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1 UNIDADE 1 O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de: • compreender as circunstâncias nas quais o regime político republicano foi implantado no Brasil; • analisar aspectos do conjunto de interesses dos grupos políticos envol- vidos na implantação da República, assim como daqueles que surgiram entre os anos de 1889 e 1930; • refletir sobre alguns aspectos dos movimentos sociais na Primeira Repú- blica; • identificar as condições nas quais a luta de classes encontrou projeção no espaço urbano industrial na Primeira República. Essa unidade está organizada em três tópicos. Em cada um deles você encontrará dicas, textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior compreensão dos temas a serem abordados. TÓPICO 1 – A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO TÓPICO 2 – PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” TÓPICO 3 – TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES” Assista ao vídeo desta unidade. 2 3 TÓPICO 1UNIDADE 1 A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO 1 INTRODUÇÃO Resultado de uma convenção criada na Europa do século XIX, momento em que a História se constituía como disciplina, ganhava projeção institucional e aspirava à cientificidade a “História Contemporânea”, que haveria tido seu marco inaugural em 1789, ano de importantes eventos políticos e sociais responsáveis pela instauração da Revolução Francesa. Segundo esta convenção, com o perdão da redundância, seríamos “contemporâneos de uma História Contemporânea”. Não há como negar que a Revolução Francesa desencadeou eventos com projeções maiores do que aquelas restritas ao continente europeu, mas, em se tratando do nosso país, pensar a existência de uma “História Política do Brasil Contemporâneo” é uma atitude que nos remete a um recorte temporal diferenciado, principalmente porque, do ponto de vista político, a “História Contemporânea” brasileira ganha maior significado no espectro do regime republicano. Instaurada em 15 de novembro de 1889, um século após o início da Revolução Francesa, a República não significou a materialização de um projeto político e administrativo para o país e para sua população, mas uma via conciliatória para interesses díspares de uma elite política que não mais se adequava ao regime monárquico. A confirmação dessa tese pode ser encontrada, por exemplo, na falta de respaldo popular ao ideário republicano, situação que só teve par na absoluta insipiência da maneira como a carcomida monarquia foi defendida nos dias seguintes à proclamação da República. Por outro lado, os rumos que o novo regime tomou até os anos trinta do século XX são testemunhos de peso considerável. Senão vejamos. UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 4 2 OS INTERESSES E AS PROPOSTAS EM EVIDÊNCIA Por maiores que sejam as discrepâncias entre os trabalhos de historiografia que discorrem sobre a transição da Monarquia à República, podemos indicar, sem maiores problemas, a existência de alguns pontos de convergências nas explicações que estes dão a ler. Em linhas gerais, [...] Da mesma forma que para o fim da escravidão, em geral, para se explicar a Proclamação da República (15 de novembro de 1889) recorre- se às transformações econômico-sociais por que passaria o país no final do século. Assim, teríamos a decadência das oligarquias tradicionais (leia-se, em especial, a do Vale do Paraíba), a imigração e o definhamento da escravidão, fenômenos que levariam ao aprofundamento das relações capitalistas no campo, o processo de industrialização e a urbanização. No interior deste ambiente, encontraríamos o crescimento dos Partidos Republicanos, a campanha pelo federalismo frente à centralização monárquica, a penetração das ideias positivistas no exército e o aguçamento da chamada Questão Militar. Caberia aos militares o ato de 15 de novembro de 1889 e seriam eles os primeiros presidentes, ficando no poder até 1894. (LINHARES, 1990, p. 187, grifo nosso). Individualmente, todas as questões em negrito na citação anterior mereceriam um olhar mais atento e uma análise específica. Contudo, interessa-nos aqui entender a contribuição que cada uma delas deu ao processo de instauração da República. Portanto, vamos por partes, começando pela última delas: a Questão Militar. Segundo uma expressão bastante conhecida entre os historiadores e cientistas sociais, enunciada por Aristides Lobo, o povo teria assistido à queda da Monarquia “bestializado, atônito, sem saber o que significava”. O fato é que, embora a existência de partidos republicanos fosse constatada desde 1870, o ato inaugural da República não foi obra de uma articulação política entre civis, mas um “evento até certo ponto misterioso para os que dele não participaram diretamente, ou seja, para os que não pertenciam ao seleto grupo de militares conspiradores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 141). Ao longo da segunda metade do século XIX, principalmente após o término da Guerra do Paraguai (1864-1870), as relações entre o governo imperial e o exército não eram das melhores. Nos meios militares havia um profundo ressentimento em relação ao absoluto descaso com que o governo tratava o exército. A falta de investimentos, tanto em infraestrutura quanto em contingente e treinamento, era uma das razões para o fato de o exército brasileiro viver em estado precário. Essa situação, contudo, não impediu a vitória brasileira, em conjunto com a Argentina e o Uruguai, na Guerra do Paraguai. Finda a guerra, aqueles que lutaram pelo país passaram a reivindicar com maior veemência a devida atenção aos seus interesses. TÓPICO 1 | A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO 5 FIGURA 1 – HOMENAGEM DA REVISTA ILLUSTRADA À PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA FONTE: REPÚBLICA no Brasil. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/ wiki/Ficheiro: Republica_no_brasil.jpg>. Acesso em: 7 mar. 2010. Associa-se ao descaso outro fato importante. Mesmo diante das condições adversas, a partir de 1850 o exército brasileiro enfrentava um paulatino processo de profissionalização. No entendimento de Del Priore e Venâncio (2003), tal processo, dentre outras consequências, acarretou uma modificação nos critérios de promoção, ou seja, a progressão na hierarquia militar, historicamente acessível apenas a membros da elite, tornou-se uma prerrogativa do mérito individual e possibilitou a projeção de jovens de origem humilde. Uma vez que no exército era possível também obter acesso à educação formal e ao conhecimento científico, criaram-se as condições para a propagação do ideário cientificista que ganhava forte projeção no século XIX, principalmente no mundo ocidental. Em poucas palavras, é possível dizer que a crença na ciência como promotora do progresso, do desenvolvimento e da “civilização”, encontrou no exército um terreno fértil para germinar. O fruto desse plantio foi a difusão, entre seus membros, do Positivismo, doutrina filosófica concebida por Auguste Comte, cujo lema, “a Ordem por base, o Progresso por fim”, disseminou-se entre toda uma geração formada na escola militar. Não por outro motivo, o lema inscrito na bandeira nacional (a Bandeira Republicana), “Ordem e Progresso”, é tributário do ideário positivista. Evidentemente, não foi a força das ideias que guiava o grupo comandado pelo Marechal Deodoro da Fonseca a única responsável pela República. Dado o empurrão inicial, o carro republicano só entrou em movimento devido a uma ampla conjunção de fatores. A abolição do trabalho escravo certamente constaentre eles. A assinatura da Lei Áurea foi o ato final de um processo que se estendeu por mais de quarenta anos. Desde 1850, com a assinatura da Lei Eusébio de Queirós, o tráfico interatlântico de escravos fora proibido (decorrência das pressões sofridas UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 6 de parte dos ingleses, agentes contentores do tráfico entre a África e a América desde 1845). Durante esta segunda metade do século ocorreu um prolongamento da escravidão até a impossibilidade de sua manutenção. Atos legais, como a criação da Lei do Ventre Livre, sancionada em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885, nada mais representaram do que a protelação do inevitável, principalmente se levarmos em conta que o Brasil foi um dos únicos países da América a manter a escravidão depois de proclamada a independência política em relação à sua metrópole. A pressão contra a manutenção do regime de trabalho escravo desenvolveu- se em várias frentes. À revolta cada vez mais incisiva (e perigosa) dos escravos