Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
® BuscaLegis.ccj.ufsc.br Controle preventivo dos atos administrativos Carlos Alberto Hohmann Choinski INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 inaugurou, através de uma construção principiológica, uma rede de finalidades que todo ato administrativo deve perseguir. Isto ficou expresso não só nos clássicos princípios da legalidade, impessoalidade e publicidade, mas pela adição do princípio da moralidade e de uma formação sistêmica constitucional que propugna meios combativos aos atos temerários da Administração Pública e à corrupção. A Lei n.º 8.429/92 efetivou a aplicação de tais princípios, através das sanções que criou, não só ao administrador corrupto, mas também ao administrador incompetente, ao administrador irresponsável e ao administrador negligente. Dimensionou, ainda, a vinculação dos atos administrativos a toda a sorte dos princípios existentes materialmente através do texto constitucional, estejam ou não expressamente descritos. Os instrumentos coercitivos definidos pela Lei da Improbidade Administrativa passaram, então, a coexistir com as normas penais (com as quais não se conflituam) e, porque os tipos previstos nos arts. 9º, 10 e 11 de referida lei não são fechados, permitem que toda a ação baseada na responsabilidade administrativa, admita uma discussão baseada nos princípios constitucionais. A existência, portanto, de um sistema jurídico cuja formulação se baseia em princípios inseriu no mundo forense um tipo de ação, onde a interpretação e a ponderação de valores deve ser feito na leitura do caso concreto1. Isto passa a exigir, tanto do administrador como do aplicador do direito, um cuidado dobrado no momento da avaliação das normas, visto que o paradigma abriga tanto o mundo das regras, como também o mundo dos princípios. Tradicionalmente, os Tribunais, influenciados pela dogmática e pelo positivismo sempre preferiram as regras aos princípios. Neste ponto, é importante enfatizar as diferenças entre eles, embora tanto regras como princípios congregam a categoria da ‘norma jurídica’. José Joaquim Gomes Canotilho sugere como entendimento diferencial vários itens do qual se extrai o caráter mais abstrato dos princípios em relação às regras, bem como da idéia de otimização vigorante nos princípios. “Os princípios, ao constituírem exigências de otimização, permitem o balanceamento e valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ‘lógica do tudo ou nada’), consoante seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas prescrições, nem mais nem menos. Em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles contém apenas ‘exigências’ ou ‘standards’ que, prima faciae, devem ser realizados; as regras contém ‘fixações normativas’ definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias.2 1 Isto explica a natureza não taxativa das sanções de improbidade, visto que os atos ímprobos devem ser lidos à luz da ponderação dos princípios administrativos. 2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ed. Almedina, 2ª ed., p. 1037. As normas constitucionais, todavia, sejam elas regras ou princípios, tem padrão de mesma grandeza e, como afirmou Hesse3, possuem força normativa, ainda que seja somente sob o aspecto de eficácia negativa (fator impeditivo para o legislador de regulamentar contra a norma constitucional). Na escolha ponderada de execução das tarefas do Estado, não basta ao agente aplicar a regra, como fórmula matemática: é preciso que ele leve em conta uma intrincada série de ponderação de valores para a melhor realização das funções do Estado. Pela via da improbidade administrativa, superou-se a previsão estritamente punitiva de esfera penal e, finalmente, entregou-se à prestação jurisdicional a fórmula de analisar a conduta do administrador4 na realização e gestão pública segundo as finalidades constitucionais do Estado. Superou-se, também, a herança das leis antigas5 onde as punições se baseavam somente no enriquecimento ilícito por influência ou abuso do cargo ou função, onde havia necessidade prévia da prova da ocorrência do dano e do enriquecimento ilícito. Resiste, ainda, no campo da tutela administrativa, um tema tormentoso e que, embora maturado pela moderna doutrina constitucional e administrativa brasileira, é tratado timidamente em se tratando de prestação jurisdicional: o controle dos atos administrativo na sua origem, quando criados com vícios de inconstitucionalidade, da ilegitimidade, do desvio de poder, da intenção fraudulenta ou de outra forma de ilicitude. 