Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
45 ARTIGO DE REVISÃO Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde RESUMO Objetivo: investigar, com base na análise de artigos publicados entre 2005 e 2010 no Brasil, as ações de prevenção da violência e promoção da saúde propostas e/ou desenvolvidas pela saúde pública e demais áreas de atuação para promoção da saúde e prevenção da violência contra adolescentes. Fontes de dados: Foi realizada pesquisa bibliográfi ca de artigos científi cos brasileiros nas bases de dados da SciELo e da BVS, tendo sido selecionados 11 artigos, que foram analisados utilizando-se análise de conteúdo temática. Síntese dos dados: os artigos expressam diversidade de temas e de áreas de conhecimento, mas estão concentrados em alguns estados brasileiros. As concepções de violência, de modo consensual, expressaram o caráter multideterminado do fenômeno e as concepções de adolescência foram divergentes. Foram identifi cados determinantes diversos da violência e, em consequência, focos de ação também diversifi cados, com predominância de ações de prevenção primária. A maioria dos artigos menciona problemas e desafi os para a concretização da prevenção da violência. Conclusão: observou-se que, no setor da saúde, a violência ainda é um tema incipiente que precisa ser discutido com as equipes desta área e que é necessária uma boa estratégia de acolhimento para detectar precocemente situações de violência e ações intersetoriais para o seu enfrentamento. Constatou-se a necessidade de maior investimento em estudos na área e de estruturação de sistemas de informações. Evidenciou-se que as mudanças culturais e subjetivas devem ser o eixo norteador das ações, e que a família deve ser um dos principais focos, onde se considera que a Estratégia de Saúde da Família tem grande potencial de ação. PALAVRAS-CHAVE Prevenção primária, violência, adolescente, saúde da família. ABSTRACT Objective: Investigate, based on the analysis of articles published between 2005 and 2010 in Brazil, the actions proposed and / or developed by public health and other areas of action for health promotion and prevention of violence against adolescents. Data source: A research of scientifi c articles from the SciELo and BVS databases yielded selection of 11 articles which were analyzed using thematic content analyses. Data synthesis: The articles express the diversity of topics and areas of knowledge, but are concentrated in few Brazilian states. The conceptions of violence, by consensus, expressed the multi-determined character of the phenomenon and the conceptions of adolescence were divergent. Several determinants of violence were identifi ed and, consequently, also diversifi ed action focuses, with predominance of primary prevention Prevenção da violência na adolescência: propostas existentes no Brasil e as possibilidades de atuação na saúde pública Preventing violence in adolescence: proposals in Brazil and possibilities of acting in public health > Roberta Belizário Alves1 Edinete Maria Rosa2 Roberta Belizário Alves (robertabelizario@gmail.com) - Rua Maria Eleonora Pereira, nº 434, apto 302, Bairro Jardim da Penha - Vitória, ES, Brasil. CEP 29060-180. Recebido em 09/12/2012 – Aprovado em 04/02/2013 1Doutoranda em Psicologia. Psicóloga - Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Vitória, ES, Brasil. 2Doutora em Psicologia Social. Professora Adjunta do curso de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Vitória, ES, Brasil. > > 46 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 INTRODUÇÃO desde a década de 80, as mortes por aci- dentes e violências passaram a constituir a se- gunda causa de mortes no país, representando cerca de 15% dos óbitos, e a primeira causa de mortes entre os 5 e 39 anos de idade, sendo que, em crianças e adolescentes de até 14 anos, o que causa mais impacto na mortalidade são os acidentes de trânsito, principalmente os atrope- lamentos. Já os adolescentes e jovens são os mais afetados pela violência (em cada 10 adolescen- tes, sete morrem por causas externas)1. Com base nestes dados, é possível perce- ber que os adolescentes e os jovens estão bas- tante expostos à violência, o que torna funda- mental ampliar os esforços para se compreender essa complexa realidade em busca da produção de ferramentas efi cazes para o enfrentamento dessas questões. Para tanto é importante com- preender as especifi cidades deste ciclo de vida e os fatores de risco e de proteção a ele associa- dos, no que se refere à violência, para elaborar estratégias que sejam efi cazes na prevenção da violência nesta fase da vida. A adolescência, que vai dos 10 aos 19 anos, período circunscrito entre a infância e a fase adul- ta, é um período de crescimento e de desenvol- vimento biopsicossocial complexo, envolvendo aspectos biológicos, psicológicos e sociais2. Este período se constitui socialmente na relação com os adultos, relação esta que é mediada por signi- fi cados e expectativas que, por sua vez, servem de referência para os adolescentes como forma de identifi cação e inserção social3. Nesta perspectiva, é necessário considerar que a adolescência é um processo complexo de emancipação que envolve escolhas e ações que, por um lado, são pessoais, mas que, por outro lado, estão determinadas pela estrutura social e pelos dispositivos institucionais. Estes fatores, aliados à grande exposição deste grupo popula- cional a inúmeros riscos, podem aumentar a vul- nerabilidade deste segmento a diversos agravos à saúde, dentre eles a violência4. Utilizando a defi nição dada por Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi & Lozano5, é possível conceituar a violência como o uso intencional de força física, poder ou de ameaça contra alguém, que tenha como resultado ou possi- bilidade lesões, mortes, dano psicológico, de- fi ciência de desenvolvimento ou privações. A organização Mundial de Saúde (oMS) propõe um modelo ecológico, com quatro níveis de análise, segundo o qual a violência é entendida como fruto de uma dinâmica complexa entre fatores individuais, relacionais, sociais, culturais e ambientais, destacando as causas múltiplas da violência. No primeiro nível, consideram- -se as características pessoais que aumentam a > actions. The majority of these articles mention problems and challenges for the