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77. Os autores sugerem que, ao passo que a moralidade do amor é moralidade de alegria, a moralidade do dever é moralidade de esforço (p. 79). Não é isso, porém, o que se sugeriu por nossa própria análise. Talvez se pudesse fazer uma justaposição mais adequada entre esforço contínuo de um lado, e rotina e hábito de outro. Em seu agudo e intuitivo relato do predicamento do amor moderno (Dos ganz normale Chãos der Liebe, Frankfurt am Main, 1990), Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim decla- ram que os conselhos e as terapias do "kit de primeiros socorros doméstico" da moderna racionalidade fazem "parte da doença que pretendem curar"; a espontaneidade que buscam, a ressonância de sentimentos, são contrários à promessa controlada. "Certeza contratual cance- la o que devia tornar possível: o amor" (p. 205). Isso porque a arte simbólica, a capacidade de sedução, a firmeza do amor, todas crescem com sua impossibilidade (p. 9). "O amor", diz Beck, é "comunismo no capitalismo" (p. 232). ter-se em hábito. Fazer o que a rotina exige pode afinal não ser agra- dável. Essa, porém, é uma espécie de não-agradabilidade diferente da causada dia a dia pela incompletude e incerteza crônicas do amor: essa é uma não-agradabilidade que se pode agüentar justamente por seu caráter rotineiro: nada mais assoma no horizonte: não pare- ce haver nenhuma alternativa; poupa-se à pessoa a hesitação an- gustiosa das encruzilhadas. Essa é uma não-agradabilidade tran- qüila, uma não-agradabilidade que gera tristeza mas não instiga à ação. A não-agradabilidade de um cemitério, é-se tentado a dizer. Com efeito, o dever é a morte do amor - de seus esplendores assim como também de seus tormentos ... A passagem seguinte é um belo trecho do primeiro ensaio de Lukács onde se traça o laço fatal entre certeza e morte com toda sua certeza terrível — e mortal: Alguém morreu. E os sobreviventes encaram a penosa questão, para sempre familiar, da eterna distância, do vazio intransponível entre um ser humano e outro. Nada fica em que possam pegar, pois a ilusão de entender a outra pes- soa só se nutre pelos renovados milagres, pelas surpresas antecipadas de cons- tante companheirismo ... Tudo o que uma pessoa pode conhecer sobre outra é só expectação, só potencialidade, só desejo e temor, adquirindo realidade só como resultado do que acontecer mais tarde; e essa realidade também logo se dissolve em potencialidades ... A verdade, a formalidade da morte, é ofuscantemente clara, mais clara que qualquer outra coisa, talvez porque só a morte, com a força cega da verdade, arrebata a solidão dos braços de eventual fechamento — aqueles braços que estão sempre abertos para novo abraço.27 A morte significa que nada mais vai acontecer. Nenhum mila- gre, nenhuma surpresa - nenhum dasapontamento também. A mor- te da pessoa amada é a segurança do amante; agora o amante está livre, real e plenamente livre, sem sequer um "mas", para pintar o retrato da pessoa amada usando sua própria palheta - é somente agora que se atingiu plena e verdadeiramente a liberdade. Mas o que vem de seus pincéis permanecerá para sempre retrato de morto, 27 Gyõrgy Lukács, "The moment and form", em Soul andform, pp. 107-108, 109. Notemos, porém, que o amor é "destinado à morte" também quando evita o namoro com a completude - certamente noresultado desse evitar. "Acondição de todo amor genuíno é o desejo desesperada- mente difícil/de deixar ir, não uma vez mas sempre e sempre de novo: deixar ir os estereótipos e expectativas que ferem o amante e o amado em mutilantes camisas de forças; deixar ir de teu controle, mesmo em certos sentidos de tua pretensão sobre a outra pessoa; deixá-los ser livres para sei/íeles mesmos, e a ti para seres tu mesmo... O caminho do amor é uma série de contratos de pequenas mortes; e a morte física é somente o último deixar-ir" (Gordon Mursell, Out ofthe deep: tàrayer as protest, Darton, Longman & Ibdd, Londres, 1989, pp. 38, 39). 