3 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. 4 Nesta contexto é adequado lembrar que, como o ato administrativo se volta para uma finalidade, o que se deve julgar, aprioristicamente, é a conduta do agente administrador, porque é ela que produz ‘resultados sadios ou viciados em termos de moralidade administrativa’. (MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo, in Mutações do Direito Administrativo, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2000, p. 59) 5 Dentre as quais, a Lei Bilac Pinto (lei n.º 3502/58) ALCANCE DO CONTROLE JUDICIAL E AVALIAÇÃO DA FINALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO O objetivo do Direito exige sempre do Estado uma atuação, uma tutela ou uma garantia. Geralmente, portanto, a norma é dirigida a uma atuação do Estado, cuja responsabilidade sempre estará a cargo de um determinado órgão para realizá-la. A prática do ato administrativo se funda nos pressupostos de legalidade e de legitimidade. No Brasil, sempre houve um respeito histórico à discricionariedade do Administrador, influência clara do direito constitucional francês. Este respeito, por sua vez, fez com que houvesse uma divisão clássica entre os atos da administração em atos de função politica e atos de função administrativa, para discutir se os primeiros seriam ou não passíveis de controle pelo Poder Judiciário. Por atos de função política ou de governo deve se entender aqueles dotados da carga propulsora do Estado para os seus fins ou, no dizer de Celso Ribeiro Bastos, “a razão essencial do Estado”. Os atos de função administrativa, seriam os “atos jurídicos que produzem efeitos num caso concreto, praticado pela Administração Pública, enquanto Poder Público, isto é, fazendo valer sua autoridade, porém, atendendo aos interesses determinados pela lei e individualizado por características próprias.”6 Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, todavia, preocupou-se em afirmar que, independente de sua natureza e da autoridade que a produza, os atos políticos não destoam de sua realidade administrativa: “ Se dizem respeito à manifestação individual, concreta, pessoal do Estado, enquanto poder público, na consecução do seu fim, de criação da utilidade pública, de modo direto e imediato, para produzir efeitos de 6 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. Ed. Saraiva, 1994, p. 91. direito, constituem atos administrativos. Se violarem a lei e ofenderem direitos de terceiros ou lhe causarem danos, cumprem estar sujeitos à apreciação do Judiciário. No Estado de Direito, torna-se inadmissível atividade insuscetível de controle do Judiciário, quando viola direitos e causa danos. Sem dúvida, verificam-se na atividade estatal atos jurídicos que imprimema direção superior da sua vida política, que formam e manifestam originariamente a sua vontade e cogitam dos órgãos a quem competem essas atribuições, ao lado de outros, mais subalternos, que completam e desenvolvem aqueles, na afirmação da utilidade pública, condicionando as relações internas com os próprios órgãos ou com terceiros. Mas, todos são atos administrativos ante o objetivo de que têm em mira.”7 Portanto, todo e qualquer ato praticado pelo Governo – seja político ou não (tanto faz a denominação que se lhe dê ou a configuração que tenha) – sujeita-se à Constituição; subordina-se aos requisitos formais e materiais nela postos. Em conseqüência, como cabe ao Poder Judiciário velar pela validade das ações estatais, conclui-se que nenhuma questão, mesmo política, pode ser subtraída de sua apreciação.8 Neste contexto, de que os atos administrativos, entendidos como aqueles provenientes de agente público com poder para emiti-los, pode se submeter à fiscalização jurisdicional, está claro que o ato promovido para gerar direitos, mas que está eivado da mácula de ofender aos princípios administrativos, ou tende a causar prejuízo e enriquecimento ilícito, se sujeita ao controle jurisdicional, inclusive para impor as sanções pelo desrespeito à lei e aos princípios. 