implementation of violence prevention. Conclusion: Readings showed that violence is still an incipient subject in healthcare and discussions on this topic should be held with healthcare teams in order to allow the necessary receptive strategies targeted towards early detection as well as violence prevention actions on a multisectorial basis. The need of investment in the study of violence prevention and the structuring of database systems was noted. It was also made evident that cultural and subjective changes must be the guiding force of these actions and that the family unit must be one of the principal focal points, where one considers that the Family Health Strategy has great action potential. KEY WORDS Primary prevention, violence, adolescent, family health program. > 47Alves e Rosa PREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde probabilidade do sujeito ser vítima ou autor de violência. No segundo nível são consideradas as relações mais próximas que o sujeito esta- belece nos diversos grupos dos quais faz parte. No terceiro nível é analisado o contexto comu- nitário, aí incluídos a escola, o trabalho e a vi- zinhança. o quarto nível diz respeitoàs normas e atitudes que são favoráveis à violência e às políticas públicas que perpetuam a desigualda- de econômica e social5. Com base nesta concepção, há o con- senso, já estabelecido, de que os acidentes e violências são, em maior ou menor grau, pas- síveis de prevenção. Por esta razão, as ações de prevenção devem ser prioridade no enfren- tamento desta questão1, 5. No Brasil, uma das maiores iniciativas para a incorporação da violência na pauta da saúde foi a Política Nacional de Redução da Morbi- mortalidade por Acidentes e Violências, apro- vada em 20016. Esta política propõe, como um de seus princípios básicos, a promoção da saúde como base de todas as ações voltadas à redu- ção da violência e dos acidentes. A concepção de prevenção da Política é ampla, abrangendo medidas de promoção da saúde e de proteção contra ocorrência de eventos violentos e aciden- tes (prevenção primária), medidas destinadas ao tratamento das vítimas, com o intuito de im- pedir complicações (prevenção secundária) ou impedir a progressão das sequelas e as mortes (prevenção terciária)1. Para Minayo6 é inegável que, a partir de 2001, as políticas de saúde voltadas à temática da violência tiveram importante avanço no que se refere à sua legitimação, por meio do lança- mento de diversas portarias e normas técnicas, implementação e fortalecimento de sistemas de informação e da inclusão da discussão do tema em projetos de áreas já tradicionais no Ministério da Saúde (MS); mas, por outro lado, Minayo e Lima7 salientam que há ainda uma grande distância entre teoria e prática e uma lentidão na concretização das ações para pre- venção, no que se refere às violências e aos aci- dentes de crianças e adolescentes. dentro deste cenário, é importante refl etir sobre qual o papel da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no processo de fortalecimento das ações voltadas à diminuição da violência, pois esta proposta, segundo Viana e dal Poz8, que foi criada em 1994 e instituída em 1996, constituiu- -se como modelo reestruturador do sistema de saúde e como instrumento de mudança do mo- delo assistencial e, hoje, se apresenta como es- tratégia de atuação da atenção básica, na qual o foco passa a ser a família e o campo de atuação passa a ser um território circunscrito. isto pressupõe a necessidade de olhar mais atentamente as condições nas quais vivem as pes- soas, a fi m de dar respostas mais condizentes para as necessidades de saúde da população9, sempre numa perspectiva preventiva, com inúmeros desafi os, pois as condições de vida, em grande parte, não podem ser trabalhadas somente pelas equipes de saúde da família, ecologicamente in- seridas numa dinâmica social mais ampla, o que demanda, necessariamente, ações intersetoriais. A questão da violência se insere nesta dis- cussão de forma emblemática, pois, se por um lado, os determinantes da violência estão para além do setor saúde, por outro lado, onde mais se sentem suas repercussões é na saúde. dessa forma, procurando compreender este processo de inclusão da violência no setor da saúde e buscando elementos que contribuam para a defi nição do papel da ESF neste processo, este estudo teve como objetivo investigar, a par- tir da análise de artigos científi cos publicados no Brasil, no período de 2005 a 2010, as concep- ções de violência e de adolescência e as ações de prevenção da violência e promoção da saúde para os adolescentes que vêm sendo propostas e/ou desenvolvidas pela área da saúde pública e demais áreas de atuação envolvidas com esta temática no país. 48 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 FONTES DE DADOS Foi realizada uma revisão de literatura inte- grativa, seguindo as etapas propostas por Sou- za, Silva & Carvalho10: elaboração das questões norteadoras; estabelecimento de critérios de in- clusão e de exclusão de estudos para busca de literatura em bases de dados; coleta de dados, com defi nição prévia das informações a serem extraídas dos textos; análise crítica dos dados; discussão dos resultados; apresentação da revi- são/síntese do conhecimento. As questões norteadoras que se buscava responder foram: quais ações de prevenção da violência e promoção da saúde para os adoles- centes vêm sendo desenvolvidas pela saúde pú- blica e demais áreas de atuação no país? Que concepções de violência e adolescência orien- tam estas ações? Com base nestas questões, foi realizada uma busca nas bases de dados eletrô- nicas da SciELo e da BVS Violência e Saúde, pois o foco foi a análise de artigos brasileiros de áreas de conhecimento variadas. As palavras-chave utilizadas foram adolescência/adolescente, violên- cia e prevenção, na opção de pesquisa avançada. os critérios utilizados na delimitação da busca foram: 1) tipo de documento como artigo; 2) palavras-chave contidas em resumo; e 3) perío- do de publicação de 2005 a 2010. Como resul- tados foram obtidos 115 registros, dos quais foi realizada a leitura do título e do resumo, ten- do como critérios de inclusão na pesquisa que o registro tratasse de artigo sobre propostas de prevenção da violência na adolescência, e que fosse em língua portuguesa. Com base nestes