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2018 - 03 - 11 Curso de Direito Civil - Volume 3 PRIMEIRAS PÁGINAS © desta edição [2016] 2018 - 03 - 11 Curso de Direito Civil - Volume 3 QUARTA PARTE - DIREITO DOS CONTRATOS CAPÍTULO 26. INTRODUÇÃO AO DIREITO DOS CONTRATOS QUARTA PARTE - DIREITO DOS CONTRATOS (Autor) Fábio Ulhoa Coelho Capítulo 26. INTRODUÇÃO AO DIREITO DOS CONTRATOS 1. A evolução das culturas A UNICEF calcula que anualmente cerca de dois milhões de meninas entre 4 e 14 anos são submetidas à clitoridectomia, a cruel mutilação genital feminina (MGF) que algumas culturas africanas e asiáticas admitem. Parte dessas mutilações ocorre na Europa, norte da América e Austrália, onde imigrantes cultivam a tradição. Na Noruega e Suécia, editou- se lei específica criminalizando a prática. Embora a maioria das MGFs seja feita em condições precárias de higiene, por "curiosas" que ganham a vida extirpando o clitóris das meninas de suas tribos, tem preocupado a UNICEF o crescimento, nas últimas décadas, do número de mutilações resultantes de cirurgias realizadas em modernos centros hospitalares, sob a responsabilidade de médicos. Ao contrário do que por vezes se acredita, nenhuma religião defende ou estimula a MGF. Trata-se de manifestação puramente cultural: pretende-se que a mulher, por não saber lidar com sua sexualidade, se não for contida, pode pôr em risco a pureza da linhagem. É uma tradição cultural de raízes tão fortes que as políticas governamentais e mesmo as leis proibindo a prática têm-se mostrado muito ineficazes. Resultados mais animadores são obtidos quando a abolição é decidida pelas tribos, como ocorreu em 1998 em Ngerin Bambara, no Senegal. A UNICEF trabalha para que a MGF seja abolida em todo o mundo já nas primeiras décadas do século XXI e tem alcançado importantes conquistas nessa direção. É certo que a prática deixará de existir um dia, porque prevalecerão as culturas superiores. Falar em superioridade de culturas exige cautelas. Nos discursos dos vários e variáveis movimentos antiglobalização, aponta-se a pasteurização da cultura como um dos riscos do processo de criação do mercado único planetário. Sugere-se, nesses discursos, que as culturas teriam todas igual direito à livre expressão e sobrevivência; que nenhuma cultura poderia ser vista como melhor que as outras. Falar, assim, em cultura superior é provocar os propagadores dos discursos politicamente corretos. Paciência. A globalização importará o fim da diversidade cultural. Poderá existir certa combinação entre as manifestações culturais, mas não no mesmo grau - as mais evoluídas irão absorver as demais. A cultura da idade da pedra de algumas tribos amazônicas poderá eventualmente sobreviver nos entremeios de manifestações culturais sofisticadas. Uma toada rítmica de ritual indígena pode ilustrar e enriquecer um concerto para orquestra, mas nunca o contrário. Mas se é, deveras, uma triste consequência da globalização o empobrecimento do multiculturalismo, o fim das manifestações culturais diversificadas, não cabe lamentar a anunciada morte de algumas tradições - como a de mutilar meninas, por exemplo. Existem culturas superiores; e o inevitável processo de globalização econômica nos conduzirá ao seu predomínio, com o fim das inferiores. Não se está, aqui, somente contrapondo um concerto sinfônico à cadência do kuarup, mas principalmente os múltiplos valores de organização da convivência em sociedade. O respeito aos direitos humanos, por exemplo, é conceito oriundo da cultura eurocêntrica que se impõe gradativamente ao mundo todo. A UNICEF legitima sua ação contra a MGF invocando os direitos fundamentais da criança, noção em tudo estranha à cultura das comunidades africanas e asiáticas em que a prática se dissemina. Luigi Ferrajoli - teórico do direito penal e defensor de teses arrojadas como a eliminação da pena privativa da liberdade - sustenta que o respeito aos direitos humanos é o limite a partir do qual se torna admissível a diversidade cultural. Para ele, nenhuma cultura que importe o domínio do mais forte sobre o mais fraco pode servir de obstáculo à defesa dos direitos humanos, tal como gerada pela cultura eurocêntrica. Ele cita a clitoridectomia como exemplo de transgressão a direitos dessa ordem (2001:338/345). A questão, aqui, é saber como hierarquizar as culturas: a partir de que critério cabe apontar determinada manifestação cultural como superior ou inferior relativamente a outra? Penso que a resposta esteja no distanciamento da condição animal, em que o forte domina o fraco. A cultura é a superação da seleção natural, a libertação do homem de sua condição meramente animalesca. Quanto maior a distância entre a cultura e o primado da seleção natural, isto é, o domínio do mais forte, maior é a evolução. Ainda no século XIX, no Brasil e na África portuguesa, a cultura dominante aceitava a escravidão, prática repudiada no resto do continente americano e na Europa. Naquele tempo, portanto, a cultura brasileira era inferior à europeia, porque os valores nela predominantes estavam mais próximos do domínio do mais forte do que os desta última. Do mesmo modo, as comunidades que hoje mutilam suas meninas - com o objetivo de garantir a castidade antes do casamento e a fidelidade após - têm uma cultura inferior. Quando o direito dos contratos consagra princípios como o da tutela do contratante débil, revela traços de uma cultura superior, apta a organizar a convivência humana além das leis da seleção natural, isto é, do domínio do mais forte. Adotado o critério de hierarquização em razão do afastamento relativo à seleção natural, ao domínio do mais forte, o respeito aos direitos humanos é um traço de superioridade da cultura. A evolução do direito dos contratos em direção a valores como a tutela do contratante débil (hipossuficiente ou vulnerável) é outra manifestação de superioridade cultural. 2. A evolução do direito contratual Podem-se divisar, na evolução do tratamento que o direito dispensa aos acordos entre os sujeitos privados, três modelos fundamentais. O primeiro, em que prevalece sempre a vontade das partes, e a interferência do aparato estatal limita-se, basicamente, a garantir tal prevalência (modelo liberal); o segundo, em que a interferência do aparato estatal substitui, em determinadas situações, a vontade manifestada pelas partes por regras de direito positivo (modelo neoliberal); e, por fim, o terceiro, em gestação, em que se distingue o acordo feito por sujeitos privados iguais do contrato entre desiguais, com o intuito de prestigiar a vontade das partes naquele e tutelar o economicamente mais fraco neste (modelo reliberalizante). A Ciência do Direito pode discutir a evolução desses modelos por uma perspectiva histórica, relacionando-os às nuanças da luta de classes e aos correspondentes avanços e recuos do estado capitalista, em especial no transcorrer do século XX; no plano da tecnologia jurídica, o interesse nos dois primeiros justifica-se como instrumento para melhor compreensão do modelo reliberalizante e de sua operacionalidade na solução dos conflitos relacionados aos contratos. 2.1. A lei das partes A autonomia da vontade é conceito originário da filosofia. Trata-se da chave, na ética de Kant, para discernir a moralidade das condutas. Por exemplo, quem afirma que não se deve mentir, porque receia envergonhar-se caso venha a ser revelada a verdade, não expressa uma vontade autônoma. Por isso, quando não mente adota conduta desprovida de valor moral. Se o pai ensina ao filho que "não minta, porque a mentira tem pernas curtas", ele está transmitindo uma formulação moralmente inválida para a ética kantiana. A heteronomia da vontade - fazer algo porque se quer outra coisa - é a fonte de todos os primados moralmente ilegítimos em Kant. Já quem entende que não se deve mentir, porque a mentira é em si mesma condenável, independentemente de temer a vergonha deser surpreendido, expressa uma vontade autônoma; e sua conduta, ao abster-se de mentir, é moralmente válida para Kant. A vontade autônoma guia-se exclusivamente por ela mesma, pautando suas escolhas pelas máximas que quer como leis universalmente válidas (1785:213/239). A tecnologia jurídica apropriou-se da expressão, mas não do conceito. Para o saber jurídico, autonomia da vontade é a referência ao reconhecimento, pela ordem positiva, da validade e eficácia dos acordos realizados pelos próprios sujeitos de direito. A vontade autônoma, para a doutrina, é a que se manifesta livremente na criação de direitos e obrigações, porque nenhuma lei os preestabelece. Em outros termos, pela autonomia da vontade, o sujeito de direito contrata se quiser, com quem quiser e da forma que quiser. A ordem jurídica reconhece os direitos e deveres gerados pela livre manifestação de vontade das pes soas, conferindo validade e eficácia ao contratado entre elas. O princípio da autonomia da vontade, nuclear no regime privado do direito dos contratos, desdobra-se em postulados como os seguintes: a) Todos são livres para contratar ou não. Ninguém está obrigado a celebrar contrato contra a sua vontade. Assim, o sujeito de direito motiva-se a contratar exclusivamente pelo interesse que identifica, segundo seus próprios e subjetivos critérios, no resultado da troca em negociação. Se por qualquer motivo, ainda que emocional, irracional ou intuitivo, a pessoa não considera vantajoso o negócio (porque toma a obrigação que assumiria por menos interessante que a prestação prometida pelo outro contratante ou simplesmente porque não o deseja), não há como obrigá-la a contratar. Mesmo quando se encontra compromissado a celebrar o contrato, em virtude de um contrato preliminar, é a vontade do sujeito (manifestada no primeiro negócio) que o obriga. Outra decorrência do primado da liberdade de contratar é a instabilidade dos vínculos contratuais por prazo indeterminado. O