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tabuleiro. Os condimentos africanos imprimiram à culinária baiana e pernambucana o seu sabor característico que os tornaram famosos no Brasil, desde os tempos coloniais segundo a opinião insuspeita dos nossos visitantes estrangeiros. O vatapá baiano tornou-se um prato indispensável nos restaurantes nacionais, como um guisado genuinamente brasileiro, de origens africanas. A sua fama ultrapassou as fronteiras nacionais. A Societé Nationale d’Acclimatation, de Paris, incluiu, no cardápio de um dos seus banquetes anuais, o bom vatapá do Negro baiano. E o filósofo Einstein, quando visitou o Brasil, não escondeu a sua admiração diante de um prato de vatapá. A sua filosofia rendeu homenagem generosa aos Brillat-Savarin da velha cultura afro-brasileira.13 13 Nota: Reproduzido de Aculturação negra no Brasil, Brasiliana, vol. 224, São Paulo, 1942. 12 – Capítulo da mesa, em São Paulo LEONARDO ARROYO Em torno da mesa larga, largavam as tristes dietas, esqueciam seus fricotes, e tudo era farra honesta acabando em confidência. Carlos Drummond de Andrade A quantas andamos em matéria de culinária em São Paulo? Uma nova edição do livro de Manuel Querino, A arte culinária na Bahia, coloca em foco a necessidade, no Brasil, de uma ordenação de pesquisas no sentido de um inventário da nossa cozinha. Não só da nossa cozinha típica, que alcança em algumas regiões do país perfeita sistemática culinária, como também daquela que nos trouxeram os maiores contingentes de emigrantes que aqui trabalham, aqui vivem e aqui difundem valores culturais que se manifestam de modo todo particular na cozinha. Este fenômeno se observa, principalmente, nas grandes concentrações urbanas pela facilidade de sua interação, ao passo que nas áreas rurais se circunscreve, geralmente, a certas comunidades. A velha civilização do açúcar criou todo um complexo de doces já inventariado por Gilberto Freyre em seu pequeno mas importante e raro trabalho Açúcar; a concentração de negros na Bahia provocou o aparecimento de uma cozinha simplesmente notável, da qual a grande maioria de pratos, senão todos, se encontram relacionados no livro de Manuel Querino. De várias regiões do país conhecemos este ou aquele prato típico, uma forma de doce, uma técnica de fabricação de vinhos ou licores, que estariam a exigir, para a formação de uma sistemática, maiores pesquisas, identificação e registro. Mesmo em São Paulo o campo para pesquisa de tal ordem está à espera de algum interessado, ou gourmet, dotado de orientação, não apenas “gustativa”, mas sociológica. Colher-se-iam notas para uma tentativa de geografia paulista de cozinha e suas possíveis repercussões sobre a pluralidade de pratos que existem à nossa disposição, alargando-se tais estudos às frutas, formas de pão, qualidades de vinho (vejam-se os invejáveis produtos da zona de Atibaia), à variedade de doces. A contribuição da cozinha italiana, portuguesa, síria e espanhola, da francesa, a que se podem juntar algumas outras já um tanto exóticas (chinesa, húngara, japonesa, russa etc.) faz-se sentir sob muitos aspectos, inclusive o puramente turístico. No Brás, o Tiradentes goza de fama internacional (ou pelo menos teve essa condição até há alguns anos atrás) pela sua pizza que Jean-Louis Barrault costumava frequentar e elogiar, todas as segundas-feiras, acompanhada do vinho Cambriz (tinto ou branco – branco na preferência do editor José de Barros Martins, outro grande gourmet de São Paulo) e onde Osmar Pimentel, o nosso lúcido mas ausente crítico literário, pôde classificar a pizza de ortodoxa, para alegria de outros comilões de classe, como o ensaísta Sérgio Buarque de Holanda, o saudoso romancista José Lins do Rego, Luís Jardim (o escritor, desenhista, pintor e melhor prosa destes meridianos), os editores José Olympio e Daniel Pereira, o romancista Antônio Olavo Pereira com as restrições impostas pela sua rebelde vesícula, o velho e saudoso Dácio