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o objeto de amor e cuidado "a simulacros de objetos sem vida e brinquedos mecânicos".22 Com efeito, o objeto do amor com certeza não "se poria no caminho do meu amor" ... Em sua busca de perfeição (perfeição de seu amor, que projetam como a perfeição da- queles que eles amam), os amantes tendem a se converterem em jardineiros-artistas, e seus parceiros em jardins onde se desenvolve 21 Gyõrgy Lukács, "The foundering of form against life", em Soul and form, MIT Press, Cambridge, Mass., 1974, p. 34. Enquanto o relacionamento permanece vivo, escreve Lukács, "ora um está certo, ora o outro; ora é um que é melhor, mais nobre, mais belo, ora o outro". Enquanto, porém, essa gangorra continua balançando, o objeto do amor mantém-se no cami- nho do amor... 22 Yi-Fu Tuan, Dominance and affection: The making ofpets, Yale University Press, New Haven, 1984, pp.1-5. 113 sua arte. E na continuidade suave dos passos, é difícil saber onde parar de vociferar ... A íntima dialética de amor e dominação já foi notada há um século por Max Scheler. Agape (contraposto a Eros, nunca verdadei- ramente "imotivado"23 porque sempre tingido pelo pecado de concu- piscência) é o ideal cristão do amor. O amor de Deus é o modelo per- feito pelo qual se devem medir imitações humanas inadequadas: mas Deus é onipotente. Ele com certeza não ama "visando a um fim" - para obter para si algo que antes não tivesse possuído. O seu amor, agape, é doador de tudo e não tomador, e assim deve ser todo amor que tenta imitar o exemplo de Cristo. Sendo assim, o "amor é renún- cia livre da própria abundância vital", manifestação do senso de se- gurança, completude, força, plenitude de poder. No ato de amor, "o nobre condescende com o vulgar, o saudável com o doente, o rico com o pobre, o bonito com o feio, o bom e santo com o mau e comum, o Messias com os pecadores e publicanos".24 Scheler escreveu sua vi- são de agape em resposta a Nietzsche, que pintou em preto infernal o que em Scheler brilha com brancura angélica: para Nietzsche (veja- se especialmente seu Anticristo), agape não passava de opressão nascida e alimentada pelo ressentimento, rancor e despeito surgidos pela vista da diferença resoluta e confiante de si. Se Scheler, porém, estivesse querendo pensar através de seu próprio retrato, manifes- tamente antinietzscheano, do amor, não encontraria muita coisa para discutir. "Condescender com" o fraco, da parte do forte confiante em si, é no fim o ato de nascimento da dominação e hierarquia: a refun- dição da diferença em inferioridade. A noção de agape de Scheler, como a de Nietzsche, está desde o começo tingida de complacência ê condescendência, só que da maneira dúplice e autofalaz que Nietzs- che tentou desmascarar asperamente. Má saúde é o normal do amor. Como os amantes mesmos, o amor morre em função de sua mortalidade "pré-programada", e não em função de doenças contingentes, evitáveis em princípio. A morte do amor é o produto das atividades da vida de amor. Cada u !' Cfj ^ ^l Nygren, Agape and Eros, Westminster Press, Filadélfia, 1953, p. 75. Amor motivado , diz Nygren, é humano; amor espontâneo e "imotivado" é divino. Mas é tarefa dos Humanos lutar para soerguer seu amor ao padrão divino. Max Scheler, Ressentiment, Free Press, Nova York, 1961, pp. 86-88. 0 amor é "essencial- é " deSCÍda " ao fraco> descida 4ue "nasce de espontânea superabundân- 114 ser curável - mas a cura não passa de subterfúgio que é outra doen- ça. Um distúrbio quejião se pode curar é a ambivalência, a essência do amor.