individu- al e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde. VIII) Todos os governos devem formular políticas, estratégias e planos nacionais de ação para lan- çar/sustentar os cuidados primários de saúde em coordenação com outros setores. Para esse fim, se- rá necessário agir com vontade política, mobilizar os recursos do país e utilizar racionalmente os re- cursos externos disponíveis." (Alma-Ata, 1978) 21 Quase dez anos depois de Alma-Ata, a Carta de Ottawa, em 1986, reafirma- va a importância da promoção da saúde como fundamental para o alcance da meta de saúde para todos, reconhecendo a importância da intersetoriali- dade para a solução dos problemas de saúde. Durante os anos de 1980 e 1990 diversas conferências internacionais de promoção da saúde foram realizadas em diferentes capitais. 22 Cenário Nacional "Analisar políticas sociais num país com contradi- ções gritantes - longe da condição de Estado de bem-estar social alcançada pelos países centrais, de enormes desigualdades, com fossos de miséria e exclusão social, onde a fome ainda constitui uma agenda prioritária e estratégica no discurso do go- verno, onde o tráfico de drogas e a violência das grandes metrópoles se institucionalizam com a co- nivência do poder público e onde centros financei- ros e a naturalização da miséria convivem lado a lado - é, no mínimo, complexo." (PIRES et DE- MO, 2006) As ações de saúde desenvolvidas no Brasil no início da chamada República Velha (1889-1930) eram concentradas no Distrito Federal (Rio de Janeiro) e direcionadas às doenças epidêmicas que prejudicavam o comércio nos por- tos brasileiros. As campanhas contra a febre amarela e outras doenças eram organizadas em função das necessidades comerciais e não de acordo com as necessidades de saúde da população. Em decorrência da pressão exercida em diversas greves de operários de 1917 a 1919, foram criadas, em 1923 (Lei Eloy Chaves), as primeiras Cai- xas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) do país. Essas entidades eram 23 mantidas com recursos dos empregados das fabricas, patrões e do governo. Seu objetivo era garantir a aposentadoria dos funcionários e prestar assis- tência médica. Durante este período, a saúde pública se dividia entre o combate às epidemias para garantir a atividade comercial e a assistência à saúde por meio de algumas CAPs ligadas a empregados de algumas áreas da economia, como ferroviários, portuários, marítimos e posteriormente comerciários e bancários. Em 1930, por exemplo, existiam cerca de 47 CAPs no país, com pouco mais de 100.000 segurados. À maioria da popula- ção, não coberta pelos CAPs, restava o atendimento privado ou os hospitais de caridade. A saúde ainda estava longe de ser um direito universal. "Se, antes, o Estado tinha o poder sobre a vida e a morte dos indivíduos, de causar a morte ou deixar viver pelo poder da guerra ou da pena capital, a partir do século XVII, o poder político assumiu a tarefa de gerir a vida por meio da disciplina dos corpos ou dos controles reguladores das popula- ções. Esses são os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida: a disciplina anatomopolítica dos corpos individuais e a regulação biopolítica das populações. O nasci- mento da medicina social e a consequente preocu- pação do Estado pela Saúde Pública responderam a esse objetivo. Assim, a função do poder não é mais matar, mas investir sobre a vida. A potência da morte é substituída pela administração dos corpos e a gestão calculista da vida. Para Foucault a organi- zação do biopoder foi necessária para o desenvol- 24 vimento do capitalismo, porque era preciso, por um lado, inserir os corpos disciplinados dos trabalha- dores no aparelho da produção e, por outro, regular e ajustar o fenômeno da população aos processos econômicos". (JUNGES,2009) No período Vargas (1930-1945), as CAPs foram transformadas gradativa- mente em Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs). Foram criados os seguintes Institutos, dentre outros: IAPM (Marítimos - 1933), IAPB (Bancá- rios - 1934), IAPC (Comerciários - 1934), IAPI (Industriários - 1938), I- APTC (Transportadores de Cargas - 1938), IAPE (Estivadores - 1938) etc. Os recursos oriundos dos Institutos eram utilizados para o pagamento das aposentadorias, assistência médica e também para impulsionar a industriali- zação do país. Os trabalhadores mais organizados, com maior capacidade de pressão conseguiam assistência médica por meio dos seus Institutos. Este modelo de assistência à saúde do Estado excluía todos os trabalhadores informais, desempregados, subempregados e trabalhadores rurais (a maioria da população). No período de Vargas foi criado também o Ministério da Educação e Saúde Pública (1930). Com recursos financeiros norte-americanos da Fundação Rockfeller foram criados o Serviço Nacional de Febre Amarela (1937) e o Serviço de Malária do Nordeste (1939). Em 1941 foram criados os Serviços Nacionais da Peste, da Tuberculose, da Febre Amarela, do Câncer, da Malá- ria, de Doenças Mentais, de Educação Sanitária, de Fiscalização da Medici- na, de Saúde dos Portos, de Bioestatística e de Água e Esgotos. Fruto de um acordo com o governo norte-americano foi criado o SESP (1942) para com- 25 bate a malária e a febre amarela na Amazônia e no Vale do Rio Doce (regi- ões de interesse econômico para os EUA). Nota-se deste período que a assistência médica individual era prestada por meio dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, vinculados ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, enquanto as campanhas de vacinação e erradicação de doenças