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O que é cultura - MarilenaChauí

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Marilena Chauí
_______________________________
Capítulo 1
A cultura
Natureza humana?
É muito comum ouvirmos e dizermos frases do tipo: “chorar é próprio da
natureza humana” e “homem não chora”. Ou então: “é da natureza humana ter
medo do desconhecido” e “ela é corajosa, não tem medo de nada”. Também é
comum a frase: “as mulheres são naturalmente frágeis e sensíveis, porque
nasceram para a maternidade”, bem como esta outra: “fulana é uma desnaturada,
pois não tem o menor amor aos filhos”.
Com freqüência ouvimos dizer: “os homens são fortes e racionais, feitos para o
comando e a vida pública”, donde, como conseqüência, esta outra frase: “fulana
nem parece mulher. Veja como se veste! Veja o emprego que arranjou!”. Não é
raro escutarmos que os negros são indolentes por natureza, os pobres são
naturalmente violentos, os judeus são naturalmente avarentos, os árabes são
naturalmente comerciantes espertos, os franceses são naturalmente interessados
em sexo e os ingleses são, por natureza, fleumáticos.
Frases como essas, e muitas outras, pressupõem, por um lado, que existe uma
natureza humana, a mesma em todos os tempos e lugares e, por outro lado, que
existe uma diferença de natureza entre homens e mulheres, pobres e ricos,
negros, índios, judeus, árabes, franceses ou ingleses. Haveria, assim, uma
natureza humana universal e uma natureza humana diferenciada por espécies, à
maneira da diferença entre várias espécies de plantas ou de animais.
Em outras palavras, a Natureza teria feito o gênero humano universal e as
espécies humanas particulares, de modo que certos sentimentos,
comportamentos, idéias e valores são os mesmos para todo o gênero humano (são
naturais para todos os humanos), enquanto outros seriam os mesmos apenas para
cada espécie (ou raça, ou tipo, ou grupo), isto é, para uma espécie determinada.
Dizer que alguma coisa é natural ou por natureza significa dizer que essa coisa
existe necessária e universalmente como efeito de uma causa necessária e
universal. Essa causa é a Natureza. Significa dizer, portanto, que tal coisa não
depende da ação e intenção dos seres humanos. Assim como é da natureza dos
corpos serem governados pela lei natural da gravitação universal, como é da
natureza da água ser composta por H2O, ou como é da natureza da abelha
produzir mel e da roseira produzir rosas, também seria por natureza que os
homens sentem, pensam e agem. A Natureza teria feito a natureza humana como
gênero universal e a teria diversificado por espécies naturais (brancos, negros,
índios, pobres, ricos, judeus, árabes, homens, mulheres, alemães, japoneses,
chineses, etc.).
Que aconteceria com as frases que mencionamos acima se mostrássemos que
algumas delas são contraditórias e que outras não correspondem aos fatos da
realidade?
Assim, por exemplo, dizer que “é natural chorar na tristeza” entra em contradição
com a idéia de que “homem não chora”, pois, se isso fosse verdade, o homem
teria que ser considerado algo que escapa das leis da Natureza, já que chorar é
considerado natural. O mesmo acontece com a frase sobre o medo e a coragem:
nelas é dito que o medo é natural, mas que uma certa pessoa é admirável porque
não tem medo. Aqui, a contradição é ainda maior do que a anterior, uma vez que
parecemos ter admiração por quem, misteriosamente, escapa da lei da Natureza,
isto é, do medo.
Em certas sociedades, o sistema de alianças, que fundamenta as relações de
parentesco sobre as quais a comunidade está organizada, exige que a criança seja
levada, ao nascer, à irmã do pai, que deverá responsabilizar-se pela vida e
educação da criança. Em outras, o sistema de parentesco exige que a criança seja
entregue à irmã da mãe. Nos dois casos, a relação da criança é estabelecida com a
tia por aliança e não com a mãe biológica. Se assim é, como fica a afirmação de
que as mulheres amam naturalmente os seus filhos e que é desnaturada a mulher
que não demonstrar esse amor?