^Sfãstê-se essã^inb^aênciãT^nãò"è^stêmãlsMDãrETnõ" entantoptodos os remédios patenteãdõ^eíícc>melMMõs"pelos peri- tos para os males do amor, tentam fazer precisamente isso. Doenças e remédios e mais doenças do amor Aguilhoado por sua própria ambivalência, o amor é por nature- za inquieto: ímpeto contínuo de ultrapassar e assim transcender o que se~ãlcançou. A tran^celidencíãrnão é da para frente, embora no tempo pareça ser assim; retrospectiva- mente, parece mais semelhante a "fazer tudo o que pode para ficar no mesmo lugar" - uma condição de não se retirar. O amor há de sempre sacar novos suprimentos energéticos para manter-se vivo. Há de reabastecer-se e reafirmar-se cada dia de novo: uma vez acu- mulado, o capital é quase devorado se não for de novo provido.J) amor é, portanto, insegurança inveterada. Admitindo que para a maioria das pessoas insegurança é L _ táveTãlongo termo, pode-se esperar razoavelmente que se busquem duas estratégias: de fixaç^o_e_d^flutuação._ ^FíxãçaõTO esforço para emancipar o relacionamento de senti- mentos erráticos e vacilantes, para assegurar que - aconteça o que aconter com suas emoções - os parceiros continuem a beneficiar-se dos dons do amor: o interesse, o cuidado, a responsabilidade do outro parceiro. Um esforço para alcançar o estado em que se possa conti- nuar recebendo sem dar mais, ou dando não mais do que o padrão estabelecido exige. Flutuação. A recusa de conceder o caráter árduo da tarefa e o duro trabalho implicado. A estratégia de "cortar as próprias perdas", de "não investir dinheiro bom em busca de mau", de desistir de bus- car alhures outra tentativa uma vez que parece que os ganhos caí- ram abaixo do nível das despesas que se precisam para assegurá- los. Nessa estratégia, escapa-se da insegurança mais do que se luta com ela, na esperança de que se possa encontrar a segurança alhu- res a custos mais baixos e com esforço menos oneroso. Ambas as estratégias tiveram (e ainda têm) seus praticantes e seus filósofos. 115 A primeira estratégia, a da fixação, visa de modo geral à substi- tuição de normas e rotinas para o amor, a simpatia e outros senti- mentos considerados demasiado inconfíáveis e custosos para fundar relacionamento seguro. A formulação clássica dessa estratégia foi fornecida por Kant no limiar dos tempos modernos e foi desde então tacitamente aceita como o axioma em que se funda a estratégia da fixação. Na versão de Downie e Talfer, por exemplo, podemos nós passar sem (a simpatia), pois, se devemos crer em Kant, é possí- vel cumprir o dever sem simpatia ... Pode ser possível pôr os movimentos ex- ternos das ações que condizem com o dever sem simpatia ativa.25 Desenvolveu-se a mesma idéia, todavia mais lucidamente, no estudo popular de Francesco Alberoni e Salvatore Veca sobre o al- truísmo moral: Não podemos nos obrigar a amar alguém ... Nossa razão, porém, é capaz de conceber o dever como uma necessidade. Se falta a espontaneidade do senti- mento do amor, a moralidade seria não obstante possível graças à existência do dever. O dever preenche o vazio deixado pelo amor ... Uma vez que não podemos contar com o amor, esse sentimento espontâneo, aceitamos volunta- riamente seu equivalente que tem as mesmas conseqüências práticas. A moralidade força-nos a agir como se estivéssemos no amor. O dever "parece" com o amor.26 O dever substitui o amor, como a rotina confortavelmente fami- liar substitui frenéticos esforços e aventuras. O amor é luta árdua, o dever vai sem esforço - quando praticado consistentemente - conver- 25 R. S. Downie e Elisabeth Talfer, Respect for persons, Allen & Unwin, Londres, 1969, pp. 25-26. Os autores acrescentam, porém, que "o exercício criativo e imaginativo da vida moral" (o que quer que possa significar) "não é possível sem simpatia ativa" (P. 26). "Simpatia ativa" é definida pelos autores, seguindo W. G. Maclagan, como "interesse prático pelos outros", diversamente da "simpatia passiva", que donota somente empatia e identificação emocional. A simpatia que os autores consideram como condição de vida moral "criativa e imaginativa" tem, portanto, o mesmo estatuto ontológico que as normas: ela usa faculdades intelectuais dos agentes morais como seus materiais de construção. 26 Francesco Alberoni e Salvatore Veca, UAltruisme et Ia morale, Ramsay, Paris, 1990, p.