contratante pode rescindir unilateralmente os contratos sem prazo, a qualquer tempo: se ninguém é obrigado a contratar, também não pode ser obrigado a ficar vinculado ao contrato para sempre. b) Todos são livres para escolher com quem contratar. Em razão do princípio da autonomia da vontade, ninguém pode ser obrigado a contratar com quem não quer. De novo, os motivos que se levam em conta para afastar a hipótese de contrato com determinado sujeito podem ser irracionais, emocionais ou intuitivos, não interessa; se alguém simplesmente não quer vincular-se a certa pessoa, nada o pode forçar. Em decorrência do primado da liberdade de escolha do contratante, o sujeito vinculado a contrato não pode substituir-se no vínculo por ato unilateral de vontade. Caso o instrumento contratual não autorize expressamente a sub-rogação ou cessão do contrato, essas operações não são válidas sem o consentimento dos demais participantes. c) Os contratantes têm ampla liberdade para estipular, de comum acordo, as cláusulas do contrato. Como os sujeitos são livres para contratar ou não e para escolher com quem contratam, é consequência lógica dessa ampla liberdade a possibilidade de as partes definirem, de comum acordo, os termos e condições do contrato, sem nenhuma restrição externa ao encontro de vontades. Em consequência do primado da liberdade de estipular as cláusulas do contrato, a lei atinente à matéria contratual desdobra-se em dispositivos na sua maioria de natureza supletiva, isto é, são normas aplicáveis na hipótese de omissão das partes, quanto à composição de determinado interesse comum, no contexto do contrato. Somente se as partes se omitiram de detalhar certo aspecto do negócio entabulado, incide a lei para suprir a falta, definindo os direitos e obrigações dos contratantes. No primeiro quadro evolutivo do direito dos contratos, é fundamental a proteção à autonomia da vontade, no pressuposto de que todos são livres para contratar ou não, para escolher com quem contratar e para estipular, em comum acordo, as cláusulas do contrato (pacta sunt servanda). Costuma-se sintetizar o princípio da autonomia da vontade, no modelo liberal, pela assertiva de que o contrato é lei entre as partes (pacta sunt servanda). Esse é o seu primado ideológico básico. O sujeito de direito que livremente assume compromisso, perante outro sujeito, de dar, fazer ou não fazer (em geral, trocando por alguma prestação que lhe parece equivalente) tem, pela ordem jurídica, uma obrigação a cumprir. Se não o faz, o sujeito perante o qual o compromisso foi assumido pode acionar os mecanismos estatais de coerção para obter o cumprimento forçado do contrato (execução específica), um resultado semelhante ao cumprimento (execução subsidiária por equivalente) ou a indenização das perdas e danos sofridos (execução subsidiária por indenização). E exatamente porque o sujeito é livre para vincular-se ou não por contrato, se a sua vontade foi a de se obrigar, expõe-se à coerção do Estado, na hipótese de faltar ao cumprimento da obrigação. No contexto do modelo liberal, uma preocupação acentuada da tecnologia jurídica encontra-se na determinação do grau de liberdade dos contratantes. Para ser vinculativa, a vontade deve ser livre, amplamente livre. Assim, admite-se a invalidação, ineficácia ou desfazimento do vínculo contratual nas hipóteses em que o sujeito não se encontrava em condições de manifestar a vontade a salvo de qualquer restrição externa. A teoria dos vícios do consentimento reputa não constituída a obrigação nas hipóteses de erro, dolo ou coação, porque fatores exógenos à vontade do sujeito deturpam-na no momento de sua manifestação num negócio jurídico. A emissão da vontade, nesse caso, é defeituosa (Cap. 10, item 11). A única limitação à vontade das partes é a ordem pública, concretizada nos ditames da lei. Pela teoria dos vícios sociais, a fraude contra credores pode comprometer a validade do ato jurídico, não porque a vontade do sujeito é deturpada, mas pela inadequação entre ela e o ordenamento jurídico. A vontade também é considerada defeituosa quando manifestada com o intuito de prejudicar legítimo interesse de terceiros (cf. Beviláqua, 1908:216). 2.2. A liberdade que escraviza A origem do princípio da autonomia privada é identificada, por Ana Prata, na transição do feudalismo para o capitalismo. O operário, ao contrário do servo, é reconhecido como o proprietário de sua força de trabalho, de modo que a relação de produção capitalista se expressa, no plano jurídico, como a venda dessa especial mercadoria ao dono da indústria. Dessa forma, todos passam a identificar-se como proprietários, elemento que não se encontra na relação de produção feudal (1982:8/10). A autonomia da vontade é, assim, um conceito jurídico forjado para retratar a nova ordem econômica, o capitalismo. Concebido em função das especificidades da relação de produção capitalista, comparativamente à feudal, o princípio da autonomia da vontade manifesta o esgotamento de sua aptidão originária quando o proletariado começa a organizar-se em busca da melhoria de sua situação. Desse modo, no fim do século XIX - ao tempo em que o socialismo, pelo viés marxista, assume seu perfil mais elaborado -, a doutrina jurídica dos contratos começa a prestar atenção às limitações do modelo liberal, fundado no voluntarismo. O extraordinário grau de exploração do proletariado, então verificado nos países em que o sistema capitalista se encontrava mais desenvolvido, desperta um ainda tímido questionamento do princípio da autonomia da vontade. O operário, quando buscava o emprego, não era livre para contratar. Vender a força de trabalho ao industrial era, na verdade, condição de sobrevivência, uma vez que a vida não lhe dava nenhuma outra alternativa. Sua liberdade de escolher o patrão era também muito relativa, porque limitada às vagas em oferta e a fatores como localização da indústria, especialidade das funções disponíveis e outrosque o operário não pode manipular ou controlar. Finalmente, não havia nenhuma margem para negociações dos direitos e obrigações das partes. Premido pela impostergável necessidade de sobreviver, o operário tinha de aceitar as condições impostas pelo patrão, por mais aviltantes que fossem (aliás, o operariado somente passa a conquistar alguns poucos direitos na relação de trabalho após muita luta e organização, já no século XX). Em suma, no contrato de trabalho, o princípio da autonomia da vontade é inteiramente inoperante: o empregado não contrata porque quer, com quem quer e do modo que quer; isso simplesmente não existe. No segundo quadro evolutivo da teoria dos contratos, a autonomia da vontade sofre sucessivas e consideráveis restrições, manifestadas inicialmente nas relações de trabalho e, a partir de meados do século XX, também nas de consumo. "Entre contratantes desiguais, a liberdade escraviza e a lei liberta", proclama a tecnologia jurídica. Em outros termos, a situação do trabalhador era (e ainda é) a de um contratante sem vontade livre, situação esta que se encontra, com o desenvolvimento da industrialização, também em contratos de outra natureza, principalmente no campo hoje referido pela noção de relação de consumo. O consumidor também não contrata porque quer, com quem quer e do modo que quer (Almeida, 1982:13/15). Diante desse fato, o do contratante sem vontade livre, a tecnologia jurídica foi forçada a formular um novo modelo para o direito contratual. Na Europa, os prejuízos das guerras mundiais, que impossibilitavam o cumprimento de contratos, precipitaram a sua formulação (Planiol-Ripert, 1925:21/23; Lipartiti, 1939). Mas a evolução, é fácil supor, não foi rápida, nem indolor: nos anos 1950, ainda se encontram prestigiados tecnólogos do direito civil brasileiro batendo-se contra a difusão da teoria da imprevisão (Monteiro, 1956:22). Afinal, a formulação do modelo neoliberal envolvia a discussão de valores fundamentais da ideologia dominante, presentes nos alicerces do direito capitalista. De qualquer modo, na segunda metade do século XX, os institutos jurídicos que traduzem a mudança - como a revisão judicial dos contratos, fundada, primeiramente, na imprevisão (cláusula rebus sic stantibus) e, depois, na excessiva onerosidade (teoria da lesão como defeito da vontade), as cláusulas gerais de negócio, os instrumentos de adesão etc. - são temas recorrentes da doutrina jurídica (Cap. 28, subitem 6.2; Sidou, 1978:26/43; Gomes, 1972). Assim, na grande maioria dos contratos celebrados desde a Revolução Industrial não se verificam (nem se podem verificar) negocia ções entre os sujeitos de direito acerca do conteúdo das cláusulas com o objetivo de encontrar o dispositivo que represente melhor a composição dos respectivos interesses. Se alguém necessita de dinheiro para realizar urgente reforma em sua casa e procura o Banco de que é cliente para obter financiamento, certamente não terá chance de discutir as condições das poucas linhas de crédito que lhe serão oferecidas. Os juros, as taxas, a necessidade de garantia real, a equação entre o valor emprestado e o do bem onerado atendem a critérios gerais preestabelecidos pelo Banco. Ao interessado no mútuo abrem-se duas alternativas somente: aceitá-los para celebrar o contrato ou não contratar. O banco não dispõe sequer de meios para considerar eventual contraproposta, em função dos custos em que incorreria ao mobilizar seus quadros técnicos de economistas e advogados no exame da alternativa apresentada pelo cliente. Desse modo, os contratos em geral expressam a adesão de um dos contratantes às condições de negócio estabelecidas unilateralmente pelo outro. Em vista dessa realidade, o direito dos contratos desenvolve certas tecnologias com o intuito de proteger o aderente contra abusos do estipulante. De fato, como prepara, prévia e isoladamente, os dispositivos contratuais de regência da relação, este último