7 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1969, p. 417/418 8 SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle Jurisdicional dos Atos Políticos do Poder Executivo, in Revista Trimestral de Direito Público 8/1994. Ed. Malheiros, p. 131. O norte de análise do ato administrativo reside no respeito aos princípios administrativos. Estes princípios tem importância vital para a Administração vinculada, exatamente pelo seu caráter de informar, juridicamente, como se deve haver o agente na condução dos negócios públicos. O primeiro requisito do ato administrativo é exatamente o fato de que ele deve estar voltado para uma finalidade e, esta, deve estar em conformidade com o interesse público. “Toda atividade administrativa tem caráter instrumental. O administrador público nunca age gratuitamente, mas, sim, sempre em função de um objetivo, qualificado pela lei como de interesse público, que deve ser atingido. O fim, e não a vontade, impulsiona a atividade administrativa pública. Não basta, portanto, demonstrar o fiel cumprimento da lei, no sentido da correção meramente formal do ato praticado. É imperioso demonstrar a aptidão do ato praticado para a realização concreta do valor contido no mandamento legal”.9 Assevera-se, portanto, que a característica principal de qualquer ato da Administração é o seu caráter teleológico. Todo o ato que não tiver clara a sua finalidade ou estiver turbado num manto de dúvida e incerteza, pode ser questionado, não só pelo resultado danoso que pode vir a produzir, como pelo desconhecimento dos motivos que levaram à decisão do ato. Quando o Estado manifesta seu querer, visa o interesse público. Quando este interesse não estiver expresso no ato, viola os princípios da boa administração e da transparência e, de conseqüência, pode penetrar no campo da improbidade administrativa. 9 DALLARI, Adilson de Abreu. Administração Pública no Estado de Direito, in Revista Trimestral de Direito Público, 5/1994. Ed. Malheiros, p. 36. PERQUIRIÇÃO DA MOTIVAÇÃO E PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA O segundo requisito de análise preliminar do ato administrativo é verificar a existência de motivação do ato e procura dos valores almejados por ele. Isto se consubstancia, com evidência, pelas razões expostas pelo agente público para fazer algo e, quais os critérios que ele utilizou para tomar sua decisão. O ato do administrador é o produto da vontade política, da vontade da lei e dos interesses do Estado. Por isso, submete-se automaticamente a um jogo de forças e interesses que exigem critério: o critério da ponderação de valores consubstanciado pelo princípio da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade é fruto de um sistema axiológico material, onde deve ser buscada a identificação dos valores e sua correta aplicação no fenômeno político10, aprofundando este fenônemo no mesmo campo axiológico. Resulta deste processo, um influxo recíproco11 entre a norma e a realidade, visando a sedimentação dos valores fundamentais da organização estatal. É por sua expressão de abrangência que o princípio da proporcionalidade deve servir para o perfeito ajustamento entre ideal do Estado, norma do Estado e fato do Estado, como síntese da realização jurídica. Aplica-se, portanto, tal princípio, não só no vital estabelecimento dos direitos fundamentais (direitos, liberdades e garantias), como também estende-se à toda resolução de conflito de bens jurídicos estabelecidos. A outra vertente do princípio da proporcionalidade é a motivação dos atos administrativos. É uníssono o entendimento de que não há maneira de se defender de ato 10 OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa. Ed. Síntese, Porto Alegre – RS, 1997, p. 46. administrativo, especificamente os restritivos de direitos, liberdades ou garantias, quando estes não tenham a justificativa de sua existência. Assim, afigura-se desproporcional o ato proibitivo que não se faz conhecer através de devida justificativa ou