116 117 máscara mortuária. O abraço final, o dois-em-um com que o amor, sendo amor, sempre sonhou e que inspirou todos os seus muitos tra- balhos, finalmente chegou. Mas o momento é a morte, e o lugar, o cemitério. O dever é o ensaio da morte; ensaio rotineiro, repetição diária antes do fato; a vida de hoje colonizada pela morte de amanhã; ten- tativa de roubar a tranqüilidade, a caridade da morte, quando ainda incontaminada por finalidade, a cavilação da morte. Para todos os fins práticos, a pessoa amada está agora morta, e também o amor do amante. Não como um sopro do fado, porém; mas como a última es- tação na peregrinação do amor para a autoperfeição. A"exterioridade" da rotina foi uma tendência "interna" do amor por todo o tempo. Com efeito, foi por ser tal tendência que guardou o amor vivo; uma condição necessária da possibilidade do amor. O amor não pode rea- lizar-se a si mesmo sem fixação, ele permanece inseguro de si mes- mo, insaciado, temeroso e inquieto. É essa inquietude que o faz amor — só que não seria realmente amor se o admitisse e o aceitasse sem opor resistência. Para ser amor, tinha que tomar a fixação (amor para sempre, venha o que vier; para melhor ou pior; até que a morte nos separe) por seu ideal, e assim tratar a sede e a agitação como sinais de sua própria imperfeição. E, no entanto, quanto mais perto chega do ideal, menos sobra dele; o ideal do amor é sua tumba, e o amor pode chegar lá apenas como cadáver. É como se Thánatos ar- rastasse a carruagem de Eros. Talvez essa não seja a ruína só do amor. Parece que o amor par- tilha das conseqüências de seu caráter aporético, da "ambivalên- cia no cerne", com muitas outras intenções, da mesma forma impul- sionadas por um telos que elas podem alcançar somente à custa da vida. Parece que o amor não passa de um caso (provavelmente um dos casos mais espetaculares, românticos e inspiradores) daquele pre- dicamento humano mais geral de que Jean-François Lyotard escre- veu: Despojada de discurso, incapaz de ficar de pé, hesitante acerca dos objetos de seu interesse, inepta para calcular suas vantagens, não sensitiva à razão co- mum, a criança representa eminentemente o humano porque sua penúria anuncia e promete as coisas possíveis.28 28 Cf. Jean-François Lyotard, The inhuman: Reflections on time, Polity Press, Cambridge, 1991, pp. 2-7. 118 •^ _-*•" - sendo assim a humanidade um estado de perpétua infância e uc possibilidade nunca plenamente realizada, embora todos os esforços que marcam a existência humana visem a "amadurecimento", dei- xando para trás essa infância. A humanidade está destinada a im- plementar-se a si mesma no perpétuo esforço de evadir-se de seu predicamento ... Jacques Derrida escreveu da intenciohalidade dos atos lingüís- ticos déTuma maneirarem que caberiam sem mais as peregrinações do smõrfA intenção, diz Derrida, necessariamente pode e não deve atingir a plenitude para a qual não obstante ela tende. A plenitude é seu telos, mas a estrutura desse telos é tal que, se atingida, ela, assim como a intenção, desparecem ambas, ficando paralisadas, imobilizadas, ou morrendo... A plenitude é o fim (a meta), mas, se fosse atingida, seria o fim (morte)... A plenitude é o que imediatamente orienta e faz periclitar o movimento inten- cional ... Não há nenhuma intenção que não tenda para ela, mas também nenhuma intenção que a atinja sem desaparecer com ela.29 O que permite à linguagem manter-se afastada do perigo, a so- breviver à sua própria tendência suicida que não obstante é o seu spirítus movens, é — assim sugere Derrida — a iterabilidade; aquela curiosa repetição/nãojjgpetiçáo, um "acontecer de repetir o que aconteceu antes, aquela habilidade,.jdisJficj.ic06.sjda.se.- reriTseparaclas do contexto intencional que lhes deu origem, e.serem ^-líias sóaparentemente, visto que cada , um renascimento, um rejuveHeicimênfo7^ue"süga os sucos vitais de_ outros j;£ntextos_e outras intenções (as