infectocontagiosas eram subordinadas ao Ministério da Educação e Saúde Pública. Durante o período de redemocratização de 1946 a 1963, foram realizadas diversas campanhas especialmente contra a malaria e a tuberculose. Em 1953 foi criado o Ministério da Saúde. Em 1956 foi criado na estrutura do Ministério da Saúde o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNE- Ru). Em 1960 foi aprovada a Lei Orgânica da Previdência Social (Lops) que uniformizou direitos dos segurados de todos os Institutos de Aposenta- dorias e Pensões. Seis anos depois, na ditadura militar, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que unificou todos os institutos, afastando os trabalhadores da gestão e retirando a contribuição da União no financiamento da previdência social. O período foi marcado ainda pela realização da III Conferência Nacional de Saúde (1963). 26 III Conferência Nacional de Saúde Embora a VIII Conferência Nacional de Saúde tenha sido um marco na criação do SUS (como será visto mais adiante no texto), a III Conferência Nacional de Saúde, realizada no curto período do governo democrático de João Goulart lançou as bases das propostas para a criação de um sistema único de saúde brasileiro. "A 3ª Conferência revestiu-se de especial signifi- cado na medida em que propôs reforma profunda na estrutura sanitária do país e, pela primeira vez, fixou com clareza uma Política Nacional de Saúde capaz de atender às necessidades do nosso povo a custos suportáveis pela Nação. Sob esse aspecto, ela se constituiu num marco importante da história do pensamento dos sanitaristas brasileiros."(Brasil, 1992) A frase de Wilson Fadul, Ministro da Saúde do governo de João Goulart, descreve um pouco da importância da III Conferência Nacional de Saúde no contexto da saúde pública brasileira. A conferência, convocada por Jango e realizada em dezembro de 1963, no Rio de Janeiro, traçou um importante panorama da situação da saúde no país na década de 1950, permitindo assim 27 realizar algumas análises sobre o alcance do programa de metas do ex- presidente Juscelino Kubitschek (JK) para a saúde pública. Do ponto de vista da história da saúde pública brasileira, a terceira Conferência é tam- bém um marco fundamental na construção do sistema público de saúde brasileiro, sendo então lançadas aí as bases da municipalização, de um sis- tema único e descentralizado. "Pela primeira vez discutiu-se, no país, um modelo tecno-assistencial baseado na integração das ações coletivas e individuais de saúde, cujo ponto de apoio seria constituído a partir de serviços básicos de saúde permanentes, elaborados de acordo com um planejamento governamental. Pela primeira vez, também, levantou-se a questão da organização dos serviços médicos privados." (Merhy e Queiroz, 1993) Desde a convocação da Conferência, realizada em julho de 1963, foram definidos os grandes temas que deveriam ser discutidos: situação sanitária da população brasileira; distribuição e coordenação das atividades médicas- sanitárias nos níveis federal, estadual e municipal; municipalização dos serviços de saúde e fixação de um plano nacional de saúde. (Brasil, 1963) "O plano de desenvolvimento nacional de JK foi criticado e responsabilizado pelo aumento da po- breza da população. As metas para a saúde de JK, pela ótica da III CNS, não foram bem sucedidas. Os problemas básicos saúde, principalmente os re- 28 lacionados às endemias rurais, apresentados por Juscelino em 1955, permaneciam presentes no país. Os trabalhadores do interior continuavam a sofrer com a ausência dos serviços primários de saúde. Na análise feita pelos participantes da conferência, esses trabalhadores continuavam incapazes e aban- donados pelo Estado." (Silva, 2008) A análise final dos participantes da Conferência sobre a situação sanitária da população ressaltou a persistência de muitos problemas. Continuava a predominância das chamadas "doenças de massa", persistiam as doenças transmissíveis, inclusive aquelas controláveis por vacinas já disponíveis, assim como permaneciam focos residuais de pestilências, dentre elas, a varíola, a peste e a febre amarela silvestre. Do ponto de vista dos indicado- res de saúde, a vida média do brasileiro era curta (cerca de 50 anos) e a mortalidade geral, infantil e por doenças transmissíveis, era elevada. Do ponto de vista social, o saneamento básico beneficiava apenas pequena parcela da coletividade, havia a persistência de problemas alimentares e habitacionais e ainda persistia, também, a carência de serviços de assistên- cia médico-sanitária, especialmente no meio rural (Barros, 2009) As deliberações da Conferência foram principalmente no sentido da criação de um sistema único de saúde para todo o país, sendo detalhadas as atribui- ções iniciais da União, Estados e municípios, a criação de unidades especí- ficas para planejamento juntos aos órgãos de saúde das três instâncias, a sugestão de leis municipais que criariam os serviços municipais de saúde e 29 os fundos municipais com aplicação de 10% da receita global do município nas despesas de saúde, entre outras inovações. Embora essas e outras deliberações da Conferência não tenham sido imple- mentadas em virtude do golpe civil-militar de 1964, foram lançadas em 1963, as bases do Sistema Único de Saúde, projeto retomado somente em 1986, durante a oitava Conferência Nacional de Saúde. O golpe de 64 atra- sou em mais de vinte anos a criação do SUS no país. (Barros, 2009) Em virtude do golpe, os Anais da III CNS não foram sequer publicados pelo Ministério da Saúde. Somente em 1992, a Fundação Municipal de Saúde, da Prefeitura de Niterói (RJ), publicou a íntegra dos Anais da III Con- ferência. (Brasil, 1992)30 Privatizações na Ditadura Militar O longo período da ditadura militar (1964-1985) representou um enorme retrocesso nos direitos em saúde conquistados pelas classes trabalhadoras organizadas. O INPS passou a ser instrumento de privatizações, comprando serviços de saúde de clínicas e hospitais e laboratórios particulares. O favo- recimento à iniciativa privada e a remuneração por unidades de serviço gerou superfaturamentos e corrupção desenfreadas. Por outro lado, convê- nios com empresas de "medicina de grupo" foram iniciados, em substituição aos serviços próprios do INPS. Essas empresas, orientadas pelo lucro, ofe- reciam serviços mais precários e baratos aos segurados. Neste período as campanhas do Ministério da Saúde tiveram baixa eficácia, com financiamento reduzido. Em 1968, seguindo o modelo privatizador, foi instituído o Plano Leonel Miranda, que pretendia que todos os hospitais governamentais fossem vendidos à iniciativa privada. Restaria ao Estado apenas o papel de financiar os serviços privados, que deveriam ser também custeados pelos próprios pacientes. A medida encontrou forte resistência principalmente dos funcionários da previdência social. Ainda na ditadura militar, diversos sanitaristas, professores e pesquisadores foram perseguidos e proibidos de trabalhar no país, tendo seus laboratórios de pesquisa fecha- dos. 31 Movimento de Reforma Sanitária "Com o processo de democratização vivenciado na América Latina e particularmente no Brasil, os movimentos políticos discutem a saúde como ques- tão política, em discursos organizados em torno da discriminação, exclusão e precariedade do atendi- mento e da ineficiência das medidas de saúde pú- blica. Neste cenário, é possível dizer que para o Brasil o dispositivo/documento disparador foi a re- alização da VIII Conferência Nacional de Saúde e seu relatório, que definiu as diretrizes políticas da reforma sanitária brasileira. A temática dessa con- ferência – saúde é um direito de todos e dever do Estado – redireciona o objetivo e o processo de formulação de políticas públicas e contextualiza como dever do Estado a manutenção, promoção e proteção à saúde de seus cidadãos. Colocando a saúde como direito, a reforma sanitária brasileira assume como campo de abrangência a situação de iniqüidade da saúde da população brasileira e toma como prioridade estratégica a organização de um sistema de atenção à saúde descentralizado, articu- lado, com gestão única em cada ente federado, a- cessível, resolutivo, de base local e com participa- ção social." (PEDROSA, 2004) 32 O movimento de reforma sanitária brasileiro se organiza nos períodos mais duros da repressão militar, ao final dos anos 60, e se desenvolve durante as décadas de 70 e 80, formado principalmente por sanitaristas, professores, trabalhadores da saúde, políticos de esquerda, membros progressistas da Igreja Católica, jornalistas, sindicalistas, representantes de movimentos sociais e estudantes. A aproximação do campo das ciências humanas e sociais ao campo da saú- de, a introdução do pensamento marxista e o materialismo histórico e dialé- tico foram importantes para a mudança da visão sobre a saúde, de uma visão biologicista para uma visão integrada com o universo social, político e ideológico. A luta pela saúde como direito de todos era também a luta pela democracia, contra a ditadura militar. As conferências internacionais ofere- ciam também apoio teórico ao movimento, reforçando suas teses de saúde como direito humano inalienável. "O direito à saúde no Brasil, viabilizável pela polí- tica social conformada historicamente nas socieda- des capitalistas, contou com um amplo movimento por democratização, desencadeado a partir da dé- cada de 1970, constituindo-se numa mobilização expressiva da sociedade civil por conquistas. O contexto de democratização e crise econômica na década de 1980, bem como a força política dos ato- res sociais da Reforma Sanitária (intelectuais e pro- fissionais de saúde dos setores médios), configura- ram um palco de disputa singular na história das políticas sociais do país, cuja principal reivindica- 33 ção, a saúde como direito de todos e dever do Es- tado, foi garantida no texto da Constituição de 1988." (PIRES et DEMO, 2006) Um marco importante do movimento de reforma sanitária no Brasil foi a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), em 1976. Seus integrantes passaram a lutar pela democratização da saúde e da sociedade como um todo (participe e baixe livros sobre o SUS em www.cebes.org.br). Em 1979, no I Simpósio Nacional de Política de Saúde da Câmara dos De- putados, o CEBES apresentou o histórico documento ―A questão democrá- tica na área da saúde‖ que lançou as bases e os princípios do Sistema único de Saúde (SUS). "A Reforma Sanitária brasileira nasceu na luta con- tra a ditadura, com o tema Saúde e Democracia, e estruturou-se nas universidades, no movimento sindical, em experiências regionais de organização de serviços. Esse movimento social consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na qual, pela primeira vez, mais de cinco mil repre- sentantes de todos os seguimentos da sociedade ci- vil discutiram um novo modelo de saúde para o Brasil. O resultado foi garantir na Constituição, por meio de emenda popular, que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado." (Sergio Arouca, 1998) 34 No período final da ditadura, durante a redemocratização nos anos 80 foram desenvolvidas diferentes propostas de mudanças nas práticas de saúde que incluem: o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-Saúde); o Plano de Reorientação da Assistência Médica no âmbito da Previdência Social (Plano CONASP); e as Ações Integradas de Saúde (AIS). 