cativos é necessário somar a proliferação de clubes abolicionistas, dos quais faziam parte, por exemplo, tanto intelectuais e profissionais liberais, quanto membros da elite e ex-escravos. Nestes clubes constavam aqueles que defendiam a extinção lenta e gradual da escravidão (emancipacionistas) e aqueles que lutavam por sua extinção imediata (abolicionistas). Por outro lado, as próprias necessidades internas do capitalismo em desenvolvimento no país (é importante lembrar que a constituição de um mercado consumidor, com renda própria, é condição de existência para a manutenção do capitalismo) agiram no sentido de fomentar a abolição. Contra essas frentes ficavam os escravistas, defensores da existência do regime de trabalho escravo. FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Golden_ law_1888_Brazilian_senate.jpg>. Acesso em: 7 mar. 2010. FIGURA 2 – LEI QUE ABOLIU A ESCRAVIDÃO A figura mostra o Senado brasileiro aprovando a lei que aboliu a escravidão no país, em 1888. Uma multidão está reunida no andar de cima e ao fundo no térreo assistindo. UNI TÓPICO 1 | A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO 7 Se a “ordem natural dos acontecimentos”, supondo que esta exista, apontava o final do século XIX como o momento do suspiro final da escravidão, o ato da Princesa Isabel pode ser interpretado como um atropelo dessa ordem. Rompendo com a proposta dos emancipacionistas, a abolição significou para os escravistas “[...] uma traição, um confisco de propriedade alheia. A reação deste grupo não tardou a acontecer. Um ano após o ‘13 de maio’, à oposição dos militares somou- se agora a de numerosos ex-senhores de escravos.” (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 258). Conforme nos fala Penna (1999), sem base econômica e política capaz de lhe dar sustentação, a Monarquia não resistiu a uma singela parada militar. FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Lei- %C3%81urea-original-da-Lei-3353.jpg>. Acesso em: 7 mar. 2010. FIGURA 3 – PUBLICAÇÃO OFICIAL DA LEI ÁUREA Do ponto de vista político-administrativo, o elemento que mais militava contra a Monarquia era o excesso de centralização do poder. Para que você tenha uma ideia do peso desta questão, é importante saber que durante o Segundo Reinado, ou seja, durante o período em que Dom Pedro II governou, havia uma interferência direta do governo na vida política das mais diversas regiões do país. Esta postura impossibilitava a livre ação de grupos oligarcas regionais e a sua perpetuação no poder. Por mais opaca que a ideia de República parecesse, havia em seus preceitos a sinalização para a implantação da descentralização e do federalismo, sendo estas, inclusive, as principais reivindicações do movimento republicano originado em 1870. Ou seja, como você pode notar, contrariando os princípios da Res Publica (palavras de origem latina que significam “coisa do povo”), a República brasileira, tanto por ocasião da sua implantação, quanto em UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 8 NOTÍCIAS DE JORNAIS SOBRE A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA A partir de hoje, 15 de novembro de 1889, o Brasil entra em nova fase, pois pode-se considerar finda a Monarquia, passando a regime francamente democrático com todas as consequências da Liberdade. Foi o exército quem operou esta magna transformação; assim como a de 7 de abril de 31 ele firmou a Monarquia constitucional acabando com o despotismo do Primeiro Imperador, hoje proclamou, no meio da maior tranquilidade e com solenidade realmente imponente, que queria outra forma de governo. Assim desaparece a única Monarquia que existia na América e, fazendo votos para que o novo regime encaminhe a nossa pátria a seus grandes destinos, esperamos que os vencedores saibam legitimar a posse do poder com o selo da moderação, benignidade e justiça, impedindo qualquer violência contra os vencidos e mostrando que a força bem se concilia com a moderação. Viva o Brasil! Viva a Democracia! Viva a Liberdade! Gazeta da Tarde, 15 de novembro de 1889. Despertou ontem esta capital no meio de acontecimentos tão graves e tão imprevistos que as primeiras horas do dia foram de geral surpresa. Rompeu com o dia um movimento militar que, iniciado por alguns corpos do exército, generalizou-se rapidamente pela pronta adesão de toda a tropa de mar e terra existente na cidade. A consequência imediata desses fatos foi a retirada do ministério de 7 de junho, presidido pelo Sr. Visconde do Ouro Preto, que teve de ceder à intimação LEITURA COMPLEMENTAR suas primeiras décadas, apresentou-se como uma interessante conveniência às elites nacionais. De acordo com Penna (1999), a República nasceu de maneira suficientemente pluralista para atender de imediato às expectativas de vários setores do quadro político nacional, mas não suficientemente capaz de dar abrigo aos interesses da grande massa da população, que continuou à margem dos canais efetivos de condução dos destinos do país. Em “Formação do Brasil contemporâneo”, Prado Júnior (1999) sugere que desde os tempos do Brasil Colônia criaram-se em nosso país estruturas de poder cujo sentido de continuidade determinou o nosso “sentido histórico” (pelo menos até a década de 1930). A permanência das oligarquias rurais (a elite agrária) direta ou indiretamente associadas ao poder de mando sustenta este ponto de vista. Contudo, há que se considerar que os arranjos políticos necessários à implantação da República, dada a multiplicidade de interesses envolvidos, logo demonstrariam o lado frágil dessa “transição orquestrada”. Analisaremos esta questão no Tópico 2. TÓPICO 1 | A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO 9 feita pelo Sr. Marechal Deodoro da Fonseca que assumiu a direção do movimento militar. À exceção do lastimoso caso do Sr. Barão do Ladário, que não querendo obedecer a uma ordem de prisão que lhe fora intimada, resistiu armado e acabou ferido, nenhum ato de violência contra a propriedade ou a segurança individual se deu até o momento em que escrevemos estas linhas. [...] Jornal do Commércio, 16 de novembro de 1889. FONTE: Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/ Link%20 rep%FAblica.htm>. Acesso em: 8 mar. 2010. Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia os seguintes livros: CARVALHO, José Murilo. A Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras 1990. Conforme o subtítulo dá a entender, a obra do historiador José Murilo de Carvalho oferece ao leitor preciosas informações sobre o processo de construção do imaginário republicano no Brasil, ou seja, sobre a maneiracomo ideias e símbolos foram mobilizados no intuito de dar sustentação (e promover a aceitação) do ideário republicano em nosso país. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. NOVAIS. Fernando A. (org.). História da Vida Privada no Brasil. República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998. As três obras discorrem sobre aspectos relativos ao processo de transição da Monarquia à República. Além de: HUBERMAN, Léo. História da Riqueza do Homem: do feudalismo ao século XXI. 22 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2010. DICAS 10 Neste tópico você viu que: • Nosso estudo sobre a “Formação Social, Histórica e Política do Brasil” toma por base os eventos ligados à instauração e institucionalização da República Brasileira. • A República não foi o resultado de um projeto político devidamente pensado para o país e sua população, mas uma saída conciliatória para os interesses de uma elite nacional. • O exército, responsável pelo ato formal de Proclamação da República, nutria vários descontentamentos em relação ao governo imperial. Tais descontentamentos, aliados à difusão do pensamento positivista nos meios militares, foram responsáveis pelo surgimento da “Questão Militar”. • A abolição do trabalho escravo resultou no ressentimento dos proprietários de escravos, membros de uma oligarquia rural. Esse ressentimento gerou o engrossamento das fileiras opositoras da Monarquia. • O excesso de centralização do poder por parte do governo imperial ofuscava os interesses políticos das oligarquias regionais. As propostas de descentralização e do federalismo funcionaram como uma sinalização para os interesses que estas nutriam em relação à conquista e manutenção do poder político. RESUMO DO TÓPICO 1 11 1 Partindo de uma análise dos textos presentes na Leitura Complementar, teça alguns comentários sobre a maneira como os jornais anunciaram a Proclamação da República. Procure enfocar a reação da população frente aos acontecimentos do dia 15 de novembro de 1889. 