Em certas sociedades, considera-se que a mulher é impura para lidar com a terra
e com os alimentos. Por esse motivo, o cultivo da terra, a alimentação e a casa
ficam sob os cuidados dos homens, cabendo às mulheres a guerra e o comando
da comunidade. Se assim é, como fica a frase que afirma que o homem foi feito
pela Natureza para o que exige força e coragem, para o comando e a guerra,
enquanto a mulher foi feita pela Natureza para a maternidade, a casa, o trabalho
doméstico, as atividades de um ser frágil e sensível?
Os historiadores brasileiros mostram que, por razões econômicas, a elite
dominante do século XIX considerou mais lucrativo realizar a abolição da
escravatura e substituir os escravos africanos pelos imigrantes europeus. Essa
decisão fez com que o mercado de trabalho fosse ocupado pelos trabalhadores
brancos imigrantes e que a maioria dos escravos libertados ficasse no
desemprego, sem habitação, sem alimentação e sem qualquer direito social,
econômico e político.
Em outras palavras, foram impedidos de trabalhar e foram mantidos sem direitos,
tais como viviam quando estavam no cativeiro. Além disso, sabe-se que quando
os colonizadores instituíram a escravidão e trouxeram os africanos para as terras
da América, fizeram tal escolha por considerarem que os negros possuíam grande
força física, grande capacidade de trabalho e muita inteligência para realizar
tarefas com objetos técnicos como o engenho de açúcar. Se assim é, se a
escravidão foi instituída por causa da grande capacidade e inteligência dos
africanos para o trabalho da agricultura, se a abolição foi realizada por ser mais
lucrativo o uso da mão-de-obra imigrante para um certo tipo de agricultura (o
café) e para a indústria, como fica a afirmação de que a Natureza fez os africanos
indolentes, preguiçosos e malandros?
Poderíamos examinar cada uma das frases que dizemos ou ouvimos em nosso
cotidiano e que naturalizam os seres humanos, naturalizam comportamentos,
idéias, valores, formas de viver e de agir. Veríamos como, em cada caso, os fatos
desmentem tal naturalização. Veríamos como os seres humanos variam em
conseqüência das condições sociais, econômicas, políticas, históricas em que
vivem. Veríamos que somos seres cuja ação determina o modo de ser, agir e
pensar e que a idéia de um gênero humano natural e de espécies humanas
naturais não possui fundamento na realidade. Veríamos – graças às ciências
humanas e à Filosofia – que a idéia de natureza humana como algo universal,
intemporal e existente em si e por si mesma não se sustenta cientificamente,
filosoficamente e empiricamente. Por quê? Porque os seres humanos são
culturais ou históricos.
Culto, inculto: cultura
“Pedro é muito culto, conhece várias línguas, entende de arte e de literatura.”
“Imagine! É claro que o Luís não pode ocupar o cargo que pleiteia. Não tem
cultura nenhuma. É semi-analfabeto!”
“Não creio que a cultura francesa ou alemã sejam superiores à brasileira. Você
acha que há alguma coisa superior a nossa música popular?”
“Ouvi uma conferência que criticava a cultura de massa, mas me pareceu que a
conferencista defendia a cultura de elite. Por isso, não concordei inteiramente
com ela.”
“O livro de Silva sobre a cultura dos guaranis é bem interessante. Aprendi que o
modo como entendem a religião e a guerra é muito diferente do nosso.”
Essas frases e muitas outras que fazem parte do nosso dia-a-dia indicam que
empregamos a palavra cultura (ou seus derivados, como culto, inculto) em
sentidos muito diferentes e, por vezes, contraditórios.
Na primeira e na segunda frase que mencionamos acima, cultura é identificada
com a posse de certos conhecimentos (línguas, arte, literatura, ser alfabetizado).
