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Direito Civil

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2018 - 03 - 11 
Curso de Direito Civil - Volume 3
PRIMEIRAS PÁGINAS
© desta edição [2016]
2018 - 03 - 11 
Curso de Direito Civil - Volume 3
QUARTA PARTE - DIREITO DOS CONTRATOS
CAPÍTULO 26. INTRODUÇÃO AO DIREITO DOS CONTRATOS
QUARTA PARTE - DIREITO DOS CONTRATOS
(Autor)
Fábio Ulhoa Coelho
Capítulo 26. INTRODUÇÃO AO DIREITO DOS CONTRATOS
1. A evolução das culturas
A UNICEF calcula que anualmente cerca de dois milhões de meninas entre 4 e 14 anos
são submetidas à clitoridectomia, a cruel mutilação genital feminina (MGF) que algumas
culturas africanas e asiáticas admitem. Parte dessas mutilações ocorre na Europa, norte
da América e Austrália, onde imigrantes cultivam a tradição. Na Noruega e Suécia, editou-
se lei específica criminalizando a prática. Embora a maioria das MGFs seja feita em
condições precárias de higiene, por "curiosas" que ganham a vida extirpando o clitóris das
meninas de suas tribos, tem preocupado a UNICEF o crescimento, nas últimas décadas, do
número de mutilações resultantes de cirurgias realizadas em modernos centros
hospitalares, sob a responsabilidade de médicos.
Ao contrário do que por vezes se acredita, nenhuma religião defende ou estimula a
MGF. Trata-se de manifestação puramente cultural: pretende-se que a mulher, por não
saber lidar com sua sexualidade, se não for contida, pode pôr em risco a pureza da
linhagem. É uma tradição cultural de raízes tão fortes que as políticas governamentais e
mesmo as leis proibindo a prática têm-se mostrado muito ineficazes. Resultados mais
animadores são obtidos quando a abolição é decidida pelas tribos, como ocorreu em 1998
em Ngerin Bambara, no Senegal. A UNICEF trabalha para que a MGF seja abolida em todo
o mundo já nas primeiras décadas do século XXI e tem alcançado importantes conquistas
nessa direção.
É certo que a prática deixará de existir um dia, porque prevalecerão as culturas
superiores.
Falar em superioridade de culturas exige cautelas. Nos discursos dos vários e variáveis
movimentos antiglobalização, aponta-se a pasteurização da cultura como um dos riscos do
processo de criação do mercado único planetário. Sugere-se, nesses discursos, que as
culturas teriam todas igual direito à livre expressão e sobrevivência; que nenhuma cultura
poderia ser vista como melhor que as outras. Falar, assim, em cultura superior é provocar
os propagadores dos discursos politicamente corretos. Paciência. A globalização importará
o fim da diversidade cultural. Poderá existir certa combinação entre as manifestações
culturais, mas não no mesmo grau - as mais evoluídas irão absorver as demais. A cultura
da idade da pedra de algumas tribos amazônicas poderá eventualmente sobreviver nos
entremeios de manifestações culturais sofisticadas. Uma toada rítmica de ritual indígena
pode ilustrar e enriquecer um concerto para orquestra, mas nunca o contrário. Mas se é,
deveras, uma triste consequência da globalização o empobrecimento do
multiculturalismo, o fim das manifestações culturais diversificadas, não cabe lamentar a
anunciada morte de algumas tradições - como a de mutilar meninas, por exemplo.
Existem culturas superiores; e o inevitável processo de globalização econômica nos
conduzirá ao seu predomínio, com o fim das inferiores. Não se está, aqui, somente
contrapondo um concerto sinfônico à cadência do kuarup, mas principalmente os
múltiplos valores de organização da convivência em sociedade. O respeito aos direitos
humanos, por exemplo, é conceito oriundo da cultura eurocêntrica que se impõe
gradativamente ao mundo todo. A UNICEF legitima sua ação contra a MGF invocando os
direitos fundamentais da criança, noção em tudo estranha à cultura das comunidades
africanas e asiáticas em que a prática se dissemina. Luigi Ferrajoli - teórico do direito
penal e defensor de teses arrojadas como a eliminação da pena privativa da liberdade -
sustenta que o respeito aos direitos humanos é o limite a partir do qual se torna
admissível a diversidade cultural. Para ele, nenhuma cultura que importe o domínio do
mais forte sobre o mais fraco pode servir de obstáculo à defesa dos direitos humanos, tal
como gerada pela cultura eurocêntrica. Ele cita a clitoridectomia como exemplo de
transgressão a direitos dessa ordem (2001:338/345).
A questão, aqui, é saber como hierarquizar as culturas: a partir de que critério cabe
apontar determinada manifestação cultural como superior ou inferior relativamente a
outra? Penso que a resposta esteja no distanciamento da condição animal, em que o forte
domina o fraco. A cultura é a superação da seleção natural, a libertação do homem de sua
condição meramente animalesca. Quanto maior a distância entre a cultura e o primado da
seleção natural, isto é, o domínio do mais forte, maior é a evolução. Ainda no século XIX,
no Brasil e na África portuguesa, a cultura dominante aceitava a escravidão, prática
repudiada no resto do continente americano e na Europa. Naquele tempo, portanto, a
cultura brasileira era inferior à europeia, porque os valores nela predominantes estavam
mais próximos do domínio do mais forte do que os desta última. Do mesmo modo, as
comunidades que hoje mutilam suas meninas - com o objetivo de garantir a castidade
antes do casamento e a fidelidade após - têm uma cultura inferior.
Quando o direito dos contratos consagra princípios como o da tutela do contratante
débil, revela traços de uma cultura superior, apta a organizar a convivência humana
além das leis da seleção natural, isto é, do domínio do mais forte.
Adotado o critério de hierarquização em razão do afastamento relativo à seleção
natural, ao domínio do mais forte, o respeito aos direitos humanos é um traço de
superioridade da cultura. A evolução do direito dos contratos em direção a valores como a
tutela do contratante débil (hipossuficiente ou vulnerável) é outra manifestação de
superioridade cultural.
2. A evolução do direito contratual
Podem-se divisar, na evolução do tratamento que o direito dispensa aos acordos entre
os sujeitos privados, três modelos fundamentais. O primeiro, em que prevalece sempre a
vontade das partes, e a interferência do aparato estatal limita-se, basicamente, a garantir
tal prevalência (modelo liberal); o segundo, em que a interferência do aparato estatal
substitui, em determinadas situações, a vontade manifestada pelas partes por regras de
direito positivo (modelo neoliberal); e, por fim, o terceiro, em gestação, em que se distingue
o acordo feito por sujeitos privados iguais do contrato entre desiguais, com o intuito de
prestigiar a vontade das partes naquele e tutelar o economicamente mais fraco neste
(modelo reliberalizante).
A Ciência do Direito pode discutir a evolução desses modelos por uma perspectiva
histórica, relacionando-os às nuanças da luta de classes e aos correspondentes avanços e
recuos do estado capitalista, em especial no transcorrer do século XX; no plano da
tecnologia jurídica, o interesse nos dois primeiros justifica-se como instrumento para
melhor compreensão do modelo reliberalizante e de sua operacionalidade na solução dos
conflitos relacionados aos contratos.
2.1. A lei das partes
A autonomia da vontade é conceito originário da filosofia. Trata-se da chave, na ética de
Kant, para discernir a moralidade das condutas. Por exemplo, quem afirma que não se
deve mentir, porque receia envergonhar-se caso venha a ser revelada a verdade, não
expressa uma vontade autônoma. Por isso, quando não mente adota conduta desprovida
de valor moral. Se o pai ensina ao filho que "não minta, porque a mentira tem pernas
curtas", ele está transmitindo uma formulação moralmente inválida para a ética kantiana.
