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O PAPEL CONTRAMAJORITÁRIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DEVER DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO PERANTE OMISSÕES LEGISLATIVAS EL PAPEL CONTRAMAJORITÁRIO DE LOS DERECHOS FUNDAMENTALES Y EL DEBER DEL PODER JUDICIAL BRASILEÑO VISTA OMISIÓN LEGISLATIVA Sérgio Augusto Lima Marinho1 Alexandre Walmott Borges2 RESUMO O trabalho analisa o dever institucional do Poder Judiciário de garantia dos direitos fundamentais ante as omissões legislativas tendo em vista o papel contramajoritário que tais direitos possuem. Parte-se de problema da natureza contramajoritária dos direitos fundamentais que ganha relevo ante a clara e insuperável tensão existente entre tais direitos e a democracia. Vislumbra-se então que os direitos fundamentais podem ser violados pela maioria tanto por meio de ações como por meio de omissões, quando a maioria deixa de legislar sobre aquilo que tais direitos obrigatoriamente exigem que seja legislado. Em seguida, apresentam-se os principais argumentos contrários à possibilidade de o judiciário atuar em tais casos de omissão, contudo, demonstra-se que tais argumentos não podem prosperar no panorama do constitucionalismo pátrio. A conclusão mostra que, justamente por constituírem garantias contra a maioria, a tutela dos direitos fundamentais deve ser dada a outro órgão que não o Legislativo e que neste caso, o judiciário não carece de legitimidade para a defesa desses direitos inclusive criando norma jurídica inexistente visto que para tanto, o próprio Constituinte (democraticamente eleito) trouxe tal possibilidade na Carta Constitucional. PALAVRAS CHAVE: Direitos fundamentais; Democracia; Teoria da moldura; Poder Judiciário. 1 Mestrando em Direito Público pela Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisador Bolsista da CAPES. 2 Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges, docente do curso de mestrado Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia. RESUMEN El trabajo analiza el deber institucional del poder judicial en la protección de los derechos fundamentales contra las omisiones legislativas en vista del papel contramajoritário que esos derechos tienen. Comienza con el problema acerca de la naturaleza contramajoritária de los derechos fundamentales que cobra importancia ante la clara tensión e insuperable entre estos derechos y la democracia. Se visualiza que los derechos fundamentales pueden ser violados por la mayoría tanto a través de acciones y por las omisiones legislativas cuando la mayoría no legisla sobre lo que estos derechos requieren necesariamente que sea legislado. A continuación se presentan los principales argumentos en contra de la posibilidad del poder judicial actuar en estos casos de omisión sin embargo, muestra que tales argumentos no pueden prosperar en el paisaje del constitucionalismo parental. La conclusión muestra que, precisamente porque constituyen garantías contra la mayoría, la protección de los derechos fundamentales debe delegarse en otro poder que el poder legislativo y en este caso, el poder judicial tiene legitimidad para la defensa de esos derechos, incluso la creación de norma jurídica inexistente ya que la propia Constituyente (elegida democráticamente) trajo esta posibilidad en la Carta Constitucional. PALABRAS CLAVE: Derechos fundamentales; Democracia; Teoría del encuadre; Poder Judicial. INTRODUÇÃO Certamente, os direitos fundamentais ocupam posição central na Constituição3 e no ordenamento jurídico, tais direitos, juntamente com outros princípios estruturantes constituem aquilo que é conhecido como Constituição material.4Justamente por conta da sua importância, há uma preocupação com a sua realização concreta para que tais direitos não se transformem em mera promessa constitucional inconseqüente.5 Ocorre que não raras vezes, a realização desses direitos pelo Legislador infraconstitucional não se verifica, ocasião em que surge para o Poder Judiciário o dever de realizá-los, inclusive, criando normas jurídicas se necessário for. Então, o presente trabalho tem por objeto de pesquisa o dever institucional do Poder Judiciário de garantia dos direitos fundamentais ante as omissões legislativas tendo em vista o papel contramajoritário que tais direitos possuem. A pesquisa encontra-se pautada em consulta bibliográfica da dogmática jurídica vez que se pretende analisar a possibilidade de suprimento das omissões legislativas pela via judicial caso tais omissões impossibilitem a fruição de direitos fundamentais, sendo realizada com o auxilio do método dedutivo. Para tanto, dividimos o trabalho em três capítulos abordando: a função contramajoritária dos direitos fundamentais que ganha relevo principalmente por conta do insuperável conflito entre o Estado de Direito (direitos fundamentais) e o Princípio Democrático; a possibilidade de violação dos direitos fundamentais por meio de omissões legislativas e não somente por meio de ações; e, por fim, o papel do Poder Judiciário na realização dos direitos fundamentais em caso de omissões e lacunas no ordenamento, primeiramente apresentando os principais argumentos contrários a tal possibilidade e, em seguida, demonstrando-se sua inaplicabilidade no constitucionalismo brasileiro. 3 A importância dos direitos fundamentais é tamanha que Luigi Ferrajoli “A forma universal, inalienável, indisponível, e constitucional desses direitos se revela, em outras palavras, como a técnica – ou garantia – apresentada para a tutela disso que no pacto constitucional vem configurado como “fundamental”: ou seja, daquelas necessidades substanciais cuja satisfação é condição da convivência civil e também causa ou razão social daquele artifício que é o Estado” (2011, pp. 25 - 26). 4 Neste sentido, Ingo Sarlet leciona que “Os Direitos Fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do Estado Constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material” (2010, p. 58). 5 Mais uma vez recorre-se a lição de Ingo Sarlet para quem “Mesmo na sua inafastável (mas jamais exclusiva e destituída de eficácia e aplicabilidade direta) dimensão programática, os direitos fundamentais, notadamente os sociais, não precisam necessariamente constituir um instrumento de manipulação ou uma mera ilusão” (2010, p. 364). 