critérios foram identifi cados 11 artigos comple- tos para a amostra fi nal. A análise dos dados foi realizada com a téc- nica de análise de conteúdo temática11, a partir da qual foram defi nidas as seguintes categorias analíticas: Concepções de Violência; Concep- ções de Adolescência; determinantes da Vio- lência; intervenções Propostas e/ou Realizadas/ Princípios de Ação na Prevenção da Violência; impasses, difi culdades e desafi os para a Preven- ção da Violência. Após a categorização, foi rea- lizada uma análise descritiva, tendo como guia as questões iniciais propostas por este estudo. SÍNTESE DOS RESULTADOS Caracterização da produção científi ca pesquisada os 11 artigos pesquisados tratam de aspec- tos diversos da violência na adolescência: acesso e acolhimento nos serviços de saúde12 (texto 1); identifi cação de situações de vulnerabilidade e de proteção contra a violência13 (texto 2); análi- se dos efeitos e das formas de enfrentamento do bullying14 (texto 3); atuação da pediatria na pre- venção da violência em crianças e adolescentes15 (texto 4); escolas seguras e escolas promotoras da paz16 (texto 5); características sociodemo- gráfi cas, comportamentos de risco e estratégias de coping relacionados a fatores de risco para violência entre adolescentes17(texto 6); fatores de risco psicossocial em adolescentes18 (texto 7); sentidos da violência na mídia19 (texto 8); principais teorias sobre prevenção da violência cometida por jovens e os principais fatores de risco20 (texto 9); êxitos e limites de experiências nacionais na prevenção da violência21 (texto 10); redes de prevenção e de proteção a pessoas em situação de violência22 (texto 11) - Tabela 1 com a caracterização dos artigos pesquisados. A diversidade de temas e objetos de estu- dos encontrada nos artigos mostra a comple- xidade da temática da violência, em termos de suas modalidades de expressão, aspectos psicos- sociais envolvidos, e desdobramentos nos mais diversos âmbitos da sociedade – relações fami- liares, comunidade, escola, serviços de saúde e espaços urbanos. o fato de áreas diversas de conhecimento se dedicarem ao estudo da vio- lência é um dado positivo, uma vez que atesta o caráter transdisciplinar do assunto e a necessida- de de um trabalho multiprofi ssional. Por outro lado, percebe-se que há mais produções científi - cas em revistas de áreas profi ssionais específi cas (enfermagem, medicina e psicologia, por exem-plo) do que na área de saúde coletiva. > > 49Alves e Rosa PREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde Constata-se, também, que a produção é ainda bastante concentrada e localizada em al- guns grupos de pesquisa, instituições e estados. Boa parte dos textos (quatro) é do mesmo gru- po de pesquisa, e a maioria (oito) se concentra num só estado brasileiro, o que sugere que é necessário incrementar a pesquisa sobre a temá- tica da violência em outras regiões do país. Sobre o gênero de pesquisa, verifi ca-se que quase a metade dos estudos não trata de inves- tigações diretas sobre a realidade, mas de revi- sões de literatura, o que pode estar indicando, por um lado, a necessidade de se identifi car e produzir teorias que sustentem as práticas em relação ao objeto da pesquisa – violência -, e de buscar respostas para o problema. Por outro lado, deve-se considerar que o fato de só a me- tade dos estudos tratar de investigações sobre a realidade também pode indicar que realmente existem ainda poucas iniciativas de intervenção nesta área. Concepções de violência e de adolescência Analisando-se o conteúdo dos enunciados sobre a violência nos artigos pesquisados, obser- va-se que são mencionados pelo menos oito clas- sifi cações de violência quanto à sua forma de ma- nifestação ou ao local de ocorrência (Tabela 2). Tabela 1. Caracterização dos artigos pesquisados Características Frequência/Textos Áreas de Conhecimento Saúde Coletiva 4 (1, 9, 10 e 11) Áreas Profissionais Específicas 6 (2, 3, 4, 5, 6 e 7) interdisciplinar 1 (8) Origem dos Trabalhos Rio de Janeiro 8 (1, 3, 4, 5, 8, 9, 10 e 11) Rio grande do Sul 2 (2 e 6) distrito Federal 1 (7) Instituições Realizadoras* Universidade Pública 5 (1, 2, 4, 5 e 6) instituição Filantrópica de Ensino Superior 2 (6 e 7) organização Não governamental 1 (3) órgão Estadual de Saúde 1 (4) Centro de Pesquisa Vinculado ao Ministério da Saúde 4 (8, 9, 10 e 11) Gênero da Pesquisa debate Teórico 1 (1) Pesquisa Teórica 4 (3, 4, 5 e 9) Pesquisa de Campo 6 (2, 6, 7, 8, 10 e 11) Sujeitos das Pesquisas de Campo Adolescentes e Jovens 4 (2, 6, 7 e 8) Profissionais que desenvolvem ações ligadas ao enfrentamento da violência 2 (10 e 11) Como os textos 4 e 6 são de autoria de mais de um tipo de instituição realizadora, a soma dos textos por instituição na tabela é 13 e não 11. 50 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 Em três dos artigos pesquisados, encontra- -se explicitada a concepção de violência adota- da, conforme os trechos a seguir: “O presente estudo considera a violência como um fenômeno social complexo, [...] e considera-se que não ocorre um ato denominado violência, e, sim, violências, as quais confi guram-se em expressões da exacerbação de confl itos sociais.” (texto 2) “O comportamento violento [...] resulta da intera- ção entre o desenvolvimento individual e os con- textos sociais, como a família, a escola e a comu- nidade.” (texto 3) “É um tema que abarca fenômenos das esferas so- cial, política e econômica, repercutindo diretamen- te na qualidade de vida da população.” (texto 4) Nas concepções citadas, há consenso sobre o caráter multideterminado e complexo da vio- lência, estando ela vinculada a aspectos sociais, políticos, econômicos e aos contextos ecológi- cos dos indivíduos (família, escola, comunida- de). A violência é vista também como expressão de tensões sociais e desequilíbrio de poder entre indivíduos ou grupos. A diversidade de classifi cações da violência expressa nos artigos consultados remete ao de- safi o de atuar em diversas frentes e em diversos locais onde ela se manifesta. Não se trata ape- nas de atentar para a violência física, a sexual e a psicológica; é necessário ampliar o olhar para as diversas formas de manifestação da violência, muitas vezes sutis, como é o caso da violência simbólica, que não se traduz em ações concretas, mas oprime, na medida em que regula a maneira das pessoas se relacionarem e agirem em relação ao social. Analisar as concepções de violência pre- sentes nos artigos é de fundamental importância em termos éticos e políticos, pois é a partir desta concepção que práticas serão estruturadas. Tabela 2. Tipos de violência citados nos artigos Tipo de Violência Descrição Frequência/Textos difusa Presente em todos os lugares e permeia as relações, o que acarreta medo permanente. 