2 Uma vez que a ideia de “ordem” e “disciplina” é um dos pilares das práticas militares, você acha plausível a afirmação de que o exército se considerava a instituição melhor indicada para conduzir os rumos políticos do Brasil após a Proclamação da República? Justifique sua resposta. AUTOATIVIDADE Assista ao vídeo de resolução da questão 2 Assista ao vídeo de resolução da questão 1 12 13 TÓPICO 2 PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Conforme você pôde ler na parte final do tópico anterior, embora a implantação da República tenha sido um arranjo conveniente, uma possibilidade de aglutinação de interesses díspares, a quantidade de interesses em jogo era muito ampla para que o processo de transição entre o regime monárquico e o republicano fosse tranquilo. Com efeito, nos primeiros anos do novo regime, principalmente enquanto os militares permaneceram no poder, o cenário político nacional permaneceu bastante agitado. A tomada do poder por parte dos civis via eleição que empossou Prudente de Morais, em 1894, abriu as portas para um período da história política nacional cuja nomeação é a mais variada. Você já deve ter ouvido falar em “Primeira República”, ou “República Velha”, ou “República Oligárquica”, ou, ainda, em “República do Café com Leite”. Ao longo deste tópico tentaremos explorar um pouco o significado desses conceitos. 2 QUE REPÚBLICA? QUE REGIME ADMINISTRATIVO? Sobre os primeiros anos do regime republicano, a historiadora Emília V. da Costa registra que: As contradições presentes no movimento de 1889 vieram à tona já nos primeiros meses da República, quando se tentava organizar o novo regime. As forças que momentaneamente se tinham unido em torno da ideia republicana entraram em choque. Os representantes do setor progressista da lavoura, fazendeiros de café das áreas mais dinâmicas e produtivas, elementos ligados à incipiente indústria, representantes das profissões liberais e militares nem sempre tinham as mesmas aspirações e interesses. As divergências que os dividiam repercutiam no Parlamento e eclodiam em movimentos sediciosos que polarizavam momentaneamente todos os descontentamentos, reunindo desde monarquistas até republicanos insatisfeitos. Rompia-se a frente revolucionária. Representantes da oligarquia rural disputavam o poder a elementos do exército e da burguesia, embora houvesse burgueses e militares dos dois lados, em função dos seus interesses e ideais. (COSTA, 1994, p. 276). UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 14 Cabe aqui lembrar que o excesso de centralização do poder por parte do governo monárquico minava suas bases, pois gerava um progressivo descontentamento de parte das oligarquias regionais. Como na segunda metade do século XIX o carro-chefe da economia nacional era a exportação do café produzido em grandes latifúndios, seus proprietários não mais se contentavam com o distanciamento em relação ao poder de mando, de decisão em relação aos rumos do país. Neste sentido, a federalização – cujo modelo fora tomado dos Estados Unidos – e sua proposta de ampliação do poder das unidades da federação exerceu um apelo muito grande. Esta era a principal bandeira dos partidos republicanos. O Partido Republicano (PR) surgiu no início da década de 1870. Em verdade, não há como falar na existência de um partido republicano, pois o PR jamais assumiu uma amplitude nacional. Como nos fala Penna (1999), suas bases eram constituídas pelas oligarquias regionais e expressavam seus interesses. Após a instauração da República o PR se pulverizou em diferentes legendas, cada qual portadora de uma estratégia que visava contemplar as realidades regionais. Contudo, a atomização do PR não foi suficientemente capaz de ofuscar a força de algumas siglas regionais. A principal delas, PRP, Partido Republicano Paulista, foi uma prova disto. O PRP foi fundado em 1872 e em pouco tempo se tornou o partido republicano com maior solidez em sua organização. Formado basicamente por grandes proprietários de terra desiludidos com a Monarquia, de acordo com Penna (1999), o PRP preservava certa autonomia local, principalmente em relação ao núcleo do Rio de Janeiro. O ideário defendido pelos republicanos paulistas procurava identificar seus interesses de classe com os da nação. Assumia, portanto, uma identidade liberal-conservadora. Por ocasião da tomada do governo das mãos dos militares, na eleição de 1894, o PRP marcou presença efetiva. Vejamos como isso aconteceu. A agitação política no país após a instauração da República se devia, em grande medida, à ausência de um plano de governo claro e capaz de agradar a todas as correntes e interesses associados em 1889. Por ter sido o condutor direto do “ato fundante”, a “parada militar”, o exército detinha a prerrogativa de indicar o primeiro caminho a ser tomado. Dentro do exército não havia unanimidade do ponto de vista ideológico, mas um grupo de positivistas vinculado a Benjamin Constant “introduziu no debate político brasileiro a ideia de ditadura republicana. Tal perspectiva política fez sucesso, sendo também partilhada por aqueles que não seguiam os ensinamentos comtianos”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 268). Ainda segundo estes autores, um exemplo desta afirmação pode ser encontrado no fato de que em 1891, aproximadamente um ano depois da sua eleição como presidente constitucional, o Marechal Deodoro da Fonseca deu mostra da postura ditatorial, desrespeitando a Constituição (promulgada em 1891, a segunda Constituição brasileira e a primeirarepublicana) e fechando o Congresso. A essas alturas você já deve ter notado que os interesses das oligarquias regionais, principalmente a paulista, não encontraram respaldo na postura dos TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” 15 militares. A centralização do poder em suas mãos fez com que Deodoro sofresse pressões as mais diversas, sendo que, devido a uma conspiração militar, acabou renunciando. Em seu lugar o Marechal Floriano Peixoto assume o governo. Este agiu de maneira a dar contornos ainda mais fortes à postura ditatorial e centralizadora do regime. Para além dos ataques no plano político, o governo de Floriano enfrentou duas manifestações de desagrado que adentraram o plano da ação direta. A primeira, denominada Revolta da Armada (1893-1894), longe de ser uma conspiração antirrepublicana, representou o descontentamento de algumas alas das forças armadas em relação aos rumos que o governo da república havia tomado. Ao mesmo tempo em que confrontos bélicos ligados à Revolta da Armada se processavam no Rio do Janeiro, nos estados do Sul do país eclode a chamada Revolução Federalista, cujo embate opôs grupos dominantes locais em “facções leais e inimigas de Floriano Peixoto”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 268). Um dos palcos desse confronto foi a capital de Santa Catarina, à época chamada de Desterro. Após a vitória do grupo ligado a Floriano (e a consequente execução de muitos dos líderes oposicionistas), a capital foi renomeada: assim surgia Florianópolis (a cidade de Floriano). A necessidade de apoio ao combate das sublevações oposicionistas levou Floriano Peixoto a se aproximar da oligarquia regional com maior poder econômico, no Brasil da década de 1890. O Partido Republicano Paulista, representante desta oligarquia, surge então como articulador da passagem do governo das mãos dos militares para os civis. Assim, “em 1894, através da eleição de Prudente de Morais, é dado o primeiro passo e, em 1898, com Campos Sales, a transição se consolida. Inaugura-se, então, o que se convencionou denominar política dos governadores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 268). A partir deste momento os rumos da Primeira República ficavam definitivamente traçados. O paradoxo da “democracia excludente”, materializado no coronelismo, ganhara corpo e projeção. O pleno domínio das oligarquias deu margem à constituição de uma Res Publica de fachada. UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 16 3 REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS: A ARTICULAÇÃO E OS MOVIMENTOS DE CONTESTAÇÃO Respondendo pelos anseios das oligarquias regionais, o texto da Constituição de 1891 previa a existência do federalismo. Embora significasse uma margem grande de autonomia para os estados, o federalismo dificultava o fortalecimento do governo republicano central. Deve-se a este fato, em grande medida, os problemas enfrentados pelos governos de Deodoro e Floriano. A manutenção da República passou a depender de um arranjo de forças capaz de lhe dar sustentação. A resposta a este imperativo foi dada pelo segundo presidente republicano civil, Campos