1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO TRUNFOS CONTRA A MAIORIA: A TENSÃO ENTRE O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E O ESTADO DE DIREITO A metáfora dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria é de cunhagem de Ronald Dworkin e busca representar o papel contramajoritário dos direitos fundamentais. Nesta perspectiva ser detentor de um direito fundamental é o mesmo que possuir uma carta de trunfo num jogo de cartas, esta carta prevalece mesmo sobre as de maior número. Dissertando acerca da força contramajoritária dos direitos fundamentais, Luigi Ferrajoli pondera que: Ninguna mayoría política puede disponer de las libertades y de los demás derechos fundamentales: decidir que una persona sea condenada sin pruebas, privada de la libertad personal, de los derechos civiles o políticos o, incluso, dejada morir sin atención o en la indigencia. (2009, p. 36)6. O papel contramajoritário dos direitos fundamentais também é apresentado na obra de Robert Alexy que ao formular um conceito geral e formal de direitos fundamentais destaca justamente seu papel contramajoritário como característica diferenciadora de outros direitos. Segundo Robert Alexy: Uma possível perspectivaou idéia-guia seria um conceito geral e formal de direitos fundamentais, que pode ser expresso da seguinte forma: direitos fundamentais são posições que são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples (2011, p. 446). Percebe-se então que os direitos fundamentais são concebidos como posições jurídicas tão especiais que não podem se encontrar sob o arbítrio da maioria, justamente porque possuem um papel contramajoritário que visa garantir interesses daqueles que, em determinado momento histórico, podem constituir uma minoria. Portanto, os direitos fundamentais funcionam como normas de competência negativa fixando limites à atuação legislativa. Neste sentido, A concepção formal de direitos fundamentais expressa um problema central dos direitos fundamentais em um Estado Democrático. Normas de direitos fundamentais que vinculam o Legislativo, como as da Constituição alemã, definem aquilo que o legislador legitimado democraticamente pode e aquilo que ele não pode decidir. Da perspectiva desse legislador, essas normas representam proibições e deveres que 6 “Nenhuma maioria política pode dispor das liberdades e dos demais direitos fundamentais: decidir que uma pessoa seja condenada sem provas, privada de sua liberdade pessoal, dos direitos civis ou políticos, nem deixar alguém morrer sem atenção ou em indigência” (tradução livre). restringem sua liberdade e são, além disso, normas negativas de competência, que limitam suas competências. (ALEXY, 2011, p. 447). A lição de Robert Alexy supramencionada aponta para a existência de uma relação de tensão existente entre o princípio democrático (maioria) e os direitos fundamentais. Essa tensão é apresentada ainda na obra de Jorge Reis Novaes e para o autor se mostra insuperável apesar de ser negada por outros autores. Uma primeira estratégia para negar o conflito entre o princípio democrático e o princípio do Estado de Direito (direitos fundamentais) é recorrer à relação de interdependência entre estes princípios o que supostamente, por imperativo lógico, afastaria o conflito. Neste sentido, assevera-se que: Sem a garantia dos direitos políticos somente plenamente realizáveis numa democracia, o sentido atual de dignidade da pessoa humana ficaria amputado de uma dimensão essencial, a da consideração de todas as pessoas como livres e iguais e da conseqüente igual possibilidade da sua livre participação na tomada de decisões da comunidade. (NOVAIS, 2006, pp. 19 -20). O autor prossegue ponderando que: “A democracia exige o Estado de Direito. Sem um ambiente e uma cultura de direitos fundamentais não há verdadeira democracia: os direitos fundamentais são condições do regular funcionamento da democracia.” (NOVAIS, 2006, p. 20). Certamente é inegável que a existência de um Estado Democrático pressupõe a existência e garantia de posições jusfundamentais, semelhantemente, também não se pode olvidar que a dignidade humana7 e os direitos fundamentais somente são plenamente realizáveis em um ambiente democrático e constituem, como diz o autor, a condições do regular funcionamento da democracia. Afirma-se inclusive que o grau ou nível de democracia de um Estado pode ser medido a partir do grau ou nível de universalidade dos direitos fundamentais (FERRAJOLI, Derechos Fundamentales, 2009). Não se pode afastar relação de interdependência existente entre direitos fundamentais e Estado Democrático, contudo, tal relação de interdependência não tem o poder de dissipar a tensão existe entre os dois princípios. 7 Ressalte-se que a dignidade humana ocupa posição central em praticamente dos os ordenamentos jurídicos do mundo, e seu respeito é um dever imposto a todos os povos. Neste sentido, “A cláusula da dignidade humana prevista no art. 1º, inc. I, da Lei Fundamental não constitui uma particularidade da nossa Lei Fundamental, mas sim um “tema típico” e atualmente central para muitos dos Estados Constitucionais integrantes da “Família das Nações”, conforme revela uma comparação de seus respectivos textos constitucionais.” (HÄBERLE, 2013, p. 46). Luigi Ferrajoli busca responder algumas perguntas a respeito dos direitos fundamentais, a primeira delas é a respeito do que são os direitos fundamentais, em sua resposta indica que: Son derechos fundamentales todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a todos los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de obrar; entendiendo por derecho subjetivo cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un sujeto por una norma jurídica; y por status la condición de un sujeto prevista asimismo por una norma jurídica positiva, como presupuesto de su idoneidad para ser titular de situaciones jurídicas y/o autor de los actos que son ejercicio de éstas. (2009, p. 19).8 Para o Autor, o grau de igualdade