35 VIII Conferência Nacional de Saúde Em 1986, reunindo cerca de cinco mil pessoas, entre profissionais de saúde, gestores, prestadores de serviço e, pela primeira vez em uma conferência nacional, usuários do sistema de saúde, foram discutidas e aprovadas a necessidade de unificação do sistema de saúde, a saúde como direito de cidadania e como dever do Estado e a necessidade de participação da popu- lação nas decisões. O relatório final da VIII Conferência consolidou os princípios da reforma sanitária brasileira, servindo de base para a assem- bléia constituinte. Como desdobramentos da Conferência foram criados a Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS), a Plenária Nacional de Saúde e o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), experiências que antecede- ram e contribuíram diretamente para a criação do SUS na Constituição cidadã de 1988. "O processo de redemocratização do país foi tardio e encontrou uma conjuntura mundial de crise fiscal dos Estados de bem-estar social, um dos principais fatores de inviabilização das conquistas sociais re- gistradas na constituição de 1988. É nesse contexto contraditório que o Sistema Único de Saúde se ins- creve, trazendo em si as ambigüidades de se pre- tender universal, justo e democrático em plena cri- se mundial dos Estados de proteção social." (PI- RES et DEMO, 2006) 36 Para pensar e aprofundar... Quais lições podemos tirar sobre a história da saú- de pública brasileira? Qual a relação entre saúde e os interesses do capi- tal? Existe relação direta entre desenvolvimento eco- nômico e melhoria das condições de saúde? Qual a influência das políticas e conferências in- ternacionais no cenário brasileiro,e vice-versa? Por que o tema ―Saúde e Democracia‖ foi tão im- portante? 37 O SUS na Constituição Cidadã "Quando a maioria dos países do Primeiro Mundo iniciava um processo de desmonte do Estado de bem-estar social, seguindo a cartilha neoliberal, o Brasil apostou num sistema público de saúde fun- dado na universalidade e na equidade do acesso aos recursos necessários a uma saúde integral. Essa op- ção nacional foi fruto de um pacto construído, du- rante anos, com muita eficiência política e social pelo movimento sanitarista brasileiro". (JUNGES, 2009) A saúde representou a ponta de lança dos movimentos sociais na luta pela democracia, participação popular e garantia de direitos sociais. Fruto de décadas de organização e luta coletiva, o movimento de reforma sanitária brasileira logrou, no efervescente período de redemocratização do país no final da década de 80, inserir no texto da nova Constituição Brasileira de 1988 um capítulo sobre a Seguridade Social, com apoio de uma grande coalizão de partidos de esquerda. Mas o que significa Seguridade Social? A Seguridade Social no Brasil foi instituída na Constituição de 1988 e asse- gura direitos relativos à saúde, a previdência social e a assistência social. É como uma rede de proteção, segurança social e cidadania. Sua concretiza- 38 ção tem como base o princípio da solidariedade, uma vez que o financia- mento de todo esse sistema está a cargo de toda a sociedade. Saúde é direito de todos e dever do Estado (independe de contribuição indi- vidual), assistência social é prestada somente aos que dela necessitarem, também independente de contribuição (proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, bem como aos deficientes e incapacita- dos), e a previdência social é dirigida aos trabalhadores e seus dependentes, do setor público e privado, mas dependente de contribuição individual. Há ainda outras informações importantes sobre saúde, previdência e assis- tência social que merecem destaque e serão analisadas a seguir, com co- mentários ao texto da Constituição de 1988 (atenção aos comentários em negrito!). CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 TÍTULO VIII - Da Ordem Social - CAPÍTULO I - DISPOSIÇÃO GERAL Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. CAPÍTULO II - DA SEGURIDADE SOCIAL - Seção I - DISPOSIÇÕES GERAIS 39 Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Comentário: nota-se que pela primeira vez na história do país a seguri- dade social passa a integrar a constituição e vigorar como direito uni- versal dos brasileiros. Tal conquista social deve-se, em grande parte, à organização e mobilização do movimento de reforma sanitária. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - irredutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) 40 Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) c) o lucro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não inci- dindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; (Redação dada pela E- menda Constitucional nº 20, de 1998) III - sobre a receita de concursos de prognósticos. IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) 41 Comentário: a questão do financiamento da seguridade social, assim como da saúde pública é um dos aspectos fundamentais para o bom funcionamento do sistema, e depende de alterações no texto constitu- cional por meio de emendas constitucionais, como é o caso, por exem- plo, da Emenda Constitucional 29, que carece de regulamentação pelo Congresso Brasileiro, como se verá mais a frente. Seção II - DA SAÚDE Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Comentário: a saúde como direito de todos é uma conquista que não se deve esquecer. O que hoje nos parece "natural" necessitou de décadas de