1 (2) Social Privação de direitos e de cidadania. 1 (2) Escolar Comportamentos agressivos antissociais, conflitos interpessoais, danos ao patrimônio e atos criminosos que se dão no ambiente escolar. 2 (3 e 5) Urbana Fora do ambiente familiar, entre indivíduos que não possuem laços de intimidade. 1 (4) Simbólica Produção de crenças que integram o processo de socialização, que induzem o indivíduo a avaliar o mundo seguindo padrões e normas de um determinado discurso dominante. 1 (8) Autoinfligida Suicídio e automutilação. 1 (8) interpessoal Violência familiar e comunitária (violência juvenil, institucional e atos de violência). 2 (8 e 9) Coletiva Violência de um grupo contra outro para alcançar objetivos políticos, econômicos e sociais. 1 (8) Não especificada os artigos não especificam de qual tipo de violência estão tratando. A violência é tratada de modo geral. 6 (1, 5, 6, 7, 10, 11) 51Alves e Rosa PREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde As ideias sobre adolescência aparecem em três dos 11 artigos pesquisados, e vão em duas direções distintas. Numa primeira direção, ex- pressa em um dos textos (texto 4), está a ideia de que a juventude possui características natu- rais, como mostra o trecho a seguir: “Características inerentes aos jovens, como a im- pulsividade, a necessidade de experimentação e a sensação de invulnerabilidade, os tornam ainda mais suscetíveis.” Na direção oposta, encontra-se em dois dos textos pesquisados (textos 2 e 7) a ideia de adolescência/juventude como uma etapa do desenvolvimento que se constitui num processo em que dimensões psicossociais, historicamen- te situadas, interagem com o biológico para a construção da identidade e da ação do jovem/ adolescente, no qual as relações sociais são de- terminantes3. Pode-se observar esta ideia nos trechos abaixo: “[...] buscou-se compreender aspectos relaciona- dos ao cotidiano dos jovens, considerando que as experiências são construídas nas diferentes vivên- cias, relações e interações sociais mediadas pelas individualidades e situação social em que estão inseridos.” (texto 2) “[...] a cronologia entre 10 e 20 anos não delimi- ta a adolescência, mas, permite as refl exões sobre as dimensões bio-psico-sociais que interagem na construção da identidade e da ação adolescente no mundo contemporâneo [...].” (texto 7) Esta primeira concepção de adolescência tem como pressuposto subjacente a existência de um parâmetro universal, segundo o qual se defi ne a adolescência e a juventude como algo natural, que não varia. Já a segunda concepção expressa a ideia de adolescência como cons- trução sócio-histórica, na qual fatores macros- sociais, dispositivos institucionais e a biografi a do adolescente interagem para conformar um determinado modo específi co de seradolescen- te, que varia conforme a cultura e o momento histórico em questão. do ponto de vista das ações em saúde, considerar que este período de vida tem ca- racterísticas universais, o que signifi ca pensar intervenções que se pretendem válidas para qualquer grupo em qualquer contexto. Por ou- tro lado, pensar a adolescência como processo sócio-histórico implica a necessidade de se com- preender quais são os modos de ser adolescente que estão em funcionamento no território de intervenção, para, então, se construírem inter- venções mais efetivas. Uma abordagem interessante que vai nes- sa direção é aquela que trabalha com a noção de vulnerabilidade, que busca analisar os ele- mentos referentes aos determinantes estrutu- rais de exposição ao risco e às condições que as pessoas, os grupos e as comunidades possuem para se protegerem23, o que permite particula- rizar as situações dos indivíduos em relação ao risco e compreender que, embora a epidemio- logia identifi que categorias gerais para a ex- posição ao risco, há variáveis da biografi a e do contexto das pessoas que determinam a forma dessa exposição. Determinantes da violência A literatura consultada mostra um conjunto bastante diversifi cado de aspectos que estariam relacionados à ocorrência da violência (cometi- da e/ou sofrida) entre adolescentes, conforme mostra a Tabela 3. Ao serem examinados os aspectos citados nos artigos pesquisados como determinantes relacionados à violência, verifi ca-se uma corres- pondência com as concepções tanto da oMS quanto do MS em relação à gênese da violência, pois o MS defende que a violência se associa a determinados tipos de estruturas sociais, econô- micas e políticas4, e a oMS utiliza um modelo ecológico para mostrar que a violência é resulta- do da interação de diversos fatores5 o modelo ecológico da oMS ajuda a compreender e classifi car a diversidade dos fatores envolvidos com a violência, como se pode observar na Tabela 3. É possível perceber 52 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 que o quarto nível de fatores causais é o que mais aparece (15 vezes) na literatura, mostran- do o peso da cultura e das políticas públicas. Entre outras coisas, este dado mostra, no to- cante à cultura, que nas intervenções em saú- de é muito importante, do ponto de vista da efi cácia da intervenção, que se trabalhe com as normas, valores e atitudes das famílias e pes- soas com relação à violência, promovendo, por exemplo, a refl exão sobre a presença de postu- ras violentas nas relações familiares como algo normal e aceitável. o primeiro nível de fatores também é men- cionado de forma signifi cativa (10 vezes), o que indica a necessidade de compreender de manei- ra aprofundada a biografi a e a subjetividade dos indivíduos para se obter pistas sobre que tipo de cuidado é necessário promover em cada caso. Se for considerada a frequência de cada item da Tabela 3 isoladamente, percebe-se que as relações familiares constituem-se num fator de risco ou proteção preponderante na violên- cia, o que leva a concluir sobre a necessidade de se investir no cuidado com a família. Tabela 3. determinantes da violência identificados nos artigos pesquisados, classificados segundo modelo ecológico da oMS Nível de Análise/ Modelo Ecológico Determinante Frequência/ Textos Primeiro Nível Características Pessoais Características biológicas (sexo, idade). 