tem plenas condições de contemplar, no instrumento contratual, os destinados à completa preservação de seus interesses, enquanto aquele não tem meios de introduzir os seus. O estipulante pode, por outro lado, rever periodicamente o texto das condições gerais de negócio, aproveitando-se da experiência dos inúmeros contratos realizados, e aperfeiçoá-las nos dispositivos que lhe interessam; já o aderente não possui, na maioria das vezes, as informações necessárias para compreender o exato sentido do texto que lhe é apresentado. Por fim, o estipulante de má-fé pode abusar da condição privilegiada e redigir cláusulas obscuras ou ambíguas, de efeitos prejudiciais ao aderente. Para amparar este, o direito contratual desenvolveu a teoria da lesão como vício de consentimento, recuperou do direito canônico a fórmula rebus sic stantibus para fundamentar a revisão judicial dos contratos (Sidou, 1978) e normatizou as condições gerais de negócio e os contratos de adesão (pioneiros, aqui, foram os direitos italiano e alemão). Essas tecnologias de tutela do contratante por adesão, desenvolvidas pelo direito dos contratos, constituem a essência do modelo neoliberal, cuja síntese está na assertiva de que, entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e o direito liberta (Orlando Gomes a atribui a Lacordaire; 1959:30). Nesse contexto, ganha relevância a preocupação com instrumentos de equalização das partes do contrato. Normas positivas passam a atribuir ao economicamente mais fraco prerrogativas jurídicas que compensem a desvantagem econômica. A igualdade não é mais o fim das diferenças na lei, como proclamado na Revolução Francesa, mas a equalização das condições jurídicas de contratantes desiguais. As regras de tutela contratual dos consumidores ilustram bem o mecanismo, ao prescreverem, por exemplo, a ineficácia de cláusulas de conteúdo de difícil compreensão (CDC, art. 46). 2.3. Os iguais e os desiguais Além da atenção ao contratante sem liberdade, outro fato que estimulou o desenvolvimento do modelo neoliberal do direito dos contratos foi a mudança no papel do Estado, no transcorrer do século XX. Uma das mais importantes reações do capitalismo contra a organização do proletariado, em torno dos ideais revolucionários do socialismo marxista, foi a assunção, pelo aparato estatal, de novas funções, com o objetivo de atenuar a precariedade das condições de vida das classes dominadas. Entre as novas funções do Estado capitalista, além das de provedor (manifestadas pela construção de sistemas de seguridade social e assistência à saúde), encontram-se as de organizador da economia. O Estado, com o objetivo de evitar ou desimpactar as crises periódicas do sistema econômico, passa a intervir nas relações privadas em grau até então inaceitável pela ideologia liberal. No direito dos contratos, essa nuança da luta de classes traduz-se pelo conceito de dirigismo (Gomes, 1967). O grau de liberdade das partes na composição de seus interesses é reduzido; nem tudo o que se contrata é válido ou eficaz. A título de ilustração, durante a ditadura militar brasileira, o contrato de transferência de tecnologia (know-how) devia atender obrigatoriamente às cláusulas estipuladas em detalhes pelo INPI, não se admitindo nenhuma variância, por menor que fosse, para expressar a vontade dos contratantes. Mas o modelo neoliberal também possui seu tempo e seus limites. A reliberalização da economia no final do século XX, impulsionada pelo processo de globalização e possibilitada pelo esgotamento do modelo de planificação de inspiração marxista, propõe novas questões para a tecnologia jurídica dos contratos. A mais importante, entendo, diz respeito à compreensão da disciplina jurídica das relações contratuais como direito-custo e a suas implicações na configuração de vantagens competitivas na economia global. Em outros termos, quanto maior o reconhecimento, pela ordem jurídica, da validade e eficácia das cláusulas constantes dos instrumentos de contrato, isto é,quanto menor a definição, em normas positivas, de direitos e obrigações de contratantes, mais facilmente será calculado pelo empresário o impacto da responsabilidade contratual nos custos da atividade econômica. No terceiro quadro da evolução do direito dos contratos, a autonomia da vontade volta a ser prestigiada nas relações entre contratantes de iguais condições econômicas, ao mesmo tempo em que continuam sendo tutelados os interesses dos contratantes débeis (vulneráveis e hipossuficientes). A disciplina jurídica dos contratos é direito-custo - quer dizer, as normas cogentes de direito contratual aumentam os preços dos produtos e serviços oferecidos. A margem de atuação da autonomia da vontade e a intervenção do Estado, calibradas pela lei, interferem no cálculo empresarial. A previsibilidade (condição de eficiência desse cálculo) depende do reconhecimento da vinculação da livre vontade dos contratantes, nas relações entre empresários iguais, e da aplicação o quanto possível objetiva do direito vigente nas relações entre os desiguais. Com o desenvolvimento da globalização da economia, os empresários procuram instalar suas empresas em países de direito-custo mais atraente. Em vista disso, os interessados em atrair investimentos, como é o caso do Brasil, terão maior ou menor sucesso à medida que o respectivo direito positivo passe a representar vantagens competitivas. Quanto maior a liberdade reconhecida pela ordem jurídica para os próprios agentes econômicos iguais definirem, por contrato, seus direitos e obrigações, maior será a atração de investimentos. A globalização, assim, revigora a autonomia da vontade. O modelo reliberalizante de evolução do direito dos contratos responde às novas questões propostas pela economia global, recuperando o primado do voluntarismo. Mas não o faz por um simples retorno ao modelo liberal, desconhecendo o contratante sem liberdade. Ao contrário, revelando-se a síntese dos dois modelos que o antecederam, o reliberalizante prestigia a tutela do economicamente mais fraco, ao mesmo tempo em que reafirma a importância da autonomia da vontade entre contratantes iguais. Na verdade, a tecnologia dos contratos constata que, na relação entre desiguais, nenhum dos contratantes é livre, porque não tem condições para negociar amplamente o contrato. O débil, em razão das suas necessidades e insuficiências de informações; o forte, pelo acréscimo de custos que a renegociação acarreta. Somente o vínculo entre contratantes dotados dos mesmos recursos para arcar com os custos de transação pode ser visto como o produto de livre manifestação de vontade. No modelo reliberalizante, as normas positivas de direito contratual têm natureza diversa, segundo a condição dos contratantes. São cogentes, na relação entre desiguais, e supletivas, entre iguais. Atente-se, por exemplo, ao art. 6º da Lei n. 8.880/94, que prescreve a nulidade da cláusula de indexação das obrigações em real pela variação cambial (salvo no leasing lastreado em recursos captados no exterior e nas hipóteses expressamente ressalvadas por lei). Imaginem-se, então, dois contratos. No primeiro, o consumidor adquire a prazo um automóvel, com correção das prestações mensais pela variação do dólar. No segundo, o jornal compra papel de uma indústria nacional pelo preço fixado segundo a cotação do dólar. Enquanto for estável a relação cambial entre o real e a moeda norte-americana, as partes cumprem os contratos celebrados sem atentar para a nulidade prescrita no direito positivo. Ocorrendo, contudo, forte desvalorização cambial do dinheiro brasileiro, sobem as prestações do carro e o preço do papel. Nos quadrantes do modelo reliberalizante, o consumidor pode ir a juízo pleitear a nulidade da cláusula de indexação cambial, tendo em conta o seu desconhecimento do direito vigente e dos exatos efeitos do contrato que assinou, mas a empresa jornalística não tem esse direito, porque, ao contratar a variação cambial do preço do papel, tinha como saber, por meio de seus advogados e economistas, o exato sentido da cláusula negociada, e a considerou de seu interesse. Desse modo, a norma proibitiva da indexação cambial reveste-se de natureza cogente em relação aos contratos entre desiguais e supletiva nos contratos entre iguais. O modelo reliberalizante está ainda em elaboração na doutrina. Contudo, traduz-se melhor que o neoliberal na repartição do direito privado dos contratos brasileiros em três regimes distintos: civil, comercial e consumerista. 2. 4. Direito privado brasileiro dos contratos Até 1991, o direito privado brasileiro dos contratos segmentava-se em dois regimes jurídicos diferentes. De um lado, o civil, aplicável à generalidade dos contratos entre particulares (exceto os de trabalho); de outro, o comercial, relacionado aos contratos próprios do comércio. A definição do regime a que se devia submeter determinado negócio norteava-se, então, pelos modelos de delimitação do âmbito de incidência do direito comercial (a teoria dos atos de comércio e a teoria da empresa). A compra e venda, nesse contexto, era comercial se inserida na cadeia de circulação de riquezas, incluindo-se nessa categoria desde o contrato entre o fornecedor de matéria-prima e o industrial, numa ponta, até o feito pelo varejista com o consumidor, na outra. E eram civis as demais hipóteses de compra e venda, como a de imóveis, a do carro usado etc. O contrato de prestação de serviços, por sua vez, era considerado, na maior parte das vezes, civil, um tanto porque a teoria dos atos de comércio excluía do âmbito do direito comercial a atividade econômica correspondente, um pouco por não existirem disposições sobre essa modalidade contratual no Código Comercial de 1850. A tecnologia jurídica vinha já discutindo a pertinência da classificação, ao apontar a tendência, no direito de tradição românica, de uniformização do direito privado das obrigações (Bulgarelli, 1979:41/51). Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), o tema é revigorado pela criação de mais um regime no direito privado dos contratos: o consumerista. Por uma fórmula bastante genérica, e ainda um tanto imprecisa, o regime jurídico aplicável passou a variar conforme o contrato vinculasse empresário a empresário (direito comercial), empresário a não empresário (direito do consumidor) ou não empresário a não empresário (direito civil). A tripartição revelava a importância subsistente na delimitação dos contratos comerciais como típicos da relação entre empresários, relativamente aos de direito civil, porque a disciplina das relações contratuais de que participa o empresário pode revestir-se da natureza de direito-custo, isto é, influencia eventualmente nos custos da atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços, e, por via de consequência, nos seus preços. Ao direito civil, na medida em que aplicado a relações contratuais entre não empresários, falta essa característica. A recuperação doutrinária da distinção entre contratos civis e mercantis é, em suma, mais uma manifestação da transição para o modelo reliberalizante. Os contratos entre particulares, excluído o do trabalho, submetem-se a três regimes distintos: civil, comercial e de tutela dos consumidores. De modo genérico, quando a relação contratual aproxima não empresário (o consumidor destinatário final de produto ou serviço) de empresário (o fornecedor que vende no mercado produtos ou presta serviços), aplica-se o regime consumerista; se aproxima dois empresários, aplica-se o regime comercial; e se aproxima dois não empresários, o civil. A exata definição dos âmbitos de incidência de cada regime jurídico-contratual decorre do conceito legal de relação de consumo, que aproxima o fornecedor (CDC, art. 3º) e o consumidor (CDC, art. 2º) e determina a aplicação da legislação de tutela dos consumidores. Se na relação negocial os sujeitos não se enquadram nos conceitos de consumidore de fornecedor, a regência cabe ao direito civil ou comercial. O assunto é aprofundado mais à frente (Cap. 27, subitem 7.3); por enquanto, importa destacar que a tripartição do direito privado dos contratos, no Brasil, espelha, em certa medida, a evolução para o modelo reliberalizante. Em outros termos, pode-se afirmar que, entre sujeitos de direito economicamente iguais - isto é, com recursos semelhantes para entabular negociações -, aplicam-se os regimes civil e comercial; entre sujeitos de direito economicamente desiguais, aplicam-se as normas editadas de forma específica para o contrato ou o regime geral do direito do consumidor. A observância do contratado ou a garantia das sanções estipuladas no contrato para a hipótese de descumprimento são dados essenciais para o cálculo de interesses que cada contratante faz ao entabular as negociações. A siderúrgica, ao contratar com a fábrica de automóveis a venda de aço, calcula o custo para o atendimento do pedido, o ganho que espera ter e apresenta a sua proposta de preço. A fábrica, por sua vez, calcula o quanto esse preço pode impactar seus custos, compara-o com as demais alternativas existentes no mercado e contrapropõe ou aceita o valor da siderúrgica. Uma vez celebrado o contrato, a garantia de validade e eficácia dos direitos e obrigações nele assumidos representa, para os contratantes, condição para a realização dos ganhos projetados. A efetivação dos interesses que se pretendiam proteger pelo contrato depende, assim, do cumprimento do contratado ou, pelo menos, do recebimento da indenização pelas perdas decorrentes do descumprimento. No entanto, como no modelo reliberalizante nas relações entre sujeitos iguais o conteúdo do contrato é válido, mas entre contratantes desiguais pode não valer, é imprescindível que os profissionais do direito, ao atenderem aos seus clientes, forneçam critérios seguros para distinguir as duas hipóteses. Aplicar o regime jurídico dos contratos entre iguais a um negócio entabulado entre pessoas desiguais é altamente injusto, mas não gera imprevisibilidade nem compromete o cálculo de interesses que os contratantes fizeram ao contratar. Todavia, aplicar o regime dos desiguais a sujeitos iguais, à medida que afasta o cumprimento do contratado, causa imprevisibilidade e dificulta o cálculo de interesses. 3. Direito Contratual como tecnologia Os homens e mulheres têm necessidades primárias frustradas em razão da escassez de alguns dos bens naturais aptos a atendê-las. Precisamos respirar e há (ou pelo menos tem havido, por enquanto) oxigênio suficiente, na atmosfera do planeta Terra, para atender às necessidades de todos. Mas se o oxigênio no ar não é escasso, outros bens naturais de que precisamos, como vestimentas, água ou comida, o são - e, nesse caso, apenas alguns homens e mulheres têm suas necessidades plenamente atendidas. Além das necessidades primárias, homens e mulheres também têm outras, relacionadas a produtos ou serviços que o desenvolvimento científico e tecnológico proporciona com o objetivo de ampliar a qualidade de vida. Aqui, a escassez é ainda maior. Nem todos têm acesso à eletricidade, alimentos saudáveis, serviços de saúde ou educação de qualidade, lazer, cultura etc. Afora as necessidades primárias e secundárias, homens e mulheres têm, por fim, querências, isto é, desejam coisas estimulados pela moda, pela publicidade ou por idiossincrasias: uma específica marca de tênis, joias, automóvel de modelo mais recente, vinhos raros etc. A escassez é, então, enorme. Não há como homens e mulheres procurarem atender a suas necessidades e querências sem interação. No passado longínquo, algumas das necessidades primárias eventualmente podiam ser supridas pelo indivíduo isolado, mas há muito tempo isso deixou de ser possível. Essa interação é, em essência, uma troca de produtos - por outros produtos, no início, e por dinheiro, desde a sua invenção. Na Antiguidade, a troca ganhou uma caracterização formal (por assim dizer, jurídica), representada pela noção de contrato. Homens e mulheres não podem viver sem suprir suas necessidades primárias e buscar atender às secundárias e, cada vez mais, às querências; não podem viver, por isso, sem contrato. A racionalidade econômica das interações destinadas ao atendimento de necessidades e querências pressupõe o cumprimento dos compromissos na exata forma como foram assumidos. Tolera o descumprimento apenas quando for a alternativa mais eficiente para uma das partes e desde que a outra seja inteiramente compensada. Afinal, se não se pode contar com o contratado - ou com uma compensação satisfatória -, não há sentido em contratar. Essa racionalidade ostenta, por outro lado, a marca da individualidade: pelo contrato, cada um realiza seus interesses egoístas, dos quais é o único senhor. Tanto melhor se a mão invisível do mercado providenciar que o generalizado atendimento aos interesses egoístas resulte satisfatório para todos. Apenas o enfoque na realização dos interesses individuais tem permitido à economia clássica o cálculo de eficiência (Trebilcock, 1993:7/8 e 15/16). Mas se o objetivo do direito fosse - como ingenuamente almejam os teóricos da análise econômica - sempre buscar a solução mais eficiente (do ponto de vista da economia) para os conflitos de interesses, a trajetória evolutiva da disciplina dos contratos provavelmente não teria ido muito além do modelo liberal. Direito contratual é a parte da tecnologia jurídica que cuida dos meios para atender, de um lado, à racionalidade econômica no uso dos recursos escassos e, de outro, à justiça no amparo do contratante débil. O distanciar-se das leis da seleção natural conduziu a humanidade ao reino da cultura, em que o domínio do mais forte é paulatinamente desgastado. Por vezes, essa evolução cultural, ao coibir o domínio do mais forte, choca-se com a racionalidade econômica do atendimento às necessidades e querências. Sob a perspectiva estrita da eficiência econômica, pode não se justificar, por exemplo, a adaptação de prédios para facilitar o acesso dos deficientes físicos. A adaptação será economicamente a solução menos eficiente - em vista da reduzida parcela da população beneficiada -, mas terá em mira atender a um valor de justiça conquistado ao longo de séculos de evolução cultural. Não se trata de um choque de ideias apenas; a questão envolve pessoas de carne e osso e seus interesses: os proprietários dos prédios que vão pagar pela adaptação e os portadores de deficiência física, que dela se beneficiarão. Também no campo das interações destinadas ao atendimento de necessidades e querências, podem chocar-se os valores de justiça e a racionalidade econômica. Aqui, o direito contratual servirá de tecnologia apta a temperar esses dois vetores. Quando o juiz não tiver como os conciliar, poderá buscar no direito contratual os instrumentos tecnológicos que ora privilegiam a busca do uso mais eficiente dos recursos escassos, impondo a racionalidade econômica, ora atendem aos imperativos de justiça cultivados pela cultura ocidental de raízes europeias, amparando o contratante débil. 