motivação. Tal motivação permite não somente conhecer do fato e de seus fundamentos, mas também de permitir o livre exercício dos chamados ‘remédios constitucionais’ no caso de se extrair lesão desproporcional a direito fundamental, ou da fiscalização imediata da correção do ato. E mais, permite a submissão do ato ao controle jurisdicional (se provocado). É, portanto, claro que atos imotivados são nulos porque desrespeitam o princípio da publicidade. “A explicitação das razões que levam o administrador a decidir de uma maneira ou de outra, diante de determinada situação, diante de determinados pressupostos, diante de determinados fatos, é importante e indispensável. Não é possível que o administrador ou o juiz omitam a motivação. (...) No Estado Democrático de Direito, a motivação integra, de maneira inarredável, ainda que possa não estar explícita, o devido processo legal em seu sentido material. É sua pedra fundamental.”12 DIMENSÃO DO CONTROLE ADMINISTRATIVO E DA APLICABILIDADE DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Toda a norma escrita, enquanto resultado da vontade política representativa ou popular, é sempre a expectativa de uma ordem. A sua eficácia, no entanto, fica adstrita a uma perfeita adequação com a realidade, fato que se consuma através da intervenção humana, que deve interagir com a norma em busca de seu verdadeiro significado, ajustando-se à sua concretitude. 12 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Estado de Direito e Devido Processo Legal, in Revista Trimestral de Direito Público, 15/1996. Ed. Malheiros, p. 41. A lei, portanto, não cria, mas declara um direito que, faticamente, exigirá ajustamento por meio da atividade humana. Esta atividade humana se manifesta através do fenômeno de entendimento da mens legis, podendo afirmar que a justeza da norma está em sua exteriorização enquanto entidade mensurável (com forma e conteúdo) perfeitamente realizável. Neste ponto é que se faz necessária uma digressão a respeito das proposições legais da improbidade administrativa e seu ajustamento com a realidade, não somente como forma limitadora dos abusos administrativos, mas como forma repressiva de atos temerários.A Lei da Improbidade Administrativa extravasou o campo rígido do direito penal, que exige a consumação do ilícito para sua verificação, avançando sobre a tutela geral dos direitos constitucionais13, quer visando a reparação causada por um mal, quer evitando que o mal seja causado. Muito embora, sempre se procure reconhecer a análise das condutas ímprobas utilizando-se da mesma formulação consumativa das condutas criminais, há clara diferença entre elas. Isto porque a Lei de Improbidade Administrativa avança não somente pelos atos consumados pelo ilícito cometido, mas atinge os atos da Administração que, potencialmente lesivos, não causaram, efetivamente, nenhum dano. Isto quer dizer, que, além de não ter tipos fechados, as sanções da improbidade administrativa não exigem a consumação do ato para sua aplicabilidade, como no direito penal, podendo ser aplicado a qualquer ato administrativo que destoe do sistema legal vinculado da Administração Pública e dos princípios administrativos constitucionais. Deste modo, um Decreto Municipal que autorize determinada empresa a funcionar, mesmo que sem autorização ambiental, por exemplo, ainda que a empresa não 13 Art. 5º, XXXV da Constituição Federal – “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciária lesão (caráter reparatório da norma) ou ameaça a direito (caráter preventivo ao dano) esteja em funcionamento, pode ser questionado e a autoridade responsável pela sua edição, responsabilizada por isto. Da mesma forma, uma lei que, inconstitucionalmente, anistia determinada dívida de contribuinte pode ser investigada, mesmo sem o aproveitamento do benefício. Um edital viciado de licitação, por si só, é passível de controle e investigação. ABRANGÊNCIA DA PROTEÇÃO PREVENTIVA AOS ATOS ATENTATÓRIOS À PROBIDADE ADMINISTRATIVA A proteção e o controle dos atos administrativos conta com instrumentos processuais consistentes para realizar a tutela preventiva de direitos e a proteção à eventualidade de danos que venha ocorrer quando