Sales. A questão é que Tentava-se garantir a reprodução do regime eximindo-o dos traumatismos e crises inerentes aos processos sucessórios em que “oposição” e “situação” se revezassem, desregradamente, no poder. A Política dos Governadores foi o seu nome e consistiu na aplicação dos seguintes princípios: o reforço da figura presidencial (a despeito da independência dos poderes) e a solidarização das maiorias com os Executivos (estaduais e federal). Partindo deste princípio, o mesmo sufrágio que elege as primeiras deve eleger o segundo, reconhecendo-se a “legitimidade” das maiorias estaduais, comprometendo-se o Governo Federal a não apoiar dissidências locais. (LINHARES, 1990, p. 230). FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/1/1a/Guarda _Nacional_na_Revolta_da_Armada.jpg>. Acesso em: 10 mar.2010. FIGURA 4 – FORTIFICAÇÃO (REVOLTA DA ARMADA) A ilustração mostra uma fortificação passageira, 1894. Vê-se um canhão de 280 mm (único no Brasil) e soldados do 4º Batalhão de Artilharia da Guarda Nacional. Proveniente da série Revolta da Armada (Museu Nacional). UNI TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” 17 FONTE: Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:Revista_Illustrada_1898.jpg>. Acesso em: 7 mar.2010. FIGURA 5 – CARICATURA PUBLICADA EM REVISTA A caricatura, publicada em 1898, retrata uma animada conversa entre Campos Sales (à direita) e Prudente de Morais. O texto diz: “Em família. Conversam animadamente sobre Europa, as viagens, as manifestações, o estado sanitário, etc. Só não tratam de política... Muito bem”. Campos Sales, paulista, sucedeu Prudente de Morais, também paulista, na Presidência da República. A Política dos Governadores, articulada em torno dos interesses paulistas e mineiros (a preponderância da elite desses dois estados, São Paulo e Minas Gerais, deu margem ao surgimento da chamada Política do “Café com Leite”); passou a ser, portanto, a base do sistema político republicano entre 1898 e 1930. A alusão feita ao “leite” deve-se ao fato de o Estado de Minas Gerais ser um grande produtor de leite durante a República Velha. Contudo, estudos mais recentes sugerem que a alcunha mais correta seria “República do Café com Café”, pois o principal produto de comercialização mineiro também era o café. A legitimidade desta hipótese pode ser encontrada no interesse que o Partido Republicano Mineiro, cujas ações respondiam pelas aspirações da elite econômica do estado, manifestava no sentido de instrumentalizar as políticas de valorização do café. Mais à frente analisaremos esta questão. UNI ATENCAO UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 18 Para compreender melhor o funcionamento dessa política é importante que você entenda duas questões. Em primeiro lugar, ao contrário do que se poderia supor, a autonomia dos estados garantida pela federalização não significou o total desprendimento em relação ao governo central. Crises econômicas gestadas desde a segunda metade do século XIX enfraqueceram muitos estados, principalmente os do Nordeste. Essa situação implicava a necessidade de estabelecimento de laços mais fortes com o governo central. Esses laços, por sua vez, eram constituídos via utilização de um elemento-chave nas engrenagens do poder: o líder local, ou coronel. Dadas as dimensões continentais do nosso país e devido às dificuldades ao estabelecimento de contato com a população do interior, o intermediário dessa ligação passava a ser o coronel (daí o surgimento do termo coronelismo). Detentor de uma forte influência sobre familiares, agregados e subalternos, o coronel recebia carta branca para agir em sua área de influência de acordo com interesses próprios. Em troca dessa liberdade, cooptava os votos da população para os candidatos que lhe fossem indicados, do executivo Estadual e do federal. O uso da força passou a ser uma constante, tanto em relação às pessoas simples quanto em relação a adversários políticos. Milícias armadas eram comuns, principalmente no Nordeste, onde os coronéis usavam os serviços de jagunços. São Paulo e Minas Gerais souberam muito bem se aproveitar desse quadro político para se perpetuarem no poder, promovendo uma alternância na condução do Executivo nacional. Do ponto de vista econômico, um elemento marcante das políticas governamentais da Primeira República pode ser encontrado nas constantes interferências voltadas à valorização do café. Já no início do século XX essas medidas se fizeram valer, contudo, tornaram-se absolutamente clarasa partir da assinatura do Convênio de Taubaté, em 1906. Resultado de um acordo entre dirigentes políticos de São Paulo, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, o Convênio tinha por objetivo a garantia de lucro para os grandes produtores via manutenção do preço. Neste sentido, as oscilações no mercado internacional eram corrigidas pela compra, estocagem e destruição de partes das safras. A diminuição da oferta resultava no aumento do preço. O dinheiro público usado para cobrir as perdas dos cafeicultores do Sudeste era motivo de discórdia. Com efeito, a ação das lideranças políticas paulistas e mineiras gerava o descontentamento e a revolta de outras elites regionais. Em verdade, tanto do ponto de vista das cisões entre as elites, quanto das manifestações de segmentos da população sem poder econômico, durante toda a República Velha houve situações nas quais o governo republicano sofreu enorme pressão. Ao longo da década de 1920, principalmente em seus últimos anos, a política dos governadores não mais se sustentou. Criavam-se as condições para uma nova etapa da República brasileira. Mas vamos por partes. No cenário das manifestações populares, o primeiro grande teste imposto ao governo republicano ficou por conta da “Guerra de Canudos”. Segundo Novais (1998), as autoridades republicanas foram avisadas da existência do povoado de Canudos, no sertão da Bahia, já em 1893 (até então ele nem constava nos mapas). TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” 19 Sob a liderança de Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como “Antônio Conselheiro”, pessoas simples e humildes do sertão nordestino montaram uma comunidade na qual vigorava o regime de posse e de trabalho solidário. Isolados em meio do nada, os moradores do “Arraial de Belo Monte” em hipótese alguma significariam perigo à República não fosse a maneira como passaram a ser representados. Evidentemente, alguns fatores contribuíram para isso. Antônio Conselheiro era um líder espiritual. Sua influência sobre os sertanejos não deixava de ser uma pedra no sapato da Igreja. Além disso, a criação de um reduto populacional que oferecia abrigo aos despossuídos funcionava como um ímã para pessoas que até então viviam sob o mando de coronéis locais. Isto significava perda de mão de obra e a possibilidade de concorrência econômica. Aos elementos locais somou-se o fato de Antônio Conselheiro professar um vago saudosismo monárquico, o “que deu margem para ser acusado de conspirar contra a República e de ser, no sertão, o braço armado dos restauradores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 278). A fragilidade do regime republicano recém-implantado não permitia a sobrevivência de um reduto populacional acusado, mesmo que através de sofismas, de ser um foco monarquista. Após algumas derrotas das tropas republicanas enviadas para destruir Belo Monte, isso ficou ainda mais evidente. Canudos precisava ser destruído. E de fato foi, em 1897, totalmente destruído: não sem antes caírem todos seus últimos defensores sob o fogo do exército brasileiro. FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/ fa/Canudos_rebels.jpg>. Acesso em: 12 mar. 2010. FIGURA 6 – MULHERES E CRIANÇAS, SEGUIDORAS DE ANTÔNIO CONSELHEIRO, PRESAS DURANTE OS ÚLTIMOS DIAS DA GUERRA Exemplos de manifestações populares que resultaram em confronto com o governo republicano podem ser encontrados durante toda a Primeira República. No Tópico 3 desta unidade estudaremos a participação do Movimento Operário. No momento, além da Guerra de Canudos (1896-1897), podemos indicar a Guerra do Contestado (1912-1915), a Revolta da Vacina (1904), a Revolta da Chibata (1910) e o movimento conhecido como “Tenentismo”, que deu origem a uma série de levantes militares durante a década de 1920. Dada a natureza do grupo que o compunha e a singularidade de sua proposta, o Tenentismo merece uma análise mais atenta. UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 20 Ao longo da década de 1920 o Brasil passou por uma série de crises econômicas. Em meio a crises, a contestação do poder instituído sempre ganha forças. De acordo