4 (2, 4, 6 e 9) Comportamentos/biografia (intolerância a frustrações, impulsividade, sensação de invulnerabilidade, baixa autoestima). 3 (4, 6 e 9) Abuso de drogas 3 (4, 7 e 9) Segundo Nível Relações Sociais Próximas Qualidade das relações familiares (ausência de diálogo, dificuldades de lidar com conflitos, presença de violência) e ausência de disciplina e supervisão por parte dos pais em relação aos filhos. 6 (2, 4, 6, 7, 8 e 9) Convívio com grupos envolvidos com criminalidade. 1 (4) Terceiro Nível Contexto Comunitário oportunidades escassas de realizar atividades em grupo, falta de oportunidades de lazer e isolamento social. 2 (2 e 4) Fragilidade dos vínculos com a escola (falta de motivação e de sentido, ausência de diálogo) e evasão escolar. 3 (2, 4 e 9) Relações conflituosas e desrespeitosas com vizinhos. 2 (2 e 7) Quarto Nível Normas e atitudes favoráveis à violência e Políticas Públicas que mantêm desigualdades econômicas e sociais Banalização e exposição à violência na mídia associadas à falta de reflexão adequada sobre as consequências da violência. 2 (4 e 8) Ausência de políticas públicas, de proteção social e negação de direitos de cidadania. 3 (1, 2 e 8) desigualdade social, condições sócio-econômicas ruins da família, falta de acesso a bens de consumo e serviços. 5 (2, 4, 7, 8 e 9) Modos de vida característicos das grandes cidades (falta de tempo, aglomeração, dificuldade de contatos afetivos, competição); cultura (papéis de gênero, preconceitos), processo de socialização no qual a violência é padrão de relacionamento ou forma de resolução de conflitos. 5 (4, 6, 7, 8 e 9) 53Alves e Rosa PREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde Sobre este aspecto, pode-se dizer que a ESF é um dos meios de atuação profi ssional com mais possibilidade de trabalhar as relações fami- liares e o desenvolvimento de comportamentos favoráveis à saúde e contrários à violência. Tendo em vista que a lógica da ESF tem como foco exatamente este grupo social e que possui grande inserção na comunidade e acesso privilegiado às famílias, o setor da saúde pode contribuir de forma signifi cativa atuando, por exemplo, na promoção da boa convivência e do fortalecimento dos vínculos familiares. o modelo ecológico proposto pela oMS pressupõe que não há um fator mais determi- nante que outro, e sim uma dinâmica na qual eles interagem na produção da violência. No entanto, a partir da identifi cação e classifi cação desses fatores, esse modelo ajuda a refl etir so- bre os níveis de intervenção e as propostas mais adequadas para cada um deles, além de auxiliar na priorização dos problemas. Intervenções e princípios de ação na prevenção da violência Quanto à natureza das ações propostas e/ ou desenvolvidas presentes nos artigos pesqui- sados, verifi ca-se que as proposições se dirigem aos mais diversos focos de atuação, abrangendo os três níveis de prevenção, como mostrado na Tabela 4. Tabela 4. intervenções propostas, classificadas segundo os três níveis de prevenção Foco da Intervenção Descrição Nível de Prevenção Frequência/ TextosPrimária Secundária Terciária Foco nos Profissionais Sensibilização para o enfrentamento da violência; concepção ampliada do problema, compreendendo-o em sua multicausalidade; e capacitação técnica para intervir. X X X 7 (1, 3, 4, 5, 9, 10 e 11 Foco na intersetorialidade Construção de rede de cuidados, intervenções interdisciplinares e participação social. X X X 6 (1, 3, 4, 5, 9 e 11) Foco no Processo de Trabalho Estratégia de acolhimento adequada para garantir o acesso, construir vínculos, e identificar queixas e situações de vulnerabilidade; e notificação de casos de violência. X X 8 (1, 2, 3, 4, 5, 9, 10 e 11) Foco na investigação da Problemática Compreender experiências dos adolescentes e o contexto onde vivem; analisar situações deviolência em seus aspectos determinantes; compreender como os adolescentes representam a violência; e montar sistemas de informações. X 6 (2, 3, 5, 7, 8 e 11) 54 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 Foco da Intervenção Descrição Nível de Prevenção Frequência/ TextosPrimária Secundária Terciária Foco na Família Promoção de vínculos saudáveis e de boa convivência, baseados em diálogo, resolução de problemas por meios não violentos e presença de regras disciplinares. X X 6 (3, 4, 7, 8, 9 e 10) Foco na Preparação para o Trabalho Promoção de formação técnica dos adolescentes para inserção no mercado de trabalho; e construção de perspectivas positivas de futuro. X X 4 (1, 2, 9 e 10) Foco em Atividades Culturais, de Esportes e Lazer Promoção de atividades culturais, de esportes e lazer. X X 1 (5) Foco no Atendimento às Vítimas e Autores intervenção precoce nas vítimas (suporte, orientações) e agressores (desenvolvimento de habilidades comportamentais, reabilitação e supervisão). X X 4 (3, 9, 10 e 11) Foco na Polícia Policiamento para evitar os crimes. X 1 (9) Foco no trabalho educativo, incluindo o empowerment Reflexão sobre a violência; promoção do desenvolvimento de competências sociais, hábitos saudáveis e autoestima; informações sobre direitos e deveres; conquista da cidadania. X X 7 (3, 4, 5, 8, 9, 10 e 11) Foco na Cultura (normas, valores, atitudes) Fomentar nos contextos comunitários a boa convivência, promovendo a cultura da paz, que inclui respeito à diversidade e às normas sociais, à negação do uso da violência como forma de se relacionar e de resolver problemas, e à solidariedade. X 7 (3, 5, 7, 8, 9, 10 e 11) Foco no Protagonismo Juvenil Promover a participação ativa dos adolescentes nos contextos comunitários, capacitá-los para serem agentes multiplicadores da cultura da paz. X 4 (3, 5, 9 e 11) Foco na Promoção da Qualidade de Vida em geral diminuição das desigualdades; elaboração de políticas públicas que promovam o bem-estar da sociedade em geral. X 3 (6, 7 e 9) Tabela 4 (continuação) 55Alves e Rosa PREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde É interessante notar que os artigos pesqui- sados chamam a atenção para a necessidade de mudanças na postura do