Nelas, fala-se em ter e não ter cultura, ser ou não ser culto.A posse de cultura é
vista como algo positivo, enquanto “ser inculto” é considerado algo negativo. A
segunda frase deixa entrever que “ter cultura” habilita alguém a ocupar algum
posto ou cargo, pois “não ter cultura” significa não estar preparado para uma
certa posição ou função. Nessas duas primeiras frases, a palavra cultura sugere
também prestígio e respeito, como se “ter cultura” ou “ser culto” fosse o mesmo
que “ser importante”, “ser superior”.
Ora, quando passamos à terceira frase, a cultura já não parece ser uma
propriedade de um indivíduo, mas uma qualidade de uma coletividade –
franceses, alemães, brasileiros. Também é interessante observar que a
coletividade aparece como um adjetivo qualificativo para distinguir tipos de
Cultura: a francesa, a alemã, a brasileira. Nessa frase, a Cultura surge como algo
que existe em si e por si mesma e que pode ser comparada (Cultura superior,
Cultura inferior).
Além disso, a Cultura aparece representada por uma atividade artística, a música
popular. Isso permite estabelecer duas relações diferentes com as primeiras
frases: 1. De fato, a terceira frase, como a primeira, identifica Cultura e artes
(entender de arte e literatura, na primeira frase; a música popular brasileira, na
terceira); 2. No entanto, algo curioso acontece quando passamos das duas
primeiras frases à terceira. Com efeito, nas duas primeiras, “culto” e “inculto”
surgiam como diferenças sociais. Num país como o nosso, dizer que alguém é
inculto porque é semi-analfabeto deixa transparecer que Cultura é algo que
pertence a certas camadas ou classes sociais socialmente privilegiadas, enquanto
a incultura está do lado dos não-privilegiados socialmente, portanto, do lado do
povo e do popular. Entretanto, a terceira frase afirma que a cultura brasileira não
é inferior à francesa ou à alemã por causa de nossa música popular. Não
estaríamos diante de uma contradição? Como poderia haver cultura popular (a
música), se o popular é inculto?
Já a quarta frase (a que se refere à conferência sobre cultura de massa) introduz
um novo significado para a palavra cultura. Nela não se trata mais de pessoas
cultas ou incultas, nem de uma coletividade que possui uma atividade cultural
que possa ser comparada à de outras. Agora, estamos diante da idéia de que
numa mesma coletividade ou numa mesma sociedade pode haver dois tipos de
Cultura: a de massa e a de elite. A frase não nos diz o que é a Cultura. (Seria
posse de conhecimentos? Ou seria atividade artística?) Entretanto, a frase nos
informa sobre uma oposição entre formas de cultura, dependendo de sua origem
e de sua destinação, pois “cultura de massa” tanto pode significar “originada na
massa” quanto “destinada à massa”, e o mesmo pode ser dito da “cultura de elite”
(originada na elite ou destinada à elite).
Finalmente, a última frase que mencionamos como exemplo apresenta um
sentido totalmente diverso dos anteriores no que toca à palavra cultura. Fala-se,
agora, na cultura dos guaranis e esta aparece em duas manifestações: a guerra e
a religião (que, portanto, nada tem a ver com a posse de conhecimentos, atividade
artística, massa ou elite). Nessa última frase, a cultura aparece como algo dos
guaranis – e como alguma coisa que não se limita ao campo dos conhecimentos e
das artes, pois se refere à relação dos guaranis com o sagrado (a religião) e com
o conflito e a morte (a guerra).
Vemos, assim, que passar da naturalização dos seres humanos à Cultura não
resolve nossas dificuldades de compreensão dos humanos, uma vez que, agora,
precisamos perguntar: Como é possível a palavra cultura possuir tantos sentidos,
alguns deles contraditórios com outros?
