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285 Capítulo XX Objeto e Divisão da Filosofia do Direito Conceito de Filosofia do Direito 118. O termo Filosofia do Direito pode ser empregado em acepção lata, abrangente de todas as formas de indagação sobre o valor e a função das normas que governam a vida social no sentido do justo, ou em acepção estrita, para indicar o estudo metódico dos pressupostos ou condições da experiência jurídica considerada em sua unidade sistemática. No primeiro sentido, Filosofia do Direito corresponde, em última análise, a "pensamento filosófico da realidade jurídica", e é sob esse enfoque que se fala na Filosofia do Direito na Antigüidade Clássica, na Idade Média, ou mesmo na época pós-renascentísta. É fato inconteste, pois, que houve discursos filosóficos sobre o Direito antes de terem surgido filósofos do Direito propriamente ditos: eram filósofos e teólogos, moralistas ou políticos que voltavam a sua atenção para o fenômeno jurídico, indagando de suas razões e finalidades. Não se deve estranhar que tenha havido pensamento filosófico- jurídico, desde quando surgiu a Filosofia, no Ocidente ou no Oriente, em cada área cultural segundo distintas diretrizes. É que o homem é naturalmente levado a filosofar sobre todos os acontecimentos dotados de validade universal, ou seja, sobre todas as formas de vida que se revelem constantemente presentes no 286 decurso de sua experiência histórica. Se onde está o homem aí está o Direito, não é menos certo que onde está o Direito se põe sempre o homem com a sua inquietação filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o fundamento das expressões permanentes de sua vida ou de sua convivência. É claro que um jusfilósofo contemporâneo, valendo-se dos parâmetros que hoje caracterizam a sua disciplina, pode tratar da Filosofia Jurídica de Aristóteles ou de Tomás de Aquino, de Hobbes ou de Espinosa, expondo-lhes o pensamento segundo a unidade sistemática implícita em suas pesquisas, mas é, mutatis mutandis, tarefa análoga à de quem extrai uma Filosofia Jurídica dos livros de Ética de Bergson ou de Nicolai Hartmann. Na realidade, todo filósofo, ao cuidar das questões pertinentes ao ser ou à existência do homem, não pode deixar de focalizar a problemática jurídica, analisando-lhe, quer a sua possível origem, quer o seu destino ou finalidade, pelo simples motivo de que o Direito é uma das dimensões essenciais da vida humana. É claro que as formulações teóricas legadas pelos filósofos sobre o legal ou o justo (e um dos seus temas recorrentes é exatamente esse do conflito entre o obrigatório por força de comando legal e o obrigatório em virtude de ditame espontâneo da consciência) representam contribuições irrenunciáveis, inseridas como temas ou problemas no âmbito da Filosofia do Direito qua talis. Parece-me, pois, que cabe distinguir entre uma Filosofia Jurídica implícita, que se prolonga, no mundo ocidental, desde os pré- socráticos até Kant, e uma Filosofia Jurídica explícita, consciente da autonomia de seus títulos, por ter intencionalmente cuidado de estabelecer as fronteiras de seu objeto próprio nos domínios do discurso filosófico. O surgimento da Filosofia do Direito como disciplina autônoma foi o resultado de longa maturação histórica, tornando-se uma realidade plenamente spiegata (para empregarmos significativa expressão de Viço) na época em que se deu a terceira fundação da Ciência Jurídica ocidental, isto é, a cavaleiro dos séculos XVIII e XIX. A meu ver, com efeito, se os romanos constituem, pela primeira vez, o Direito como ciência, graças à esquematização predeterminada e institucional das classes de 287 comportamentos possíveis, a segunda fundação do Direito, como estudo sistemático de uma ordem normativa autônoma, ocorre com Cujas e demais representantes da "Jurisprudência culta" do século XVI, para readquirir nova consciência jurídico-positiva fundante, com a elaboração, no início do século XIX, do Código Civil de Napoleão e as contribuições complementares da Escola da Exegese e da Escola Histórica ou dos Pandectistas, ficando superada de vez a pseudociência do jusnaturalismo Racionalista, duplicata inútil do Direito Positivo. Pois bem, é por ocasião desse terceiro momento de fundação científico-positiva do Direito que a