com Linhares, As rebeliões tenentistas da década foram o mais cabal exemplo da explosão simultânea de questionamentos “de dentro” e “de fora” do pacto político, alastrando-se a rebeldia desse setor intermediário da oficialidade militar justamente quando, em 1922, as oligarquias do Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro uniram-se contra a candidatura do eixo Minas/São Paulo, formando a reação republicana. (1990, p. 253). O movimento tenentista teve origem em 1922 e representou uma inflexão na vida política brasileira. Seus idealizadores, membros da oficialidade militar intermediária, eram portadores de um discurso moralizador que previa a purificação das forças armadas e da sociedade como um todo. Sua proposta apresentava traços de nacionalismo, centralização do Estado e ataques frontais à oligarquia paulista. O acesso à educação formal permitia aos tenentes a construção de um ideário que lhes colocava na condição de porta-vozes das reivindicações populares. Contudo, o caráter elitista do tenentismo não comportava uma vinculação mais íntima com as classes populares. O “ato fundante” do Tenentismo ocorreu em 5 de julho de 1922, ocasião em que um levante militar mobilizou jovens oficiais no Rio de Janeiro. A ação ficou conhecida como “Os dezoito do forte”, uma alusão ao fato de terem sido dezoito os militares participantes do levante. Ao marcharem contra as tropas legalistas foram recebidos à bala. O fracasso militar não significou fracasso político, pois a ofensiva serviu, ao governo civil, como um indício de que mudanças se apresentavam no horizonte. FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e5/Os_18_ do_ Forte_(2).jpg>. Acesso em: 20 mar. 2010. FIGURA 7 – REVOLTA DOS 18 DO FORTE DE COPACABANA: TENENTES VÃO DE ENCONTRO ÀS FORÇAS LEGALISTAS, NA AVENIDA ATLÂNTICA TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” 21 A insipiência das manifestações tenentistas no meio urbano fez com que o movimento ganhasse um novo rumo a partir de 1925, momento em que teve origem a “Coluna Prestes” (organizada por Luiz Carlos Prestes), uma marcha pelo interior do país que se estendeu por mais de 24 mil quilômetros: “foram 29 meses, 10 estados da federação e uma média de 45 quilômetros por dia”. (PENNA, 2003, p. 159). Embora a adesão popular não tenha sido a esperada e a Coluna tenha sofrido perseguições constantes por parte das tropas federais (o que resultou na dispersão do movimento, em 1927), a iniciativa – o movimento tenentista como um todo – resultou na abertura de um caminho para derrubada do pacto oligárquico São Paulo/Minas Gerais. Em 1929, em meio a uma grave crise econômica mundial cujo epicentro ocorreu em Nova York, o poder econômico dos cafeicultores foi drasticamente reduzido. Neste mesmo ano, conforme o acordo firmado entre o Partido Republicano Paulista e o Partido Republicano Mineiro, o presidente Washington Luiz, paulista, deveria indicar como seu sucessor o mineiro Antônio Carlos, chefe do governo de Minas. Contrariando o pacto, Washington Luiz indica o paulista Júlio Prestes. Esta atitude resultou em uma aproximação entre Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Formava-se a Aliança Liberal, responsável pela Revolução de 1930. Analisaremos esta questão na segunda unidade desde caderno. FONTE: Disponível em: <www.wikipedia.org>. Acesso em: 12 mar. 2010. FIGURA 8 – A FÓRMULA DEMOCRÁTICA, DE STORNI A charge “A fórmula democrática”, de Storni, foi publicada na Revista Careta,em 29 de agosto de 1929. No alto são representadas as oligarquias paulista e mineira. UNI UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 22 LEITURA COMPLEMENTAR I O BRASIL DE EUCLIDES DA CUNHA Neste ano completa-se o centenário de morte de Euclides da Cunha (1866- 1909), um dos mais importantes autores nacionais. Euclides viveu e produziu em um momento em que as ideias deterministas ainda manifestavam seu vigor com base explicativa para a realidade brasileira. No livro que o consagrou como um dos maiores intérpretes do Brasil, Os Sertões (1902), pode ser encontrado, para além da análise da Guerra de Canudos, um estudo sobre a formação do povo brasileiro e a diversidade geográfico-climática do país. A obra, dividida em “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”, foi organizada de acordo com a hierarquia das ciências aceita na época: partindo da noção de que os fundamentos de toda a realidade repousam sobre “matéria”, o relato inicial baseia-se nas ciências inorgânicas (Geografia, Geologia), passando depois para as orgânicas (Biologia) e, por fim, para as ciências sociais (História, Sociologia). Obedecendo a esta sequência, Euclides começa pelo estudo da infraestrutura geológica, das variações do clima e do sistema fluvial, para estender-se à flora e, por último, tratar do homem e das injunções históricas. Por meio dos vetores “meio”, “raça” e “história”, Euclides irá interpretar os conflitos entre o que considerava a área “civilizada”, ou seja, o litoral, e o interior do país, resguardado por um isolamento geográfico e histórico que o teria mantido vinculado ao passado. Segundo Euclides, a civilização avançaria sobre os sertões, impedida pela implacável “força motriz da História”, as raças fortes esmagando as fracas. (CUNHA, 2003, p. 9). Percebe-se, em sua análise, a confluência de explicações históricas e raciais, sobrevivendo os mais aptos em todos os terrenos, em uma clara alusão ao darwinismo social. Enviado ao cenário da guerra de Canudos (que durou de novembro de 1896 a outubro de 1897) como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, Euclides da Cunha, por ser militar e, ademais, comungar com a visão oficial que tratava os sertanejos como revoltosos antirrepublicanos, silenciou sobre as atrocidades do massacre. Revê esta posição durante os cinco anos que leva escrevendo Os Sertões. Reconhece um elemento de messianismo na reação dos sertanejos e condena o exército pelos excessos cometidos. Euclides esforçava-se para compreender como o sertanejo, um mestiço, teoricamente portador de desequilíbrios típicos do cruzamento de raças (um “degenerado”, segundo as teorias deterministas), resistiu a tantas investidas do exército republicano (quatro batalhas), só sendo derrotado diante do poderio das armas de fogo empregadas pela última expedição. Os combatentes de Canudos pareciam rebelar-se até mesmo como objetos de estudo, para contradizer, em relação ao pensamento de Euclides, as teses do determinismo social. Ao longo do livro, Euclides alterna a visão do sertanejo como uma sub-raça “instável”, “efêmera”, “retardatária” e “próxima da extinção” para “a rocha viva da nação”. Se o sertanejo corria o risco de desaparecer diante da competição com os TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” 23 imigrantes estrangeiros, era, de maneira contraditória, “antes de tudo, forte”. Neto de bandeirante paulista (CUNHA, 2003, p. 104), trazendo em si a bravura do início e a autonomia do branco português, quase sem mescla de sangue africano (p. 105), vencendo o meio inóspito marcado pela seca e pela caatinga e, principalmente, sendo aquele que teve tempo de fortalecer-se fisicamente enquanto aguardava o desenvolvimento moral e civilizacional posterior da região (p. 117), Euclides representa o sertanejo como estando em “compasso de espera”, preparando-se para exercer um papel importante no futuro da nação. Por outro lado, os soldados que lutaram em Canudos, em grande proporção mulatos vindos principalmente do Rio de Janeiro e da Bahia, que, ao final da guerra, degolaram barbaramente todos os prisioneiros, mesmo vivendo em contato com a “civilização”, na opinião de Euclides não seriam seus legítimos representantes. Ao contrário, assemelhavam-se a seres incapazes de fazer frente à complexidade da vida urbana em termos de suas exigências intelectuais e morais. Quem não se lembra da famosa frase do livro Os Sertões, em que Euclides se refere aos mulatos apontando “o raquitismo exaustivo dos raquíticos neurastênicos do litoral”? À fraqueza física somava uma “doença dos nervos”: a neurastenia. No contraste entre sertanejos e mulatos, embora ambos fossem mestiços, Euclides elogia os primeiros e desqualifica os segundos. O fator racial considerado “inferior” do sertanejo, o índio, não era de todo desprestigiado por Euclides, que acreditava estar diante de uma raça autóctone – o homo americanus – surgida, portanto, na América, desvinculada do Velho Mundo, com um desenvolvimento autônomo. Dono de coragem e resistência física, o índio teria vencido o meio e criado um modo de vida vigoroso. Já o fator racial visto como “inferior” do mulato, o negro, era, para