profi ssional e no próprio processo de trabalho, na medida em que consideram como importante a sensibili- zação e a capacitação do profi ssional para li- dar com as questões relacionadas à violência, como também a necessidade de se estruturar um acolhimento que seja capaz de captar as necessidades de saúde dos adolescentes e seja bastante sensível para reconhecer a presença de fatores de risco e vulnerabilidades presentes nas demandas atendidas. A quantidade de artigos que falam de ações voltadas para os profi ssionais (sete artigos) e para a reconfi guração do processo de trabalho (oito artigos) demonstra, no caso do setor da saúde, como a violência ainda é tema marginal (ou marginalizado) nos serviços. A sensibilização e a capacitação dos profi s- sionais é condição primeira para se incorporar a violência como problema a ser enfrentado pelas equipes de saúde da família, e para que se co- mece a discutir os casos existentes no território, se façam as alianças intersetoriais necessárias e se elaborem os projetos de cuidados. Quanto ao processo de trabalho, observa- -se a importância de um acolhimento adequado nos serviços. Promover a escuta qualifi cada, ten- tando captar aspectos que vão além da queixa manifesta, pode constituir-se em instrumento poderoso para a detecção precoce de situações de violência intrafamiliar ou de risco social12. Neste aspecto, é fundamental estabelecer um bom vínculo e qualifi car o tempo das consul- tas, das visitas domiciliares e dos demais pro- cedimentos, principalmente em se tratando do adolescente, que tradicionalmente é um usuário difícil de captar pelos serviços de saúde, e que necessita de um tipo de abordagem diferencia- do, tendo em vista as características deste perío- do do desenvolvimento. Mattos12 salienta que, enquanto estes as- pectos não forem trabalhados nos serviços de saúde, é possível que se capte este adolescente tardiamente, apenas quando ele já tiver se en- volvido em alguma situação de violência, e ape- nas para reparar os danos daí advindos. outra questão importante observada nos resultados, citada em seis artigos, é a necessi- dade de se trabalhar a partir do conhecimento da realidade. Partir de informações sobre o con- texto comunitário e as relações cotidianas dos adolescentes, assim como conhecer a cultura e as representações existentes acerca da violência, é a base para a construção de estratégias de in- tervenção mais efi cazes. Também é importante a estruturação de sistemas de informação sobre a ocorrência de situações de violência, para que os profi ssionais conheçam a situação e tenham mais condições de planejar e priorizar as famílias a serem tra- balhadas. Estes fatores caminham juntos com a questão da intersetorialidade, que se efetiva a partir do compartilhamento destes conheci- mentos sobre a realidade e da elaboração con- junta de um projeto de cuidados, que inclua a assistência às vítimas e, principalmente, a pre- venção da ocorrência da violência. outros dois fatores que são mencionados nos textos (em sete artigos), e que estão inter- ligados, são as atividades de educação e em- powerment e o fomento aos princípios contidos na chamada cultura da paz. As atividades edu- cativas em torno do tema da violência apresen- tam-se, de acordo com os resultados, em duas direções complementares. Numa primeira dire- ção, o foco é construir conhecimentos a partir do fornecimento de informações. Por um lado, estas informações têm o intuito de promover a refl exão sobre a violência, desnaturalizando-a e compreendendo seus efeitos. Por outro lado, trabalham-se informações sobre os direitos e deveres das pessoas com a fi nalidade de instru- mentalizá-las a conquistarem sua cidadania e garantirem os recursos necessários ao seu pleno desenvolvimento. Em última instância, trata-se de “empode- rar” os sujeitos e diminuir sua vulnerabilidade frente a situações de violência. Esta noção de 56 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 “empoderamento”, ou empowerment, constitui- -se como um dos cinco campos centrais de atua- ção da promoção da saúde, e diz respeito exa- tamente a aumentar a capacidade das pessoas e das comunidades para alcançar um nível maior de saúde, a partir do acesso à informação sobre o que é necessário para se conquistar os recursos para isso24. gomes et al.21 auxiliam a pensar sobre a importância do “empoderamento” no tocante ao enfrentamento da violência ao salientarem (...) a importância do conhecimento sobre direitos e deveres como o patamar básico das relações hu- manas e da busca de igualdade, o que, na reali- dade, constitui o cerne da prevenção à violência, quando se sabe que a violência é o não-reconheci- mento do outro em grau de igualdade. As atividades educativas identifi cadas nos textos também se direcionampara o desenvol- vimento de habilidades e competências pessoais necessárias para o estabelecimento de relações mais saudáveis e não violentas e que, ao lado da melhoria da autoestima, diminuem a vulnerabi- lidade dos sujeitos21. o desenvolvimento de ati- tudes e de habilidades mais favoráveis à saúde é também um dos componentes da promoção da saúde, e por isso é fundamental ser trabalhado. Sobre este ponto é interessante fazer men- ção à abordagem baseada no desenvolvimento da resiliência, que tem como foco a pessoa, a fa- mília, a escola e a comunidade, e dá ênfase aos fatores positivos que possibilitam ao sujeito supe- rar as adversidades, por meio do desenvolvimen- to e fortalecimento de habilidades pessoais25. A promoção da cultura da paz, que está interligada às atividades de educação, se torna estratégia fundamental na prevenção da vio- lência se for considerado, seguindo o raciocínio de Minayo e Souza26, que os confl itos interpes- soais que culminam em situações de violência estão associados a relações sociais alicerçadas no uso de violência como padrão de compor- tamento, na falta de tolerância ao outro, na falta de diálogo na resolução de problemas e na desvalorização da vida, valores estes social- mente arraigados que acabam por favorecer a emergência da violência. Aliada a esta estratégia de promoção da cultura da paz, é importante pensar também na promoção do protagonismo juvenil, que foi citado em quatro dos artigos pesquisados, e que vem sendo discutido como importante estratégia de prevenção da violência. Ao