Filosofia Jurídica começa a adquirir a configuração que nos vem do século XIX, tendo como fonte inspiradora o criticismo kantiano, com o qual se esboça a passagem do estudo do Direito Natural para o estudo da Filosofia do Direito propriamente dita, fato este que a nova compreensão da Ciência Jurídica iria esclarecer c consolidar. Não concordo, pois, com Del Vecchio quando afirma que Kant pouco teria acrescentado às concepções jusnaturalistas, pois a ele devemos a colocação da temática filosófico-jurídica em termos de compreensão das "condições transcendentais" da experiência jurídica, a começar de sua afirmativa essencial de que "o direito é o conjunto das condições mediante as quais o arbítrio de cada um deve se acordar com o arbítrio dos outros segundo uma lei universal de liberdade". Abstração feita de aceitar-se ou não tal conceito, que marca o ápice da concepção liberal do Direito, o que nele me parece valer como verdade adquirida é a correlação entre o conceito de Direito e os de condicionalidade e realizabilidade da ação no plano prático. É a partir da correlação entre o conceito do Direito e o fato jurídico concreto (apesar de apenas esboçada por Kant em sua Doutrina do Direito) que o problema filosófico-jurídico começa a ser situado segundo bases próprias, inclusive sob o prisma lingüístico, pela substituição, cada vez mais predominante, do termo Direito Natural por Filosofia do Direito, desde a obra decisiva de Gustavo Hugo, significativamente intitulada Tratado de Direito Natural como Filosofia do Direito Positivo, denominação que, como lembra Guido Fassò, inspirou a John Austin o título de sua obra 288 póstuma, Lições de Jurisprudência ou Filosofia do Direito Positivo. Nesse sentido, como ponto decisivo e marcante da passagem do Direito Natural (entendido como direito abstratamente concebido) para a Filosofia do Direito, vinculada à idéia de experiência jurídica, vale a pena lembrar que os Lineamentos fundamentais de Filosofia do Direito de Hegel têm como contrapágina de rosto este título: Compêndio de Direito Natural e Ciência do Estado. Se, ao depois, um ou outro autor, como Ahrens, ainda se mantém fiel à denominação Curso de Direito Natural, e se este termo ainda é preferido até hoje na linha da ortodoxia escolástica, é inegável o reconhecimento de que o termo Filosofia do Direito ganhou status próprio, embora suscitando uma série de problemas a que vou, brevemente, me referir. Concebida a Filosofia do Direito como uma disciplina autônoma, que pode ter ou não como um de seus temas o do Direito Natural, dúvidas surgiram sobre sua situação no contexto da Filosofia Geral, falando-se, por exemplo, em Filosofia particular, ou especial, chegando-se a negar a sua viabilidade, dada a natureza universal da problemática filosófica... Trata-se, a meu ver, de um pseudoproblema, porquanto a Filosofia do Direito é a Filosofia mesma quando seu objeto é a experiência do Direito, por sua validade universal, como se dá, também, com a Filosofia da Arte, da Linguagem etc. A questão que autenticamente se põe, dividindo os jusfilósofos, é bem outra, pertinente à amplitude da temática filosófica que a realidade jurídica condiciona ou exige. Assim é que vemos o espectro das opiniões alargar-se, a partirde posições de aberto negativismo, que convertem a Filosofia do Direito em simples "visão unitária" da Ciência Jurídica mesma (o que, a rigor, não tem sentido) ou no exame de sua metodologia, ou, então, como é mais freqüente, em mera Teoria Geral do Direito, de caráter puramente empírico, isto é, como o conjunto sistemático dos modelos hermenêuticos e normativos concebidos em função do ordenamento jurídico, tal como este logicamente se apresenta, sem qualquer indagação sobre os seus fundamentos axiológicos, ou sobre a natureza da experiência jurídica como algo de distinto do corpo das 289 regras jurídicas positivas. Variante dessa redução empiricista da Filosofia do Direito à Teoria da Ciência do Direito é a doutrina daqueles que a concebem, à maneira de Norberto Bobbio, como "a teoria da linguagem jurídica", a partir, por exemplo, da Lógica jurídica deôntica e de exigências sintáticas e pragmáticas, como se apresenta em outras esferas do positivismo lógico-jurídico, que oferece várias perspectivas. Em todas essas colocações do