A heteronomia da vontade - fazer algo porque se quer outra coisa - é a fonte de todos os
primados moralmente ilegítimos em Kant. Já quem entende que não se deve mentir,
porque a mentira é em si mesma condenável, independentemente de temer a vergonha deser surpreendido, expressa uma vontade autônoma; e sua conduta, ao abster-se de mentir,
é moralmente válida para Kant. A vontade autônoma guia-se exclusivamente por ela
mesma, pautando suas escolhas pelas máximas que quer como leis universalmente
válidas (1785:213/239).
A tecnologia jurídica apropriou-se da expressão, mas não do conceito. Para o saber
jurídico, autonomia da vontade é a referência ao reconhecimento, pela ordem positiva, da
validade e eficácia dos acordos realizados pelos próprios sujeitos de direito. A vontade
autônoma, para a doutrina, é a que se manifesta livremente na criação de direitos e
obrigações, porque nenhuma lei os preestabelece. Em outros termos, pela autonomia da
vontade, o sujeito de direito contrata se quiser, com quem quiser e da forma que quiser. A
ordem jurídica reconhece os direitos e deveres gerados pela livre manifestação de vontade
das pes soas, conferindo validade e eficácia ao contratado entre elas. O princípio da
autonomia da vontade, nuclear no regime privado do direito dos contratos, desdobra-se
em postulados como os seguintes:
a) Todos são livres para contratar ou não. Ninguém está obrigado a celebrar contrato
contra a sua vontade. Assim, o sujeito de direito motiva-se a contratar exclusivamente
pelo interesse que identifica, segundo seus próprios e subjetivos critérios, no resultado da
troca em negociação. Se por qualquer motivo, ainda que emocional, irracional ou
intuitivo, a pessoa não considera vantajoso o negócio (porque toma a obrigação que
assumiria por menos interessante que a prestação prometida pelo outro contratante ou
simplesmente porque não o deseja), não há como obrigá-la a contratar. Mesmo quando se
encontra compromissado a celebrar o contrato, em virtude de um contrato preliminar, é a
vontade do sujeito (manifestada no primeiro negócio) que o obriga. Outra decorrência do
primado da liberdade de contratar é a instabilidade dos vínculos contratuais por prazo
indeterminado. O contratante pode rescindir unilateralmente os contratos sem prazo, a
qualquer tempo: se ninguém é obrigado a contratar, também não pode ser obrigado a
ficar vinculado ao contrato para sempre.
b) Todos são livres para escolher com quem contratar. Em razão do princípio da
autonomia da vontade, ninguém pode ser obrigado a contratar com quem não quer. De
novo, os motivos que se levam em conta para afastar a hipótese de contrato com
determinado sujeito podem ser irracionais, emocionais ou intuitivos, não interessa; se
alguém simplesmente não quer vincular-se a certa pessoa, nada o pode forçar. Em
decorrência do primado da liberdade de escolha do contratante, o sujeito vinculado a
contrato não pode substituir-se no vínculo por ato unilateral de vontade. Caso o
instrumento contratual não autorize expressamente a sub-rogação ou cessão do contrato,
essas operações não são válidas sem o consentimento dos demais participantes.
c) Os contratantes têm ampla liberdade para estipular, de comum acordo, as cláusulas do
contrato. Como os sujeitos são livres para contratar ou não e para escolher com quem
contratam, é consequência lógica dessa ampla liberdade a possibilidade de as partes
definirem, de comum acordo, os termos e condições do contrato, sem nenhuma restrição
externa ao encontro de vontades. Em consequência do primado da liberdade de estipular
as cláusulas do contrato, a lei atinente à matéria contratual desdobra-se em dispositivos
na sua maioria de natureza supletiva, isto é, são normas aplicáveis na hipótese de omissão
das partes, quanto à composição de determinado interesse comum, no contexto do
contrato. Somente se as partes se omitiram de detalhar certo aspecto do negócio
entabulado, incide a lei para suprir a falta, definindo os direitos e obrigações dos
contratantes.
No primeiro quadro evolutivo do direito dos contratos, é fundamental a
proteção à autonomia da vontade, no pressuposto de que todos são livres
para contratar ou não, para escolher com quem contratar e para estipular,
em comum acordo, as cláusulas do contrato (pacta sunt servanda).
Costuma-se sintetizar o princípio da autonomia da vontade, no modelo liberal, pela
assertiva de que o contrato é lei entre as partes (pacta sunt servanda). Esse é o seu primado
ideológico básico. O sujeito de direito que livremente assume compromisso, perante outro
sujeito, de dar, fazer ou não fazer (em geral, trocando por alguma prestação que lhe
parece equivalente) tem, pela ordem jurídica, uma obrigação a cumprir. Se não o faz, o
sujeito perante o qual o compromisso foi assumido pode acionar os mecanismos estatais
de coerção para obter o cumprimento forçado do contrato (execução específica), um
resultado semelhante ao cumprimento (execução subsidiária por equivalente) ou a
indenização das perdas e danos sofridos (execução subsidiária por indenização). E
exatamente porque o sujeito é livre para vincular-se ou não por contrato, se a sua vontade
foi a de se obrigar, expõe-se à coerção do Estado, na hipótese de faltar ao cumprimento da
obrigação.
No contexto do modelo liberal, uma preocupação acentuada da tecnologia jurídica
encontra-se na determinação do grau de liberdade dos contratantes. Para ser vinculativa,
a vontade deve ser livre, amplamente livre. Assim, admite-se a invalidação, ineficácia ou
desfazimento do vínculo contratual nas hipóteses em que o sujeito não se encontrava em
condições de manifestar a vontade a salvo de qualquer restrição externa. A teoria dos
vícios do consentimento reputa não constituída a obrigação nas hipóteses de erro, dolo ou
coação, porque fatores exógenos à vontade do sujeito deturpam-na no momento de sua
manifestação num negócio jurídico. A emissão da vontade, nesse caso, é defeituosa (Cap.
10, item 11). A única limitação à vontade das partes é a ordem pública, concretizada nos
ditames da lei. Pela teoria dos vícios sociais, a fraude contra credores pode comprometer a
validade do ato jurídico, não porque a vontade do sujeito é deturpada, mas pela
inadequação entre ela e o ordenamento jurídico. A vontade também é considerada
defeituosa quando manifestada com o intuito de prejudicar legítimo interesse de terceiros
(cf. Beviláqua, 1908:216).
2.2. A liberdade que escraviza
A origem do princípio da autonomia privada é identificada, por Ana Prata, na transição
do feudalismo para o capitalismo. O operário, ao contrário do servo, é reconhecido como o
proprietário de sua força de trabalho, de modo que a relação de produção capitalista se
expressa, no plano jurídico, como a venda dessa especial mercadoria ao dono da
indústria. Dessa forma, todos passam a identificar-se como proprietários, elemento que
não se encontra na relação de produção feudal (1982:8/10). A autonomia da vontade é,
assim, um conceito jurídico forjado para retratar a nova ordem econômica, o capitalismo.
Concebido em função das especificidades da relação de produção capitalista,
comparativamente à feudal, o princípio da autonomia da vontade manifesta o
esgotamento de sua aptidão originária quando o proletariado começa a organizar-se em
busca da melhoria de sua situação. Desse modo, no fim do século XIX - ao tempo em que o
socialismo, pelo viés marxista, assume seu perfil mais elaborado -, a doutrina jurídica dos
contratos começa a prestar atenção às limitações do modelo liberal, fundado no
voluntarismo. O extraordinário grau de exploração do proletariado, então verificado nos
países em que o sistema capitalista se encontrava mais desenvolvido, desperta um ainda
tímido questionamento do princípio da autonomia da vontade. O operário, quando
buscava o emprego, não era livre para contratar. Vender a força de trabalho ao industrial
era, na verdade, condição de sobrevivência, uma vez que a vida não lhe dava nenhuma
outra alternativa. Sua liberdade de escolher o patrão era também muito relativa, porque
limitada às vagas em oferta e a fatores como localização da indústria, especialidade das
funções disponíveis e outrosque o operário não pode manipular ou controlar. Finalmente,
não havia nenhuma margem para negociações dos direitos e obrigações das partes.