4. Conceito de contrato Tradicionalmente, a tecnologia jurídica constrói o conceito de contrato em torno da noção de acordo de vontades. O contrato é o resultado do encontro das vontades dos contratantes e produz seus efeitos jurídicos (cria, modifica ou extingue direitos ou obrigações) em função dessa convergência (cf., por todos, Monteiro, 2003:4/5). A solução enfatiza a autonomia da vontade, dando destaque ao poder dos sujeitos de direito de dispor dos próprios interesses por via de composição entre eles, e por isso tem sido objeto da crítica de tecnologias centradas nas questões suscitadas pelo modelo neoliberal. A transição entre os modelos de evolução do direito do contrato não se faz sem traumas. Está em foco, afinal, um elemento estrutural muito importante do sistema capitalista de produção, que éa liberdade de iniciativa. Quanto maior a interferência estatal no direito dos contratos - seja na forma de dispositivos legais ou infralegais predeterminando o conteúdo das cláusulas, seja na de revisões destas pelo juiz -, menor é a liberdade de iniciativa na exploração de atividades econômicas. Na transição para o modelo neoliberal, a tecnologia jurídica bem que se esforçou nas respostas às críticas ao primado da autonomia da vontade, visando preservar o ideário do laissez-faire (cf., por todos, Epstein, 1999:25/61); mas o embate foi extremamente desgastante para esse propósito. Entre as questões tecnológicas suscitadas pela transição para o modelo neoliberal está a da pertinência do conceito único de contrato, erguido em torno da figura do encontro de vontades (Ghestin, 1982:78/88; Telles, 1965:37/55). Certas tecnologias consideram descabido operacionalizar-se, hoje em dia, com um conceito unitário desse tipo. Para elas, não é correta a reunião numa única categoria conceitual de relações jurídicas tão díspares, como as derivadas dos seguros, fornecimentos de energia elétrica, locações residenciais e empresariais, ao lado das decorrentes de uma compra e venda ou empreitada detalhadamente negociadas entre as partes. Advoga, por isso, a operacionalização de conceitos variados para tais relações jurídicas, separando-as de acordo com a extensão da vontade de se obrigarem determinante para a vinculação do credor ao devedor. Esse modo de tratar o assunto tem conduzido ora à construção de uma categoria jurídica própria para designar aquelas hipóteses de vinculação obrigacional atualmente abrigadas no conceito de contrato em que são reduzidas as negociações entre as partes - o que não deixa de revelar um demasiado apego à formulação liberal dos contratos (Gil, 1983:228/241) -, ora à identificação de outras fontes da obrigação contratual além da vontade dos contratantes, como, por exemplo, as decisões judiciais (Atiyah, 1995:39/40 e 89/93). As preocupações dessas tecnologias não se têm espalhado. O tradicional conceito de contrato, fundado na ideia de encontro de vontades (negócio jurídico bilateral ou plurilateral), tem cumprido sua função de modo satisfatório. Quer dizer, tem servido bem como categoria conceitual útil à orientação da superação dos conflitos de interesses entre os sujeitos que se obrigam por declarações convergentes de vontade. A rigor, enquanto se revelar operacional o conceito unitário de contrato, fundado direta ou indiretamente na noção de acordo de vontades, mesmo no tratamento de relações obrigacionais derivadas de fato jurídico em que não há grandes negociações entre os obrigados, não será justificável a introdução de conceito novo na tecnologia jurídica. Contrato define-se, assim, como um negócio jurídico bilateral ou plurilateral gerador de obrigações para uma ou todas as partes, às quais correspondem direitos titulados por elas ou por terceiros. Esmiuçando: a) Negócio jurídico. Entre os inúmeros fatos jurídicos descritos nas normas jurídicas como antecedentes (das sanções ou outras consequências imputadas), os que correspondem à conduta humana são os atos jurídicos. Entre estes, destacam-se as ações intencionais, quer dizer, as que homem e mulher praticam visando produzir determinado efeito, previsto na norma jurídica. São denominados negócios jurídicos. O contrato é uma ação humana nitidamente intencional. Na compra e venda, o comprador tem a intenção de titularizar a coisa, e o vendedor, de aliená-la de seu patrimônio em troca de certa quantia de dinheiro; na locação, o locatário quer o bem para usar ou gozar por algum tempo, enquanto o locador quer a renda mensal do aluguel; na aposta, os apostadores desejam arriscar algo em vista de um ganho estatisticamente possível, e assim por diante. Ao contratar, o sujeito tem em mira um objetivo, que a norma jurídica diz ser alcançável por meio de determinadas ações. Não há contrato sem a intenção característica dos negócios jurídicos. A conduta humana intencional encerrada no contrato é a declaração de uma vontade. O contratante sempre manifesta a vontade de agir com vistas à produção de determinado resultado de interesse comum às partes do contrato. A forma de exteriorização pode variar (por via oral, por escrito ou por meio eletrônico), a declaração pode ser obrigatória (como nos contratos necessários) ou podem-se exigir outras ações além da manifestação da vontade (como a tradição da coisa na doação oral de pequeno valor e nos contratos reais), mas não há negócio jurídico contratual sem que o contratante declare a intenção de alcançar, com sua conduta, o fim delineado na norma jurídica. A validade do contrato define-se pela dos negócios jurídicos em geral. Quer dizer, válido é o contrato que atende aos requisitos do art. 104 do CC: agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei. Não vale, por exemplo, o mútuo feito a pessoa menor, sem a devida mediação do representante ou assistente legal (CC, art. 588), por faltar capacidade ao mutuário; também é inválido qualquer contrato atinente à herança de pessoa viva (CC, art. 426), por ilicitude de objeto. Por fim, não tem validade a fiança oral, porque a lei exige a forma escrita (CC, art. 819). b) Bilateral ou plurilateral. De acordo com o número de partes, o negócio jurídico pode ser unilateral (uma parte), bilateral (duas partes) ou plurilateral (três ou mais partes). O contrato nunca é negócio jurídico unilateral, porque pressupõe pelo menos duas partes manifestando vontades que convergem para o interesse comum. A gestão de negócios e a promessa de recompensa são exemplos de negócios jurídicos unilaterais (Cap. 20), que, por isso mesmo, não são contratos. A bilateralidade ou plurilateralidade de partes é inerente aos contratos porque sua constituição depende sempre do encontro de vontades de mais de um sujeito de direito na consecução de objetivos comuns. Os contratantes devem ter interesses coincidentes, pelo menos em parte, e conjugá-los para que surja o negócio jurídico contratual. Quando alguém está obrigado a determinada prestação sem ter manifestado a intenção de a assumir em negócio de que participa também o credor, a origem da obrigação não é contratual. Ela provém da lei (responsabilidade civil, obrigação alimentar ou contribuição condominial, por exemplo) ou de declaração unilateral de vontade (promessa de recompensa, despedida de empregado etc.). c) Gerador de obrigações para uma ou todas as partes. As obrigações, lembro, podem ser negociais ou não negociais, segundo a origem imediata (Cap. 13, item 4). Os contratos, claro, por serem negócios jurídicos, geram obrigações negociais (assim também as declarações unilaterais de vontade). Mas, note-se, não geram necessariamente obrigações para todos os contratantes. Em outros termos, os contratos podem ser unilaterais, quando uma só das partes tem obrigações, ou bilaterais, se todas as têm. Nos unilaterais, o encontro de vontades dos contratantes gera obrigações para um deles somente. Na doação pura, apenas o doador se obriga; no comodato, só o comodatário; no mútuo, exclusivamente o mutuário; no contrato estimatório (a venda em consignação), o consignatário é o único contratante obrigado e assim por diante. Nos bilaterais, todos têm recíprocas obrigações. Na compra e venda, o comprador deve pagar o preço e o vendedor transferir o domínio da coisa; na locação, o locador transfere temporariamente a posse do bem e o locatário é obrigado ao aluguel; na empreitada, o empreiteiro obriga-se a erguer a construção e o dono da obra a remunerar- lhe o serviço etc. Na operacionalização do conceito de unilateralidade é preciso cautela. O contrato pode ser unilateral, no sentido de criar obrigações para somente uma das partes, mas nunca será um negócio jurídico unilateral. A doação pura é contrato unilateral, porque apenas o doador assume obrigações, masnão se constitui contra a vontade do donatário. Este é necessariamente parte do negócio jurídico. Sem a concordância do donatário em receber a coisa em doação não há contrato, por mais que o doador insista na liberalidade. É diferente do testamento, por exemplo; nele, só o testador é parte do negócio jurídico, e não o beneficiário da declaração de última vontade. O testamento, por isso, não é um contrato. Em outros termos, não se confunde a quantidade de partes do negócio jurídico com a de contratantes obrigados em virtude do contrato. Negócio jurídico unilateral é o que possui uma só parte; contrato unilateral é o que gera obrigações para um contratante apenas. Todo contrato é negócio jurídico bilateral ou plurilateral porque não pode prover de uma só declaração de vontade. Contrato é o negócio jurídico bilateral ou plurilateral gerador de obrigações para uma ou todas as partes, às quais correspondem direitos titulados por elas ou por terceiros. Ele é necessariamente negócio jurídico integrado por duas ou mais partes. Os negócios jurídicos unilaterais, como a promessa de recompensa ou a gestão de negócios, não são contratos. Não se deve confundir, entretanto, a quantidade de partes do negócio jurídico com a de contratantes obrigados pelo contrato. Quando apenas uma das partes da relação contratual se obriga, como na doação pura, comodato, venda em consignação ou mútuo, o contrato é unilateral, embora continue sendo negócio jurídico bilateral. d) Às quais correspondem direitos titulados por elas ou por terceiros. Em geral, os contratantes atribuem-se recíprocas obrigações e direitos, não extrapolando a relação jurídica das partes do contrato. Admite-se, porém, que o contrato gere direitos a terceiros estranhos à relação contratual, inclusive pessoas não identificadas desde logo ou passíveis de substituição (Cap. 29, item 7). Há, inclusive, hipóteses em que essa característica é ínsita ao contrato. No seguro de vida por morte, o beneficiário em geral não integra a relação contratual estabelecida entre o segurado (ou o estipulante de seguro em grupo) e a seguradora (Cap. 35, item 2). 