conscientização, organização coletiva, mobilização, negociação e luta social. Não custa lembrar que até 1988, dezenas de milhões de brasilei- ros que não contribuíam com a Previdência Social simplesmente eram impedidos legalmente de ter acesso aos serviços públicos de saúde. Tal- vez alguns ainda se recordem que nas portarias dos hospitais públicos era rotina solicitar a carteira de trabalho do cidadão para verificar se poderia ser feito o atendimento ou não. 42 Ainda sobre o artigo 196, destaca-se o acesso universal e igualitário, e o conceito ampliado de saúde que, a exemplo de Alma-Ata, depende tam- bém de políticas sociais e econômicas. Como acesso universal entende- se que o SUS deve ser para todos, ricos e pobres, crianças, jovens e idosos, desempregados, aposentados, donas de casa, empresários, en- fim, todos, sem exceção. A expressão igualitário significa que não pode haver qualquer precon- ceito ou discriminação de qualquer espécie. No campo da saúde, outro conceito desenvolvido em relação ao SUS é a equidade, que, de forma diferente contribui para a igualdade. Equidade consiste na adaptação de alguma lei ou norma a uma situação concreta, observando-se os critérios de justiça e igualdade. Pode-se dizer, por exemplo, que a eqüi- dade adapta a regra a um caso específico, a fim de deixá-la mais justa. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fisca- lização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regiona- lizada e hierarquizada e constituemum sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: 43 Comentário: a concepção do SUS como rede regionalizada e hierarqui- zada procura organizar os diferentes serviços de saúde (centros de vigilância em saúde, laboratórios, unidades básicas, hospitais, clínicas etc) nas diferentes regiões do país, seguindo normas gerais de funcio- namento, mas com autonomia dentro de cada Município, Estado e Uni- ão. É preciso lembrar que a organização política do Brasil, garantida pela constituição, é de um país federativo, ou seja, municípios e Estados tem autonomia para criar suas próprias leis, desde que respeitada a Consti- tuição. A União deve estimular, por meio de políticas indutoras (como foi o caso do PSF), para que cada município assuma (ou não) determi- nada política ou programa. A adesão do município não é automática, depende de cada gestor municipal, o que torna o processo de implanta- ção de uma nova política nacional, como é o SUS, ainda mais demora- do. I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. 44 Comentário: estas são as diretrizes do SUS na constituição brasileira: descentralização, atendimento integral e participação da comunidade. A descentralização era uma bandeira antiga do movimento de reforma sanitária, que criticava as políticas centralizadoras de saúde em um país com tantas diferenças regionais como o nosso. Significa, de alguma forma, todo o poder ao município, ou seja, a descentralização é também uma forma de municipalização da assistência à saúde. Um dos argu- mentos favoráreis a essa medida é que cada município sabe dos seus problemas e prioridades, e as pessoas residem nos municípios, são mais próximas a ele do que da União. A União, segundo regras específicas repassa aos municípios recursos financeiros para serem aplicados em saúde, é o chamado repasse fundo a fundo (do fundo nacional de saúde para os fundos municipais de saúde). Tal medida, segundo alguns críti- cos mais recentes provocou uma pulverização da política de saúde, principalmente em função do elevado número de pequenos municípios no país. Uma das soluções apresentadas ao problema foi a organização de consórcios intermunicipais e regionais, contando com a mediação das secretarias estaduais de saúde, como previsto na Norma Operacio- nal de Assistência à Saúde - NOAS-SUS 01/02 e no Pacto pela Saúde (2006). Do atendimento integral entende-se que o SUS não deve oferecer so- mente uma cesta básica de saúde, mas atendimento completo, em todos os níveis de complexidade, da educação em saúde e vacinação, até aten- dimentos de urgência, transplantes e cirurgias, por exemplo. Integra a promoção, proteção e recuperação da saúde, priorizando a prevenção, mas sem que para isso sejam sacrificados recursos dos serviços assis- 45 tenciais. Mais recentemente esta diretriz do SUS tem recebido atenção por parte de diversos pesquisadores, que buscam discutir a integrali- dade do cuidado em saúde (veja mais em www.lappis.org.br). A participação da comunidade, como diretriz do SUS, já prevista por conferências internacionais desde Alma-Ata, é a concretização do ideal democrático de que as políticas e ações do poder público devem ser não apenas fiscalizadas e acompanhadas pela população, mas também as comunidades organizadas devem participar do planejamento, definição de prioridades, acompanhamento da execução e avaliação do impacto das políticas na própria comunidade. Neste sentido, é na saúde que a participação popular ganha mais espaço, abrindo campo para que ou- tras políticas sociais do poder público incluam a população organizada no processo decisório. A participação da população no SUS, conhecida também pelo nome de controle social, foi definida pela Lei 8.142/90, como se verá mais adiante. § 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único renumerado para § 1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos deri- vados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) 46 I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transfe- ridas aos respectivos Municípios;(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) § 