Premido pela impostergável necessidade de sobreviver, o operário tinha de aceitar as
condições impostas pelo patrão, por mais aviltantes que fossem (aliás, o operariado
somente passa a conquistar alguns poucos direitos na relação de trabalho após muita luta
e organização, já no século XX). Em suma, no contrato de trabalho, o princípio da
autonomia da vontade é inteiramente inoperante: o empregado não contrata porque quer,
com quem quer e do modo que quer; isso simplesmente não existe.
No segundo quadro evolutivo da teoria dos contratos, a autonomia da
vontade sofre sucessivas e consideráveis restrições, manifestadas
inicialmente nas relações de trabalho e, a partir de meados do século XX,
também nas de consumo. "Entre contratantes desiguais, a liberdade
escraviza e a lei liberta", proclama a tecnologia jurídica.
Em outros termos, a situação do trabalhador era (e ainda é) a de um contratante sem
vontade livre, situação esta que se encontra, com o desenvolvimento da industrialização,
também em contratos de outra natureza, principalmente no campo hoje referido pela
noção de relação de consumo. O consumidor também não contrata porque quer, com
quem quer e do modo que quer (Almeida, 1982:13/15). Diante desse fato, o do contratante
sem vontade livre, a tecnologia jurídica foi forçada a formular um novo modelo para o
direito contratual. Na Europa, os prejuízos das guerras mundiais, que impossibilitavam o
cumprimento de contratos, precipitaram a sua formulação (Planiol-Ripert, 1925:21/23;
Lipartiti, 1939). Mas a evolução, é fácil supor, não foi rápida, nem indolor: nos anos 1950,
ainda se encontram prestigiados tecnólogos do direito civil brasileiro batendo-se contra a
difusão da teoria da imprevisão (Monteiro, 1956:22). Afinal, a formulação do modelo
neoliberal envolvia a discussão de valores fundamentais da ideologia dominante,
presentes nos alicerces do direito capitalista. De qualquer modo, na segunda metade do
século XX, os institutos jurídicos que traduzem a mudança - como a revisão judicial dos
contratos, fundada, primeiramente, na imprevisão (cláusula rebus sic stantibus) e, depois,
na excessiva onerosidade (teoria da lesão como defeito da vontade), as cláusulas gerais de
negócio, os instrumentos de adesão etc. - são temas recorrentes da doutrina jurídica (Cap.
28, subitem 6.2; Sidou, 1978:26/43; Gomes, 1972).
Assim, na grande maioria dos contratos celebrados desde a Revolução Industrial não se
verificam (nem se podem verificar) negocia ções entre os sujeitos de direito acerca do
conteúdo das cláusulas com o objetivo de encontrar o dispositivo que represente melhor a
composição dos respectivos interesses. Se alguém necessita de dinheiro para realizar
urgente reforma em sua casa e procura o Banco de que é cliente para obter
financiamento, certamente não terá chance de discutir as condições das poucas linhas de
crédito que lhe serão oferecidas. Os juros, as taxas, a necessidade de garantia real, a
equação entre o valor emprestado e o do bem onerado atendem a critérios gerais
preestabelecidos pelo Banco. Ao interessado no mútuo abrem-se duas alternativas
somente: aceitá-los para celebrar o contrato ou não contratar. O banco não dispõe sequer
de meios para considerar eventual contraproposta, em função dos custos em que
incorreria ao mobilizar seus quadros técnicos de economistas e advogados no exame da
alternativa apresentada pelo cliente.
Desse modo, os contratos em geral expressam a adesão de um dos contratantes às
condições de negócio estabelecidas unilateralmente pelo outro. Em vista dessa realidade, o
direito dos contratos desenvolve certas tecnologias com o intuito de proteger o aderente
contra abusos do estipulante. De fato, como prepara, prévia e isoladamente, os
dispositivos contratuais de regência da relação, este último tem plenas condições de
contemplar, no instrumento contratual, os destinados à completa preservação de seus
interesses, enquanto aquele não tem meios de introduzir os seus. O estipulante pode, por
outro lado, rever periodicamente o texto das condições gerais de negócio, aproveitando-se
da experiência dos inúmeros contratos realizados, e aperfeiçoá-las nos dispositivos que
lhe interessam; já o aderente não possui, na maioria das vezes, as informações necessárias
para compreender o exato sentido do texto que lhe é apresentado. Por fim, o estipulante
de má-fé pode abusar da condição privilegiada e redigir cláusulas obscuras ou ambíguas,
de efeitos prejudiciais ao aderente. Para amparar este, o direito contratual desenvolveu a
teoria da lesão como vício de consentimento, recuperou do direito canônico a fórmula
rebus sic stantibus para fundamentar a revisão judicial dos contratos (Sidou, 1978) e
normatizou as condições gerais de negócio e os contratos de adesão (pioneiros, aqui,
foram os direitos italiano e alemão).
Essas tecnologias de tutela do contratante por adesão, desenvolvidas pelo direito dos
contratos, constituem a essência do modelo neoliberal, cuja síntese está na assertiva de
que, entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e o direito liberta (Orlando Gomes a
atribui a Lacordaire; 1959:30). Nesse contexto, ganha relevância a preocupação com
instrumentos de equalização das partes do contrato. Normas positivas passam a atribuir
ao economicamente mais fraco prerrogativas jurídicas que compensem a desvantagem
econômica. A igualdade não é mais o fim das diferenças na lei, como proclamado na
Revolução Francesa, mas a equalização das condições jurídicas de contratantes desiguais.
As regras de tutela contratual dos consumidores ilustram bem o mecanismo, ao
prescreverem, por exemplo, a ineficácia de cláusulas de conteúdo de difícil compreensão
(CDC, art. 46).
2.3. Os iguais e os desiguais
Além da atenção ao contratante sem liberdade, outro fato que estimulou o
desenvolvimento do modelo neoliberal do direito dos contratos foi a mudança no papel do
Estado, no transcorrer do século XX. Uma das mais importantes reações do capitalismo
contra a organização do proletariado, em torno dos ideais revolucionários do socialismo
marxista, foi a assunção, pelo aparato estatal, de novas funções, com o objetivo de atenuar
a precariedade das condições de vida das classes dominadas. Entre as novas funções do
Estado capitalista, além das de provedor (manifestadas pela construção de sistemas de
seguridade social e assistência à saúde), encontram-se as de organizador da economia. O
Estado, com o objetivo de evitar ou desimpactar as crises periódicas do sistema
econômico, passa a intervir nas relações privadas em grau até então inaceitável pela
ideologia liberal. No direito dos contratos, essa nuança da luta de classes traduz-se pelo
conceito de dirigismo (Gomes, 1967). O grau de liberdade das partes na composição de
seus interesses é reduzido; nem tudo o que se contrata é válido ou eficaz. A título de
ilustração, durante a ditadura militar brasileira, o contrato de transferência de tecnologia
(know-how) devia atender obrigatoriamente às cláusulas estipuladas em detalhes pelo
INPI, não se admitindo nenhuma variância, por menor que fosse, para expressar a
vontade dos contratantes.