tais atos encontrem-se, de alguma forma, desconexos da realidade legal e constitucional brasileira. Isto porque o agente do Estado, quando toma uma decisão, deve tomá-la através de uma escolha ponderada, levando em conta todos os valores envolvidos, para a melhor realização das funções do Estado. Esta ponderação de valores atinge indistintamente o legislador, o governante, o agente administrativo, o juiz, ou qualquer pessoa que aja imbuída da função pública. Esta ponderação de valores, também, em razão da necessidade de finalidade dos atos administrativos e do princípio da motivação deve ser tomada em momento anterior à da realização de qualquer ato administrativo, mesmo que seja complexo. Interessa-nos discutir a viabilidade da configuração da ilegalidade do ato administrativo no seu nascedouro, isto é, quando o ato ímprobo decorre da criação de uma lei com o desvio de legislar, ou de uma decisão administrativa com desvio de poder. Nestes casos, a lei ou a decisão, por si só, não gera o dano, mas cria circunstâncias favoráveis a realização de um tipo de ato, que embora tenha “aparência de legalidade” é essencialmente prejudicial à Administração Pública. É o que se chamaria de improbidade administrativa na origem do ato principal, ou “improbidade administrativa inata”, que representa não o ato consumado, mas toda uma circunstância de atos que geram condições para permitir ou facilitar o enriquecimento ilícito, o prejuízo ao erário público ou a transgressão dos princípios administrativos. Tomemos a análise de um exemplo para dimensionar a questão-problema: determinado agente público, com a escusa finalidade de favorecer alguém em certame licitatório de concorrência pública, especializa de tal forma o objeto da licitação que, desde logo, sabe que somente o seu favorito tem condições de perfazer, com excelência, os requisitos técnicos de determinada exploração. A licitação, em si, obedece os requisitos de formalidade estabelecidos pela lei, de modo que permite que vários interessados participem, mas cujo resultado já está antecipadamente violado porque o agente público gerou um vício que será decisivo para o certame. Vemos, neste caso, que a improbidade administrativa não está propriamente na decisão da comissão de licitação que homologou o certame viciado e, muitas vezes, nem no Administrador que seguiu a orientação de tal decisão, mas deformado pelo defeito genético da licitação, que nasceu fraudada. Este tipo de improbidade administrativa, dependendo da época de sua descoberta, poderia ter dois desdobramentos: um que permitiria cautelarmente suspender e declarar a licitação viciada e outro, após a homologação do resultado ou quando o serviço licitado já estivesse sendo prestado, que imporia o dever de reparação do dano, as sanções da improbidade administrativa e a conseqüência atípica da rescisão contratual. A indagação que permaneceria é se, tanto no primeiro caso, da declaração antecipada da nulidade pela fraude, como no segundo, da reparação do dano causado pelo ato fraudulento, incidiria a possibilidade de declaração de improbidade ao agente faltoso. Quer dizer, se mesmo na esfera da preparação dos atos temerários ao Erário, a improbidade já estaria devidamente caracterizada ou haveria a necessidade da ocorrência do dano? Não há como negar que, a primeira hipótese, da suspensão eficaz da licitação antes de suas conseqüências, traria maior beneficio e teria eficácia absoluta, evitando o prejuízo ao Erário, ao passo que na ação reparatória, a dificuldade de retornar-se ao status quo ante caminharia por um terreno muito mais árduo. Além disso, a máquina judiciária não seria tão custosa como é no caso da persecução repressiva, quando deve se procurar bens para reparar o dano, deve se iniciar toda a execução da sentença e outras medidas burocráticas, além da ação judicial principal. A Lei de Improbidade Administrativa, ao contrário de sua antecessora (Bilac Pinto), que exigia a prova do dano e prova do enriquecimento ilícito, visa proteger a Administração Pública, não só do enriquecimento ilícito, mas de todo o ato prejudicial ao Erário, ou mesmo daqueles atos que atentem contra os princípios da Administração Pública. Por isso, as vedações e tipos da Lei n.