181 pág.

Pré-visualização | Página 30 de 50
consistiu sempre em tratar dos embriões. E acontecia o mesmo com todas as outras perguntas que lhe fazia. Linda parecia nunca saber nada. O ancião do pueblo tinha respostas bem mais precisas. - O germ è do homem e de todas as criaturas, o germe do Sol, e o germe da Terra, e o germe do Céu, foram todos criados, por Awonawilona, a partir do Nevoeiro do Crescimento. Ora o mundo tem quatro matrizes e, ele colocou os germes na mais baixa das quatro. E gradualmente os germes começaram a crescer... Um dia, - john calculava que devia ter sido pouco depois do seu décimo segundo aniversário - entrou em casa e encontrou no chão, no quarto de dormir, um livro que ainda não tinha visto. Era um livro grande, que parecia muito antigo. A encadernação tinha sido roída pelos ratos e algumas das páginas estavam soltas e amarrotadas. Apanhou-o e olhou a página inicial. O livro intitulava- se: Obras Completas de William Shakespeare. Linda estava estendida na cama, bebericando, por uma chávena, aquele horrível e malcheiroso mescal. - Foi Popé que o trouxe - disse ela. Tinha a voz grossa e rouca, como se fosse de outra pessoa. - Estava num dos cofres da Kiva dos Antílopes. (*) Supõe-se que estava lá há centenas de anos. E deve ser verdade, porque lhe deitei uma olhadela e parece-me cheio de asneiras! Anterior à civilização. Enfim, sempre te servirá para te ires aperfeiçoando na leitura. - Bebeu um último trago, pousou a chávena no chão, ao lado da cama, deitou-se de lado, soluçou uma ou duas vezes e adormeceu. Ele abriu o livro ao acaso: Não, mas viver No suor fétido de um leito imundo, Imerso em corrupção, a fazer carícias e a amar Sobre a pocilga asquerosa... As estranhas palavras rolaram-lhe através do espírito, ressoando como um trovão falante, como os tambores das danças de Verão, se os tambores tivessem podido falar; como os homens cantando a Canção do Trigo, bela, de uma beleza de fazer choràr; como o velho Mitsima pronunciando fórmulas mágicas sobre as suas penas, os seus bastões entalhados e os seus pedaços de pedra e de ossos - Kiathla tsilu silokwe silokwe silokwe. (*)-Os índios Zufii dividem-se em várias seitas ou kivas, cada uma das quais toma o nome de um animal protector e possui um lugar de reunião, que é geralmente uma câmara subterrânea, também chamada kiva. (N. do T.) 61 Kiai silu silu, tsithl -, mas ainda melhor que as fórmulas mágicas de Mitsima, porque estavam mais carregadas de sentido, porque era a ele que as palavras se dirigiam, porque falavam, de uma maneira maravilhosa e apenas- semicompreensível, em fórmulas terríveis e esplêndidas, de Linda, de Linda ali deitada e ressonando, a chávena vazia no chão, ao lado da cama, de Linda e de Popé, de Linda e de Popé ... Ele detestava cada vez mais Popé. Um homem pode prodigalizar sorrisos e não passar de um celerado. Traidor, devasso, celerado sem remorsos e sem bondade. Que significavam exactamente estas palavras? Não o sabia ao certo. Mas a sua magia era poderosa e continuava a bramir na sua cabeça, e sentiu-se, sem saber porquê, como se nunca tivesse realmente detestado Popé, como se antes nunca o tivesse verdadeiramente detestado, porque nunca pudera dizer até que ponto o detestava. Mas entretanto possuía aquelas palavras, aquelas palavras que se assemelhavam aos tambores, aos cantos e às fórmulas mágicas. Estas palavras e a história estranha, estranha, donde eram tiradas (ela não tinha, para ele, nem pés nem cabeça, mas era maravilhosa, apesar de tudo, maravilhosa), davam-lhe um motivo para detestar Popé. E tornavam-lhe o seu ódio mais real, tornavam-lhe mais real o próprio Popé. Um dia em que entrou em casa depois de ter brincado, a porta do quarto estava aberta e viu-os deitados na cama, adormecidos, Linda muito branca e Popé quase negro, ao lado dela, um braço sob os seus ombros, a outra mão bronzeada repousando sobre o seu peito e uma trança dos compridos cabelos do homem atravessada