Mas o modelo neoliberal também possui seu tempo e seus limites. A reliberalização da
economia no final do século XX, impulsionada pelo processo de globalização e
possibilitada pelo esgotamento do modelo de planificação de inspiração marxista, propõe
novas questões para a tecnologia jurídica dos contratos. A mais importante, entendo, diz
respeito à compreensão da disciplina jurídica das relações contratuais como direito-custo
e a suas implicações na configuração de vantagens competitivas na economia global. Em
outros termos, quanto maior o reconhecimento, pela ordem jurídica, da validade e
eficácia das cláusulas constantes dos instrumentos de contrato, isto é,quanto menor a
definição, em normas positivas, de direitos e obrigações de contratantes, mais facilmente
será calculado pelo empresário o impacto da responsabilidade contratual nos custos da
atividade econômica.
No terceiro quadro da evolução do direito dos contratos, a autonomia da
vontade volta a ser prestigiada nas relações entre contratantes de iguais
condições econômicas, ao mesmo tempo em que continuam sendo tutelados
os interesses dos contratantes débeis (vulneráveis e hipossuficientes).
A disciplina jurídica dos contratos é direito-custo - quer dizer, as normas cogentes de
direito contratual aumentam os preços dos produtos e serviços oferecidos. A margem de
atuação da autonomia da vontade e a intervenção do Estado, calibradas pela lei,
interferem no cálculo empresarial. A previsibilidade (condição de eficiência desse cálculo)
depende do reconhecimento da vinculação da livre vontade dos contratantes, nas relações
entre empresários iguais, e da aplicação o quanto possível objetiva do direito vigente nas
relações entre os desiguais. Com o desenvolvimento da globalização da economia, os
empresários procuram instalar suas empresas em países de direito-custo mais atraente.
Em vista disso, os interessados em atrair investimentos, como é o caso do Brasil, terão
maior ou menor sucesso à medida que o respectivo direito positivo passe a representar
vantagens competitivas. Quanto maior a liberdade reconhecida pela ordem jurídica para
os próprios agentes econômicos iguais definirem, por contrato, seus direitos e obrigações,
maior será a atração de investimentos. A globalização, assim, revigora a autonomia da
vontade.
O modelo reliberalizante de evolução do direito dos contratos responde às novas
questões propostas pela economia global, recuperando o primado do voluntarismo. Mas
não o faz por um simples retorno ao modelo liberal, desconhecendo o contratante sem
liberdade. Ao contrário, revelando-se a síntese dos dois modelos que o antecederam, o
reliberalizante prestigia a tutela do economicamente mais fraco, ao mesmo tempo em que
reafirma a importância da autonomia da vontade entre contratantes iguais. Na verdade, a
tecnologia dos contratos constata que, na relação entre desiguais, nenhum dos
contratantes é livre, porque não tem condições para negociar amplamente o contrato. O
débil, em razão das suas necessidades e insuficiências de informações; o forte, pelo
acréscimo de custos que a renegociação acarreta. Somente o vínculo entre contratantes
dotados dos mesmos recursos para arcar com os custos de transação pode ser visto como o
produto de livre manifestação de vontade.
No modelo reliberalizante, as normas positivas de direito contratual têm natureza
diversa, segundo a condição dos contratantes. São cogentes, na relação entre desiguais, e
supletivas, entre iguais. Atente-se, por exemplo, ao art. 6º da Lei n. 8.880/94, que prescreve
a nulidade da cláusula de indexação das obrigações em real pela variação cambial (salvo
no leasing lastreado em recursos captados no exterior e nas hipóteses expressamente
ressalvadas por lei). Imaginem-se, então, dois contratos. No primeiro, o consumidor
adquire a prazo um automóvel, com correção das prestações mensais pela variação do
dólar. No segundo, o jornal compra papel de uma indústria nacional pelo preço fixado
segundo a cotação do dólar. Enquanto for estável a relação cambial entre o real e a moeda
norte-americana, as partes cumprem os contratos celebrados sem atentar para a nulidade
prescrita no direito positivo. Ocorrendo, contudo, forte desvalorização cambial do
dinheiro brasileiro, sobem as prestações do carro e o preço do papel. Nos quadrantes do
modelo reliberalizante, o consumidor pode ir a juízo pleitear a nulidade da cláusula de
indexação cambial, tendo em conta o seu desconhecimento do direito vigente e dos exatos
efeitos do contrato que assinou, mas a empresa jornalística não tem esse direito, porque,
ao contratar a variação cambial do preço do papel, tinha como saber, por meio de seus
advogados e economistas, o exato sentido da cláusula negociada, e a considerou de seu
interesse. Desse modo, a norma proibitiva da indexação cambial reveste-se de natureza
cogente em relação aos contratos entre desiguais e supletiva nos contratos entre iguais.
O modelo reliberalizante está ainda em elaboração na doutrina. Contudo, traduz-se
melhor que o neoliberal na repartição do direito privado dos contratos brasileiros em três
regimes distintos: civil, comercial e consumerista.
2. 4. Direito privado brasileiro dos contratos
Até 1991, o direito privado brasileiro dos contratos segmentava-se em dois regimes
jurídicos diferentes. De um lado, o civil, aplicável à generalidade dos contratos entre
particulares (exceto os de trabalho); de outro, o comercial, relacionado aos contratos
próprios do comércio. A definição do regime a que se devia submeter determinado
negócio norteava-se, então, pelos modelos de delimitação do âmbito de incidência do
direito comercial (a teoria dos atos de comércio e a teoria da empresa). A compra e venda,
nesse contexto, era comercial se inserida na cadeia de circulação de riquezas, incluindo-se
nessa categoria desde o contrato entre o fornecedor de matéria-prima e o industrial, numa
ponta, até o feito pelo varejista com o consumidor, na outra. E eram civis as demais
hipóteses de compra e venda, como a de imóveis, a do carro usado etc. O contrato de
prestação de serviços, por sua vez, era considerado, na maior parte das vezes, civil, um
tanto porque a teoria dos atos de comércio excluía do âmbito do direito comercial a
atividade econômica correspondente, um pouco por não existirem disposições sobre essa
modalidade contratual no Código Comercial de 1850.
A tecnologia jurídica vinha já discutindo a pertinência da classificação, ao apontar a
tendência, no direito de tradição românica, de uniformização do direito privado das
obrigações (Bulgarelli, 1979:41/51). Com o advento do Código de Defesa do Consumidor
(Lei n. 8.078/90), o tema é revigorado pela criação de mais um regime no direito privado
dos contratos: o consumerista. Por uma fórmula bastante genérica, e ainda um tanto
imprecisa, o regime jurídico aplicável passou a variar conforme o contrato vinculasse
empresário a empresário (direito comercial), empresário a não empresário (direito do
consumidor) ou não empresário a não empresário (direito civil). A tripartição revelava a
importância subsistente na delimitação dos contratos comerciais como típicos da relação
entre empresários, relativamente aos de direito civil, porque a disciplina das relações
contratuais de que participa o empresário pode revestir-se da natureza de direito-custo,
isto é, influencia eventualmente nos custos da atividade econômica de produção ou
circulação de bens ou serviços, e, por via de consequência, nos seus preços. Ao direito
civil, na medida em que aplicado a relações contratuais entre não empresários, falta essa
característica. A recuperação doutrinária da distinção entre contratos civis e mercantis é,
em suma, mais uma manifestação da transição para o modelo reliberalizante.
Os contratos entre particulares, excluído o do trabalho, submetem-se a
três regimes distintos: civil, comercial e de tutela dos consumidores. De
modo genérico, quando a relação contratual aproxima não empresário (o
consumidor destinatário final de produto ou serviço) de empresário (o
fornecedor que vende no mercado produtos ou presta serviços), aplica-se o
regime consumerista; se aproxima dois empresários, aplica-se o regime
comercial; e se aproxima dois não empresários, o civil.