Natureza e Cultura
No pensamento ocidental, Natureza possui vários sentidos:
princípio de vida ou princípio ativo que anima e movimenta os seres. Nesse
sentido, fala-se em “deixar agir a Natureza” ou “seguir a Natureza” para
significar que se trata de uma força espontânea, capaz de gerar e de cuidar de
todos os seres por ela criados e movidos. A Natureza é a substância (matéria e
forma) dos seres;
essência própria de um ser ou aquilo que um ser é necessária e universalmente.
Neste sentido, a natureza de alguma coisa é o conjunto de qualidades,
propriedades e atributos que a definem, é seu caráter ou sua índole inata,
espontânea. Aqui, Natureza se opõe às idéias de acidental (o que pode ser ou
deixar de ser) e de adquirido por costume ou pela relação com as circunstâncias;
? organização universal e necessária dos seres segundo uma ordem regida por
leis naturais. Neste sentido, a Natureza se caracteriza pelo ordenamento dos
seres, pela regularidade dos fenômenos ou dos fatos, pela freqüência, constância
e repetição de encadeamentos fixos entre as coisas, isto é, de relações de
causalidade entre elas. Em outros termos, a Natureza é a ordem e a conexão
universal e necessária entre as coisas, expressas em leis naturais;
tudo o que existe no Universo sem a intervenção da vontade e da ação
humanas. Neste sentido, Natureza opõe-se a artificial, artefato, artifício, técnico e
tecnológico. Natural é tudo quanto se produz e se desenvolve sem qualquer
interferência humana;
conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos humanos como o meio e o
ambiente no qual vivem. A Natureza, aqui, tanto significa o conjunto das
condições físicas onde vivemos, quanto aquelas coisas que contemplamos com
emoção (a paisagem, o mar, o céu, as estrelas, terremotos, eclipses, tufões,
erupções vulcânicas, etc.). A Natureza é o mundo visível como meio ambiente e
como aquilo que existe fora de nós, mesmo que provoque idéias e sentimentos
em nós;
para as ciências contemporâneas, a Natureza não é apenas a realidade externa,
dada e observada, percebida diretamente por nós, mas é um objeto de
conhecimento construído pelas operações científicas, um campo objetivo
produzido pela atividade do conhecimento, com o auxílio de instrumentos
tecnológicos. Neste sentido, a Natureza, paradoxalmente, torna-se algo que passa
a depender da interferência ou da intervenção humana, pois o objeto natural é
construído cientificamente.
Esse último sentido da idéia de Natureza indica uma diferença entre a concepção
comum e a científica, pois a primeira considera a Natureza nos cinco primeiros
significados que apontamos, enquanto a segunda considera a Natureza como uma
noção ou um conceito produzido pelos próprios homens e, nesse caso, como
artifício, artefato, construção humana. Em outras palavras, a própria idéia de
Natureza tornou-se um objeto cultural.
Mas, afinal, o que é a Cultura?
Dois são os significados iniciais da noção de Cultura:
1. vinda do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar,
Cultura significava o cuidado do homem com a Natureza. Donde: agricultura.
Significava, também, cuidado dos homens com os deuses. Donde: culto.
Significava ainda, o cuidado com a alma e o corpo das crianças, com sua
educação e formação. Donde: puericultura (em latim, puer significa menino;
puera, menina). A Cultura era o cultivo ou a educação do espírito das crianças
para tornarem-se membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo
aperfeiçoamento e refinamento das qualidades naturais (caráter, índole,
temperamento);
2. a partir do século XVIII, Cultura passa a significar os resultados daquela
formação ou educação dos seres humanos, resultados expressos em obras, feitos,
ações e instituições: as artes, as ciências, a Filosofia, os ofícios, a religião e o
Estado. Torna-se sinônimo de civilização, pois os pensadores julgavam que os
resultados da formação-educação aparecem com maior clareza e nitidez na vida
social e política ou na vida civil (a palavra civil vem do latim: cives, cidadão;
civitas, a cidade-Estado).