Euclides, irrecuperável: era o homo afer, “filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural [...] se fez pelo uso intensivo da ferocidade e da força”. (CUNHA, 2003, p. 73). Euclides foi um homem insatisfeito em relação às suas atividades profissionais. Militar e engenheiro de formação, sempre aspirou ser um escritor reconhecido. Depois da publicação de Os Sertões, tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e foi eleito, também, para a Academia Brasileira de Letras. Propôs uma “guerra dos cem anos” para combater a seca do Nordeste, com a construção de açudes, poços artesianos, estradas de ferro e o desvio do Rio São Francisco para irrigar as áreas mais atingidas pela estiagem. Tornou público seu interesse pela Amazônia ao publicar, em 1904, no jornal O Estado de São Paulo, artigos sobre os conflitos entre Peru, Bolívia e Brasil, que via como uma disputa pelo acesso ao oceano no Atlântico. A morte prematura, aos 43 anos, por assassinato, aproximou sua história pessoal da tragédia grega que tanto admirou em vida. FONTE: TORRES, Lilian de Lucca. O Brasil de Euclides da Cunha. Leituras da História, São Paulo, ano 2, n. 21, p. 60-61, 2009. UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 24 LEITURA COMPLEMENTAR II CANUDOS NÃO SE RENDEU Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos. Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem. Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos... E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossaHistória? Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas. Os Sertões, Euclides da Cunha. Fragmento do capítulo VI – O fim – da terceira parte, A Luta. FONTE: BIBLIOTECA virtual do estudante brasileiro. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro .usp.br>. Acesso em: 24 abr. 2010. Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia o seguinte livro e assista ao filme: Livro: Os Sertões, de Euclides da Cunha Filme: Guerra de Canudos (Brasil – 1997, 169 min). Direção de Sérgio Resende O filme Guerra de Canudos é uma adaptação cinematográfica da obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Presente no conflito como enviado especial do jornal O Estado de S. Paulo, o jovem escritor narra com riqueza de detalhes suas impressões sobre o que presenciou no fronte. Vale a pena cruzar as informações do livro com aquelas apresentadas na versão cinematográfica. Além de: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da civilização brasileira: O Brasil republicano, economia e cultura. São Paulo: Bertrand do Brasil, 2008. DICAS 25 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico tivemos a oportunidade de conhecer alguns delineamentos da Primeira República, República Velha, ou República das Oligarquias. É importante você lembrar que: • Após a implantação da República, os interesses dos grupos envolvidos em sua articulação entraram em choque. Em um primeiro momento, o governo militar foi alvo de críticas. O que estava em questão era a centralização versus o federalismo. • Durante o governo do Marechal Floriano Peixoto ocorreram dois importantes conflitos: a Revolta da Armada e a Revolução Federalista. • A estabilização do regime foi alcançada a partir do governo do paulista Campos Sales, momento no qual se implantou no Brasil a “Política dos Governadores”. • A Política dos Governadores consistiu na criação de mecanismos capazes de garantir a perpetuação no poder das oligarquias regionais. Estabeleceu-se, então, uma troca de favores entre o governo federal, os governantes dos estados e chefes locais, os coronéis. • Durante a Primeira República ocorreram movimentos sociais de contestação direta ou indireta aos rumos tomados pelo governo republicano. Dentre eles se destacam A Guerra de Canudos (1896-1897), a Guerra do Contestado (1912-1915), a Revolta da Vacina (1904), a Revolta da Chibata (1910) e o Tenentismo. • Embora não tenha obtido êxito, o Tenentismo abriu as portas para os eventos que resultaram na quebra do pacto entre São Paulo e Minas Gerais e na Revolução de 1930. 26 1 Descreva, em linhas gerais, os rumos tomados pelo governo republicano até 1930. 2 Teça alguns comentários sobre o funcionamento da “Política dos Governadores”. AUTOATIVIDADE Assista ao vídeo de resolução da questão 1 27 TÓPICO 3 TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES” UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO O século XIX, principalmente em sua segunda metade, foi o momento de afirmação da hegemonia do capitalismo. Embora a Revolução Industrial tenha ocorrido já no século XVIII, em seus primórdios o processo de industrialização não englobava muitos setores. A partir da década de 1870 o sistema de produção capitalista dá um salto quantitativo e qualitativo, com o advento da chamada Segunda Revolução Industrial, ou Revolução Científico-Tecnológica. De fato, o desenvolvimento da ciência e a sua aplicação no campo tecnológico resultaram na proliferação de descobertas e invenções que mudaram a face do mundo conhecido, diminuindo as distâncias, aumentando as velocidades, interligando as mais diversas regiões do globo terrestre. Para se ter uma ideia, neste período surgem os [...] veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica e a ampla gama de utensílios domésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, a televisão, os arranha-céus e seus elevadores, as escadas rolantes e os sistemas metroviários, os parques de diversões elétricas, as rodas-gigantes... (NOVAIS, 1998, p. 9). O fato é que o mundo até então conhecido estava deixando de existir ou, na melhor das hipóteses, estava sendo transformado de tal maneira que as pessoas tinham dificuldades para traçar uma linha de continuidade entre o passado e o presente. Evidentemente, estas transformações adentravam também o campo das relações sociais. A vida, principalmente a vida urbana, tornava-se cada vez mais complexa. E, por maiores que fossem as diferenças entre a realidade brasileira e aquela relativa à Europa e aos Estados Unidos, paulatinamente o Brasil também acabou se inserindo neste novo cenário. Em seus desdobramentos, a Revolução Industrial promoveu uma nítida demarcação de classes sociais. De um lado, segundo Karl Marx, estariam os donos dos meios de produção (indústrias, terras), a Burguesia; do outro, os detentores da força de trabalho, o Proletariado. Este venderia sua força de trabalho para aquela. No relevo social, as relações estabelecidas entre estes dois grupos ou “classes sociais” ditariam os rumos a serem seguidos pelo capitalismo nos séculos seguintes. 28 UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL Ainda segundo Marx, uma sociedade dividida em classes, com interesses distintos, deve ser pensada do ponto de vista do conflito, da luta, pois interesses díspares se fariam valer resultando, inevitavelmente, em um confronto. Com efeito, ao longo do século XIX vários foram os embates, principalmente no meio urbano, entre burguesia e proletariado na Europa industrializada. Neste mesmo século, no Brasil, a permanência do regime de trabalho escravo e o incipiente desenvolvimento industrial mantiveram o país em uma situação bastante peculiar em relação aos acontecimentos no Velho Continente. Seria preciso a atividade industrial ganhar força e o trabalho livre se institucionalizar para que a luta de classes, nos moldes capitalistas, tomasse corpo em terras brasileiras. Neste tópico nosso objetivo será analisar este processo. 