A exata definição dos âmbitos de incidência de cada regime jurídico-contratual decorre
do conceito legal de relação de consumo, que aproxima o fornecedor (CDC, art. 3º) e o
consumidor (CDC, art. 2º) e determina a aplicação da legislação de tutela dos
consumidores. Se na relação negocial os sujeitos não se enquadram nos conceitos de
consumidore de fornecedor, a regência cabe ao direito civil ou comercial. O assunto é
aprofundado mais à frente (Cap. 27, subitem 7.3); por enquanto, importa destacar que a
tripartição do direito privado dos contratos, no Brasil, espelha, em certa medida, a
evolução para o modelo reliberalizante.
Em outros termos, pode-se afirmar que, entre sujeitos de direito economicamente
iguais - isto é, com recursos semelhantes para entabular negociações -, aplicam-se os
regimes civil e comercial; entre sujeitos de direito economicamente desiguais, aplicam-se
as normas editadas de forma específica para o contrato ou o regime geral do direito do
consumidor.
A observância do contratado ou a garantia das sanções estipuladas no contrato para a
hipótese de descumprimento são dados essenciais para o cálculo de interesses que cada
contratante faz ao entabular as negociações. A siderúrgica, ao contratar com a fábrica de
automóveis a venda de aço, calcula o custo para o atendimento do pedido, o ganho que
espera ter e apresenta a sua proposta de preço. A fábrica, por sua vez, calcula o quanto
esse preço pode impactar seus custos, compara-o com as demais alternativas existentes no
mercado e contrapropõe ou aceita o valor da siderúrgica. Uma vez celebrado o contrato, a
garantia de validade e eficácia dos direitos e obrigações nele assumidos representa, para
os contratantes, condição para a realização dos ganhos projetados. A efetivação dos
interesses que se pretendiam proteger pelo contrato depende, assim, do cumprimento do
contratado ou, pelo menos, do recebimento da indenização pelas perdas decorrentes do
descumprimento.
No entanto, como no modelo reliberalizante nas relações entre sujeitos iguais o
conteúdo do contrato é válido, mas entre contratantes desiguais pode não valer, é
imprescindível que os profissionais do direito, ao atenderem aos seus clientes, forneçam
critérios seguros para distinguir as duas hipóteses. Aplicar o regime jurídico dos contratos
entre iguais a um negócio entabulado entre pessoas desiguais é altamente injusto, mas não
gera imprevisibilidade nem compromete o cálculo de interesses que os contratantes
fizeram ao contratar. Todavia, aplicar o regime dos desiguais a sujeitos iguais, à medida
que afasta o cumprimento do contratado, causa imprevisibilidade e dificulta o cálculo de
interesses.
3. Direito Contratual como tecnologia
Os homens e mulheres têm necessidades primárias frustradas em razão da escassez de
alguns dos bens naturais aptos a atendê-las. Precisamos respirar e há (ou pelo menos tem
havido, por enquanto) oxigênio suficiente, na atmosfera do planeta Terra, para atender às
necessidades de todos. Mas se o oxigênio no ar não é escasso, outros bens naturais de que
precisamos, como vestimentas, água ou comida, o são - e, nesse caso, apenas alguns
homens e mulheres têm suas necessidades plenamente atendidas. Além das necessidades
primárias, homens e mulheres também têm outras, relacionadas a produtos ou serviços
que o desenvolvimento científico e tecnológico proporciona com o objetivo de ampliar a
qualidade de vida. Aqui, a escassez é ainda maior. Nem todos têm acesso à eletricidade,
alimentos saudáveis, serviços de saúde ou educação de qualidade, lazer, cultura etc. Afora
as necessidades primárias e secundárias, homens e mulheres têm, por fim, querências,
isto é, desejam coisas estimulados pela moda, pela publicidade ou por idiossincrasias: uma
específica marca de tênis, joias, automóvel de modelo mais recente, vinhos raros etc. A
escassez é, então, enorme.
Não há como homens e mulheres procurarem atender a suas necessidades e
querências sem interação. No passado longínquo, algumas das necessidades primárias
eventualmente podiam ser supridas pelo indivíduo isolado, mas há muito tempo isso
deixou de ser possível. Essa interação é, em essência, uma troca de produtos - por outros
produtos, no início, e por dinheiro, desde a sua invenção. Na Antiguidade, a troca ganhou
uma caracterização formal (por assim dizer, jurídica), representada pela noção de
contrato. Homens e mulheres não podem viver sem suprir suas necessidades primárias e
buscar atender às secundárias e, cada vez mais, às querências; não podem viver, por isso,
sem contrato.
A racionalidade econômica das interações destinadas ao atendimento de necessidades
e querências pressupõe o cumprimento dos compromissos na exata forma como foram
assumidos. Tolera o descumprimento apenas quando for a alternativa mais eficiente para
uma das partes e desde que a outra seja inteiramente compensada. Afinal, se não se pode
contar com o contratado - ou com uma compensação satisfatória -, não há sentido em
contratar. Essa racionalidade ostenta, por outro lado, a marca da individualidade: pelo
contrato, cada um realiza seus interesses egoístas, dos quais é o único senhor. Tanto
melhor se a mão invisível do mercado providenciar que o generalizado atendimento aos
interesses egoístas resulte satisfatório para todos. Apenas o enfoque na realização dos
interesses individuais tem permitido à economia clássica o cálculo de eficiência
(Trebilcock, 1993:7/8 e 15/16). Mas se o objetivo do direito fosse - como ingenuamente
almejam os teóricos da análise econômica - sempre buscar a solução mais eficiente (do
ponto de vista da economia) para os conflitos de interesses, a trajetória evolutiva da
disciplina dos contratos provavelmente não teria ido muito além do modelo liberal.
Direito contratual é a parte da tecnologia jurídica que cuida dos meios
para atender, de um lado, à racionalidade econômica no uso dos recursos
escassos e, de outro, à justiça no amparo do contratante débil.
O distanciar-se das leis da seleção natural conduziu a humanidade ao reino da cultura,
em que o domínio do mais forte é paulatinamente desgastado. Por vezes, essa evolução
cultural, ao coibir o domínio do mais forte, choca-se com a racionalidade econômica do
atendimento às necessidades e querências. Sob a perspectiva estrita da eficiência
econômica, pode não se justificar, por exemplo, a adaptação de prédios para facilitar o
acesso dos deficientes físicos. A adaptação será economicamente a solução menos eficiente
- em vista da reduzida parcela da população beneficiada -, mas terá em mira atender a um
valor de justiça conquistado ao longo de séculos de evolução cultural. Não se trata de um
choque de ideias apenas; a questão envolve pessoas de carne e osso e seus interesses: os
proprietários dos prédios que vão pagar pela adaptação e os portadores de deficiência
física, que dela se beneficiarão.
Também no campo das interações destinadas ao atendimento de necessidades e
querências, podem chocar-se os valores de justiça e a racionalidade econômica. Aqui, o
direito contratual servirá de tecnologia apta a temperar esses dois vetores. Quando o juiz
não tiver como os conciliar, poderá buscar no direito contratual os instrumentos
tecnológicos que ora privilegiam a busca do uso mais eficiente dos recursos escassos,
impondo a racionalidade econômica, ora atendem aos imperativos de justiça cultivados
pela cultura ocidental de raízes europeias, amparando o contratante débil.
4. Conceito de contrato
Tradicionalmente, a tecnologia jurídica constrói o conceito de contrato em torno da
noção de acordo de vontades. O contrato é o resultado do encontro das vontades dos
contratantes e produz seus efeitos jurídicos (cria, modifica ou extingue direitos ou
obrigações) em função dessa convergência (cf., por todos, Monteiro, 2003:4/5). A solução
enfatiza a autonomia da vontade, dando destaque ao poder dos sujeitos de direito de
dispor dos próprios interesses por via de composição entre eles, e por isso tem sido objeto
da crítica de tecnologias centradas nas questões suscitadas pelo modelo neoliberal.
