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nobres mãos de aedo Enquanto nós, a dar uns toques No que não nos seja a contento Vigiaremos o cozimento Tomando o nosso uísque on the rocks. Uma vez cozido o feijão (Umas quatro horas, fogo médio) Nós, bocejando o nosso tédio Nos chegaremos ao fogão. E em elegante curvatura; Um pé adiante e o braço às costas Provaremos a rica negrura Por onde devem boiar postas De carne-seca suculenta Gordos paios, nédio toucinho (Nunca orelhas de bacorinho Que a tornam em excesso opulenta!) E – atenção! – segredo modesto Mas meu, no tocante à feijoada: Uma língua fresca pelada Posta a cozer com todo o resto. Feito o quê, retira-se caroço Bastante, que bem amassado Junta-se ao belo refogado De modo a ter-se um molho grosso Que vai de volta ao caldeirão No qual o poeta, em bom agouro Deve esparzir folhas de louro Com um gesto clássico e pagão. Inútil dizer que entrementes Em chama à parte desta liça Devem fritar, todas contentes Lindas rodelas de linguiça. Enquanto ao lado, em fogo brando Dismilinguindo-se de gozo Deve também se estar fritando O torresminho delicioso Em cuja gordura, de resto (Melhor gordura nunca houve!) Deve depois frigir a couve Picada, em fogo alegre e presto. Uma farofa? – tem seus dias... Porém que seja na manteiga! A laranja, gelada, em fatias (Seleta ou da Bahia) – e chega. Só na última cozedura Para levar à mesa, deixa-se Cair um pouco de gordura Da linguiça na iguaria – e mexa-se. Que prazer mais um corpo pede Após comido um tal feijão? – Evidentemente uma rede E um gato para passar a mão... Dever cumprido. Nunca é vã A palavra de um poeta... – jamais! Abraça-a, em Brillat-Savarin O seu Vinicius de Moraes.16 16 Nota: Reproduzido de Para viver um grande amor (Poemas e crônicas), Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1962. 15 – Cantiga para fazer paçoca NEWTON NAVARRO Dois, dois O pilão batucando Dois, dois A pancada a soar Dois, dois Duas mãos arremessam Dois, dois Outra mão para o ar Dois, dois Na madeira furada Dois, dois A farinha a pisar Dois, dois Carne-seca moída Dois, dois No pilão a socar Dois, dois Mandioca plantada Dois, dois Farinhada desfez Dois, dois Carne ao sol espetada Dois, dois Carne verde de rês Dois, dois Mandioca em farinha Dois, dois Carne ao sol ressecou Dois, dois No pilão misturadas Dois, dois Em paçoca virou Dois, dois Meu irmão, camarada, Dois, dois Se abanque pra cá Dois, dois Seu café no caneco Dois, dois Pra paçoca provar Dois, dois E também não se esqueça Dois, dois De outra coisa dizer Dois, dois Sem banana a paçoca Dois, dois Não adianta comer Dois, dois E assim explicada Dois, dois Na toada ficou Dois, dois A paçoca gostosa Dois, dois Que Sinhô Rei me mandou!17 17 Nota: Newton Navarro, pintor, jornalista, poeta, orador, escreveu na praia de Redinha, Natal, em junho de 1964, essa toada da paçoca no velho ritmo de “bater caçula”, socando a carne e a farinha com cebola vermelha, nas batidas alternadas das mãos sapientes, mantendo contemporânea uma solução brasileira do século XVI. Conforme Teodoro Sampaio, in O tupi na geografia nacional, 3a ed., Bahia, 1928, “à carne ou peixe pilado e misturado com farinha davam o nome pó-çoka, que quer dizer pilado à mão ou esmigalhado à mão”. 16 – Molhos da Bahia SODRÉ VIANNA (1904-1945) Para a regra geral do baiano, todo “molho” é de pimenta. Os sucos de carne, os refogados, os “molhos” chamados no Sul, aqui são “caldos”. Caldo de mal-assada, caldo de ensopado, caldo de moqueca. Seja ralo ou rico; é caldo. Assim, quando neste caderno se diz que tal comida se serve com “molho tal”, já se sabe que este é de pimenta. O molho baiano é inconfundível. Na sua confecção entram detalhes que não se podem desprezar. Não se deve apenas quebrar a pimenta. É essencial que ela seja ralada, transformada em pasta. Para isto, deve-se misturá-la a um pouco de sal, de preferência grosso. Nenhuma vasilha