e de democracia de um ordenamento depende do nível de alcance da universalidade dos direitos fundamentais, a qual adverte não ser absoluta (FERRAJOLI, Derechos Fundamentales, 2009, p. 22). Outra pergunta que intriga o Autor é a respeito de quais conteúdos devem ser protegidos como fundamentais. Em resposta, pondera que: A la pregunta qué son los derechos fundamentales?, si en el plano de su forma se puede responder a priori enumerando los caracteres estructurales que antes he señalado, en el plano los contenidos – o sea, de qué bienes son o deben ser protegidos como fundamentales – sólo se puede responder a posteriori: cuando se quiere garantizar una necesidad o un interés, se les sustrae tanto al mercado como a las decisiones de la mayoría. (FERRAJOLI, Derechos Fundamentales, 2009, p. 36)9. Vislumbra-se que Ferrajoli também aponta para a existência da tensão entre o princípio democrático e os direitos fundamentais, de modo que uma posição jurídica somente pode ser qualificada como fundamental na medida em que sua garantia contra as ingerências do Parlamento e do Mercado se mostrar indispensável. Neste sentido, o autor assevera que: Os direitos fundamentais vêm de fato a se configurar, diversamente dos outros direitos, como outros tantos vínculos substanciais normativamente impostos – a garantia de interesses e necessidades de todos estipulados como vitais, ou exatamente “fundamentais” (a vida, a liberdade, a sobrevivência) – tanto às decisões de maioria quanto ao livre mercado. (FERRAJOLI, 2011, p. 25). 8 “São direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, cidadãos ou pessoas com capacidade de labor; entende-se por direito subjetivo qualquer expectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não sofrer lesões) garantida a um sujeito por uma norma jurídica positiva; e por status a condição de um sujeito prevista semelhantemente por uma norma jurídica positiva, como pressuposto de sua idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor de atos que correspondam ao exercício de tais direitos.” (tradução livre). 9 “À pergunta que são os direitos fundamentais? Se no plano de sua forma se pode responder a priori enumerando suas características estruturais, no plano de seus conteúdos, ou seja de que bens são ou devem ser protegidos como fundamentais, somente se pode responder à posteriori: quando se quiser garantir uma necessidade ou um interesse se lhes subtrai tanto da esfera do mercado como da esfera das decisões da maioria”(tradução livre). Reconhecida então a tensão existenteentre o princípio democrático e o Estado de Direito, não obstante a relação de interdependência entre a democracia e os direitos fundamentais, três fatores podem ser apontados como causas dessa tensão: primeiro, a maioria parlamentar pode ameaçar os direitos fundamentais e de forma sistemática inclusive teorizando tais hostilidades como ocorrera nos regimes nazista e fascista; outro fator, é o fato de que a força de resistência dos direitos fundamentais pode inibir o pleno exercício do poder democrático uma vez que há a possibilidade de um poder não eleito (o Judiciário), em nome dos direitos fundamentais pode reformar decisões dos órgãos legitimados; ademais, os direitos fundamentais, por sua dimensão objetiva, criam normas de competência negativa. Neste sentido, Jorge Reis Novais pondera que: Essa tensão verifica-se porque a maioria no poder (mesmo pressupondo que tal poder teve origem e legitimação democráticas) pode ameaçar os direitos fundamentais. Pode ameaçá-los de forma sistemática e até teorizar essa atitude de hostilidade ou, no mínimo, de funcionalização/instrumentalização dos direitos fundamentais. Foi o que ocorreu no Estado autocrático do século XX (de matiz conservadora ou de matiz anti-capitalista, nos momentos em que o regime invoca o apoio maioritário da população para proceder a violações sistemáticas dos direitos fundamentais) e ocorre no atual Estado islâmico. (2006, p. 21). Aduz ainda que: Por outro lado, e ilustrando igualmente, embora no sentido inverso, a potencial oposição entre os dois princípios, também a força de resistência dos direitos fundamentais pode inibir um pleno exercício do poder democrático e fazê-lo tão mais efectivamente quanto, em primeiro lugar, um poder não eleito – o poder judicial – tenha, em nome da salvaguarda dos direitos fundamentais, a possibilidade constitucionalmente garantida de condicionar, invalidar ou impedir a execução das medidas decididas pelos órgãos legitimamente eleitos para governar. (NOVAIS, 2006, p. 21). Em relação ao último fator supra apontado que destaca a tensão existente entre direitos fundamentais e democracia, tem-se que: Mesmo que a prevalência do princípio do Estado de Direito sobre o princípio democrático não se manifeste tão ostensivamente, há sempre uma compressão ou privação da margem de livre decisão do legislador democrático, da maioria, que resulta, por definição da existência de uma Constituição rígida que lhe coloca limites intransponíveis. (NOVAIS, 2006, p. 22). Pode-se dizer que a noção de direitos fundamentais como trunfos contra a maioria é decorrente da concepção kantiana de dignidade humana da qual resulta uma capacidade de autodeterminação que torna o homem um fim em si mesmo e impede a sua transformação em um meio para alcançar outro fim. A esse respeito Kurt Seelman pondera que: Respeitar a dignidade do outro, não torná-lo um simples meio, não é, na “Metafísica dos Costumes” de Kant, um dever jurídico eventualmente imposto pela violência, e sim um dever de virtude, situado, naturalmente, em termos de conteúdo, a meio caminho entre um dever jurídico e outro dever de virtude, o do amor ao próximo. A meio caminho, porque esse dever de virtude de respeito é, tal como um dever jurídico, um “dever negativo”. É que num certo paralelo com nemine laede, com a proibição de lesão do Direito, ele é o dever de não se impor sobre o outro. (2013, p. 106). Ademais, pela referida autodeterminação não é possível a imposição de planos e concepções de vida aos homens ainda que tais concepções sejam majoritariamente tidas como boas ou ideais. Neste sentido: Por conta da