A transição entre os modelos de evolução do direito do contrato não se faz sem
traumas. Está em foco, afinal, um elemento estrutural muito importante do sistema
capitalista de produção, que éa liberdade de iniciativa. Quanto maior a interferência
estatal no direito dos contratos - seja na forma de dispositivos legais ou infralegais
predeterminando o conteúdo das cláusulas, seja na de revisões destas pelo juiz -, menor é
a liberdade de iniciativa na exploração de atividades econômicas. Na transição para o
modelo neoliberal, a tecnologia jurídica bem que se esforçou nas respostas às críticas ao
primado da autonomia da vontade, visando preservar o ideário do laissez-faire (cf., por
todos, Epstein, 1999:25/61); mas o embate foi extremamente desgastante para esse
propósito.
Entre as questões tecnológicas suscitadas pela transição para o modelo neoliberal está
a da pertinência do conceito único de contrato, erguido em torno da figura do encontro de
vontades (Ghestin, 1982:78/88; Telles, 1965:37/55). Certas tecnologias consideram
descabido operacionalizar-se, hoje em dia, com um conceito unitário desse tipo. Para elas,
não é correta a reunião numa única categoria conceitual de relações jurídicas tão
díspares, como as derivadas dos seguros, fornecimentos de energia elétrica, locações
residenciais e empresariais, ao lado das decorrentes de uma compra e venda ou
empreitada detalhadamente negociadas entre as partes. Advoga, por isso, a
operacionalização de conceitos variados para tais relações jurídicas, separando-as de
acordo com a extensão da vontade de se obrigarem determinante para a vinculação do
credor ao devedor. Esse modo de tratar o assunto tem conduzido ora à construção de uma
categoria jurídica própria para designar aquelas hipóteses de vinculação obrigacional
atualmente abrigadas no conceito de contrato em que são reduzidas as negociações entre
as partes - o que não deixa de revelar um demasiado apego à formulação liberal dos
contratos (Gil, 1983:228/241) -, ora à identificação de outras fontes da obrigação contratual
além da vontade dos contratantes, como, por exemplo, as decisões judiciais (Atiyah,
1995:39/40 e 89/93).
As preocupações dessas tecnologias não se têm espalhado. O tradicional conceito de
contrato, fundado na ideia de encontro de vontades (negócio jurídico bilateral ou
plurilateral), tem cumprido sua função de modo satisfatório. Quer dizer, tem servido bem
como categoria conceitual útil à orientação da superação dos conflitos de interesses entre
os sujeitos que se obrigam por declarações convergentes de vontade. A rigor, enquanto se
revelar operacional o conceito unitário de contrato, fundado direta ou indiretamente na
noção de acordo de vontades, mesmo no tratamento de relações obrigacionais derivadas
de fato jurídico em que não há grandes negociações entre os obrigados, não será
justificável a introdução de conceito novo na tecnologia jurídica.
Contrato define-se, assim, como um negócio jurídico bilateral ou plurilateral gerador de
obrigações para uma ou todas as partes, às quais correspondem direitos titulados por elas
ou por terceiros. Esmiuçando:
a) Negócio jurídico. Entre os inúmeros fatos jurídicos descritos nas normas jurídicas
como antecedentes (das sanções ou outras consequências imputadas), os que
correspondem à conduta humana são os atos jurídicos. Entre estes, destacam-se as ações
intencionais, quer dizer, as que homem e mulher praticam visando produzir determinado
efeito, previsto na norma jurídica. São denominados negócios jurídicos. O contrato é uma
ação humana nitidamente intencional. Na compra e venda, o comprador tem a intenção
de titularizar a coisa, e o vendedor, de aliená-la de seu patrimônio em troca de certa
quantia de dinheiro; na locação, o locatário quer o bem para usar ou gozar por algum
tempo, enquanto o locador quer a renda mensal do aluguel; na aposta, os apostadores
desejam arriscar algo em vista de um ganho estatisticamente possível, e assim por diante.
Ao contratar, o sujeito tem em mira um objetivo, que a norma jurídica diz ser alcançável
por meio de determinadas ações. Não há contrato sem a intenção característica dos
negócios jurídicos.
A conduta humana intencional encerrada no contrato é a declaração de uma vontade.
O contratante sempre manifesta a vontade de agir com vistas à produção de determinado
resultado de interesse comum às partes do contrato. A forma de exteriorização pode
variar (por via oral, por escrito ou por meio eletrônico), a declaração pode ser obrigatória
(como nos contratos necessários) ou podem-se exigir outras ações além da manifestação
da vontade (como a tradição da coisa na doação oral de pequeno valor e nos contratos
reais), mas não há negócio jurídico contratual sem que o contratante declare a intenção de
alcançar, com sua conduta, o fim delineado na norma jurídica.
A validade do contrato define-se pela dos negócios jurídicos em geral. Quer dizer,
válido é o contrato que atende aos requisitos do art. 104 do CC: agente capaz, objeto lícito,
possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei. Não vale,
por exemplo, o mútuo feito a pessoa menor, sem a devida mediação do representante ou
assistente legal (CC, art. 588), por faltar capacidade ao mutuário; também é inválido
qualquer contrato atinente à herança de pessoa viva (CC, art. 426), por ilicitude de objeto.
Por fim, não tem validade a fiança oral, porque a lei exige a forma escrita (CC, art. 819).
b) Bilateral ou plurilateral. De acordo com o número de partes, o negócio jurídico pode
ser unilateral (uma parte), bilateral (duas partes) ou plurilateral (três ou mais partes). O
contrato nunca é negócio jurídico unilateral, porque pressupõe pelo menos duas partes
manifestando vontades que convergem para o interesse comum. A gestão de negócios e a
promessa de recompensa são exemplos de negócios jurídicos unilaterais (Cap. 20), que,
por isso mesmo, não são contratos.
A bilateralidade ou plurilateralidade de partes é inerente aos contratos porque sua
constituição depende sempre do encontro de vontades de mais de um sujeito de direito na
consecução de objetivos comuns. Os contratantes devem ter interesses coincidentes, pelo
menos em parte, e conjugá-los para que surja o negócio jurídico contratual. Quando
alguém está obrigado a determinada prestação sem ter manifestado a intenção de a
assumir em negócio de que participa também o credor, a origem da obrigação não é
contratual. Ela provém da lei (responsabilidade civil, obrigação alimentar ou contribuição
condominial, por exemplo) ou de declaração unilateral de vontade (promessa de
recompensa, despedida de empregado etc.).
c) Gerador de obrigações para uma ou todas as partes. As obrigações, lembro, podem
ser negociais ou não negociais, segundo a origem imediata (Cap. 13, item 4). Os contratos,
claro, por serem negócios jurídicos, geram obrigações negociais (assim também as
declarações unilaterais de vontade). Mas, note-se, não geram necessariamente obrigações
para todos os contratantes.
Em outros termos, os contratos podem ser unilaterais, quando uma só das partes tem
obrigações, ou bilaterais, se todas as têm. Nos unilaterais, o encontro de vontades dos
contratantes gera obrigações para um deles somente. Na doação pura, apenas o doador se
obriga; no comodato, só o comodatário; no mútuo, exclusivamente o mutuário; no contrato
estimatório (a venda em consignação), o consignatário é o único contratante obrigado e
assim por diante. Nos bilaterais, todos têm recíprocas obrigações. Na compra e venda, o
comprador deve pagar o preço e o vendedor transferir o domínio da coisa; na locação, o
locador transfere temporariamente a posse do bem e o locatário é obrigado ao aluguel; na
empreitada, o empreiteiro obriga-se a erguer a construção e o dono da obra a remunerar-
lhe o serviço etc.