problema o que é posto entre parêntesis é o problema do valor, por entender-se que todo entendimento axiológico redunda num discurso "metafísico ou não- científico", e, destarte, destituído de sentido. Outras vezes, porém, vai-se além de expressões puramente formais (consideradas, no fundo, de caráter imaginário, ou fictício) para afrontar-se um problema de conteúdo ou de infra-estrutura, apresentando-se, então, o Direito, como o faz o realismo escandinavo (Karl Olivercrona, Alf Ross e outros), como asserções normativas que correspondem a exigências de fato no plano da ação julgada necessária, fundando-se a sua validade, não como valor ou norma superior, mas como linguagem determinada pela eficácia da ação ou da conduta. Se há, todavia, jusfilósofos que optam pelo fato como horizonte da normatividade jurídica, outros há que entendem ser esta logicamente plena, resolvendo-se a sua validade no seio da ordem normativa mesma, em função de uma norma fundamental que, transcendentalmente, condiciona todo o sistema. Refiro-me à teoria pura do Direito de Hans Kelsen, com a sua conhecida tese da norma fundamental, que teremos a oportunidade de estudar no Capítulo XXXII. Não faltam, porém, filósofos do Direito, e não se pode dizer que sejam em menor número, para os quais a Filosofia do Direito é incompatível com toda e qualquer espécie de reducionismo. Ora, quem acompanhou com cuidado as referências feitas ao Direito, nas páginas destinadas à Propedêutica Filosófica, já percebeu que me inclino no sentido da compreensão do Direito em toda a sua integralidade, tanto assim que a defino como sendo o ''estudo crítico-sistemático dos pressupostos lógicos, axiológicos e históricos 290 da experiência jurídica". Trata-se de noção que nos parece abranger o que há de essencial em nossa disciplina, embora não nos mova a preocupação de definir. A que é que, na realidade, visa a Filosofia do Direito? Em primeiro lugar, indaga dos títulos de legitimidade da ação do jurista. O advogado ou o juiz, enquanto se dedicam às suas atividades, realizam certa tarefa, cumprem certos deveres. Qual o título que legitima essa experiência humana e lhe empresta dignidade? E a primeira pergunta, a que diz respeito ao problema áo fundamento ético do Direito. A segunda ordem de questões refere-se aos valores lógicos da Jurisprudência ou da Ciência do Direito. A que critérios deve manter-se fiel o jurista, para poder ordenar a experiência social com coerência e rigor de ciência? O problema lógico une-se, assim, ao problema ético, formando ambos um todo harmônico, unitário, que só por necessidade de análise haveremos de separar. Dessa correlação resulta um perene esforço, quer do legislador, quer do jurista, no sentido de estabelecer adequação cada vez mais precisa e prática entre os esquemas lógicos da Ciência do Direito e as infra- estruturas econômico-sociais, segundo os ideais éticos que informam e dignificam a coexistência humana. É assim que exigências lógicas, éticas e histórico-culturais compõem a trama dos assuntos fundamentais pertinentes à Filosofia Jurídica. São essas, na realidade, as três questões básicas, cuja implicação e polaridade preocupa os filósofos do Direito, embora outras existam, mas com interesse menor ou consecutivo. A rigor, pois, não se deveria falar em "tarefas" ou em "pesquisas" diversas no âmbito da Filosofia do Direito, porquanto o que sempre se visa é a compreensão da experiência jurídica na unidade de seus elementos integrantes, o que quer dizer, a realidade do Direito como realidade ético-lógico-histórica em uma implicação de perspectivas. Feita esta ressalva, cujo significado logo mais se apreenderá em todo o seu alcance, será possível afirmar que os temas ou assuntos fundamentais da Filosofia do Direito referem-se ao conceito de 291 Direito, à idéia de Justiça e à respectiva integração no plano histórico, suscitando-se estas perguntas fundamentais: — Como se determina conceitualmente o Direito? Como se concebe idealmente a Justiça? Como essas exigências de ordem lógica e ética se concretizam na ordem social e histórica do Direito Positivo? São três perguntas que, como veremos no capítulo seguinte, pressupõem um estudo de ordem geral. Muitas têm sido as formas de discriminar os temas de nossa disciplina, desde que o estudo