Noprimeiro sentido, a Cultura é o aprimoramento da natureza humana pela
educação em sentido amplo, isto é, como formação das crianças não só pela
alfabetização, mas também pela iniciação à vida da coletividade por meio do
aprendizado da música, dança, ginástica, gramática, poesia, retórica, história,
Filosofia, etc. A pessoa culta era a pessoa moralmente virtuosa, politicamente
consciente e participante, intelectualmente desenvolvida pelo conhecimento das
ciências, das artes e da Filosofia. É este sentido que leva muitos, ainda hoje, a
falar em “cultos” e “incultos”.
Podemos observar que neste primeiro sentido Cultura e Natureza não se opõem.
Os humanos são considerados seres naturais, embora diferentes dos animais e das
plantas. Sua natureza, porém, não pode ser deixada por conta própria, porque
tenderá a ser agressiva, destrutiva, ignorante, precisando por isso ser educada,
formada, cultivada de acordo com os ideais de sua sociedade. A Cultura é uma
segunda natureza, que a educação e os costumes acrescentam à primeira
natureza, isto é, uma natureza adquirida, que melhora, aperfeiçoa e desenvolve
a natureza inata de cada um.
No segundo sentido, isto é, naquele formulado a partir do século XVIII, tem
início a separação e, posteriormente, a oposição entre Natureza e Cultura. Os
pensadores consideram, sobretudo a partir de Kant, que há entre o homem e a
Natureza uma diferença essencial: esta opera mecanicamente de acordo com leis
necessárias de causa e efeito, mas aquele é dotado de liberdade e razão, agindo
por escolha, de acordo com valores e fins. A Natureza é o reino da necessidade
causal, do determinismo cego. A humanidade ou Cultura é o reino da finalidade
livre, das escolhas racionais, dos valores, da distinção entre bem e mal,
verdadeiro e falso, justo e injusto, sagrado e profano, belo e feio.
À medida que este segundo sentido foi prevalecendo, Cultura passou a significar,
em primeiro lugar, as obras humanas que se exprimem numa civilização, mas,
em segundo lugar, passou a significar a relação que os humanos, socialmente
organizados, estabelecem com o tempo e com o espaço, com os outros humanos
e com a Natureza, relações que se transformam e variam. Agora, Cultura torna-se
sinônimo de História. A Natureza é o reino da repetição; a Cultura, o da
transformação racional ; portanto, é a relação dos humanos com o tempo e no
tempo.
Cultura e História
Foi Hegel e, depois dele, Marx que enfatizaram a Cultura como História. Para o
primeiro, o tempo é o modo como o Espírito Absoluto ou a razão se manifesta e
se desenvolve através das obras e instituições – religião, artes, ciências, Filosofia,
instituições sociais, instituições políticas. A cada período de sua temporalidade, o
Espírito ou razão engendra uma Cultura determinada, que exprime o estágio de
desenvolvimento espiritual ou racional da humanidade – China, Índia, Egito,
Israel, Grécia, Roma, Inglaterra, França, Alemanha seriam fases da vida do
Espírito ou da razão, cada qual exprimindo-se com uma Cultura própria e
ultrapassada pelas seguintes, num progresso contínuo.
Para Marx, há em Hegel um engano básico, qual seja, confundir a História-
Cultura com a manifestação do Espírito. A História-Cultura é o modo como, em
condições determinadas e não escolhidas, os homens produzem materialmente
(pelo trabalho, pela organização econômica) sua existência e dão sentido a essa
produção material. A História-Cultura não narra o movimento temporal do
Espírito, mas as lutas reais dos seres humanos reais que produzem e reproduzem
suas condições materiais de existência, isto é, produzem e reproduzem as
relações sociais, pelas quais distinguem-se da Natureza e diferenciam-se uns dos
outros em classes sociais antagônicas.
O movimento da História-Cultura é realizado pela luta das classes sociais para
vencer formas de exploração econômica, opressão social, dominação política.