Na operacionalização do conceito de unilateralidade é preciso cautela. O contrato pode
ser unilateral, no sentido de criar obrigações para somente uma das partes, mas nunca
será um negócio jurídico unilateral. A doação pura é contrato unilateral, porque apenas o
doador assume obrigações, masnão se constitui contra a vontade do donatário. Este é
necessariamente parte do negócio jurídico. Sem a concordância do donatário em receber a
coisa em doação não há contrato, por mais que o doador insista na liberalidade. É
diferente do testamento, por exemplo; nele, só o testador é parte do negócio jurídico, e não
o beneficiário da declaração de última vontade. O testamento, por isso, não é um contrato.
Em outros termos, não se confunde a quantidade de partes do negócio jurídico com a de
contratantes obrigados em virtude do contrato. Negócio jurídico unilateral é o que possui
uma só parte; contrato unilateral é o que gera obrigações para um contratante apenas.
Todo contrato é negócio jurídico bilateral ou plurilateral porque não pode prover de uma
só declaração de vontade.
Contrato é o negócio jurídico bilateral ou plurilateral gerador de obrigações para
uma ou todas as partes, às quais correspondem direitos titulados por elas ou por
terceiros.
Ele é necessariamente negócio jurídico integrado por duas ou mais partes. Os
negócios jurídicos unilaterais, como a promessa de recompensa ou a gestão de
negócios, não são contratos.
Não se deve confundir, entretanto, a quantidade de partes do negócio jurídico com a
de contratantes obrigados pelo contrato. Quando apenas uma das partes da relação
contratual se obriga, como na doação pura, comodato, venda em consignação ou
mútuo, o contrato é unilateral, embora continue sendo negócio jurídico bilateral.
d) Às quais correspondem direitos titulados por elas ou por terceiros. Em geral, os
contratantes atribuem-se recíprocas obrigações e direitos, não extrapolando a relação
jurídica das partes do contrato. Admite-se, porém, que o contrato gere direitos a terceiros
estranhos à relação contratual, inclusive pessoas não identificadas desde logo ou passíveis
de substituição (Cap. 29, item 7). Há, inclusive, hipóteses em que essa característica é ínsita
ao contrato. No seguro de vida por morte, o beneficiário em geral não integra a relação
contratual estabelecida entre o segurado (ou o estipulante de seguro em grupo) e a
seguradora (Cap. 35, item 2).
5. Princípios do direito contratual
Um dos mais importantes instrumentos tecnológicos de tempero da racionalidade
econômica e valores de justiça que cercam os conflitos de interesses entre as partes de um
contrato são os princípios do direito contratual. Trata-se de normas de grande
generalidade, expressas em dispositivos de direito positivo ou deles extraídas por via
argumentativa, as quais ajudam a nortear os juízes na apreciação de demandas que
versam sobre a existência, validade e cumprimento de contratos.
São quatro os princípios informadores do direito dos contratos: autonomia privada,
vinculação das partes, equilíbrio dos contratantes e relatividade. Eles não têm todos a
mesma hierarquia; também não são hierarquizados sempre na mesma escala. Na verdade,
dependendo da condição dos contratantes (iguais ou desiguais), certos princípios
prevalecem sobre outros. Num contrato entre dois grandes empresários referente a
insumos que um deles adquire do outro, a autonomia privada é o princípio fundamental,
de maior envergadura; já numa relação de consumo, o do equilíbrio dos contratantes é o
mais importante.
a) Autonomia privada. No contexto do modelo liberal, a eficácia jurídica dos ajustes
privados era decorrência da noção ampla de autonomia da vontade. O modelo neoliberal
dos contratos, porém, construiu-se nas críticas a esse princípio. A noção de autonomia
privada foi, então, elaborada na tentativa de compatibilizar, de um lado, o reconhecimento
do poder de os sujeitos de direito disporem de seus pró prios interesses de modo
juridicamente válido e eficaz e, de outro, as limitações impostas pela necessidade de
tutelar o contratante débil. O princípio da autonomia da vontade, a rigor, nunca foi
ilimitado. Desde sempre encontrou balizas na defesa da ordem pública e garantia da livre
e consciente expressão da vontade. O princípio da autonomia privada conserva esses
limites e agrega os levantados no modelo neoliberal. Os conceitos, no essencial, se
equivalem: apontam para o direito de os próprios sujeitos regularem seus interesses por
meio de acordos.
A autonomia privada é o reconhecimento pelo direito positivo da eficácia jurídica da
vontade dos contratantes. Os sujeitos de direito podem dispor sobre seus interesses
mediante acordos livremente negociados e estabelecidos entre eles, observados os limites
da ordem jurídica. O contratado nessas condições tem validade para o direito, podendo,
assim, qualquer dos contratantes acionar o aparato estatal com o objetivo de constranger
o outro ao cumprimento do contrato.
Embora amplo, não é ilimitado o reconhecimento, pela ordem jurídica, da validade e
eficácia da composição de interesses pelos próprios sujeitos de direito que os titula. O
princípio da autonomia privada esbarra, em primeiro lugar, na preservação da ordem
pública. Nenhum contrato de objeto ilícito, por exemplo, pode ser judicialmente
executado. O postulado da autonomia privada não tem o alcance de validar acordos
criminosos, contravencionais ou mesmo imorais. Se dois licitantes contratam por escrito
as propostas que oferecerão numa concorrência pública, o descumprimento do ajuste por
qualquer um deles não dá ao outro nenhum direito (a fraude em licitações é crime). Do
mesmo modo, o empregado de uma banca de jogo de bicho não pode ingressar, na Justiça
Trabalhista, com reclamação contra seu empregador para receber indenização por horas
extras ou aviso prévio em caso de despedida (malgrado alguns lamentáveis e isolados
precedentes nesse sentido). Mesmo contratos cujo objeto não corresponde a nenhum
crime ou contravenção podem enfrentar resistências no campo moral, principalmente se
os interesses negociados dizem respeito a temas acerca dos quais a sociedade ainda não
construiu um padrão claro de moralidade, como embriões crioconservados ou gestação
em útero alheio. A autonomia privada valida, assim, os contratos quando exercida nos
limites da lei e da ordem pública. Extrapolados tais limites, não atribui o princípio jurídico
nenhuma eficácia à composição dos interesses diretamente pelos seus titulares.
Outro limite à autonomia privada diz respeito à ausência de plena liberdade ou
consciência dos contratantes. Para revestir-se de eficácia jurídica, os contratos devem ser
o resultado da livre e consciente manifestação de vontade dos contratantes. Desse modo, o
princípio da autonomia não valida os negócios contratuais provenientes de erro, dolo,
coação ou outros defeitos. Se a vontade não se expressou livre e consciente, o contrato é
anulável (CC, art. 171, II).
Por fim, há limitações ao princípio da autonomia privada voltadas à proteção da parte
fraca. Por exemplo, as ligadas à questão do acesso às informações pelos contratantes. No
complexo mundo em que vivemos, é incomum o contrato em que se verifica plena
simetria de informações acerca do objeto. Na maioria das vezes, uma das partes tem
muito mais informações sobre o objeto em negociação do que a outra. Predomina a
assimetria. Numa relação de consumo, por exemplo, o fornecedor do produto ou serviço
tem acerca do fornecimento uma quantidade e qualidade de informações
consideravelmente superiores às do consumidor - é inevitável. Pois bem, se o contratante
sem informações não tiver sido devidamente informado pelo outro acerca dos aspectos do
objeto relevantes para a negociação, as partes não estão em condições de dispor
contratualmente de seus interesses (Trebilcock, 1993:102/103). Quando é significativa a
assimetria das informações sobre o objeto do contrato, resulta injusto conferir à vontade
manifestada pelos contratantes a plena validade e eficácia na produção de efeitos
jurídicos.