passou a ter denominação própria, distinta do chamado Direito Natural, pois é sabido que nem sempre se estudou Filosofia do Direito com esta denominação. Antigamente, o estudo recebia outras designações, apresentando-se até o século XVIII sob a rubrica tradicional de Doutrina do Direito Natural ¹. 1. Muito embora se possa dizer que é com HEGEL que se afirma a orientação, iniciada com GUSTAVO HUGO no sentido de se filosofar sobre o Direito Positivo, e não sobre um Direito Natura abstrato, os Lineamentos de Filosofia do Direito daquele mestre do idealismo germânico ainda são encimados pelo título genérico Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse (Berlim, 1821). Para HEGEL "Direito Natural" e "Direito Filosófico" são expressões sinônimas. Com este título ou equivalentes, ensinou-se a matéria na Faculdade de Direito de São Paulo no decorrer do século passado, até se reduzir a mera Enciclopédia Jurídica, sob o influxo das idéias positivistas. Mas, qualquer que seja a denominação — pois há autores que preferem empregar o termo "Filosofia do Direito e do Estado", ou "Filosofia Jurídica e Social" —, o que importa é discriminar os assuntos ou os temas principais que competem especificamente à nossa disciplina, sem transformá-los em compartimentos estanques. A Divisão Tripartida 119. Para melhor compreensão de como dividimos a Filosofia do 292 Direito, convém confrontar, inicialmente, dois tipos de divisão que apresentam entre si muitos pontos de contato, sendo da autoria de dois grandes representantes do neokantismo, Rudolf Stammler e Giorgio Del Vecchio. A divisão de Rudolf Stammler (1856-1938) é anterior à de Giorgio Del Vecchio, mas vamos expor primeiro a deste, porque representa o desenvolvimento de uma colocação do problema que se prende à tradição dos estudos e, especialmente, à discriminação feita por seu antigo mestre, Icílio Vanni, autor de obras seguidas com muito carinho pelos catedráticos que nos antecederam na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Icílio Vanni (1855-1903) foi, sem dúvida, o jurista-filósofo mais conhecido entre nós por volta de 1900, e o que maior e mais profunda influência exerceu emtodos os países da América do Sul, especialmente em virtude de suas ainda preciosas Lições de Filosofia do Direito (1904, ed. póstuma). Vanni era positivista, mas um positivista que procurava conciliar os ensinamentos de Augusto Comte com as exigências da Sociologia pós-comteana, em uma visão mais ampla dos problemas filosóficos, inspirando-se em alguns legados culturais de Emmanuel Kant. Foi por isso que sua doutrina foi denominada "positivismo crítico". Del Vecchio parte de Vanni, para logo superar sua posição empírica, assumindo uma atitude de relevo no neokantismo contemporâneo, cujos pressupostos procura conciliar com a grande tradição do Direito Natural clássico, sendo justo lembrar a contribuição que naquele sentido foi dada por Igino Petrone. Pois bem, é dentro desta linha de evolução que encontramos uma divisão tripartida da Filosofia do Direito, obedecendo ao critério de que o homem é um ser que é, conhece e age. Conhecer, agir e ser são três pontos de vista levados em consideração para se discriminarem os problemas da Filosofia Jurídica. O primeiro problema concerne ao conhecimento do Direito, aos conceitos de que se devem valer os juristas para ordenar logicamente a experiência do Direito; refere-se às estruturas lógicas que permitem ao jurista realizar sua tarefa científica. 293 Merece ser lembrada, nesse passo, uma discriminação feita por Kant em seus Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Dizia o filósofo que o jurista, tal como o advogado ou o juiz, pode resolver sobre o que seja "de direito", sobre quid sit júris, cabendo, porém, ao filósofo do Direito indagar do que seja 'o Direito" mesmo, sobre quid sit jus. Na realidade, quando um advogado propõe uma ação, expõe uma ordem particular de fatos e, por sua adequação à lei e aos princípios de Direito, fundamenta um pedido ou uma pretensão. Toda petição inicial envolve a afirmação de que algo é de direito, ou seja, conforme ao Direito. O juiz, ao prolatar a sentença, examina as pretensões do autor e do réu e decide sobre o direito que compete a cada um. Não faz, no entanto, qualquer indagação sobre a validade do Direito em si mesmo, nem sobre o que seja o Direito. Esta última ordem de pesquisas pertence à Filosofia Jurídica, reunindo-se sob a denominação de Gnoseologia Jurídica, segundo uns, ou Lógica do Direito, segundo outros. É claro que, por ora, não fazemos objeções ou reservas a estas denominações, preferindo expor apenas a matéria sem comentários críticos ². 2. Além da obra de VANNI citada no texto, v. IGINO PETRONE, Filosofia del Diritto, ed. de G. Del Vecchio, Milão, 1950, e GIORGIO DEL VECCHIO, Lezioni di Filosofia del Diritto, 5.