Pires Correia – a crônica mais viva de São Paulo antigo –, o permanentemente jovem e exaltado professor Francisco Teive de Almeida Magalhães, o garfo mais impressionante desta múltipla terra de Manuel da Nóbrega e, finalmente, mas não o último, esse menino permanente também que é Luís Gonzaga Melo frente a qualquer prato e ao vinho Médoc de sua preferência. E diga-se desde já, como anotação sociológica, que o pizzaiuolo não é nenhum napolitano desgarrado na grande cidade, mas um cidadão louro, filho de alemães e nascido na cidade de Limeira, no interior de São Paulo. Ainda no setor italiano poderíamos apontar algumas casas de ótima qualidade, que é preciso saber procurar. Mas não pretenda o leitor aí o ambiente sofisticado dos restaurantes e cantinas de turistas, de que São Paulo anda cheio, com o seu falso exotismo e com sua falsa comida. Em São Paulo come-se bem dentro de um admirável espírito democrático, democraticamente racial, pela variedade de homens e mulheres que se podem encontrar em tais casas de pasto, como são chamadas, à margem de uma recordação juvenil, em Lisboa, esses modestos restaurantes. Modestos por fora, talvez mesmo em suas instalações, mas com pratos, para usar uma imagem do velho Eça de Queiroz, feitos no céu. Ainda a pizza, com a mesma classe, mas diferente na espessura da massa e no equilíbrio do tempero, pode ser degustada com muita alegria na cantina Montenero, na Rua da Graça, no Bom Retiro, o bairro dos judeus, mas não exclusivamente dos judeus, e em cujas ruas há uma inequívoca demonstração da nossa vocação democrática racial a um simples exame da paisagem humana. É outra cantina frequentada por intelectuais, jornalistas, homens de letras, enfim, e onde não será raro encontrar um Mário Mazzei Guimarães, um Mário Chamie, o poeta concretista, um Constantino Ianni, um Isaac Jardanovski, o arquiteto, um Júlio Abramchick, o médico, e aquelas figuras que frequentam o Tiradentes, no Brás, a discutir as excelências da pizza. Prato que mais uma vez não é nunca preparado por um filho da península, mas pura e simplesmente por Laurindo, legítimo baiano que Deus conserva na sua maestria culinária. O frango assado, ou alho e óleo, os miúdos de frango, o spaghetti con le vongole, a sardela, o pão toscano, uma notabilíssima polenta frita, a linguiça calabresa seca e crua, iguarias fortes e reconfortantes, têm seu ponto alto numa cantina familiar do velho Bexiga – o Chamarré, o encanto de um Mário da Silva Brito, de um Pedro Brasil Bandecchi, de uma Helena Silveira, de uma Maria de Lourdes Prestes Maia, da poetisa Lupe Cotrim Garaude, de Fernando Mendes de Almeida, do jornalista Lauro D’Agostini, do desenhista Nélson Coletti, do livreiro Moacir Gouveia, do poeta Edgar Braga, também jovem e permanente gourmet como jovem poeta de vanguarda não obstante suas antigas produções românticas. O encanto também de escritores e editores, de um Arnaldo Magalhães de Giacomo, do impressionante garfo que é Thomaz Aquino de Queiroz, de Leandro Meloni, comprido e exigente, do cozinheiro e editor Jorge Saraiva, dos dois Fernandos, o Góes e o Jorge. Fernando Góes e Fernando Jorge, o primeiro requintado nas exigências de guisados e na defesa do vinho nacional e, o segundo, inquieto e rápido, comendo mais pão que outra coisa qualquer. O Alberto, no Chamarré, terá sempre à nossa disposição um reconfortante Visconde de Ayala, de garrafa comprida, tão bom sempre que parece engarrafado no céu, aplaudido pelo exigente paladar de um Rubens de Barros Lima, habituado aos Chateaux franceses, aos Bucelas, aos Carcavalos e aos Colares portugueses, veritable soleil en bouteille. E no setor italiano pode-se ignorar essa instituição culinária que é o Capuano? Há mais de trinta anos que o velho Capuano alegra a numerosa clientela que frequenta o porão do prédio situado na Rua Major Diogo, ainda no velho Bexiga de tantas tradições. A cantina do Capuano se integrou na paisagem urbana e social paulista como uma mesa