igual dignidade de todos que resulta o direito de cada um conformar autonomamente a existência segundo suas próprias concepções e planos de vida que têm, a luz do Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana, o mesmo valor de quaisquer outras concepções ou planos de vida, independentemente da maior ou menor adesão social que concitem. (NOVAIS, 2006, p. 31). Por essa razão, a concepção de direitos fundamentais como posições jurídicas que por sua importância devem ser suprimidas do espaço de deliberação e de negociação do mercado vai além dos direitos políticos sendo extensiva a todos os direitos fundamentais incluindo os sociais. A respeito da importância de salvaguardar tais posições jusfundamentais do arbítrio da maioria Robert Alexy pondera que: Como ninguém conhece o legislador futuro e também as circunstancias sob as quais ele agirá, ninguém pode ter certeza de que ele não utilizará – diferentemente do que ocorreu no passado e no presente – aquelas liberdade e competências de forma desfavorável aos indivíduos. (2011, p. 449). Ressaltada a importância e a força dos direitos fundamentais, surge o questionamento se tais direitos sempre vencem o princípio democrático quando em confronto com ele. Para responder essa questão partimos da concepção de direitos fundamentais como princípios segundo a qual os direitos fundamentais são mandamentos de otimização, ou seja, determinam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das condições fáticas e jurídicas existentes (ALEXY, 2011). A partir dessa concepção tem-se que em determinadas condições fáticas e jurídicas pode ser que um direito fundamental ceda em relação principio democrático, mas tal restrição não pode ser justificada pura e simplesmente pelo argumento majoritário, mas na circunstancia de que a outro bem jusfundamental seja dada tamanha importância ao ponto de justificar tal restrição. Nesse sentido é a lição de Jorge Reis Novais, para quem: A prevalência do principio democrático não reside no argumento majoritário - precisamente porque os direitos fundamentais são constitucionalmente reconhecidos como direitos contra a maioria – mas sim no resultado de uma ponderação de bens desenvolvida à luz dos parâmetros constitucionais e através da qual se atribua a um outro bem igualmente digno de proteção, em circunstancia em que essa compressão seja exigível, uma relevância susceptível de justificar a restrição do direitos fundamental. (2006, p. 33). Outro questionamento surge a partir da força dos direitos fundamentais coligada com a necessidade de um espaço para deliberação democrática e atuação do legislador legitimado. Indaga-se ainda a respeito de qual seja este espaço no qual se dará a atuação do legislador infraconstitucional. Para solucionar esse impasse Robert Alexy propõe o que se denomina de teoria da moldura (2011, p. 578) pela qual os direitos fundamentais enquanto princípios10 deixariam um espaço dentro do qual o legislador pode atuar. Nas palavras do autor: A metáfora da moldura pode ser, então, definida da seguinte forma: o que é obrigatório ou proibido é a moldura; o que é facultativo – ou seja, nem obrigatório, nem proibido- é aquilo que se encontra no interior da moldura. Neste sentido, a discricionariedade do legislador é definida por aquilo que é facultado. (ALEXY, 2011, p. 583). Neste diapasão, lembre-se a lição de Ingo Wolfgang Sarlet que diferencia a dimensão subjetiva (posição de ser titular de um direito e exigir seu respeito e promoção dos destinatários da norma) dos direitos fundamentais da sua dimensão objetiva. Diz o autor: Importa consignar aqui que ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra o Estado corresponde sua condição (como direito objetivo) de normas de competência negativa para os poderes públicos, no sentido de que o status fundamental de liberdade e igualdade dos cidadãos se encontra subtraído da esfera de competência dos órgãos estatais, contra os quais se encontra também protegido, demonstrando que também o poder constitucionalmente reconhecido é, na verdade, juridicamente constituído e desde sua origem10 Importante notar que Robert Alexy distingue os princípios dos valores, para ele aos valores correspondem juízos axiológicos (aquilo que é bom ou ruim, belo ou feio, justo ou injusto) ao passo que aos princípios correspondem juízos deontológicos, ou seja, conceitos de dever ser (proibido, obrigatório e facultativo). Por este motivo, os princípios se distinguem dos valores uma vez que podem ser expressos em modais deônticos proibindo, obrigando ou facultando ações ao legislador e aos particulares. Esses conceitos são essenciais para entender qual o espaço de conformação deixado pelos direitos fundamentais, esse espaço é justamente o espaço do facultativo (2011, p. 145 ). determinado e limitado, de tal sorte que o Estado somente exerce seu poder no âmbito do espaço de ação que lhe é colocado à disposição. (2010, p. 145). Neste sentido, Jorge Reis Novais lembra que em um Estado de Direito Democrático, o princípio do Estado de Direito (ou seja, os direitos fundamentais) é um limite intransponível que se impõe ao poder legítimo e que, por isso, se pode opor ao princípio democrático (2006, p. 33). Por sua vez, Luigi Ferrajoli lembra que aos direitos fundamentais, quando tenham expressão em normas constitucionais, correspondem proibições e obrigações a cargo do Estado cuja violação é causa de invalidade das leis e das demais decisões públicas e cuja observância é, pelo contrário, condição de legitimidade dos poderes públicos. (FERRAJOLI, Derechos Fundamentales, 2009, pp. 34 - 35). Assim, tem-se que o legislador legitimado pelo princípio majoritário não pode tomar decisões no sentido de afetar os direitos fundamentais, devendo agir dentro do espaço que é facultado por eles. Contudo, fica em abeto a possibilidade de ofensa a direitos fundamentais não através de ações, mas por omissões legislativas. 