º 8.429/92 incidem mesmo quando o ato ímprobo não causa o dano projetado, devendo, ainda, ser declarado como forma de punição. Esta conclusão está vicejada pela natureza processual civil que tem a lei, que permite a sua análise tanto na lesão como na ameaça de lesão ao direito e, pelo fato de que os tipos de improbidade previstos na lei não são numerus clausus. Permitem, sim, por método de interpretação, a concretização da improbidade através de uma construção lógica de análise da conduta do agente e, portanto, comportam um número de hipóteses muito maior que os tipos escritos na lei. FORMAS DE CONTROLE PREVENTIVO Podemos, portanto, concluir que, pela leitura da Lei n.º 8.429/92, pela mensagem constitucional que a criou, e pelo direcionamento que se tem dado para adotar seguranças cada vez maiores quanto a atos de corrupção contra o Estado, é perfeitamente admissível a hipótese de discutir a aplicabilidade da improbidade administrativa inata, entendida como aquela destinada a questionar os atos que criam uma situação de direito, aparentemente própria, mas que já nasce maculada com vontade de causar prejuízo ao Estado, permitir o enriquecimento ilícito ou almejar outras vantagens, subtraindo-se da apreciação dos princípios norteadores da Administração Pública. Neste campo, onde imperam, preferencialmente, o desvio e o abuso de poder, o desvio de finalidade, o desvio de legislar,são vários os exemplos práticos de atos que, formalmente consonantes com a Constituição e o Sistema Legal Brasileiro, destoam deles porque nascem inquinados de um vício grosseiro, movido pelo desejo de submeter ao interesse privado, os bens e negócios públicos. São exemplos claros disto, a concessão de aumento abusivo de salários para agentes políticos, a concessão irrestrita de benefícios fiscais a determinadas classes econômicas, a licitação cujo preço mínimo determinado pelo licitante já é superfaturado, a apropriação de serviço público com vistas à ‘terceirização’, a alienação de bens que já se encontram em poder de terceiros, a omissão dos órgãos fiscalizantes sobre as atividades ilegais, os processos de privatização cujo resultado antecipadamente já é previsto14, dentre tantos outros. Há, no entanto, nas ações judiciais que buscam a declaração de improbidade na gênese do ato, uma vantagem material sobre as ações reparatórias: o fato de que se pode reprimir o cometimento da improbidade, declarando-a, sem que o Erário Público venha efetivamente a ser prejudicado. Para tanto, três soluções básicas são propostas como forma do controle preventivo do patrimônio público, utilizando-se dos instrumentos fornecidos pela Lei de Improbidade. 14 Recorde-se o exemplo da privatização do sistema telefônico no Brasil, cujos resultados antecipados foram alvos de conversas telefônicas interceptadas O primeiro deles é, através dos mecanismos de pressão popular e das atividades fiscalizatórias preliminares, o questionamento da validade dos atos administrativos, mediante análise da finalidade almejada. O segundo instrumento de importante prevenção à consumação degenerativa da improbidade administrativa é a exigência material de que atos da administração em geral, especialmente quando importarem em decisão que alteram situações fáticas que visam sacrificar direitos importantes, sejam precedidos de motivação fundamentada, que analise o fato e preveja os pontos positivos e negativos daquela decisão. A vinculação dos atos administrativos, no seu nascedouro, aos princípios da finalidade pública, da motivação de seus atos e da transparência das decisões políticas permitiria uma fiscalização democrática sobre estes atos e um proveito mais vantajoso dos direitos gerados. O terceiro instrumento, de ordem processual, deste caminho preliminar de fiscalização da improbidade, seria a de uma melhor utilização das medidas processuais de urgência, como o instrumento da tutela antecipada, tutela inibitória e dos processos cautelares, visando impedir que atos onde não sejam obedecidos a relação de finalidade, motivação e proporcionalidade, ou onde estes não estejam perfeitamente claros, possam produzir efeitos enquanto tais