na garganta de Linda, como uma serpente negra que a tentasse estrangular. A cabeça de Popé pendia para o chão, onde estava uma chávena ao lado da cama. Linda ressonava. Pareceu-lhe que o coração tinha desaparecido, deixando um buraco no seu lugar. Estava vazio. Sentia uma sensação de vácuo, de frio, um pouco de náusea, vertigens. Encostou-se à parede para se aguentar nas pernas. Traidor, devasso, sem remorsos ... Semelhantes aos tambores, semelhantes aos homens cantando o encantamento do perigo, semelhantes às fórmulas mágicas, as palavras repetiam-se e voltavam a repetir-se no seu espírito. Depois da sensação de frio, sentiu subitamente um grande calor. Sentia o rosto em fogo com o afluxo do sangue, o quarto girava e escurecia diante dos seus olhos. Rangeu os dentes: « Hei-de matá-lo, hei-de matá-lo, hei-de matá-lo» , repetia sem cessar. E bruscamente surgiram-lhe outras palavras ainda: Quando estiver ébrio e adormecido, ou encolerizado Ou nos prazeres incestuosos do leito ... As fórmulas mágicas estavam a seu favor, a magia explicava e dava ordens. Saiu e voltou para o primeiro compartimento. « Quando estiver ébrio ou adormecido ... adormecido ... » A faca de cortar a carne estava no chão, perto da lareira. Apanhou-a e voltou para a porta na ponta dos pés. Atravessou o quarto a correr e golpeou - Ah! O sangue! -, golpeou de novo, enquanto Popé se libertava com um estremeção do amplexo do sono. Golpeou ainda outra vez, mas sentiu o pulso aprisionado, dominado e - oh! oh! - torcido. Não podia mexer-se, tinha caído numa ratoeira. E eis que os olhinhos pretos de Popé, muito próximos, mergulhavam nos seus. Virou-se. Viu dois golpes no ombro esquerdo de Popé. - Oh! Vejam o sangue! - gritou Linda. - Vejam o sangue! - Ela nunca pudera suportar a vista do sangue. Popé levantou a outra mão, para lhe bater, pensou ele. Encolheu-se para receber o golpe. Mas a mão contentou- se em segurar-lhe o queixo e voltar-lhe a cara, de modo a obrigá-lo a cruzar novamente o olhar com o seu. Isso durou muito tempo, horas e horas. E de súbito não conseguiu dominar-se e começou a chorar. Popé rebentou a rir. - Vai - disse ele, empregando as outras palavras, as índias - vai, meu bravo Ahaiy uta. - Saiu a correr para o outro aposento a fim de esconder as lágrimas. 62 - Ten's quinze anos - disse o velho Mitsima em língua índia. - Agora já te posso ensinar a trabalhar o barro. Acocorados na beira do rio, trabalhavam juntos. - Primeiro - começou Mitsima, amassando com as mãos uma bola de barro húmida - fazemos uma pequena lua. O ancião amassou a bola para lhe dar a forma de um disco, depois recurvou os bordos, alua transformou-se numa tigela côncava. Lenta e desajeitadamente, ele imitou os gestos delicados do velho. Uma lua, uma tigela e agora uma serpente. - Mitsima amassou um outro pedaço de barro para fazer um longo cilindro flexível, curvou-o em círculo e apoiou-o no bordo da tigeela. - Mais outra serpente. Mais outra. Mais outra. - Círculo sobre círculo, Mitsima decorou o bojo da tigela, a principio estreito, depois largo, voltando a estreitar no gargalo. Mitsima amassou, bateu, alisou e raspou. E eis que o objecto se ergueu por fim, jarro de água, vulgar em Malpaís quanto à forma, mas de um branco leitoso em vez de ser negro, e ainda mole quando se lhe tocava. Paródia do de Mitsima, o seu erguia-se a par do outro. Comparando os dois potes, viu-se obrigado a rir. - Mas o próximo será melhor - disse ele. E começou a amassar um outro pedaço de barro. Modelar, dar uma forma, sentir os dedos adquirirem mais destreza e poder, tudo lhe dava um prazer extraordinário. A, B, C, Vitamina D» , cantava para si mesmo enquanto trabalhava. « O óleo está no fígado, o bacalhau nadou. E Mitsima também cantava uma canção que falava da caçada e morte de um urso. Trabalharam assim todo o dia, e durante todo o dia sentiu uma felicidade intensa, absorvente. - Este Inverno - prometeu o velho Mitsima - hei-de ensinar-te a fazer