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) I - os percentuais de que trata o § 2º; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destina- dos aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados desti- nados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) 47 IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) Comentário: o financiamento é o maior entrave para a construção do SUS. Quando se discute financiamento são postos em jogo diferentes interesses e visões sobre o papel do Estado. O que de fato acontece é o subfinanciamento do SUS. O maior proble- ma não são desvios de verba ou falta de competência técnica de gestão – como insistem em afirmar os que são favoráveis à privatização da saú- de – a questão central é a escassez de recursos públicos. Pare se ter uma idéia, os recursos públicos para a saúde destinados para cada brasileiro anualmente são um dos mais baixos dentre os países do terceiro mundo, ficou em torno de 252 dólares (dados referen- tes a 2007). O Uruguai, por exemplo, investiu no mesmo ano cerca de 431 dólares por habitante/ano e a Argentina 336 dólares. Em países como Espanha e Canadá, os investimentos públicos em saúde são de 3 a 7 vezes maiores que no Brasil, segundo a Organização Mundial de Saú- de (OMS). A Emenda Constitucional 29, promulgada pelo Congresso no ano 2000, obrigou os estados e os municípios a aplicarem, respectivamente, 12% e 15% da arrecadação de impostos em ações e serviços de saúde. No en- tanto, até início de 2011 a emenda ainda não havia sido regulamentada no Congresso. A luta pela regulamentação da EC-29 continua até hoje. Enquanto o financiamento do SUS não for garantido de fato, pela regu- 48 lamentação da EC-29, as diretrizes legais serão descumpridas na práti- ca e os problemas do financiamento insuficientecontinuarão ocorren- do. O subfinanciamento do SUS não acontece por acaso, atende aos interes- ses das classes dominantes e possibilita a ampliação do setor privado de saúde, especialmente os planos de saúde que cresceram enormemente nos últimos anos. § 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de pro- cesso seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação. .(Incluído pela Emen- da Constitucional nº 51, de 2006) § 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemi- as. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006) (Vide Medida provisória nº 297. de 2006) § 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemi- as, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial. (Redação dada pela Emenda Consti- tucional nº 63, de 2010) 49 § 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixa- dos em lei, para o seu exercício. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006) Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de di- reito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subven- ções às instituições privadas com fins lucrativos. § 3º - É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei. § 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remo- ção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pes- quisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de san- gue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: 50 I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; IV - participar da formulação da política e da execução das ações de sanea- mento básico; V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. Comentário: O artigo 200, último sobre saúde na Constituição, define as atribuições do SUS, de forma bastante ampla. É interessante notar a grande responsabilidade que o SUS tem não apenas sobre a assistência à saúde em hospitais, clínicas, unidades básicas e de pronto atendimen- to, mas suas ações cobrem a fiscalização da qualidade da água, alimen- 51 tos, campanhas de vacinação, saúde do trabalhador, fiscalização de substâncias tóxicas, produção de pesquisas, medicamentos, equipamen- tos e um sem número de outras ações. Não há portanto um único brasi- leiro que não seja usuário do SUS. Todos somos usuários do SUS: quando compramos um alimento no supermercado, quando bebemos água, quando assistimos a um anúncio de prevenção da dengue, quando compramos um medicamento na farmácia ou usufruímos dos resulta- dos de pesquisas em saúde do SUS. O item III do mesmo artigo, que define como atribuição do SUS a or- denação da formação de recursos humanos na saúde tem merecido bastante atenção nos últimos anos. Portarias conjuntas do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação têm definido novos padrões de formação para que os profissionais de saúde estejam aptos a atuar no SUS com resolutividade e qualidade na assistência, na gestão e no con- trole social em saúde. Seção III - DA PREVIDÊNCIA SOCIAL Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avança- da; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) 52 III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntá- rio; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou com- panheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) Art. 202. O regime de previdência privada, de caráter complementar e orga- nizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência soci- al, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) Seção IV - DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, indepen- dentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhi- ce; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; 53 IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão reali- zadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades benefi- centes e de assistência social; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticase no controle das ações em todos os níveis. Comentário: alguns parágrafos foram suprimidos neste texto, apenas para fins didáticos. Note que na previdência social há um caráter con- tributivo do beneficiário, já na assistência social, assim como na saúde, o cidadão independe de contribuição individual para ter acesso aos seus serviços. 