tratar do protagonismo juvenil, Milani27 discorda da abordagem tradicional segundo a qual o ado- lescente assume apenas os papéis de vítima, perpetrador e testemunha em relação à violên- cia, e propõe ‘agente da paz’ como um quarto papel que o adolescente pode assumir, o qual consiste na construção de uma postura ativa no exercício de cidadania e nas práticas cotidianas, transformando a cultura adultocêntrica hege- mônica na sociedade. Nas práticas cotidianas, trabalhar o protagonismo juvenil, para este autor, signifi ca promover, nos diversos espaços comunitários ou nas diversas estratégias de in- tervenção, a ampla participação dos jovens no planejamento e na condução de ações, diretri- zes e normas sociais, favorecendo o diálogo e a troca dos adultos com os jovens. os resultados apresentados na Tabela 4 revelam também uma signifi cativa quantida- de de artigos (seis) que propõem intervenções com foco na família, objetivando a promoção de relações saudáveis e fortalecimento dos vín- culos familiares. A este respeito, Milani27 ressalta o importante papel da família como espaço de mediação privilegiado, e defende que, a longo prazo, o investimento em programas e projetos de orientação e aprimoramento da paternidade e da maternidade pode ter um signifi cativo im- pacto na prevenção da violência. Na mesma linha de pensamento, Assis et al.25 salientam que variáveis familiares como suporte, segurança, supervisão e bom relacio- namento com os pais são apontados por estu- diosos como fatores de proteção em crianças e adolescentes resilientes. Para estes autores, os profi ssionais que integram as equipes de saúde da família podem contribuir muito para a cons- 57Alves e Rosa PREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde trução e fortalecimento destes fatores de prote- ção nos atendimentos individuais, familiares ou coletivos, por meio de atividades de aconselha- mento e orientação aos pais, contribuindo desta maneira para a formação de crianças e adoles- centes saudáveis. É importante salientar que as estratégias de prevenção apresentadas nos artigos consultados são, em sua grande maioria, propostas de pre- venção primária, ou seja, ações que se propõem agir antes que o problema ocorra. Além disso, as propostas dão mais ênfase à promoção da saú- de do que à proteção contra riscos específi cos, o que signifi ca priorizar ações que melhorem o nível de saúde, promovendo relações saudáveis e capacitando os sujeitos a conquistarem os re- cursos necessários ao seu desenvolvimento. Impasses, difi culdades e desafi os para a prevenção da violência dos 11 artigos pesquisados, nove fazem uma refl exão sobre os impasses, difi culdades e desafi os presentes na esfera da prevenção da violência, que dizem respeito basicamente a cinco gêneros de problemas, conforme mostra a Tabela 5. Tabela 5 – impasses, dificuldades e desafios para a prevenção da violência identificados nos artigos Dificuldades apontadas nos artigos Descrição Frequência/ Textos Falta de Priorização da Prevenção opção política pelo uso da repressão como forma de enfrentamento da violência. 5 (1, 3, 9, 10 e 11) Poucas iniciativas de prevenção ou precariedade das ações. Poucos recursos financeiros para ações de prevenção e infraestrutura deficiente. Priorização do atendimento às vítimas de violência em detrimento de ações de prevenção no setor saúde. desarticulação e isolamento das instituições Falta de articulação entre as instituições que trabalham com esta problemática. 3 (2, 10 e 11)dificuldades de aproximação com as famílias. Falta de vínculo entre os jovens e o setor saúde. deficiências Técnicas Falta de sistematização dos conhecimentos e das ações nas instituições. 3 (4, 10 e 11) Falta de preparo do profissional. Pouca Produção de Conhecimentos sobre a Violência Poucos estudos sobre fatores de risco ligados à violência, sobre impactos da mídia, e outros. 4 (6, 8, 10 e 11) deficiência no registro e falta de sistematização dos dados, impedindo análises epidemiológicas mais consistentes. Não realização de avaliações sobre eficácia dos programas e projetos de prevenção da violência. diversidade e Amplitude dos Fatores de Risco A diversidade e a amplitude dos fatores de risco dificultam a elaboração de políticas públicas abrangentes. 1 (1) 58 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 observando os resultados da Tabela 5, é possível perceber que ainda persiste a visão de que lidar com a problemática da violência é re- parar seus danos, seja enfatizando, no caso dos autores de violência, a repressão ou punição, seja, no caso das vítimas ou testemunhas, pres- tando assistência para eliminar ou atenuar as consequências físicas, psicológicas e sociais de- correntes de eventos violentos. dessa forma, se procede a uma verdadeira “medicalização” da violência, na medida em que se atua nos sinto- mas e não se intervém nas causas do problema. identifi car estas causas é fundamental. No entanto, o que se observa, baseado nos dados da Tabela 5, é uma carência muito grande de produção de conhecimentos que deem susten- tação a projetos voltados para a eliminação das causas (o que seria uma estratégia de proteção específi ca contra riscos particulares), e para o fortalecimento e desenvolvimento de fatores que aumentem os recursos para lidar com es- tes riscos (o que se constituiria em proposta de promoção da saúde). Em última instância, é possível perceber que todos estes problemas assinalados nos arti- gos estão interligados e o cerne desta questão é o fato de não se priorizar a prevenção, seja por um entendimento equivocado do tema, seja por uma questão ético-política. CONCLUSÃO os dados encontrados neste estudo mos- tram, conforme já havia sido evidenciado por alguns autores, que a violênciaainda é um tema de refl exão e intervenção muito incipiente no setor da saúde, e que ainda não é devidamen- te priorizado. Ao lado disso, os resultados deste estudo corroboram a necessidade de desenca- dear a discussão com as equipes sobre o tema ‘violência’, para promover a compreensão deste fenômeno e de suas implicações na saúde, al- cançando-se, desse modo, a sensibilização para o problema e a capacitação para intervir. Neste processo de capacitação e sensibili- zação, a discussão sobre o acolhimento merece destaque, uma vez que uma boa estratégia de acolhimento é capaz