Despotismo asiático, modo de produção antigo (Grécia, Roma), modo de
produção feudal (Idade Média), capitalismo comercial ou mercantil, capitalismo
industrial são as maneiras pelas quais surgem e se organizam as formações
sociais, internamente divididas por lutas, cujo fim dependerá da capacidade de
organização política e de consciência da última classe social explorada (o
proletariado, produzido pelo capitalismo industrial) para eliminar a desigualdade
e injustiça históricas.
Cultura e antropologia
Diferentemente de Hegel e Marx, que tomam a Cultura pela perspectiva histórica
ou pela relação dos humanos com o tempo, a antropologia considera a Cultura
por um outro prisma.
O antropólogo procura, antes de tudo, determinar em que momento e de que
maneira os humanos se afirmam como diferentes da Natureza fazendo o mundo
cultural surgir. Tradicionalmente, dizia-se que os humanos diferem da Natureza
graças à linguagem e à ação por liberdade. O antropólogo, sem negar essa
afirmação, procura algo mais profundo do que isso como início das culturas.
Assim, para muitos antropólogos, a diferença homem-Natureza surge quando os
humanos decretam uma lei que não poderá ser transgredida sem levar o culpado à
morte, exigida pela comunidade: a lei da proibição do incesto, desconhecida
pelos animais. Para muitos antropólogos, a diferença homem-Natureza também é
estabelecida quando os humanos definem uma lei que, se transgredida, causa a
ruína da comunidade e do indivíduo: a lei que separa o cru e o cozido,
desconhecida dos animais.
Não vamos aqui entrar nos detalhes das discussões antropológicas. O importante,
para nós, é perceber que os antropólogos buscam algo que demarque o momento
da separação homem-Natureza como instante de surgimento da Cultura. Esse
algo é uma regra ou norma humana que opera como lei universal, isto é, válida
para todos os homens e para toda a comunidade.
A lei humana é um imperativo social que organiza toda a vida dos indivíduos e
da comunidade, determinando o modo como são criados os costumes, como são
transmitidos de geração em geração, como fundam as instituições sociais
(religião, família, formas do trabalho, guerra e paz, distribuição das tarefas,
formas do poder, etc.). A lei não é uma simples proibição para certas coisas e
obrigação para outras, mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar
uma ordem de existência que não é simplesmente natural (física, biológica). Esta
ordem é a ordem simbólica.
Vimos que um símbolo é alguma coisa que se apresenta no lugar de outra e
presentifica algo que está ausente. Quando dizemos que a Cultura é a invenção de
uma ordem simbólica, estamos dizendo que nela e por ela os humanos atribuem à
realidade significações novas por meio das quais são capazes de se relacionar
com o ausente: pela palavra, pelo trabalho, pela memória, pela diferenciação do
tempo (passado, presente, futuro), pela diferenciação do espaço (próximo,
distante, grande, pequeno, alto, baixo), pela diferenciação entre o visível e o
invisível (os deuses, o passado, o distante no espaço) e pela atribuição de valores
às coisas e aos homens (bom, mau, justo, injusto, verdadeiro, falso, belo, feio,
possível, impossível, necessário, contingente).
Comunicação (por palavras, gestos, sinais, escrita, monumentos), trabalho
(transformação da Natureza), relação com o tempo e o espaço enquanto valores,
diferenciação entre sagrado e profano, determinação de regras e normas para a
realização do desejo, percepção da morte e doação de sentido a ela, percepção da
diferença sexual e doação de sentido a ela, interdições e punição das
transgressões, determinação da origem e da forma do poder legítimo e ilegítimo,
criação de formas expressivas para a relação com o outro, com o sagrado e com o
tempo (dança, música, rituais, guerra, paz, pintura, escultura, construção da
habitação,culinária, tecelagem, vestuário, etc.) são as principais manifestações
do surgimento da Cultura.