2 OMISSÕES LEGISLATIVAS COMO OFENSAS A DIREITOS FUNDAMENTAIS A Constituição Federal brasileira de 1988 positivou uma imensa gama de direitos fundamentais, direitos estes frutos do anseio da sociedade que viveu décadas tenebrosas sob a égide da ditadura. Esses direitos fundamentais, concebidos como princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das condições fáticas e jurídicas existentes (adotando aqui a concepção principiológica de Alexy. Ocorre que diversas das normas de direitos fundamentais são normas de conteúdo programático, pois exigem uma interpositio legislatoris para que seus efeitos sejam colocados em prática.11 Então, não realizada a regulamentação de um direito fundamental ocorre uma violação deste direito. 11 Entre nós, há quem defenda que não somente as normas de direitos fundamentais tradicionalmente conhecidas como normas programáticas (como as normas referentes aos direitos sociais) são normas que carecem de uma ação concretizadora a ser tomada pelo Legislador infraconstitucional, contudo, todas as normas de direitos fundamentais são em alguma medida normas programáticas, pois carecem em alguma medida de uma intervenção legislativa infraconstitucional. Assim rompe-se com a tradicional classificação das normas constitucionais como normas de eficácia plena, contida e limitada, na qual somente as do último tipo obrigatoriamente careceriam dessa interposição. Então, se todas as normas constitucionais são em alguma medida de eficácia limitada por carecerem de uma ação do legislador infraconstitucional o que diferencia as normas constitucionais quanto à eficácia é que em alguns casos essa interposição já ocorrera ao passo que em outros não. Neste sentido, Virgílio Afonso da Silva pondera que “Ao contrário do que afirma José Afonso da Como dito alhures, os direitos fundamentais são concebidos como princípios e não como valores porque podem ser expressos através de modais deônticos (obrigatório, proibido e facultado), então se um direito fundamental proíbe o legislador infraconstitucional de legislar e este o faz, há uma violação. Lado outro, se um direito fundamental obriga o Legislador a legislar e este não o faz, também viola o direito fundamental. Neste sentido é a lição de Luiz Roberto Barroso para quem: Como regra, legislar é uma faculdade do legislador. A decisão de criar ou não lei acerca de determinada matéria insere-se no âmbito de sua discricionariedade ou, mais propriamente, de sua liberdade de conformação. De ordinário, sua inércia ou sua decisão política de não agir não caracterizarão comportamento inconstitucional. Todavia, nos casos em que a Constituição impõe ao órgão legislativo o dever de editar norma reguladora da atuação de determinado preceito constitucional, sua abstenção será ilegítima e configurará caso de inconstitucionalidade por omissão. (2013, p. 246). Tem-se então que direitos fundamentais podem ser violados tanto de forma comissiva (realizar aquilo que é proibido) como de forma omissiva (não realizar aquilo que é obrigatório). A respeito do dever de realização dos direitos fundamentais por parte do Legislador Ingo Sarlet pondera que: Outro desdobramento estreitamente ligado à perspectiva objetivo-valorativa dos direitos fundamentais diz com o que se poderia denominar de eficácia dirigente que estes (inclusive os que precipuamente exercem a função de direitos subjetivos) desencadeiam em relação aos órgãos estatais. Neste contexto é que se afirma conterem os direitos fundamentais uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos direitos fundamentais. (2010, p. 146). O Autor segue reforçando a obrigação de realização dos direitos fundamentais e destacando a possibilidade de sua violação por intermédio de omissões legislativas: Cumpre assinalar, ainda no que concerne a este aspecto, que esta ordem genérica de efetivação inerente a todos os direitos fundamentais obviamente não se confunde e não afasta a existência de normas (princípios ou regras) de direitos fundamentais específicas de cunho impositivo, que – exclusivamente ou para além de consagrarem direito subjetivo individual – impõem ao legislador (ao menos em primeiro plano) a concretização de determinadas tarefas, fins e/ou programas mais ou menos genéricos. (SARLET, 2010, pp. 146 - 147). Silva, não existe norma constitucional que não dependa de algum tipo de regulamentação e que não seja suscetível de algum tipo de restrição. Assim, se a distinção entre as normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada reside na necessidade, no caso das segundas, de atuação estatal no sentido de lhes completar a eficácia, a distinção cai por terra se se aceita que, da mesma forma que todas as normas estão sujeitas à restrição, todas elas dependem também de regulamentação”. (2011, p. 230). Neste diapasão, vislumbra-se que a efetividade, ou seja, a eficácia social da Constituição (e dos direitos fundamentais) encontra-se condicionada a comportamentos do Legislador infraconstitucional que, ao deixar de agir, impossibilita a realização desta efetividade. Neste sentido: A efetividade da Constituição há de assentar-se sobre alguns pressupostos indispensáveis. Como foi referido, é preciso que há de parte do constituinte senso de realidade, para que não pretenda normatizar o inalcançável, o que seja materialmente impossível em dado momento e lugar. Ademais, deverá ele atuar com boa técnica legislativa, para que seja possível vislumbrar adequadamente as posições em que se investem os indivíduos, assim como os bens jurídicos protegidos e as condutas exigíveis. Em terceiro lugar, impõe-se ao Poder Público vontade política, a concreta determinaçãode tornar realidade os comandos constitucionais. E, por fim, é indispensável o consciente exercício da cidadania, mediante a exigência, por via de articulação política e de medidas judiciais, da realização dos valores objetivos e dos direitos subjetivos constitucionais. (BARROSO, 2013, p. 244). Ademais, há que se ter presente que as omissões inconstitucionais podem ocorrer de duas formas, tanto por intermédio da inobservância de um dever constitucional de legislar, que resulta de comandos explícitos da Constituição; como por meio da não realização de decisões fundamentais da Constituição identificadas no processo de interpretação. Diante disto, nos casos em que interpretativamente se concebe uma medida que seria necessária à