ª ed., Milão, 1946. Em geral seguem a divisão tripartida, embora com certas ressalvas, FELICE BATTAGLIA, Corso di Filosofia dei Diritto, 3.ª ed., Roma, 1949, vol. 1, págs. 16 e segs., e ADOLFO RAVÀ, Lezioni di Filosofia dei Diritto, Pádua, vol. I, págs. 39 e segs. e muitos outros. Para apreciação crítica, cf. ALESSANDRO LEVI, Per un Programma di Filosofia dei Diritto, Turim, 1905 Determinado o conceito de Direito e fixadas as notas que constituem a juridicidade, abre-se um segundo campo de indagação, relativo à atitude do jurista perante um dever a cumprir, em função de sua valoração do agir. Se o Direito existe como realidade social, e se cm razão desta se estabelecem juizes e tribunais, assim como se movimentam clientes e advogados, é sinal que há fins a serem atingidos ou, pelo menos, fins que os homens julgam necessários a seu viver comum. Que fins ou valores norteiam os homens e que deveres resultam desses fins? Esta segunda ordem de indagações constitui objeto de uma parte 294 especial da Filosofia Jurídica que Icílio Vanni e Del Vecchio denominam Deontologia Jurídica. O termo Deontologia se prende à tradição da filosofia utilitarista de Jeremias Bentham (1748-1832), nome familiar aos cultores do Direito no Brasil, dada a influência exercida sobre nossos juristas do Primeiro império e, especialmente, sobre Bernardo Pereira de Vasconcelos, em seu Projeto de Código Criminal. A filosofia de Jeremias Bentham, que é o utilitarismo, marca um momento muito importante na evolução das idéias da Inglaterra, tendo sido completada depois pela obra de Stuart Mill. autor seguido de perto por Pedro Lessa, antigo professor da Faculdade de Direito de São Paulo, no que se refere a certos problemas de Lógica. Jeremias Bentham propunha chamar à parte da Ética, destinada ao estudo dos deveres, de Deontologia; este termo nós ainda o conservamos como efetivamente próprio para designar a teoria dos deveres em geral ³. 3. Cf. BENTHAM, An Introduction to the Principles of Morals and Legislations, Londres, 1823 (a I." ed. é de 1789) e Deontology (1834). É nesta segunda obra que BENTHAM escreve: "A palavra Deontologia deriva de duas palavras gregas, (o que é conveniente) e (conhecimento); isto é, conhecimento daquilo que é justo ou conveniente". É claro que para BENTHAM a base da Deontologia é o princípio da utilidade, visto como, diz ele, "uma ação é boa ou má, digna ou indigna, merecedora de aprovação ou de repulsa, na proporção de sua tendência a aumentar ou a diminuir a soma de felicidade pública". (Cf. "Deontologie ou Science de la Morale", in Oeuvres de Jérémie Bentham, Bruxelas, 1840, vol. III, pág. 359.) Se Deontologia é teoria dos deveres, e, por conseguinte, da ação moral, restaria, segundo a divisão ora apreciada, examinar uma terceira ordem de problemas, que são os ligados ao Direito como fato, como experiência social e histórica. Como é que o Direito surge? Qual a sua gênese, quais as linhas determinantes de seu desenvolvimento? Que é que a experiência jurídica contém como tendência fundamental? Como os ideais do Direito se revelam na História? A esta terceira parte é dado por Del Vecchio o nome de Fenomenologia jurídica, visto como nela se estuda o Direito principalmente como fenômeno ou fato social, mas, como veremos, 295 a expressão tornou-se ambígua após o advento da Filosofia fenomenológica. Divisão de Stammler 120. Apresentada a divisão tripartida, ainda hoje mais em voga, vejamos a de Rudolf Stammler que, embora desdobrada em cinco partes, no fundo mantém uma correspondência muito grande com a primeira. Na divisão feita pelo grande filósofo do Direito alemão, há duas partes fundamentais e três complementares. A primeira tem por finalidade o estudo do conceito de Direito, tomada a palavra "conceito" no sentido kantiano de categoria fundamental a priori que condiciona a experiência jurídica possível. Rudolf Stammler (1856-1938) é um dos maiores representantes do neokantismo. Não é demais lembrar aqui que o neokantismo mais chegado à nossa época, a cavaleiro dos séculos XIX e XX, apresenta duas grandes tendências ou escolas, segundo se dá maior importância à Crítica da Razão Pura ou à Crítica da Razão Prática. A primeira corrente que elabora com grande finura os princípios lógicos do kantismo é a Escola de Marburgo, apresentando vários nomes de relevo, como, por exemplo, os de Cohen e Natorp. É nessa Escola que se situa a figura de Rudolf Stammler, aplicando seus princípios no campo das ciências sociais e jurídicas. A outra grande corrente do neokantismo c a chamada Escola de Baden, mais ligada à Filosofia dos valores de Windelband e Rickert, da qual provém um notável grupo de juristas ou filósofos do Direito, com trabalhos decisivos para a concepção culturalista da vida jurídica, como Lask, Radbruch e Münch 4 . 4. Sobre as Escolas de Marburgo e de Baden e os problemasdo Direito, v. MIGUEL REALE, Fundamentos do Direito. cit.. cap. V e infra. cap. XXXVIII. Ora, Stammler, como neokantiano, tem em vista a determinação lógica das categorias puras fundantes da experiência do Direito. 296 Na primeira parte de seus estudos, de natureza lógico-formal, procura estabelecer o conceito universal do Direito, um conceito tão universal que abranja todas as experiências jurídicas possíveis, do passado, do futuro, posto como "estrutura transcendental" do Direito histórico ou positivo. Terminado este estudo e em consonância com ele, Rudolf Stammler propõe-se o problema da idéia do Direito, ou seja, o problema da Justiça. É muito significativa esta ligação feita por Stammler entre conceito de Direito e idéia do Direito, chegando à conclusão de que é só nos referindo à idéia de justiça que podemos alcançar o conceito de juridicidade. Ao superar-se o formalismo kantiano, também resultaram superados, como veremos, esse destaque entre conceito e idéia, conceito e realidade, que ainda se observa no pensamento stammleriano, a nosso ver pouco convincente na demonstração de como é que as "estruturas lógicas" se compõem e se integram com as "exigências éticas" na unidade histórica da vida jurídica. A doutrina de Stammler, destinada a abrir novas perspectivas à Filosofia Jurídica, foi exposta em várias obras, mas de maneira sistemática e unitária em seu Tratado de Filosofia do Direito (1911), merecendo especial menção um livro cujo título, à primeira vista, pode parecer estranho: — Doutrina do Direito Justo (1902). Neste trabalho, que é uma das monografias mais preciosas do pensamento jurídico contemporâneo, Rudolf Stammler sustenta que não há necessidade, nem possibilidade de uma coincidência absoluta entre a experiência jurídica e o ideal de justiça, devendo-se notar que ele aprecia aquela (a experiência jurídica) de maneira abstrata e intelectualista, e não como processo integrante de valores éticos. Há na história, segundo Stammler, exemplos em abundância demonstrando que, muitas vezes, o Direito Positivo entra em conflito com os ideais do justo. Requer-se, no entanto, que o Direito seja sempre uma "tentativa de Direito justo". Pode ser uma tentativa falha, um esforço malogrado, mas o que é indispensável é que haja tensão no sentido do justo, inclinação rumo ao ideal de justiça. Sem essa referibilidade ao justo não há Direito, afirma Stammler, que nos 297 põe, desse modo, perante um problema que só pode ser enunciado, mas não resolvido, no quadro de sua concepção lógico-formal. O pensamento stammleriano, que alcançou ampla ressonância, merece ser examinado de maneira especial, por sua inegável atualidade, ao pôr em realce o problema do Direito como estimativa, e ao conceber a regra ou norma de Direito como norma de cultura, reconhecendo a importância dos problemas dos valores para a Jurisprudência, embora fazendo-o, repetimos, de um modo excessivamente lógico-formal em harmonia com os esquemas aprioristas da Escola neokantista de Marburgo. A segunda parte da Filosofia do Direito, destinada a estudar a idéia do Direito ou do justo, ele a desenvolve ainda em termos kantianos, visando a esclarecer "o fim último ideal que há de