Em termos antropológicos, podemos, então, definir a Cultura como tendo três
sentidos principais:
1. criação da ordem simbólica da lei , isto é, de sistemas de interdições e
obrigações, estabelecidos a partir da atribuição de valores a coisas (boas, más,
perigosas, sagradas, diabólicas), a humanos e suas relações (diferença sexual e
proibição do incesto, virgindade, fertilidade, puro-impuro, virilidade; diferença
etária e forma de tratamento dos mais velhos e mais jovens; diferença de
autoridade e formas de relação com o poder, etc.) e aos acontecimentos
(significado da guerra, da peste, da fome, do nascimento e da morte, obrigação de
enterrar os mortos, proibição de ver o parto, etc.);
2. criação de uma ordem simbólica da linguagem, do trabalho, do espaço, do
tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível. Os símbolos surgem
tanto para representar quanto para interpretar a realidade, dando-lhe sentido pela
presença do humano no mundo;
3. conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas quais os
humanos se relacionam entre si e com a Natureza e dela se distinguem, agindo
sobre ela ou através dela, modificando-a. Este conjunto funda a organização
social, sua transformação e sua transmissão de geração a geração.
Em sentido antropológico, não falamos em Cultura, no singular, mas em
culturas, no plural, pois a lei, os valores, as crenças, as práticas e instituições
variam de formação social para formação social. Além disso, uma mesma
sociedade, por ser temporal e histórica, passa por transformações culturais
amplas e, sob esse aspecto, antropologia e História se completam, ainda que os
ritmos temporais das várias sociedades não sejam os mesmos, algumas mudando
mais lentamente e outras mais rapidamente.
A esse sentido histórico-antropológico amplo, podemos acrescentar um outro,
restrito, ligado ao antigo sentido de cultivo do espírito: a Cultura como criação de
obras da sensibilidade e da imaginação – as obras de arte – e como criação de
obras da inteligência e da reflexão – as obras de pensamento. É esse segundo
sentido que leva o senso comum a identificar Cultura e escola (educação formal),
de um lado, e, de outro lado, a identificar Cultura e belas-artes (música, pintura,
escultura, dança, literatura, teatro, cinema, etc.).
Se, porém, reunirmos o sentido amplo e o sentido restrito, compreenderemos que
a Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas
que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e
artística.
A religião, a culinária, o vestuário, o mobiliário, as formas de habitação, os
hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de relacionar-se com os mais velhos e os
mais jovens, com os animais e com a terra, os utensílios, as técnicas, as
instituições sociais (como a família) e políticas (como o Estado), os costumes
diante da morte, a guerra, o trabalho, as ciências, a Filosofia, as artes, os jogos, as
festas, os tribunais, as relações amorosas, as diferenças sexuais e étnicas, tudo
isso constitui a Cultura como invenção da relação com o Outro.
Quem é o Outro? Antes de tudo, é a Natureza. A naturalidade é o Outro da
humanidade. A seguir, os deuses, maiores do que os humanos, superiores e
poderosos. Depois, os outros humanos, os diferentes de nós mesmos: os
estrangeiros, os antepassados e os descendentes, os inimigos e os amigos, os
homens para as mulheres, as mulheres para os homens, os mais velhos para os
jovens, os mais jovens para os velhos, etc. Em sociedades como a nossa,
divididas em classes sociais, o Outro é também a outra classe social, diferente da
nossa, de modo que a divisão social coloca o Outro no interior da mesma
sociedade e define relações de conflito, exploração, opressão, luta. Entre os
inúmeros resultados da existência da alteridade (o ser um Outro) no interior da
mesma sociedade, encontramos a divisão entre cultura de elite e cultura popular,
cultura erudita e cultura de massa.
Estamos, agora, em condições de perceber por que as frases de nosso cotidiano
sobre “cultos” e “incultos” indicam preconceitos e não conceitos. Que
preconceitos?