5. Princípios do direito contratual Um dos mais importantes instrumentos tecnológicos de tempero da racionalidade econômica e valores de justiça que cercam os conflitos de interesses entre as partes de um contrato são os princípios do direito contratual. Trata-se de normas de grande generalidade, expressas em dispositivos de direito positivo ou deles extraídas por via argumentativa, as quais ajudam a nortear os juízes na apreciação de demandas que versam sobre a existência, validade e cumprimento de contratos. São quatro os princípios informadores do direito dos contratos: autonomia privada, vinculação das partes, equilíbrio dos contratantes e relatividade. Eles não têm todos a mesma hierarquia; também não são hierarquizados sempre na mesma escala. Na verdade, dependendo da condição dos contratantes (iguais ou desiguais), certos princípios prevalecem sobre outros. Num contrato entre dois grandes empresários referente a insumos que um deles adquire do outro, a autonomia privada é o princípio fundamental, de maior envergadura; já numa relação de consumo, o do equilíbrio dos contratantes é o mais importante. a) Autonomia privada. No contexto do modelo liberal, a eficácia jurídica dos ajustes privados era decorrência da noção ampla de autonomia da vontade. O modelo neoliberal dos contratos, porém, construiu-se nas críticas a esse princípio. A noção de autonomia privada foi, então, elaborada na tentativa de compatibilizar, de um lado, o reconhecimento do poder de os sujeitos de direito disporem de seus pró prios interesses de modo juridicamente válido e eficaz e, de outro, as limitações impostas pela necessidade de tutelar o contratante débil. O princípio da autonomia da vontade, a rigor, nunca foi ilimitado. Desde sempre encontrou balizas na defesa da ordem pública e garantia da livre e consciente expressão da vontade. O princípio da autonomia privada conserva esses limites e agrega os levantados no modelo neoliberal. Os conceitos, no essencial, se equivalem: apontam para o direito de os próprios sujeitos regularem seus interesses por meio de acordos. A autonomia privada é o reconhecimento pelo direito positivo da eficácia jurídica da vontade dos contratantes. Os sujeitos de direito podem dispor sobre seus interesses mediante acordos livremente negociados e estabelecidos entre eles, observados os limites da ordem jurídica. O contratado nessas condições tem validade para o direito, podendo, assim, qualquer dos contratantes acionar o aparato estatal com o objetivo de constranger o outro ao cumprimento do contrato. Embora amplo, não é ilimitado o reconhecimento, pela ordem jurídica, da validade e eficácia da composição de interesses pelos próprios sujeitos de direito que os titula. O princípio da autonomia privada esbarra, em primeiro lugar, na preservação da ordem pública. Nenhum contrato de objeto ilícito, por exemplo, pode ser judicialmente executado. O postulado da autonomia privada não tem o alcance de validar acordos criminosos, contravencionais ou mesmo imorais. Se dois licitantes contratam por escrito as propostas que oferecerão numa concorrência pública, o descumprimento do ajuste por qualquer um deles não dá ao outro nenhum direito (a fraude em licitações é crime). Do mesmo modo, o empregado de uma banca de jogo de bicho não pode ingressar, na Justiça Trabalhista, com reclamação contra seu empregador para receber indenização por horas extras ou aviso prévio em caso de despedida (malgrado alguns lamentáveis e isolados precedentes nesse sentido). Mesmo contratos cujo objeto não corresponde a nenhum crime ou contravenção podem enfrentar resistências no campo moral, principalmente se os interesses negociados dizem respeito a temas acerca dos quais a sociedade ainda não construiu um padrão claro de moralidade, como embriões crioconservados ou gestação em útero alheio. A autonomia privada valida, assim, os contratos quando exercida nos limites da lei e da ordem pública. Extrapolados tais limites, não atribui o princípio jurídico nenhuma eficácia à composição dos interesses diretamente pelos seus titulares. Outro limite à autonomia privada diz respeito à ausência de plena liberdade ou consciência dos contratantes. Para revestir-se de eficácia jurídica, os contratos devem ser o resultado da livre e consciente manifestação de vontade dos contratantes. Desse modo, o princípio da autonomia não valida os negócios contratuais provenientes de erro, dolo, coação ou outros defeitos. Se a vontade não se expressou livre e consciente, o contrato é anulável (CC, art. 171, II). Por fim, há limitações ao princípio da autonomia privada voltadas à proteção da parte fraca. Por exemplo, as ligadas à questão do acesso às informações pelos contratantes. No complexo mundo em que vivemos, é incomum o contrato em que se verifica plena simetria de informações acerca do objeto. Na maioria das vezes, uma das partes tem muito mais informações sobre o objeto em negociação do que a outra. Predomina a assimetria. Numa relação de consumo, por exemplo, o fornecedor do produto ou serviço tem acerca do fornecimento uma quantidade e qualidade de informações consideravelmente superiores às do consumidor - é inevitável. Pois bem, se o contratante sem informações não tiver sido devidamente informado pelo outro acerca dos aspectos do objeto relevantes para a negociação, as partes não estão em condições de dispor contratualmente de seus interesses (Trebilcock, 1993:102/103). Quando é significativa a assimetria das informações sobre o objeto do contrato, resulta injusto conferir à vontade manifestada pelos contratantes a plena validade e eficácia na produção de efeitos jurídicos. A autonomia privada é o princípio do direito contratual que afirma o poder de os sujeitos disporem de seus próprios interesses mediante acordos.O princípio da autonomia privada não é ilimitado. Balizam-no a ordem pública, a moralidade, a proteção da vontade livre e consciente das partes e dos contratantes débeis. As limitações que acompanham o princípio aqui examinado não lhe subtraem o caráter de fundamento do direito dos contratos. Mesmo quem contrata com pouquíssima liberdade - sem ter a opção de não contratar, sem poder escolher o outro contratante e sem condições de negociar as cláusulas - está dispondo sobre seus próprios interesses mediante o exercício de uma faculdade reconhecida pela ordem jurídica. A essa faculdade dá-se o nome de "autonomia privada" ou "da vontade". As obrigações que as normas jurídicas descrevem como consequências desse fato jurídico - isto é, da composição dos interesses pelos próprios sujeitos de direito que os titulam - são disciplinadas como oriundas de "contrato". Em outros termos, para a ordem jurídica, a vontade convergente dos obrigados define, em maior ou menor grau, a existência ou extensão da obrigação. Por mais desgastada que se encontre a formulação liberal de autonomia, dela sobrevive a noção de uma margem de liberdade dos contratantes na composição dos seus direitos e obrigações. Apenas quando essa margem desaparecer por completo, não se poderá mais cogitar de autonomia privada. Nesse limiar, porém, não terá também sentido nenhum o conceito de "contrato". Em suma, não há direito contratual sem autonomia privada. b) Vinculação das partes. A vinculação das partes ao contratado é decorrência imediata da autonomia privada. Para atribuir eficácia à composição dos interesses pelos próprios interessados, mediante acordo de vontades, a ordem jurídica deve impor aos contratantes a obrigação de cumprir o contrato. Por outra, deve disponibilizar aos lesados pelo descumprimento de obrigações contratuais meios de acionamento do aparato estatal com vistas a afastar, atenuar ou compensar o prejuízo. A vinculação das partes à vontade declarada é, desse modo, um dos princípios fundamentais do direito contratual, sem o qual o conceito de contrato se dilui. Em regra, as partes se vinculam ao que contrataram. Obrigam-se a cumprir a declaração externada nos seus exatos termos, mesmo que, no momento da execução, o contrato não mais lhes interesse como havia interessado na contratação. Deve cada contratante, por assim dizer, manter a palavra empenhada: pagar o aluguel mensal, restituir o bem dado em comodato no vencimento do contrato, remunerar o empreiteiro a cada medição, restituir o valor mutuado etc. Se não o fizer, expõe-se à execução judicial do contratado e à obrigação de ressarcir os prejuízos que tiver causado ao outro contratante. A vinculação das partes ao contrato é importante não somente do ponto de vista moral, de cumprimento da palavra empenhada. Trata-se de princípio que corresponde a elemento estrutural da economia. Cada sujeito de direito planeja suas ações no pressuposto de integral cumprimento dos contratos. Esse pressuposto é pertinente, porque a expressiva maioria das obrigações contratuais é de fato adimplida no tempo e lugar ajustados. Aquele contratante que deixa de entregar, no vencimento, a prestação por que se obrigara desencadeia, em graus variados, um movimento de frustração dos planejamentos dos demais sujeitos. Depois de celebrar o contrato de locação, com a definição do valor e prazo do aluguel devido pelo locatário, o locador pode assumir compromissos com terceiros, contando com esses recursos; pode, imagine, financiar a aquisição de um automóvel. Se o locatário falha no pagamento do aluguel no valor e prazo contratados, o locador não disporá dos recursos correspondentes para o pontual adimplemento de sua obrigação com a financiadora. Se não tiver dinheiro economizado para emergências ou não conseguir emprestá-lo de amigos ou parentes, irá atrasar a prestação do carro. Ainda que, posteriormente, os devedores inadimplentes indenizem os credores, a frustração do adimplemento