informar e dirigir todas as aspirações jurídicas" no curso da História. Pensamos que é de grande importância a afirmação de Stammler, de que nem todo Direito é Direito justo, mas que todo Direito deve ser ao menos uma tentativa de ser Direito justo. Realça aqui, em verdade, o problema nuclear da Filosofia Jurídica, que é o da relação entre a experiência concreta e os ideais que se revelam através da História, enlaçando os homens e os grupos. Em consonância com seus princípios, Stammler procurou colocar, de maneira diversa, o problema do Direito Natural, assim como também aconteceu com Del Vecchio. Ambos são jusnaturalistas, ou seja, adeptos do Direito Natural. A concepção stammleriana ficou sendo conhecida como do Direito Natural de conteúdo variável, que logrou ser aceita por alguns autores de formação positivista, como é o caso, por exemplo, no Brasil, de Clóvis Beviláqua, o qual considera aquela concepção perfeitamente compatível com seu empirismo fundamental. Vejamos, porém, quais as três outras partes que Stammler acrescenta às duas primeiras, as quais, em sua essência, coincidem com os dois primeiros problemas propostos por Del Vecchio, quanto às formas puras a priori do Direito e da Justiça. A terceira questão seria relativa à Origem do Direito, devendo-se notar que nessa parte não se encontra outra coisa senão o estudo do 298 Direito como fato social e histórico condicionado; uma análise do Direito Positivo em sua vigência e eficácia, assim como à luz de suas fontes determinantes, tal como nele se consubstanciam as aspirações humanas nos ciclos históricos. A quarta parte, denominada Técnica Jurídica, revela-se aplicação da primeira, visando a determinar, no âmbito da Jurisprudência positiva, o alcance das estruturas lógicas reclamadas pelo jurista em todos os ramos de seu saber, como, por exemplo, as de sujeito de direito, direito subjetivo, relação jurídica, regra de direito etc. Essa ordem de estudos é geralmente incluída pelos demais autores na parte que denominam Gnoseologia ou Lógica Jurídica e a que daremos o nome de Epistemologia Jurídica. Finalmente, em uma quinta ordem de estudos, preocupa-se Stammler com a Prática do Direito, desde os problemas postos pelos modos de argumentar do jurista, até às relações entre a justiça e a aplicação concreta do Direito. Não trata, é claro, da aplicação em face de dado sistema de Direito vigente, mas sim dos princípios que deverão ser sempre seguidos para realizar-se o Direito justo. 121. O que podemos notar, cotejando as discriminações feitas por Stammler e por Del Vecchio, é que a divisão da Filosofia do Direito depende, como é natural, da prévia colocação dos problemas éticos e gnoseológicos. Nos casos ora considerados, observa-se uma distinção comum entre conceito e idéia do Direito, segundo moldes kantianos, da qual decorre uma série de exigências relativas à correspondência entre uma e outra, não in abstracto, mas em concreto, no Direito historicamente condicionado. Não resta dúvida, porém, que, apesar da diversidade na discriminação dos temas, seja esta feita em duas ou mais partes, ou reduzida a um só problema, o certo é que o filósofo do Direito sempre se volve à experiência jurídica para indagar de seus pressupostos lógicos e deontológicos, assim como para captar esses valores no Direito como "experiência concreta", como ideal que se faz História e a transcende, em uma ordem humana que c sempre um momento de ordenação lógica e ética. 299 Em última análise, as duas teorias ora examinadas focalizam problemas de inegável cunho filosófico-jurídico, mas, a nosso ver, todas as discriminações feitas pressupõem um estudo geral e prévio, a partir da experiência jurídica mesma. Tal ordem de pesquisa acha- se implícita nas divisões propostas por Stammler e por Del Vecchio, sendo necessário explicitá-la, obedecendo à diretriz dominante no pensamento contemporâneo no sentido de ir-se às coisas mesmas. Antes de discriminar, em suma, as diversas partes da Filosofia do Direito — e a fim de que tal discriminação seja logicamente possível —, torna-se imprescindível ir à realidade jurídica como tal, recebendo-a como "um todo", na unidade de seus elementos subjetivos e objetivos, conforme será exposto no capítulo seguinte.
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