2 ANTECEDENTES: RAÍZES DA INDÚSTRIA NACIONAL Embora a criação das primeiras indústrias no Brasil tenha ocorrido já no período monárquico, do ponto de vista econômico sua importância se define a partir da implantação da República. De acordo com Del Priore e Venâncio (2003), o processo de industrialização brasileiro difere daquele ocorrido na Europa, principalmente devido ao fato de que aqui não houve um desenvolvimento lento a partir do artesanato e da pequena manufatura, mas um início caracterizado pela implantação de fábricas modernas. A importação do maquinário europeu, que já contava com um século de aperfeiçoamento, impulsionou nosso desenvolvimento industrial, dependente, desde o seu início, da influência internacional, principalmente europeia. Levando em conta a situação do sistema educacional brasileiro no século XIX e início do século XX – extremamente atrasado –, é possível entender por que a criação de tecnologias nacionais era algo raro. Dada a dependência da economia brasileira em relação à agricultura de exportação, durante as duas últimas décadas do século XIX e até a década de 1930, o desenvolvimento industrial nacional se associou à iniciativa dos grandes produtores rurais. Em um primeiro momento, Rio de Janeiro e Minas Gerais ocuparam posição de destaque, mas no início do século XX foram superados por São Paulo, que, na década de 1920, apresentava um estágio de desenvolvimento bem superior ao dos seus vizinhos. Nunca é demais lembrar que esta situação só foi possível devido aos investimentos advindos dos lucros dos cafeicultores paulistas no mercado internacional. Para se ter uma ideia,no início do século XX o Estado de São Paulo produzia sozinho mais da metade do café comercializado no mundo. À existência de excedentes passíveis de serem aplicados nas indústrias é necessário acrescentar o fato de que algumas regiões de São Paulo receberam um afluxo impressionante de imigrantes, principalmente depois da abolição do trabalho escravo. Ou seja, São Paulo passou a reunir elementos indispensáveis para o desenvolvimento industrial: capitais para investimento, mão de obra em abundância e a possibilidade de criação de um mercado consumidor para nutrir a TÓPICO 3 | TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES” 29 demanda. Esta situação era mais do que evidente na capital paulista, uma cidade que, em aproximadamente quarenta anos (1872-1914), teve a sua população ampliada de “23 mil para 400 mil habitantes”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 296). Evidentemente, a íntima ligação com o Poder Executivo nacional, respaldada pela “Política dos Governadores”, forneceu ao Estado de São Paulo a capacidade de administrar de maneira privilegiada crises econômicas tais como aquelas que atingiam seu principal produto de comercialização, o café. A manutenção dos lucros gerados pelo café permitia a manutenção dos investimentos nas indústrias. FONTE: Disponível em: <www.wikipedia.org>. Acesso em: 10 mar. 2010. FIGURA 9 – PANFLETO QUE AGENTES DE PROPAGANDA UTILIZAVAM PARA PROMOVER A IMIGRAÇÃO ITALIANA AO BRASIL A criação e desenvolvimento de um setor industrial, um dos grandes responsáveis pelo acelerado processo de ampliação dos centros urbanos, projetou um novo cenário no campo das relações sociais em nosso país. Nos centros urbanos, principalmente aqueles da região Sudeste, trabalhadores submetidos a condições precárias de vida passaram a se organizar e a reivindicar seus direitos. Por outro lado, os interesses de classe se faziam valer também por parte da burguesia, composta basicamente por empresários e fazendeiros de café. Surgiam as condições para disseminação do ideário da “luta de classes” em terras brasileiras. 30 UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL 3 A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES E A LUTA DE CLASSES Não é possível afirmar que o desenvolvimento industrial durante a Primeira República tenha sido um privilégio da região Sudeste. Ocorre que, do ponto de vista da organização dos trabalhadores em torno do ideário da luta de classes, os eventos relacionados à região Sudeste servem como um vetor para se pensar a situação do país como um todo. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, os embates de classe nos fornecem preciosas indicações. Respondendo pelo signo da continuidade, aos trabalhadores urbanos da República Velha foi negada a condição de cidadãos. Com efeito, durante as primeiras décadas de governo republicano a postura das elites dirigentes dava margem à reprodução de práticas de exclusão e de exploração que remontavam à época do Brasil Colonial. A abolição do trabalho escravo não significou o término da exploração dos trabalhadores, apenas a projetou em um novo relevo. Diante desta situação, os trabalhadores tiveram que se organizar na luta por direitos. De acordo com Penna, A discriminação contra os operários, desenvolvida pelas classes dirigentes, produziu uma situação de verdadeira segregação geográfica e sociocultural. Assim, nasceram vilas e bairros operários, concentrando a vida dos trabalhadores, isolando-os das proximidades dos centros urbanos onde se instalavam as atividades comerciais e os bairros burgueses. Esse isolamento propiciou maior integração dos trabalhadores assalariados. Não demorou muito e essa aglutinação se revelou profícua na luta travada entre os interesses do capital e do trabalho. (PENNA, 1999, p. 125). O fato é que a criação desses espaços de sociabilidades, mesmo que em decorrência de uma política de exclusão social, trouxe consigo um elemento positivo, pois permitiu aos trabalhadores se reconhecerem enquanto membros de uma totalidade submetida à opressão. Este reconhecimento logo suscitou ações práticas materializadas em greves e outras iniciativas de contestação no próprio ambiente de trabalho. Ampliando o foco é necessário lembrar que as manifestações dos trabalhadores tinham como alvo a luta não apenas contra a exploração do trabalho, mas contra toda uma situação mais ampla que impunha aos trabalhadores péssimas condições de vida e gerava um quadro de verdadeira miserabilidade. Na verdade, manifestações populares contra a opressão foram uma constante ao longo da História do Brasil. O elemento novo apresentado na Primeira República foi a forma como essas manifestações se desenvolveram e as concepções ideológicas que as guiaram. Del Priore e Venâncio descrevem da seguinte maneira esta questão: Na transição do Império para a República, uma nova forma de fazer política teve início no Brasil. Por essa época começam a surgir os primeiros defensores de projetos socialistas, organizando partidos, sindicatos e jornais. Tratava-se de fato, de uma mudança radical. Basta TÓPICO 3 | TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES” 31 lembrarmos que, ao exaltar o “trabalhador” como principal elemento da sociedade, o movimento operário brasileiro rompeu com tradições seculares, herdadas da época escravista, que consideravam as atividades manuais aviltantes e indignas para os cidadãos – inaugurava-se, assim, um novo princípio de exercício legítimo do poder, que terá influência até nossos dias. (2003, p. 281). Apresentado como uma novidade no Brasil, o projeto socialista já era uma realidade na Europa durante a maior parte do século XIX. E foi exatamente devido à vinda de imigrantes europeus para o Brasil, iniciados no ideário socialista e nas lutas pela reforma ou transformação radical da sociedade, que se constituíram lideranças capazes de dar sustentação à luta de classes. Portugueses, espanhóis e italianos compunham o grosso do fluxo de imigrantes para o Brasil nas primeiras décadas da República e a base da mão de obra empregada nas indústrias. Penna (1999) nos fala que a tradição de luta dos trabalhadores europeus era conhecida desde a época das internacionais (a AIT, Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em Londres, em 1864, e a Internacional Socialista, criada em Paris, em 1889, são um exemplo desta afirmação). Aqui no Brasil a atuação dos imigrantes resultou na criação de partidos políticos operários e na disseminação de uma imprensa voltada à divulgação de ideias que representavam os interesses do operariado. No plano das reivindicações mais imediatas, podemos citar a implantação de uma jornada de trabalho de oito horas, o direito ao descanso semanal, a proibição do trabalho infantil e a criação de tribunais de arbitragem para solução dos conflitos entre patrões e empregados. É importante saber que o movimento operário não se constituiu como um todo coeso. Além do socialismo, destacou-se no movimento o Anarquismo, principalmente a vertente anarco-sindicalista, que durante muito tempo foi a corrente hegemônica no movimento operário organizado. Optando não pela via política, como era o caso da corrente socialista, mas pela chamada “ação direta”, cujo principal elemento era a greve, o anarco-sindicalismo marcou a luta dos trabalhadores no Brasil durante duas décadas. De acordo com Penna (1999), esta tendência teve uma origem que data da AIT, sendo tributária das ideias de um de seus membros, o russo Bakunin. A proliferação do anarco-sindicalismo resultou em uma disputa no seio do movimento operário brasileiro. Esta disputa constituiu uma das fraquezas do movimento. Mais à frente abordaremos estaquestão. Os anarco-sindicalistas eram orientados pela teoria que preconizava que “o Estado, independentemente da classe social que estivesse no poder, era uma instituição repressiva, daí a defesa intransigente de sua substituição por associações espontâneas, tais como federações de comunas ou cooperativas de trabalhadores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 283-284). Lutavam pelo fim da burguesia, do Estado capitalista e pela instauração de uma sociedade com indivíduos livres. Até aproximadamente a década de 1920 o número de greves por eles organizadas aumentou significativamente nos centros industriais (resultando, inclusive, em uma paralisação geral em São Paulo, no ano de 1917, considerada a primeira greve geral do país), mas poucas das reivindicações dos trabalhadores obtiveram êxito. Além disso, o aumento da pressão sobre a burguesia industrial não passou impune. 