realização de um direito fundamental e tal medida não é tomada pelo Legislador o qual se encontra obrigado a fazê-lo, semelhantemente resta configurada omissão inconstitucional. Então, tendo em vista a concepção dos direitos fundamentais como princípios (ser expressos em modais deônticos - obrigatório, proibido e facultativo) os quais criam uma moldura dentro do qual o legislador, legitimado pelo processo eleitoral, pode atuar, tem-se que extrapolando os limites impostos pela referida moldura, há ofensa aos direitos fundamentais. Por outro lado, a não realização do modal obrigatório (o não preenchimento da moldura), também constitui ofensa aos direitos fundamentais nesta forma expressos. Tendo em vista então que os direitos fundamentais podem ser violados tanto de forma comissiva como de forma omissiva, uma concepção protetora dos direitos fundamentais não pode ignorar essa realidade. Desta feita, a concepção de direitos fundamentais como trunfos contra a maioria deve mostra-se adequada não somente para evitar violações positivas a direitos fundamentais, mas também as violações perpetradas por meio de omissões. Firmados esses pressupostos, parte-se para o objeto centrar do estudo proposto: o papel do poder judiciário na realização dos direitos fundamentais (concebidos como trunfos contramajoritários) diante da omissão do legislador em criar os mecanismos e adotar as medidas necessárias para realizá-los. Ressalte-se que tais mecanismos podem ser exigidos pela Constituição tanto de forma expressa, tanto como por intermédio de suas decisões, sendo alcançados assim pela via interpretativa. 3 O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA REALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CASO DE OMISSÃO LEGISLATIVA A Constituição Cidadã constitui-se em uma verdadeira carta de programas os quais representam os anseios de uma sociedade cada vez mais heterogênea e plural. Como referido alhures, não raras vezes tais objetivos são ignorados por aqueles aos quais se incumbe o dever constitucional de realizar a Lei Maior. Neste sentido, o caso das omissões legislativas é apontado como um dos maiores desafios da jurisdição constitucional,12 trazendo à tona novamente a tensão existente entre os direitos fundamentais e a democracia, na medida em que um poder não eleito democraticamente é chamado a determinar a ação de um poder eleito. Contudo, esse problema de legitimidade parece ser insuperável caso se queira garantir a função contramajoritária dos direitos fundamentais13, uma vez que é necessário entregar a um órgão imune às ingerências da maioria, o dever de garantir os direitos fundamentais das minorias. Neste diapasão, Robert Alexy assevera que: A necessária colisão entre o princípio democrático e os direitos fundamentais significa que o problema da divisão de competências entre o legislador com legitimação democrática direta e responsabilidade – em razão da possibilidade de 12 Neste Gilmar Ferreira Mendes assevera que: “Não é necessário muito esforço para constatar que, no Brasil, neste início de século, os formidáveis avanços quanto à democratização do processo constitucional não escondem outros desafios da jurisdição constitucional, os quais se concentram, em sua maior parte, nas difíceis questões quanto à omissão legislativa e o papel que deve exercer a Corte Constitucional na solução dos déficits de implementação de políticas públicas voltadas à efetivação de direitos fundamentais. (pp. 2 -3) 13Esse embate entre o princípio democrático e o Estado de Direito é exaltado por alguns autores, sendo inclusive apontado como o vetor que possibilita o desenvolvimento de um verdadeiro Estado Democrático e de Direito em uma sociedade plural e globalizada como a atual. Neste sentido, “A imanente tensão dialética entre democracia e Constituição, entre direitos fundamentais e soberania popular, entre Jurisdição Constitucional e legislador democrático, é o que alimenta e engrandece o Estado Democrático de Direito, tornando possível o seu desenvolvimento, no contexto de uma sociedade aberta e plural, baseado em princípios e valores fundamentais.” (MENDES, p. 10) não-reeleição - e o tribunal constitucional apenas indiretamente legitimado democraticamente, e não destituível eleitoralmente, é um problema inevitável e permanente. (ALEXY, 2011, p. 447 ). Preliminarmente, destacam-se os posicionamentos contrários à intervenção do judiciário ante uma omissão legislativa em matéria de direitos fundamentais. Neste sentido concebem Luigi Ferrajoli e Jeremy Waldron. O Autor italiano parte da problemática da garantia do direito levantada por Hans Kelsen para quem, um direito que carecesse de garantia não seria um verdadeiro direito14. Para Ferrajoli, um direito fundamental constitui um objeto autônomo em relação às suas garantias, não fosse assim, tal direito perderia consideravelmente sua força vinculante (2009, p. 45). Nesta esteira, o autor assevera que: Es claro que si confundimos derechos y garantías resultarán en el plano jurídico las dos más importantes conquistas del constitucionalismo de este siglo, es decir, la internacionalización de los derechos fundamentales y la constitucionalización de los derechos sociales, reducidas una y otra, en defecto de las adecuadas garantías, a simples declamaciones retóricas o, a lo sumo, a vagos programas políticos jurídicamente irrelevantes. Bastaría esto para desaconsejar la identificación y justificar la distinción entre derechos y garantías en el plano teórico. (FERRAJOLI, Derechos Fundamentales, 2009, p. 45).15 Ferrajoli distingue então duas espécies de garantias. Partindo do seu conceito formal de direitos fundamentais supra referido, Ferrajoli concebe que aos direitos fundamentais (direitos subjetivos) correspondem deveres os quais constituem suas garantias primárias (2009, p. 45). Lado outro, as obrigações (que o Autor chamar de “de segundo grau) de aplicar a sanção ou de declarar a nulidade das violações às garantias primárias são as conhecidas garantias secundárias. (2009, p. 46). A ausência de uma garantia primária, ou seja, da proibição ou obrigação correlata ao direito subjetivo trazido pelo direito fundamental, corresponde a uma lacuna primária. A ausência de órgãos obrigados a invalidar e sancionar o descumprimento das garantias 14 “Ora, o conhecimento jurídico dirigi-se a estas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira.” KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.5. 