de louça deve ser utilizada para que nela se rale a pimenta. Só as de barro não vidrado oferecem uma aspereza que facilita a operação. Da mesma forma, nenhum instrumento de metal serve para triturador. O “molho baiano” é feito com machucadores de madeira, facilmente encontráveis nas quitandas. Há várias espécies de pimenta: malagueta, cumaru, dedo-de-moça etc. A verdadeira pimenta do “molho baiano”, porém, é a malagueta, que se destaca das demais por ser pequena e de ardor bem mais ativo. Também não se usa pimenta madura, nem de conserva, nem seca, a não ser para o “molho de acarajé”, quando esta última é preferida. Nos demais casos, malagueta verde é que é a matéria-prima do “molho baiano”. A seguir, daremos as receitas dos quatro molhos fundamentais da cozinha baiana: molho de pimenta e limão, o mais comum para guisados, assados etc.; molho de acarajé, que se usa com os acarajés, o arroz de haussá e, em certas ocasiões, com o xinxim; molho de azeite e vinagre, típico do Recôncavo, e molho de nagô, cujo caráter afro só tem similiar no do molho de acarajé. Ao molho de nagô, pela quantidade de elementos que exige, os pretos chamam também “molho de guloso” ou de “lambão”. Assim, por exemplo, o chamava dona Maria Coquejo Sampaio (Maria Santana), neta de Congos, Mãe do terreiro de “seu” Cambanranguangê Genti de Cacurucaia, no Lobato. MOLHO DE PIMENTA E LIMÃO – Numa vasilha de barro, põe-se um pouco de sal e pimenta. Cortam-se rodelas de cebola e, quando se goste, um dente de alho. Rala-se tudo, até ficar transformado em pasta. Mexe-se até que ela se dissolva completamente no suco. Cortam-se outras rodelas de cebola, que são postas inteiras dentro da mistura. Este molho deve ser feito uma hora antes de ser servido. De um dia para outro não serve: fermenta com muita facilidade. MOLHO DE AZEITE E VINAGRE – Sal, pimenta e cebola, tudo bem ralado como ficou dito acima. Um bouquet de coentro bem verde, macerado. Põe-se depois azeite e vinagre, na proporção de 2 de vinagre para 1 de azeite. Juntam-se rodelas de cebola, galhos de coentro inteiro para enfeitar. MOLHO DE NAGÔ – Rala-se pimenta, com pouco sal. Junta-se à pimenta um punhado de camarões secos descascados e bem moídos. Depois o suco de meio limão, quiabos e jilós cozidos. Esmaga-se tudo com o machucador, mexendo-se até que o pó de camarão se misture uniformemente à massa. Quando é para cozido (em que é mais usado) pode-se juntar a este molho um pouco de caldo de panela, para que ele diminua de consistência e possa ser melhor misturado ao pirão. MOLHO DE ACARAJÉ – Pimenta-malagueta seca, bem moída. Camarões secos, descascados e moídos. Cebolas picadas, um pouco de sal. Frita-se tudo no azeite de dendê, preferentemente em vasilha de barro. Serve-se frio.18 18 Nota: Reproduzido de Caderno de Xangô (50 receitas de cozinha baiana do litoral e do Nordeste). Livraria Editora Baiana, Bahia, s. d. (1939). Cambanranguangê Genti de Cacurucaia é o orixá Xangô na linha de caboclo, no candomblé de influência indígena. 17 – Bebia-se no Rio de Janeiro de 1900 LUÍS EDMUNDO (1878-1961) Quem acreditará que o Rio de Janeiro do começo de século teve uma vida noturna, relativamente muito mais ativa, muito mais ruidosa e, sobretudo, muito mais alegre que a de nossos dias? Frívola embora, era ela intensíssima, alimentada, sobretudo pelos rapazes que ainda não faziam sport, pelos caixeiros de um comércio que os prendia até tarde, nas lojas que só se fechavam às dez horas da noite, rapazes esses que, quando se soltavam, eram como cabras ou potros num terreiro; e, finalmente, pelos que buscavam na rua o conforto que não podiam encontrar na morada triste e vazia de qualquer conforto, como foi a nossa morada no começo do século. Se os ricos podiam criar, para viver, ambientes agradáveis em matéria de conforto, a grande massa da população vivia mal, sobretudo durante o estio, quando a casa de residência se