32 UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL FONTE: Disponível em: <www.wikipedia.org>. Acesso em: 13 mar. 2010. Já em 1913, com a multiplicação das greves, foi aprovada a Lei Adolfo Gordo, que propunha a expulsão do país de operários estrangeiros envolvidos em atividades do movimento operário. Ciente de que as lideranças do movimento eram compostas, em sua maioria, por imigrantes europeus, o governo tinha por objetivo suprimir suas forças ao adotar esta medida. Uma onda de prisões e deportações teve início e agiu em paralelo ao uso da força contra manifestantes e seus órgãos de divulgações de ideias, tais como os jornais. Não bastasse a repressão estatal – respondendo pelos interesses burgueses –, o declínio do movimento anarquista foi favorecido pela cisão no movimento operário. Neste sentido, o ano de 1917 tem um significado singular, pois a eclosão da Revolução Russa resultou na paulatina propagação da ideia de elaboração de um projeto político mais consistente. Como os anarquistas se negavam a participar do jogo político, ou a apoiar os partidos políticos existentes, havia uma dificuldade para transformação das reivindicações dos trabalhadores em leis. Em 1920, durante a realização do II Congresso Operário Brasileiro, “[...] a força expressiva do exemplo soviético minou as resistências ideológicas dessa tendência e não foram poucos os que se voltaram para uma outra tendência hegemônica do proletariado mundial.” (PENNA, 1999, p. 131). A cisão do movimento anarco-sindicalista acabou resultando na criação, em março de 1922, do Partido Comunista do Brasil. FIGURA 10 – OPERÁRIOS E ANARQUISTAS MARCHAM PORTANDO BANDEIRAS NEGRAS PELA CIDADE DE SÃO PAULO NA GRANDE GREVE DE 1917 TÓPICO 3 | TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES” 33 FONTE: Centro de Referência da História Republicana Brasileira. Disponível em: <www.republicaonline.org.br>. Acesso em: 14 mar. 2010. FIGURA 11 – VAMOS REPARTIR ESSE CHOCOLATE! Durante a década de 1920 o anarco-sindicalismo entrou em acelerado declínio. Por outro lado, a atuação dos membros do Partido Comunista do Brasil foi dificultada devido à decretação oficial da ilegalidade do partido. Como você pode notar, a burguesia firmou posição e criou empecilhos à instrumentalização das reivindicações do movimento operário. Esta foi uma das faces da resposta que a elite econômica do país deu à luta de classes. Mas, malogrados os esforços, o fato é que o movimento operário na Primeira República foi responsável pela emergência de uma “Questão Social” que não mais poderia ser desconsiderada por estas mesmas elites. Os desdobramentos desse fenômeno ganhariam relevo em um novo cenário político, criado após a Revolução de 1930. Mas este é um estudo que desenvolveremos na próxima unidade. A figura mostra crianças que reivindicam o direito de comer Chocolates Lacta, em alusão satírica à vitoriosa revolução bolchevique, de 1917, no jornal O Estado de São Paulo. LEITURA COMPLEMENTAR AS CONDIÇÕES GERAIS DO TRABALHADOR [...] Antes de 1919, os trabalhadores das fábricas têxteis mais importantes costumavam trabalhar de nove horas e meia a doze horas diárias durante seis ou sete dias na semana. E, se necessário, a jornada diária era aumentada segundo critérios UNI 34 UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL da direção. Na fábrica Mariângela, parte do império industrial dos Matarazzo, os operadores homens trabalhavam de 11 a 14 horas por dia. As crianças, de 8 a 12 anos de idade, 12 horas diárias, e algumas em turnos noturnos que iam de 5 da tarde às 6 da manhã do dia seguinte. Um relatório feito para o Congresso Operário de 1913 espelhou a situação nas maiores fábricas do Rio de Janeiro. “Imaginem-se em um lugar onde trabalhem centenas de operários sem sequer uma janela para abrir. Pois isto é o que há em quase todas as fábricas. As que têm janelas não as abrem por não quererem que seus escravos percam tempo olhando a rua”. Homens, mulheres e crianças eram forçados a respirar diariamente o ar estagnado e poluído. Tais condições não se restringiam apenas à indústria têxtil. O Diretor de Saúde Pública de São Paulo encontrou, nas fábricas de vidro, empregados que trabalhavam excessivamente em locais que não atendiam às mínimas exigências de saúde industrial. Forçadas a trabalhar por extrema necessidade, as crianças eram as que mais sofriam. Um repórter ficou horrorizado ao investigar as condições das crianças nas fábricas do Rio de Janeiro. Um amigo radical o havia convencido a fazer um levantamento da situação. Em uma fábrica, viu crianças trabalhando ao lado de adultos de 6 da manhã a 6 da tarde, com uma hora de intervalo para o café da manhã e uma hora para o almoço. As crianças pareciam “esqueletos”, eram “magras, de bochechas fundas, olhos melancólicos envoltos em sombras escuras... As crianças que trabalhavam em fábricas e oficinas da capital federal estão destinadas à tuberculose”. Tais palavras poderiam parecer um exagero. Entretanto, outro estudo feito nas oficinas do governo, onde as condições eram consideravelmente melhores que na indústria privada, indicou que a maioria das crianças estava tuberculosa. FONTE: Maram, (1979, p. 122-123) Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia o livro e assista ao documentário indicado: Livro: MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o Movimento Operário Brasileiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Filme: Os Libertários Produção: Lauro Escorel Filho Direção: Lauro Escorel Filho Brasil/l976 – 26 min – P&Bí Documentário O filme trata do papel do Anarquismo no início do movimento operário em São Paulo. Apresenta fotos, filmes e músicas da época para descrever as primeiras lutas e formas de organização dos trabalhadores. Temas abordados: o início da industrialização em São Paulo; as condições de trabalho; o movimento operário; a imprensa operária; o papel do Anarquismo na organização operária e a imigração italiana. Além de: LAPA, José Roberto do. Os excluídos: contribuição histórica da pobreza no Brasil. Campinas: Unicamp, 2008. DICAS 35 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico abordamos as seguintes questões: • Ao longo dos últimos anos do século XIX e das primeiras décadas do século XX desenvolveu-se no Brasil um processo de industrialização, em grande medida vinculado aos investimentos dos grandes cafeicultores. • A industrialização foi responsável pelo desenvolvimento urbano e pela delimitação de classes sociais específicas, a burguesia industrial e o proletariado. • Disseminado no Brasil por imigrantes europeus, o ideário da luta de classes, em sua vertente socialista e anarquista, obteve receptividade por parte dos trabalhadores urbanos, resultando na eclosão de vários movimentosque reivindicavam melhores condições de vida para os trabalhadores e/ou uma mudança radical da sociedade, via derrubada do capitalismo. • O ideário da luta de classes também ganhou significado na reação que a burguesia nacional, à frente do Estado, operou contra as manifestações dos trabalhadores. Prisões, deportações e perseguições das mais diversas naturezas foram as principais armas de combate utilizadas pelos burgueses na luta contra o proletariado. • Embora distante da totalidade das propostas originais, algumas das reivindicações dos trabalhadores foram atendidas pelo patronato. • Além da repressão sistemática, outro elemento que militou contra o movimento operário organizado foi a cisão criada pela defesa de propostas distintas de ação. O socialismo de inspiração soviética e o anarco-sindicalismo compuseram a linha de frente das propostas dissonantes. • Duramente combatido durante a década de 1920, o movimento operário teve que esperar até a eclosão da Revolução de 1930 para voltar a por seus interesses na ordem do dia. 36 1 Durante os anos de militância do movimento operário surgiram vários jornais com o objetivo de disseminar o ideário anarquista e socialista entre os trabalhadores. Analisando a charge da Figura 11 (Vamos repartir esse chocolate!), explique por que não é possível enquadrar a imagem no conjunto desse material. 2 Comente, em linhas gerais, os motivos que levaram ao declínio do movimento anarquista. AUTOATIVIDADE
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