54 Sala de debates Diversos pesquisadores, professores e sanitaristas vêm discutindo a implan- tação do SUS a partir da Constituição Brasileira e seus principais obstácu- los. Vejamos um pouco das opiniões em artigos recentes: "O Sistema Único de Saúde surge no espírito da Conferência de Alma-Ata, que enfatizou: a priori- dade dos cuidados primários como direito de todos, possibilitando o acesso universal às ações básicas necessárias para um cuidado integral da saúde; a proximidade, a participação e a relevância pública dos serviços responsáveis por essas ações. Mas o SUS não se restringiu a esses cuidados primários; organizou o acesso universal e integral a procedi- mentos e tecnologia de média e alta complexida- de." (JUNGES, 2009) "A disputa por recursos financeiros para uma polí- tica universal da saúde no Brasil se tornou muito mais intensa a partir do final dos anos 1980. Se há algum tempo atrás ainda se tinha a crise fiscal e fi- nanceira do Estado Desenvolvimentista brasileiro como o principal obstáculo à saúde pública, atual- mente o principal inimigo é o grande capital finan- ceiro e seus efeitos no corte dos recursos para a á- 55 rea social, em geral, e para a saúde, em particular." (Mendes et Marques, 2009) "A universalidade do acesso, a integralidade das ações, a descentralização dos serviços, a relevância pública das ações e dos serviços e a participação da comunidade são as bases coletivas do Sistema Úni- co de Saúde, enquanto efetivação do direito à pres- tação de bens e serviços que concretizam a saúde como um direito de todos e um dever do Estado." (JUNGES, 2009) "O setor privado em saúde do Brasil, formado tanto pela assistência médica supletiva como pelas in- dústrias farmacêuticas e laboratoriais, tem crescido expressivamente com a globalização, atuando com forte presença do capital financeiro e influenciando as tensões dentro do Estado em favor do mercado. Tal fato, evidentemente, não ocorre isolado de um contexto econômico maior, que faz com que o pro- jeto de construção do SUS se torne contrário a inte- resses dentro da própria esfera pública governa- mental. Com um plano de estabilização da econo- mia que emperrou o crescimento, e tendo que se- guir o receituário do FMI para obter crédito e ga- nhar confiança dos investidores internacionais, o país se vê num contexto em que as políticas públi- cas vêm sendo cada vez mais restringidas, sobran- 56 do pobreza e desemprego." (PIRES et DEMO, 2006) "A partir de 1990, passou a predominar a ideologia do "Estado Mínimo" (retração dos orçamentos so- ciais e da infra-estrutura de desenvolvimento), as soluções de mercado, os programas focais de baixo custo, e o "Estado Máximo" da remuneração cres- cente da dívida pública e seus juros. O contexto da orientação política dos últimos dezesseis anos afe- tou o processo de construção do SUS profunda- mente: ao drástico sub-financiamento, sucedeu-se a precarização da remuneração e das relações de tra- balho e uma verdadeira onda de terceirizações pri- vatizantes e inconseqüentes. O pensamento eco- nômico dos gastos mínimos com a questão social e de focalização apenas na atenção básica de baixo custo e baixa potência estruturante tem sido uma das maiores barreiras à implementação do ideário da Reforma Sanitária Brasileira e dos princípios e diretrizes da integralidade, da igualdade, da regionalização e da participação da comunidade na formulação das políticas e estratégias. Para os atuais 187 milhões de brasileiros, ao câm- bio médio do dólar de 2005, o investimento públi- co de saúde nesse ano foi de 153,00 dólares per ca- pita. Isso significa cerca de 10% da média de US$ 57 1.400,00 per capita no Canadá, países europeus, Japão e Austrália e menos que o investimento da Argentina, do Chile e do Uruguai. A mesma defa- sagem é confirmada pela metodologia da OMS, que calcula a média de 270,00 dólares/públicos per capita no Brasil, e cerca de US$ 2.300,00 para os referidos países." (SANTOS, 2007) 58 Para pensar e aprofundar... Qual a importância social e histórica do SUS? Quais seus princípios e diretrizes? Porque alguns autores afirmam que o SUS está na contra-mão do neolibera- lismo? Quem é contra ou a favor do SUS? Por que todos somos usuários do SUS? Qual a importância e desafios das políticas indutoras postas em prática pelo Ministério da Saúde? Qual pode ser considerado o maior problema do SUS? Como está a média de investimentos públicos em saúde no Brasil quando comparados aos países de primeiro mundo e da América Latina? 59 Bases legais e legislação infraconstitucional do SUS A constituição brasileira definiu os princípios e diretrizes gerais do SUS, faltavam ainda as leis e normas operacionais que iriam detalhar o funcio- namento de todo o sistema na prática. Atribuições da União, Estados e mu- nicípios, seus limites, repasses de recursos financeiros, formas de fiscaliza- ção etc. A base legal principal de regulamentação do SUS consiste em: Constituição Brasileira (1988), Lei n. 8080 (1990), Lei n. 8142 (1990), Norma Operacional Básica do SUS (NOB93 - 1993), Norma Operacional Básica do SUS (NOB96 - 1996), Emenda Constitucional 29 (2000), Norma Operacional da Assistência à saúde n.1 (NOAS-SUS 2002) e Pactos pela Saúde (2006). A Lei 8080, promulgada em 1990, dispõe sobre a organização e funciona- mento do SUS, enquanto a Lei 8142, do mesmo ano, define a forma de participação da comunidade e as transferências de recursos. Conhecidas como Leis Orgânicas da Saúde, por sua importância na organização do SUS, serão apresentadas aqui na íntegra, com seus vetos e alterações em virtude de novas leis, para leitura e análise. 