situação sejam perfeitamente dimensionadas através de um juízo acessível a todos. OS INSTRUMENTOS DE GARANTIA PROCESSUAL COMO FORMA DE EVITAR OS DANOS AO PATRIMÔNIO PÚBLICO A reforma do Código de Processo Civil, trouxe através da alteração dos arts. 273 e 461 do seu texto a possibilidade de garantia a uma instrumentalização substancial por meio do processo. Os instrumentos da tutela antecipada, da tutela inibitória e da execução provisória da sentença, por exemplo, permitiram que através de técnicas de coerção indireta, o obrigado seja compelido a agir (ou a não-agir, se for o caso), mediante ameaça de restrição. Nas ações de improbidade administrativa, a evidência do dano mediante a descoberta de finalidades ilícitas e desconformes, autoriza os legitimados, especialmente o Ministério Público, a lançarem mão destes instrumentos, visando produzir remédios preventivos imediatos a estancar a sangria que provém do ato ímprobo. Estes instrumentos, mais que mecanismos meramente processuais, possuem autêntico caráter mandamental, que tem vigor de inibir qualquer ato lesivo ou potencialmente lesivo ao patrimônio público. Muitas vezes, a dificuldade da investigação probatória reside na necessidade de evidências reais do ilícito. O controle dos atos administrativos, todavia, pode ser realizado preventivamente através de acompanhamento dos procedimentos licitatórios, das discussões políticas, das publicações em Diário Oficial, permitindo que a proximidade com os fatos, somada a uma investigação científica, possa clarear quando uma ação administrativa nasce viciada. Nestes casos, muitas vezes, a simples demonstração ao mau administrador de que seus atos estão sob fiscalização já se mostra capaz de inibir o cometimento do ilícito. Isto ocorre, porque o ímprobo que, geralmente, buscar criar subterfúgios e ocultar atos, uma vez sabedor que é alvo de investigação, certamente tomará mais cuidados. Por isso, a pressão popular, a imprensa e os órgãos de fiscalização tem papel preponderante neste controle. Este problema é bem detectado pela doutrina brasileira. Wallace Paiva Martins Júnior, em sua obra ‘Probidade Administrativa’ anota, com detalhes as principais mazelas da administração pública, informando que ‘embora o poder seja de elementar uso regular do agente público, e nessa medida também represente um dever para o alcance dos fins objetivados pelo direito, muitos investidos nessa condição o empregam como uma fonte inesgotável de aquisição, usufruto, distribuição e transmissão de regalias e mordomias, um modo de obter vantagens ilícitas para si ou para outrem, como um meio de distribuir favores ou prejudicar direitos, exercer o poder de maneira abusiva, em concurso com pessoas físicas e jurídicas de direito privado, motivo pelo qual não é de hoje a preocupação legislativa concreta com o fenômeno da imoralidade administrativa.”15 CONCLUSÃO Entrincheirado na cordilheira da burocracia, entre a dificuldade de produção de provas e de uma prestação jurisdicional lenta, as ações judiciais de improbidade administrativa ainda sofrem na mesma vala comum da impunidade. O debate sobre a matéria, no entanto, vem se instalando sistematicamente na vida social, como instrumento posto a serviço do exercício de cidadania. Hoje, aproximam-se os instrumentos de investigação não usuais como, por exemplo, o trabalho da imprensa e a pressão popular, das formas legais de elucidação probatória, produzindo um sentimento, além do aspecto punitivo inerente da Lei de Improbidade Administrativa, capaz de influenciar outras agentes públicos a evitar o cometimento dos ilícitos administrativos. A aceitação do caráter preventivo da ação de improbidade administrativa e das tutelas coletivas, utilizando-se um regramento mais rigoroso nos princípios norteadores da Administração Pública, aliado a uma análise profunda das finalidades dos atos administrativos, produz um caráter geral de controle capaz de erigir um dique contra a corrupção incontrolada. Os agentes políticos que subvertem a ordem legal, tangendo-a para favores pessoais e vantagens de cunho patrimonial e político são responsáveis pela origem de um sistema administrativo claudicante, onde para se conseguir