15 “É claro que se confundirem direitos e garantias resultam em termos legais as duas conquistas mais importantes desteséculo constitucionalismo, ou seja, a internacionalização dos direitos fundamentais e da constitucionalização dos direitos sociais, reduzidas de novo e, na ausência das salvaguardas adequadas, em simples declamações retóricas ou, na melhor das hipóteses, a vagos programas políticos legalmente irrelevantes. Isso seria o suficiente para desencorajar identificação e justificar a distinção entre direitos e garantias ao menos teoricamente” (tradução livre). primárias corresponde a uma lacuna secundária (FERRAJOLI, Derechos Fundamentales, 2009, p. 48). Neste ponto que Ferrajoli se mostra contrário à atuação do judiciário na realização de um direito fundamental mediante uma omissão legislativa que positive a obrigação ou proibição correlata ao direito subjetivo criado pelo direito fundamental. Para o autor, ausente a garantia primária somente resta aguardar que o Legislador, por sua livre e espontânea vontade saia do estado de inércia legislativa.16 Jeremy Waldron também se mostra contrário a possibilidade do Judiciário atuar modificando ou condicionando decisões do Legislador mesmo que sobe o argumento de defesa de direitos fundamentais da minoria. Ele ponta diversos países onde não há essa possibilidade e exalta a deliberação democrática. Neste sentido, o autor assevera que: Em países que não permitem que a legislação seja invadida dessa maneira, o próprio povo pode decidir, através de procedimentos legislativos ordinários, se quer ou não permitir o aborto, a ação afirmativa contra descriminação de minorias, as cotas escolares e o casamento gay. As pessoas podem decidir entre si se querem ou não ter leis punindo a expressão pública de ódio racial ou restringindo os fatos eleitorais dos candidatos. Caso discordem quanto a qualquer dessas questões, podem eleger representantes para deliberar e resolver a questão votando em um parlamento. (WALDRON, 2010, p. 94). O autor segue criticando duramente a intervenção do Judiciário apontando como defeito grave a carência de legitimidade deste poder para reformar decisões tomadas no âmbito democrático. Neste sentido: O judicial review é vulnerável ao ataque em duas frentes. Ele não fornece, como frequentemente se alega, uma maneira pela qual uma sociedade possa claramente enfocar as questões reais em jogo quando cidadãos descordam sobre direitos; pelo contrário, ele os distrai com questões secundárias sobre precedentes, textos e interpretações. E ele é politicamente ilegítimo, naquilo que diz respeito aos valores democráticos: ao privilegiar a maioria dos votos entre um pequeno número de juízes não eleitos e não responsabilizáveis, ele priva os cidadãos comuns de seus direitos e rejeita estimados princípios de representação e igualdade política na resolução final de questões de direito. (WALDRON, 2010, p. 98). 16 Neste sentido, aduz Luigi Ferrajoli que “En otras palabras, que existan lagunas primaria, por defecto de estipulación de las obligaciones y las prohibiciones que constituyen las garantías primarias del derecho subjetivo, y lagunas secundarias, por el defecto de institución de los órganos obligados a sancionar o a invalidar sus violaciones, o sea, a aplicar las garantías secundarias. Pero tampoco en tales casos es posible negar la existencia del derecho subjetivo estipulado por una norma jurídica; se podrá sólo lamentar la laguna que hace de él un “derecho de papel” y afirmar la obligación del legislador de colmarla”. (2009, p. 48). “Em outras palavras, que existam lacunas primarias por defeito de estipulação das obrigações e das proibições que constituem as garantias primarias do direito subjetivo, e lacunas secundárias, pelo defeito de instituição dos órgãos obrigados a sancionar ou a invalidade suas violações, ou seja, a aplicar as garantias secundárias. Mas não é possível em tais casos negar a existência do direito subjetivo estipulado pela norma jurídica; se poderá somente lamentar a lacuna que faz dele um ‘direito de papel’ e afirmar a obrigação do legislador de colmatá-la.” (tradução livre). Não obstante a consistência e até coerência das criticas à atuação do Poder Judiciário realizadas por Waldron e seguidas por muitos autores, seus argumentos não podem prevalecer principalmente tendo em vista as decisões constitucionais do próprio constituinte brasileiro. Primeiramente, deve-se aqui resgatar a teoria da moldura de Alexy para mostrar que os direitos fundamentais não podem justificar toda e qualquer interferência do Judiciário nas decisões do Legislativo, mas apenas naquelas decisões as quais violem os modais deônticos proibido (violações positivas) e obrigatório (violações negativas). Deve-se ter presente que os direitos fundamentais como trunfos contra a maioria devem ser garantidos de alguma forma e, por imperativo lógico, não se pode deixar para a própria maioria (representada pelo Parlamento) esta obrigação, daí a necessidade de outro órgão, mesmo que não legitimado, evocar para si a responsabilidade de garantir os direitos da minoria. Neste sentido, Gilmar Ferreira Mendes pondera que: O cumprimento dessa precípua tarefa por parte da Corte não tem o condão de interferir negativamente nas atividades do legislador democrático. Não há “judicialização da política” quando as “questões políticas” estão configuradas como verdadeiras “questões de direitos”. Essa tem sido a orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal, desde os primórdios da República. (p. 10). Ademais, reconhecido a legitimidade constitucional do Judiciário para defender a Constituição e os direitos fundamentais (inclusive os das minorias contra as ações ou omissões da maioria), some-se a previsão constitucional de diversas ações as quais podem ser manejadas para defender a realização de direitos fundamentais