60 Lei 8.080 e o funcionamento do SUS LEI Nº 8.080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990. Dispõe sobre as condições para a pro- moção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Na- cional decreta e eu sanciono a seguinte lei: DISPOSIÇÃO PRELIMINAR Art. 1º Esta lei regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado. TÍTULO I - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que as- 61 segurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. § 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das em- presas e da sociedade. Art. 3º A saúde tem como fatores determinantese condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambi- ente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País. Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. TÍTULO II - DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DISPOSIÇÃO PRELIMINAR Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS). § 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produ- ção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde. 62 § 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar. Comentário: este artigo apresenta uma definição bastante objetiva sobre o que é o SUS: conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. À iniciativa privada cabe participar de forma complementar ao SUS, e não ao contrário. CAPÍTULO I - Dos Objetivos e Atribuições Art. 5º São objetivos do Sistema Único de Saúde SUS: I - a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determi- nantes da saúde; II - a formulação de política de saúde destinada a promover, nos cam- pos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do art. 2º desta lei; III - a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações as- sistenciais e das atividades preventivas. Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I - a execução de ações: 63 a) de vigilância sanitária; b) de vigilância epidemiológica; c) de saúde do trabalhador; e d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica; II - a participação na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico; III - a ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde; IV - a vigilância nutricional e a orientação alimentar; V - a colaboração na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho; VI - a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imuno- biológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção; VII - o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde; VIII - a fiscalização e a inspeção de alimentos, água e bebidas para consumo humano; 64 IX - a participação no controle e na fiscalização da produção, transpor- te, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e ra- dioativos; X - o incremento, em sua área de atuação, do desenvolvimento cientí- fico e tecnológico; XI - a formulação e execução da política de sangue e seus derivados. § 1º Entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo: I - o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde. § 2º Entende-se por vigilância epidemiológica um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos. § 3º Entende-se por saúde do trabalhador, para fins desta lei, um con- junto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemio- 65 lógica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalha- dores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalha- dores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo: I - assistência ao trabalhador vítima de acidentes de trabalho ou porta- dor de doença profissional e do trabalho; II - participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saú- de (SUS), em estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à saúde existentes no processo de trabalho; III - participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), da normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração, armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador; IV - avaliação do impacto que as tecnologias provocam à saúde; V - informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética profissional; VI - participação na normatização, fiscalização e controle dos serviços de saúde do trabalhador nas instituições e empresas públicas e privadas; 66 VII - revisão periódica da listagem oficial de doenças originadas no processo de trabalho, tendo na sua elaboração a colaboração das entidades sindicais; e VIII - a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo ambien- te de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos trabalhadores. Comentário: os artigos 5 e 6 descrevem as diversas áreas de atuação, objetivos e atribuições do SUS, que vão, obviamente, muito além dos cuidados em saúde da rede assistencial. Mais uma vez reforça que todos os brasileiros, dos mais pobres aos mais ricos, somos usuários do SUS. CAPÍTULO II - Dos Princípios e Diretrizes Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coleti- vos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do siste- ma; 67 III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integrida- de física e moral; IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
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