? Aquele que ignora que, em sentido antropológico e histórico, todos os
humanos são cultos, pois são todos seres culturais;
? Aquele que reduz a Cultura à escola e às belas-artes, sem se dar conta de que
aquela e estas são efeito da vida cultural e um dos aspectos da Cultura, mas não
toda a Cultura;
? Aquele que, partindo da Cultura como cultivo do espírito (obras de pensamento
e obras de arte), ignora que a separação entre “cultos” e “incultos”, em
sociedades divididas em classes sociais, é resultado de uma organização social
que confere a alguns o direito de produção e acesso às obras, negando-o a outros,
de tal maneira que, em lugar de um direito, tem-se, de um lado, privilégio e, de
outro, exclusão. Em outras palavras, usa-se a Cultura como instrumento de
discriminação social, econômica e política.
Novamente a História
Os estudiosos, partindo da filosofia da história e da antropologia, distinguem dois
grandes tipos de cultura: a das comunidades e a das sociedades.
Uma comunidade é um grupo ou uma coletivi dade onde as pessoas se conhecem,
tratam-se pelo primeiro nome, possuem contatos cotidianos cara a cara,
compartilham os mesmos sentimentos e idéias e possuem um destino comum.
Uma sociedade é uma coletividade internamente dividida em grupos e classes
sociais e na qual há indivíduos isolados uns dos outros. Seus membros não se
conhecem pessoalmente nem intimamente. Cada classe social é antagônica à
outra ou às outras, com valores e sentimentos diferentes e mesmo opostos. As
relações não são pessoais, mas sociais, isto é, os indivíduos, grupos e classes se
relacionam pela mediação de instituições como a família, a escola, a fábrica, o
comércio, os partidos políticos e o Estado.
Os agrupamentos indígenas, por exemplo, são comunidades, portanto,
internamente unos e indivisos. Em contrapartida, nós vivemos em sociedade e
não em comunidade.
O tempo, nas comunidades, possui um ritmo lento, as transformações são raras e,
em geral, causadas por um acontecimento externo que as afeta (por exemplo, a
conquista e colonização branca imposta aos índios). Por isso, se diz que a
comunidade está na História ou no tempo, mas não é histórica.
Ao contrário, a sociedade é histórica, ou seja, para ela as transformações são
constantes e velozes, causadas pelas lutas e pelas divisões internas. Diz-se, então,
que uma sociedade é histórica quando, para ela, ter uma história e estar no tempo
são um problema, uma indagação que ela não cessa de responder. Por quê?
Uma comunidade baseia-se em mitos fundadores ou narrativas sobre sua origem
e sobre o que nela aconteceu, acontece e acontecerá. Os mitos capturam o tempo
e oferecem explicações satisfatórias para todos sobre o presente, o passado e o
futuro.
Numa sociedade, porém, cada classe social procura explicar a origem da
sociedade e de suas mudanças e, conseqüentemente, há diferentes explicações
para o surgimento, a forma e a transformação sociais. Os grupos dominantes
narram a história da sociedade de modo diferente e oposto à narrativa dos grupos
dominados.
A classe que domina e a que é dominada possuem, portanto, concepções
diferentes e contrárias sobre as causas dos acontecimentos, não havendo uma
explicação única e idêntica para todos sobre a origem da sociedade e suas
transformações. Eis, por que, para uma sociedade, ser histórica é um problema e
não uma solução. Em outras palavras, enquanto o mito unifica o tempo
comunitário, as histórias sociais multiplicam as interpretações sobre as causas e
os efeitos temporais.Finalmente, uma comunidade cria a mesma Cultura para todos os seus membros,
mas numa sociedade isso não é possível, e as diferentes classes sociais produzem
culturas diferentes e mesmo antagônicas. Por esse motivo é que as sociedades
conhecem um fenômeno inexistente nas comunidades: a ideologia. Esta é
resultado da imposição da cultura dos dominantes à sociedade inteira, como se
todas as classes e todos os grupos sociais pudessem e devessem ter a mesma
Cultura, embora vivendo em condições sociais diferentes.
A ideologia é uma das maneiras pelas quais as sociedades históricas buscam
oferecer a imagem de uma única Cultura e de uma única história, ocultando a
divisão social interna.

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