de criar um bom vínculo e detectar precocemente situações de violência ou de risco, como foi mostrado nos resultados. o acesso a informação é essencial neste processo, e a epidemiologia é um instrumento valioso para isso. os resultados mostraram que é necessário um maior investimento em estudos e pesquisas sobre o tema, e ainda observou-se a importância de se estruturar um sistema de in- formações para conhecer a realidade e subsidiar o planejamento. o estudo também evidenciou os determi- nantes múltiplos, as diferentes formas de ma- nifestação, e os diferentes locais de ocorrência da violência, o que, por sua vez, demonstra a necessidade de construção de ações interseto- riais e interdisciplinares como via privilegiada de enfrentamento do problema. As mudanças cul- turais e subjetivas devem ser o objetivo central e o eixo norteador de todas as ações desenvol- vidas, tendo em vista que a pesquisa apontou a promoção da cidadania e a mudança de valores e atitudes como algumas das formas mais defen- didas de enfrentamento da violência. Por fi m, é importante ressaltar que os da- dos apontaram a família como um dos princi- pais focos de ação na prevenção da violência. Neste sentido, a ESF tem um potencial muito grande de ação em termos de trabalhar o for- talecimento dos vínculos familiares em ações já estruturadas no serviço como, por exemplo, no acompanhamento de gestantes ou nas ações de puericultura, que podem ser trabalhadas tanto durante as consultas, quanto nas visitas domici- liares e em ações coletivas, envolvendo os diver- sos profi ssionais com seus saberes específi cos. Também no momento em que se identifi quem famílias de risco para a ocorrência da violência é oportuno intervir nesta direção. Considerando que a ESF tem como foco de ação a família, e que a reorientação do modelo de atenção à saúde – do qual esta estratégia é o pilar > 59Alves e Rosa PREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013Adolescência & Saúde – implica a priorização de ações de prevenção e promoção da saúde, é importante investir no seu potencial como dispositivo fundamental na dina- mização da inclusão da violência como objeto de intervenção da saúde, questão esta que, como foi observado, já não pode mais esperar. REFERÊNCIAS 1. Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Marco legal: saúde, um direito de adolescentes. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. 3. Bock AM. A adolescência como construção social: estudo sobre livros destinados a pais e educadores. Psicol Esc Educ. 2007;11(1):63-76. 4. Brasil. Ministério da Saúde. diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. 5. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Violência: um problema mundial de saúde pública. In: Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2002 [citado 2011 Jan 12]. Capítulo 1. p. 1-22. Disponível em: http:// www.opas.org.br/cedoc/hpp/ml03/0329.pdf. 6. Minayo MC. A inclusão da violência na agenda da saúde: trajetória histórica. Cien Saude Colet. 2006;11(Supl1):1259-67. 7. Minayo MC, Lima CA. Filosofi a e práxis da proteção integral: o feito e o por fazer sob o olhar da saúde. in: Lima CA, organizador. Violência faz mal à saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. p. 249-255. 8. Viana AL, dal Poz MR. A reforma do sistema de saúde no Brasil e o programa de saúde da família. Physis. 2005;15(Supl):225-64. 9. oliveira CM, Casanova Ao. Vigilância da saúde no espaço de práticas da atenção básica. Cien Saude Colet. 2009;14(3): 929-36. 10. Souza MT, Silva Md, Carvalho R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein. 2010;8(1):102-6. 11. Minayo MC. Fase de análise ou tratamento do material. in: Minayo MC. o desafi o do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2000. Capítulo 4. p. 197-248. 12. Mattos HF. obstáculos aos programas de promoção da saúde e prevenção dos danos da violência entre adolescentes. Cien Saude Colet. 2007;12(5):1112-5. 13. Cocco M, Lopes MJ. Violência entre jovens: dinâmicas sociais e situações de vulnerabilidade. Rev gaucha Enferm. 2010;31(1):151-9. 14. Neto AA. Bullying comportamento agressivo entre estudantes. J Pediatr. 2005;81(5 Sup l):164-72. 15. Phebo L, Moura AT. Violência urbana: um desafi o para o pediatra. J Pediatr. 2005;81(5 Supl):189-96. 16. Liberal EF, Aires RT, Aires MT, osorio AC. Escola segura. J Pediatr. 2005;81(5 Supl):155-63. 17. Camara Sg, Sarriera JC, Carlotto MS. Fatores associados a condutas de enfrentamento violento entre adolescentes escolares. Estud Psicol.2007;12(3):213-9. 18. Brasil KT, Alves PB, Amparo dM, Frajorge KC. Fatores de risco na adolescência: discutindo dados do dF. Paidéia. 2006;16(35):377-84. 19. Njaine K. Sentidos da violência ou a violência sem sentido: o olhar dos adolescentes sobre a mídia. interface. 2006;10(20):381-92. > 60 Alves e RosaPREVENÇÃo dA VioLÊNCiA NA AdoLESCÊNCiA: PRoPoSTAS EXiSTENTES No BRASiL E AS PoSSiBiLidAdES dE ATUAÇÃo NA SAÚdE PÚBLiCA Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 45-60, jul/set 2013 20. Assis Sg, Constantino P. Perspectivas de prevenção da infração juvenil masculina. Cien Saude Colet. 2005;10(1):81-90. 21. gomes R, Minayo MC, Assis Sg, Njaine K, Schenker M. Êxitos e limites na prevenção da violência: estudo de caso de nove experiências brasileiras. Cien Saude Colet. 2006;11(Supl):1291-302. 22. Njaine K, Assis Sg, gomes R, Minayo MC. Redes de prevenção à violência: da utopia à ação. Cien Saude Colet. 2006;11(Supl):1313-22. 23. Ayres JR, Calazans gJ, França Jr. Vulnerabilidade do adolescente ao HiV/AidS. in: Vieira EM, Fernandes ME, Bailey P, Mckay A, organizadores. gravidez na adolescência. São Paulo: Assoc Saúde da Família; 1999. p. 97-109. 24. Buss PM. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cien Saude Colet. 2000;5(1):163-77. 25. Assis Sg, Pesce RP, Carvalhaes Ro. Resiliência: a ênfase nos fatores positivos. in: Lima CA, organizador. Violência faz mal à saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. p. 257-265. 26. Minayo MC, Souza ER. É possível prevenir a violência? Refl exões a partir do campo da saúde pública. Cien Saude Colet. 1999;4(1):7-32. 27. Milani FM. Adolescentes: de vítimas da violência a protagonistas da paz. in: Lima CA, organizador. Violência faz mal à saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. p. 267-279.
Compartilhar