uma liberação de verba para atividade de extrema necessidade é preciso solicitar favores, onde para se aprovar uma lei é necessário o exercício do favor político, onde as licitações sempre se norteiam aos 15 MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. Ed. Saraiva, 2001, São Paulo, p. 1. companheiros de campanha e aos grupos de controle do capital. Estes atos nascem tortos e são ilegais à sua maneira. A Lei de Improbidade Administrativa e os instrumentos da tutela coletiva possuem enriquecedores instrumentos de fiscalização e, certamente, são elementos legais que devem ser popularizados para o atingimento de melhores finspara o Estado e uma satisfação maior dos programas sociais insculpidos na Constituição Federal. Em conclusão: a) a avaliação dos atos administrativos deve levar em conta não só as regras dispostas na lei, mas todo um sistema de princípios constitucionais. b) neste sistema, regras e princípios são normas de mesma grandeza, diferenciados os primeiros, pelo seu caráter auto-aplicável e os segundos, pelo seu grau de abstração; c) todo o ato administrativo deve ser iniciado com vista ao cumprimento de uma finalidade, bem como deve ter motivação expressa para que esta finalidade seja percebida por todos; d) a lei de improbidade administrativa, pela sua natureza, permite a investigação dos atos administrativos consumados e não consumados, de acordo com os pressupostos de tais ato; e) por inferência, é possível , no controle da Administração Pública, realizar o controle preventivo dos atos administrativo potencialmente lesivos ao patrimônio público e aos princípios constitucionais; f) no exercício de tal controle, os legitimados podem se utilizar de medidas processuais como o mandado de segurança, a tutela antecipatória, a ação cautelar, a tutela inibitória e outras medidas que permitam evitar a causação dos danos; g) incumbem aos órgãos de controle realizar uma otimização investigativa de modo a enaltecer as formas investigativas preventivas, com vistas a obtenção de melhores resultados e inibição de prejuízos materiais ao erário público. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1969. - BARROS, Suzana de Toledo. Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade de Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Ed. Brasília Jurídica, 1996. - BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994. - BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, reimp. 1996. - BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Cidadania e ‘Res Publica’: a Emergência dos Direitos Republicanos, in Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, n. 16, p. 100-129, 1996. - COSTA, José Armando da. Contornos Jurídicos da Improbidade Administrativa. Brasília, Ed. Brasília Jurídica, 2000. - DALLARI, Adilson de Abreu. Administração Pública no Estado de Direito, in Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo: Malheiros, n. 05, p. 33-41, 1994. - FIGUEIREDO, Marcelo. O Controle da Moralidade na Constituição. São Paulo: Malheiros, 1999. - HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.. - MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo. Ed. Saraiva, 2001. - MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20. Ed. São Paulo: Malheiros, 1995. - MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2000. - MORESCO, Celso Luiz, Conceitos Jurídicos Indeterminados, in Revista Trimestral de direito público. São Paulo: Malheiros, n. 14, p. 78-95, 1996. - OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa. Porto Alegre: Ed. Síntese, 1997. - PAZZAGLINI FILHO, Marino et alli. Improbidade Administrativo, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. São Paulo, Ed. Atlas, 1996 - SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle Jurisdicional dos Atos Políticos do Poder Executivo, in Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, n. 08, p. 123-134, 1994. - STUMM, Raquel Denize. Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 1995. * Estudo Jurídico a ser apresentado no Congresso Estadual do Ministério Público (Foz do Iguaçu, setembro/2003). Disponível em: < http://mp.pr.gov.br/eventos/carlos.doc> Acesso em.: 05 nov. 2007.
Compartilhar