de um contrato repercute em outros (do ponto de vista econômico; não jurídico). Portanto, o pressuposto (pertinente) do cumprimento dos contratos de que partem todos os credores para planejarem o atendimento aos seus próprios compromissos é elemento importante para o regular funcionamento da economia. A vinculação dos contratantes ao contrato é o princípio jurídico destinado a impedir ou atenuar a frustração desse pressuposto. As partes vinculam-se ao que contratam, no sentido de ficarem obrigadas a entregar a prestação (dar, fazer ou não fazer) nos exatos termos da declaração negocial expendida. O princípio da vinculação das partes ao contrato não é só imperativo moral (cumprir a palavra empenhada), mas também elemento estrutural da economia (impede ou atenua frustrações no planejamento dos diversos sujeitos de direito relativo às suas obrigações). No modelo liberal, a vinculação era extremada. Fatos imprevisíveis no momento da contratação que, na execução, sacrificavam a vantagem projetada não exoneravam o contratante de suas obrigações. Todos os infortúnios eram levados a débito da imprevidência ou incompetência do contratante. Se teve a oportunidade de manifestar a vontade de forma livre e consciente, e negociou mal seus interesses, o contratante devia simplesmente arcar com todas as consequências, não sendo justo, ademais, privar a outra parte dos seus ganhos com a execução do contrato, se ela não havia contribuído minimamente para a excessiva onerosidade. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, no contexto da transição para o modelo neoliberal, difundiram-se institutos jurídicos tendentes à revisão judicial do conteúdo do contrato, como a teoria da imprevisão. Afastou-se qualquer ideia de imoralidade ou ilicitude no descumprimento do contratado pelo sujeito pressionado por fatores externos à sua vontade que haviam tornado extremamente difícil ou mesmo impossível a entrega da prestação (Cap. 28, subitem 3.2). Embora haja quem questio ne a relação (Posner, 1999:61/78), a possibilidade de redefinição do contrato pelo juiz, para liberar a parte de algumas (revisão) ou mesmo de todas as obrigações assumidas (resolução), é resultado do abrandamento da ideologia liberal a que se constrangeu o capitalismo ao longo do século passado. c) Equilíbrio dos contratantes. Há cerca de cem anos atrás, considerava-se justo que o contratante mais forte - isto é, o titular de poder econômico ou de mercado, detentor do monopólio das informações sobre o objeto em negociação, com acesso a profissionais mais capacitados para assessorá-lo etc. - aproveitasse de sua condição para extrair o máximo de vantagem do contrato, evidentemente em detrimento do mais fraco. Georges Ripert, por exemplo, discutindo a regra moral nas obrigações civis, sustentava a fatalidade da desigualdade entre os contratantes e a justiça das vantagens auferidas em razão dela. Afirmava que a superioridade haurida na formação intelectual e moral, na moderação dos desejos e compreensão dos interesses podia traduzir-se em legítimas vantagens contratuais, ainda que em prejuízo de outrem. O moralmente condenável era apenas o abuso da superioridade, que a lei civil procurava impedir por regras como as de invalidação do ato jurídico por incapacidade do agente ou vício de consentimento. Desde que respeitasse a lei e os bons costumes, cada contratante tinha o direito de buscar a realização maximizada de seu interesse, no contexto da "fecunda luta de vontades egoístas" - expressão de Ripert (1925:89/90). Hoje em dia, porém, o valor de justiça prestigiado pelo direito contratual é bem diferente. O contratante mais forte não pode ter vantagens, em detrimento do mais fraco, em razão de sua melhor condição patrimonial, financeira, econômica, de mercado, profissional ou qualquer outra. É a evolução da cultura libertando o homem da seleção natural, da estéril luta de vontades egoístas. A autonomia privada depende, para sua afirmação, da existênciade um equilíbrio entre os contratantes. A ordem jurídica somente deve reconhecer validade e eficácia à composição dos interesses pelos próprios titulares, mediante acordo de vontades, se eles possuírem iguais meios para defendê-los na mesa de negociação. Caso contrário, o mais forte acabará fazendo prevalecer seus interesses, e não se realizará a articulação de interesses amparada na autonomia privada. Entre os contratantes iguais, o equilíbrio é alcançado pela isonomia. Nesse caso, nenhum deles pode titularizar um direito contratual que não seja reconhecido pela ordem jurídica também para o outro. As normas devem ter caráter supletivo, destinadas apenas a suprir as eventuais omissões do instrumento contratual livremente negociado entre as partes. Já entre os desiguais, o equilíbrio não se estabelece pela isonomia. Aqui, a lei deve atribuir à parte fraca direitos e prerrogativas negados à outra, para equalizar as condições com que comparecem à mesa de negociação. Os direitos e prerrogativas concedidos ao contratante vulnerável ou hipossuficiente compensam, por assim dizer, a sua debilidade econômica, cognoscitiva, social etc. Os contratantes devem estar equilibrados para exercitar a autonomia privada, ou seja, para que as vontades declaradas em convergência produzam efeitos jurídicos válidos e eficazes. Entre os contratantes desiguais, o equilíbrio faz-se mediante o reconhecimento de direitos e prerrogativas ao mais débil, de modo a compensar sua vulnerabilidade ou hipossuficiência. Já entre os iguais, o equilíbrio resulta do tratamento isonômico dispensado aos contratantes. O injusto, no modelo reliberalizante, é tratar isonomicamente contratantes desiguais ou não isonomicamente os iguais. Quando o consumidor quer contratar um plano de saúde, ele entabula negociações com um contratante muito diferente dele. A operadora privada de planos de saúde (OPPA) está em melhores condições para negociar, sob qualquer prisma por que se examine o quadro: econômico, financeiro, profissional, de mercado etc. Esses contratantes não podem ser tratados de forma isonômica. Equivaleria a condenar o consumidor à integral submissão aos interesses da OPPA. O justo, nessa relação entre desiguais, é conceder ao consumidor direitos e prerrogativas tendentes a neutralizar sua vulnerabilidade, equilibrando os contratantes. Por outro lado, se dois empresários de grande porte - um industrial, outro banqueiro - estão discutindo um financiamento, ambos têm as mesmas condições de negociação. Sentam à mesa como iguais, e seria injusto e irracional que um deles pudesse valer-se de institutos destinados à tutela dos contratantes vulneráveis para obter qualquer tipo de vantagem. Também se encontram em situação de igualdade negocial os não profissionais. Se o dentista negocia a venda de seu automóvel usado com o vizinho arquiteto, são dois contratantes iguais, que devem ser tratados isonomicamente pelo direito contratual. O equilíbrio dos contratantes alcança-se, portanto, por vias diferentes, de acordo com a condição deles. O essencial é assentar que apenas contratantes equilibrados podem exercitar a autonomia privada. d) Relatividade. Outra decorrência da autonomia privada é a impossibilidade de um contrato criar obrigações para quem não é parte dele. Denomina-se princípio darelatividade à regra que obstaculiza a extrapolação dos efeitos atinentes à criação de obrigação para além dos próprios contratantes. Quem, por exemplo, promete fato de terceiro obriga-se a indenizar o declaratário se o prometido não for executado (CC, art. 439), exatamente porque os efeitos obrigacionais do contrato são limitados aos contratantes. Dois sujeitos podem, por contrato, criar direitos a terceiros estranhos à relação contratual. O segurado dum seguro de vida por morte deve indicar o beneficiário da prestação em caso de sinistro. Esse beneficiário não é parte do contrato de seguro, mas terá, em razão dele, direito de crédito perante a seguradora no caso de falecimento do segurado. Qualquer contrato pode ser celebrado com o objetivo de gerar direitos a terceiros (CC, art. 467). No tocante às vantagens, portanto, os efeitos do contrato podem afetar patrimônio de sujeito não contratante. No que diz respeito à criação de obrigações, porém, os efeitos são restritos aos contratantes. Ninguém pode ser obrigado por declaração de vontade alheia - este é outro desdobramento da autonomia privada. A ordem jurídica reconhece o poder de os próprios titulares dos interesses disporem acerca deles mediante acordo, mas não o de obrigar terceiros estranhos à negociação. Pelo princípio da relatividade, os efeitos do contrato atinentes à criação de obrigações são restritos às partes contratantes. Ninguém pode ser obrigado em razão de contrato de que não participa. O princípio da relatividade já fundamentou, no passado, a exoneração de responsabilidade do fabricante por acidentes de consumo quando demandado pelo consumidor. Como este havia contratado com o comerciante, argumentava-se com a relatividade dos contratos para afastar a legitimidade passiva do fabricante na ação intentada pela vítima. O comerciante, se condenado, poderia regredir contra o fabricante, porque entre eles houve contrato; mas por não existir qualquer vínculo contratual entre o fabricante e o consumidor, a demanda entre eles era descabida. O desenvolvimento do consumerismo importou a superação do princípio da relatividade na relação de consumo (Coelho, 1998, 1:256/260). 