em caso de omissão legislativa e a positivação da inafastabilidade do Poder Judiciário para a apreciação de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito (artigo 5º, XXXV, Constituição Federal). Entre tais ações figuram a ação de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §2º, Constituição Federal) e o mandado de injunção (artigo 5º, LXXI, Constituição Federal). Este é apto a realizar a tutela incidental e concreta de direitos fundamentais violados devido à ausência de norma regulamentadora, ao passo que aquela constitui uma via principal sendo usada nos casos de omissões normativas. Tem-se então que o Poder Judiciário possui papel central na realização dos direitos fundamentais negligenciados pelo Legislador, sente-se que não há carência de legitimidade na sua atuação, primeiramente porque os direitos fundamentais (democraticamente positivados) agem como trunfos contra a maioria, e porque a própria constituição (democraticamente promulgada) prevê ações constitucionais para a realização desses direitos negligenciados. Por tudo isto, não se pode concordar que a tese de Ferrajoli se aplique no constitucionalismo pátrio e que em caso de ausência de uma garantia primaria de direito fundamental somente reste esperar pela sua colmatação pelo legislador. No Brasil, por intermédio do mandado de injunção é possível ao Poder Judiciário garantir a realização do direito fundamental no caso concreto. Ademais, tem-se ainda a ação de inconstitucionalidade por omissão em que apesar de o judiciário não criar norma jurídica faltante (garantia primária) aponta a sua ausência e o dever do Legislador de fazê-lo. Semelhantemente, as criticas de Jeremy Waldron também não podem prosperar no constitucionalismo pátrio. Em nosso país, não há déficit algum de legitimidade na colmatação, pelo Poder Judiciário, de lacunas legislativas referentes a direitos fundamentais justamente tendo porque o próprio Constituinte (eleito democraticamente) previu na Lei Maior ações constitucionais para tanto.CONCLUSÃO Os direitos fundamentais tal como referido por Robert Alexy, são direitos tão importantes que a decisão sobre sua garantia não pode ser deixada para a maioria parlamentar simples, visto que não se sabe como esta maioria decidirá em cada momento histórico. Ademais, os direitos fundamentais são normas com estrutura principiológica, ou seja, determinam que algo seja realizado na maior medida possível tendo em vista as condições fáticas e jurídicas existentes. Por todas essas razões e principalmente tendo em vista que a dignidade humana fundamenta todo o ordenamento jurídico, os direitos fundamentais funcionam com trunfos contra a maioria. Então, não pode, tendo em vista a igual dignidade humana de todos, suprimir direitos da minoria. Tais direitos são expressos a partir de modais deônticos (proibido, permitido e obrigatório) os quais formam uma moldura dentro da qual se encontra o espaço de atuação do Legislador democraticamente eleito. Contudo, quando o Legislador ultrapassa o espaço da moldura fazendo aquilo que é proibido ou deixando de realizar aquilo que é obrigatório, incorre em violação aos direitos fundamentais. Então, tem-se que tais direitos podem ser violados tanto de forma comissiva como de forma omissiva pela maioria (Parlamento). Tendo em conta, que o próprio Parlamento pode violar direitos fundamentais, não se pode deixar a garantia destes direitos sob sua responsabilidade, o Poder Judiciário aparece então como grande guardião das posições jusfundamentais garantidas pela Lei Maior. Todavia, tal atuação do Judiciário não se encontra imune a criticas. Há autores para os quais, ausentes as normas que determinam os deveres correspondentes aos direitos subjetivos garantidos pela norma de direito fundamental, apenas resta esperar que o Legislador, democraticamente eleito, colmate tal lacuna, não podendo fazê-lo o Poder Judiciário. Há outros para quem, somente o poder democraticamente eleito pode deliberar a respeito dos deveres supramencionados, sendo a atuação judicial nestes casos politicamente ilegítima, visto que estaria um poder não eleito democraticamente modificando ou condicionando a atuação de outro assim escolhido. Não obstante a consistência destas críticas não podem elas prevalecer no constitucionalismo brasileiro. Justamente por serem garantias contramajoritárias os direitos fundamentais devem ser tutelados por um poder que não a maioria (Parlamento). Ademais, a atuação do Poder Judiciário brasileiro, em casos de omissão e lacuna legislativa que impossibilite a fruição de direitos fundamentais não carece de legitimidade, isto porque, o próprio constituinte (democraticamente eleito) trouxe, na Lei Maior, a possibilidade de o Judiciário agir, uma vez provocado por meio de ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2011. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2013. FERRAJOLI, Luigi. Derechos Fundamentales. In: L. FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales (pp. 19-56). Madri: Trotta, 2009. ______. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundandamento da comunidade estatal. In: I. W. SARLET, Dimensões da Dignidade (pp. 45 - 103). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. MENDES, Gilmar Ferreira. (s.d.). Supremo Tribunal Federal. Acesso em 14 de julho de 2013, disponível em Site do Supremo Tribunal Federal: http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfAgenda_pt_br/anexo/Jur isdicao_Constitucional_no_Seculo_XXI__v__Port1.pdf. NOVAIS, Jorge. Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. SARLET, Ingo. Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. SEELMAN, K. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In: I. W. SARLET, Dimensões da Dignidade (pp. 105 - 118). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. SILVA, Virgilio Afonso da. Direitos Fundamentais. São Paulo : Malheiros. 2011. WALDRON, Jeremy. A essencia da oposição ao judicial review . In: A. C. BIGONHA, & L. MOREIRA, Legitimidade da Jurisdição Constitucional (pp. 93-157). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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