6. Cláusulas gerais do direito contratual Cláusulas gerais são normas jurídicas vazadas em um ou mais conceitos vagos destinados a deixar em aberto a questão dos exatos contornos do seu âmbito de incidência. O elaborador da norma, diante da alta complexidade do fato a regular, intencionalmente emprega expressão dotada de vagueza, de modo que o juiz possa nortear-se mais confortavelmente por ela na solução dos conflitos de interesses. Trata-se, portanto, de uma técnica legislativa. À cláusula geral se contrapõe a norma casuística, em que não se empregam conceitos propositadamente vagos (Engish, 1983:228/234). Se uma norma estabelecesse, por exemplo, que "o devedor inadimplente deve pagar juros a título de consectários", ela adotaria a técnica casuística; mas, se estatuísse que "o emprego pelo empresário de meios imorais na captação de clientela configura concorrência desleal", a técnica utilizada seria a da cláusula geral. No plano retórico, tanto as normas casuísticas como as cláusulas gerais possibilitam ao tecnólogo sempre certa margem para argumentar que determinado conflito de interesses pode ser superado em certo sentido em função dos termos que elas empregam. A margem, contudo, é maior na cláusula geral, relativamente às normas casuísticas. As cláusulas gerais não são princípios. Há uma diferença significativa entre esses dois tipos de normas jurídicas. Os princípios, estudou-se, são normas de âmbito de incidência extremamente largo, que se projetam sobre as demais, informando-lhe a interpretação. Podem estar expressos em dispositivos de direito positivo ou ser revelados pelos tecnólogos (Cap. 3, item 3). Já as cláusulas gerais não se caracterizam pela amplitude do âmbito de incidência e, embora possam servir à interpretação de outras normas, não são propriamente vocacionadas para esse desiderato. A liberdade de iniciativa, por exemplo, é um princípio (constitucional, aliás) por ser norma jurídica de larguíssima incidência - disciplina matérias afetas ao direito econômico (repressão às infrações contra a ordem econômica e controle preventivo da concorrência), propriedade industrial (exclusividade na exploração de marcas e patentes), direito penal (repressão à concorrência desleal) e contratual (liberdade negocial dos contratantes) etc. - e informa a interpretação de outras normas, objetivando conferir pseudossistematicidade ao ordenamento jurídico. Já a regra da boa-fé inserida no art.422 do CC é cláusula geral, porque incide apenas na conclusão e execução dos contratos, e quando empregada numa interpretação sistemática, comparece como um elemento a mais do repertório do ordenamento a sistematizar e não como fator de sistematização. A diferenciação entre princípio e cláusula geral é importante porque a interpretação desta última não pode contrariar o primeiro. Há, por assim dizer, uma hierarquia que privilegia o princípio sobre a cláusula geral - a mesma hierarquia que o destaca relativamente à norma jurídica de qualquer outro tipo. A cláusula geral, como qualquer outra norma de âmbito específico, deve ser harmonizada com os princípios do direito. Veja um exemplo. Nas negociações preliminares de venda de empresas é imprescindível que determinadas informações estratégicas sejam sonegadas aos compradores. Assim é porque, na hipótese de as negociações se frustrarem, a empresa que poderia ter sido vendida não pode ficar exposta ao risco de ver suas informações estratégicas utilizadas pelo potencial comprador - muitas vezes, um concorrente - em seu prejuízo. Por isso, nos documentos preparatórios das negociações, os potenciais contratantes costumam acordar expressamente acerca de quais informações da empresa são disponibilizáveis e quais não são. Nesse contexto, o comprador não poderá alegar descumprimento, pelo vendedor, da cláusula geral de boa-fé, porque as informações sonegadas o foram em razão de um acordo de vontades. A autonomia privada, por ser princípio, baliza os limites da boa-fé objetiva, que é cláusula geral. As cláusulas gerais são normas jurídicas intencionalmente redigidas com o emprego de conceitos vagos para que os exatos limites de seu âmbito de incidência sejam definidos na sua aplicação pelos juízes. Diferem-se dos princípios, cujo âmbito de incidência, embora largo, não está necessariamente impreciso. Em outros termos, na interpretação e aplicação de qualquer cláusula geral do direito contratual, deve-se antes e sempre respeito aos princípios do direito, em particular os desse ramo jurídico. No direito contratual brasileiro, são duas as cláusulas gerais: boa-fé objetiva e função social. 6.1. Boa-fé objetiva A virtude da boa-fé consiste em acreditar no que diz e dizer o que acredita. Quem está de má-fé, mente; mas quem mente não está necessariamente de má-fé. No clássico exemplo do cidadão alemão que, durante o nazismo, dá guarida ao amigo judeu e mente a respeito para a gestapo, encontra-se a convergência da boa-fé e a mentira. O cidadão alemão acredita, de verdade, que não há mal em enganar se isso é necessário para salvar a vida do amigo, o que revela sua boa-fé. No mesmo sentido, quem está de má-fé, engana; mas quem engana não está sempre de má-fé. Isso porque age de boa-fé aquele que acredita no que diz, mesmo quando está equivocado. Se alguém desconhece a verdade dos fatos sobre os quais fala, mas acredita sinceramente ser veraz o que deles sabe, está de boa-fé (cf. Comte-Sponville, 1995:213/228). A tecnologia jurídica enfrenta dificuldades na operacionalização do conceito de boa-fé, quando associado à virtude moral. Como definir se o contratante, na mesa de negociações, acredita no que diz e diz apenas o que acredita, se impossível invadir sua intimidade cerebral? Nos Estados Unidos, quando se mostrou insustentável o paradigma do "coração puro e mente vazia" na identificação da conduta de boa-fé (good faith), a tecnologia jurídica introduziu um conceito diverso (fair dealing) para delinear o padrão desejado de comportamento para os contratantes (Calamari-Perrillo, 1970:508/512; Rouhette, 2003:74). No Brasil, preferiu-se adjetivar o conceito, distinguindo entre boa-fé subjetiva e objetiva. A boa-fé subjetiva corresponde à virtude de dizer o que acredita e acreditar no que diz. Tem relevância para o direito das coisas, na qualificação da posse, mas não é operacionalizável no direito dos contratos. Já a boa-fé objetiva é representada por condutas do contratante que demonstram seu respeito aos direitos da outra parte (Marques, 1992:105/107). Agir de boa-fé, entenda-se, não significa passar a defender, nas negociações, os interesses do outro contratante. Isso não se exige de ninguém e seria um extraordinário contrassenso: cada um continua perseguindo os seus próprios interesses ao contratar e não precisa abrir mão deles. É necessário, contudo, que as partes nutram mútuo respeito, que prestem sempre informações completas, claras e verdadeiras, não enganem nem busquem ocultar com subterfúgios aspectos essenciais ao negócio (Silva, 1976). Se as ações ou omissões de um sujeito denunciam ou sugerem desrespeito aos direitos do outro contratante, considera-se que ele descumpriu o dever geral de boa-fé objetiva. Imagine que, antes de anunciar a venda da casa, o vendedor mandou pintá-la com o único objetivo de disfarçar uma séria infiltração; se ele não avisar os potenciais compradores do problema, configura-se a ausência de boa-fé objetiva. Se o contratante não age de boa-fé - nas negociações ou na execução do contrato -, ele descumpre uma obrigação imposta pela lei. Incorre, portanto, num ato ilícito. As consequências do descumprimento do dever geral de boa-fé objetiva, portanto, são as mesmas de qualquer ilicitude: o outro contratante tem direito à indenização pelos prejuízos que sofrer. Quer dizer, se não houver expressa previsão contratual prevendo a resolução do contrato, a ausência de boa-fé de um contratante não implica a desconstituição do vínculo. Na lei, não é prevista a revisão ou extinção do contrato pela desobediência do dever geral de boa-fé, mas apenas a responsabilidade civil subjetiva do contratante de má-fé (CC, arts. 186, 422 e 927 combinados). Os tecnólogos brasileiros mais percucientes atribuem a natureza de cláusula geral à previsão legal de boa-fé objetiva na negociação e execução dos contratos. Com isso, querem dizer que a lei emprega propositadamente uma expressão vaga ("boa-fé") visando construir uma disciplina adequada à dinâmica da realidade contratual. Consideram esses tecnólogos que a adoção da técnica legislativa da cláusula geral implica a impossibilidade de se fixarem os limites exatos do âmbito de incidência da norma por mera intelecção de seus termos em abstrato. Concluem, então, que nesse caso a jurisprudência tem a função de delimitar os contornos daquele âmbito. O tecnólogo, diante do art. 422 do CC ("os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé"), pode apenas lembrar as hipóteses que melhor ilustram sua aplicação, mas sempre haverá margem para o juiz considerar uma conduta como alcançada ou não pelo preceito, em razão da vaguidade proposital da expressão usada pelo legislador. Uma norma casuística aqui, concluem esses tecnólogos, não permitiria a normatização conveniente do dever de lealdade entre os contratantes, dada a alta complexidade do tema (Martins-Costa, 1998 e 1999: 273/377; Nery Jr., 2003; cf. Cordeiro, 1983:1182/1184). Em razão da cláusula geral da boa-fé objetiva, os contratantes devem-se, tanto nas negociações como na execução do contrato, mútuo respeito quanto aos direitos da outra parte. Condutas que denunciam ou sugerem o desrespeito - como a ocultação de vícios da coisa - caracterizam a ausência de boa-fé. O descumprimento do dever geral de boa-fé objetiva implica, pela lei, apenas a responsabilidade civil do contratante faltoso, que deve indenizar todos os prejuízos sofridos pela parte cujos direitos desrespeitou. Não há previsão legal que fundamente a revisão ou resolução do contrato em virtude da má-fé do contratante. A tecnologia civilista brasileira, ao considerar a boa-fé dos contratantes uma cláusula geral, manifesta a marcante influência da evolução que o trato da matéria experimentou no direito germânico. A partir de dispositivo do Burgeliches Gesetzbuch (BGB: Código Civil), que obriga
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