A autonomia privada é o princípio do direito contratual que afirma o poder de os
sujeitos disporem de seus próprios interesses mediante acordos.O princípio da autonomia privada não é ilimitado. Balizam-no a ordem pública, a
moralidade, a proteção da vontade livre e consciente das partes e dos contratantes
débeis.
As limitações que acompanham o princípio aqui examinado não lhe subtraem o
caráter de fundamento do direito dos contratos. Mesmo quem contrata com pouquíssima
liberdade - sem ter a opção de não contratar, sem poder escolher o outro contratante e
sem condições de negociar as cláusulas - está dispondo sobre seus próprios interesses
mediante o exercício de uma faculdade reconhecida pela ordem jurídica. A essa faculdade
dá-se o nome de "autonomia privada" ou "da vontade". As obrigações que as normas
jurídicas descrevem como consequências desse fato jurídico - isto é, da composição dos
interesses pelos próprios sujeitos de direito que os titulam - são disciplinadas como
oriundas de "contrato". Em outros termos, para a ordem jurídica, a vontade convergente
dos obrigados define, em maior ou menor grau, a existência ou extensão da obrigação. Por
mais desgastada que se encontre a formulação liberal de autonomia, dela sobrevive a
noção de uma margem de liberdade dos contratantes na composição dos seus direitos e
obrigações. Apenas quando essa margem desaparecer por completo, não se poderá mais
cogitar de autonomia privada. Nesse limiar, porém, não terá também sentido nenhum o
conceito de "contrato".
Em suma, não há direito contratual sem autonomia privada.
b) Vinculação das partes. A vinculação das partes ao contratado é decorrência imediata
da autonomia privada. Para atribuir eficácia à composição dos interesses pelos próprios
interessados, mediante acordo de vontades, a ordem jurídica deve impor aos contratantes
a obrigação de cumprir o contrato. Por outra, deve disponibilizar aos lesados pelo
descumprimento de obrigações contratuais meios de acionamento do aparato estatal com
vistas a afastar, atenuar ou compensar o prejuízo. A vinculação das partes à vontade
declarada é, desse modo, um dos princípios fundamentais do direito contratual, sem o
qual o conceito de contrato se dilui.
Em regra, as partes se vinculam ao que contrataram. Obrigam-se a cumprir a
declaração externada nos seus exatos termos, mesmo que, no momento da execução, o
contrato não mais lhes interesse como havia interessado na contratação. Deve cada
contratante, por assim dizer, manter a palavra empenhada: pagar o aluguel mensal,
restituir o bem dado em comodato no vencimento do contrato, remunerar o empreiteiro a
cada medição, restituir o valor mutuado etc. Se não o fizer, expõe-se à execução judicial do
contratado e à obrigação de ressarcir os prejuízos que tiver causado ao outro contratante.
A vinculação das partes ao contrato é importante não somente do ponto de vista moral,
de cumprimento da palavra empenhada. Trata-se de princípio que corresponde a
elemento estrutural da economia. Cada sujeito de direito planeja suas ações no
pressuposto de integral cumprimento dos contratos. Esse pressuposto é pertinente, porque
a expressiva maioria das obrigações contratuais é de fato adimplida no tempo e lugar
ajustados. Aquele contratante que deixa de entregar, no vencimento, a prestação por que
se obrigara desencadeia, em graus variados, um movimento de frustração dos
planejamentos dos demais sujeitos. Depois de celebrar o contrato de locação, com a
definição do valor e prazo do aluguel devido pelo locatário, o locador pode assumir
compromissos com terceiros, contando com esses recursos; pode, imagine, financiar a
aquisição de um automóvel. Se o locatário falha no pagamento do aluguel no valor e prazo
contratados, o locador não disporá dos recursos correspondentes para o pontual
adimplemento de sua obrigação com a financiadora. Se não tiver dinheiro economizado
para emergências ou não conseguir emprestá-lo de amigos ou parentes, irá atrasar a
prestação do carro. Ainda que, posteriormente, os devedores inadimplentes indenizem os
credores, a frustração do adimplemento de um contrato repercute em outros (do ponto de
vista econômico; não jurídico).
Portanto, o pressuposto (pertinente) do cumprimento dos contratos de que partem
todos os credores para planejarem o atendimento aos seus próprios compromissos é
elemento importante para o regular funcionamento da economia. A vinculação dos
contratantes ao contrato é o princípio jurídico destinado a impedir ou atenuar a
frustração desse pressuposto.
As partes vinculam-se ao que contratam, no sentido de ficarem obrigadas a entregar
a prestação (dar, fazer ou não fazer) nos exatos termos da declaração negocial
expendida.
O princípio da vinculação das partes ao contrato não é só imperativo moral
(cumprir a palavra empenhada), mas também elemento estrutural da economia
(impede ou atenua frustrações no planejamento dos diversos sujeitos de direito
relativo às suas obrigações).
No modelo liberal, a vinculação era extremada. Fatos imprevisíveis no momento da
contratação que, na execução, sacrificavam a vantagem projetada não exoneravam o
contratante de suas obrigações. Todos os infortúnios eram levados a débito da
imprevidência ou incompetência do contratante. Se teve a oportunidade de manifestar a
vontade de forma livre e consciente, e negociou mal seus interesses, o contratante devia
simplesmente arcar com todas as consequências, não sendo justo, ademais, privar a outra
parte dos seus ganhos com a execução do contrato, se ela não havia contribuído
minimamente para a excessiva onerosidade. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, no
contexto da transição para o modelo neoliberal, difundiram-se institutos jurídicos
tendentes à revisão judicial do conteúdo do contrato, como a teoria da imprevisão.
Afastou-se qualquer ideia de imoralidade ou ilicitude no descumprimento do contratado
pelo sujeito pressionado por fatores externos à sua vontade que haviam tornado
extremamente difícil ou mesmo impossível a entrega da prestação (Cap. 28, subitem 3.2).
Embora haja quem questio ne a relação (Posner, 1999:61/78), a possibilidade de redefinição
do contrato pelo juiz, para liberar a parte de algumas (revisão) ou mesmo de todas as
obrigações assumidas (resolução), é resultado do abrandamento da ideologia liberal a que
se constrangeu o capitalismo ao longo do século passado.
c) Equilíbrio dos contratantes. Há cerca de cem anos atrás, considerava-se justo que o
contratante mais forte - isto é, o titular de poder econômico ou de mercado, detentor do
monopólio das informações sobre o objeto em negociação, com acesso a profissionais mais
capacitados para assessorá-lo etc. - aproveitasse de sua condição para extrair o máximo de
vantagem do contrato, evidentemente em detrimento do mais fraco. Georges Ripert, por
exemplo, discutindo a regra moral nas obrigações civis, sustentava a fatalidade da
desigualdade entre os contratantes e a justiça das vantagens auferidas em razão dela.
Afirmava que a superioridade haurida na formação intelectual e moral, na moderação dos
desejos e compreensão dos interesses podia traduzir-se em legítimas vantagens
contratuais, ainda que em prejuízo de outrem. O moralmente condenável era apenas o
abuso da superioridade, que a lei civil procurava impedir por regras como as de
invalidação do ato jurídico por incapacidade do agente ou vício de consentimento. Desde
que respeitasse a lei e os bons costumes, cada contratante tinha o direito de buscar a
realização maximizada de seu interesse, no contexto da "fecunda luta de vontades
egoístas" - expressão de Ripert (1925:89/90).
Hoje em dia, porém, o valor de justiça prestigiado pelo direito contratual é bem
diferente. O contratante mais forte não pode ter vantagens, em detrimento do mais fraco,
em razão de sua melhor condição patrimonial, financeira, econômica, de mercado,
profissional ou qualquer outra. É a evolução da cultura libertando o homem da seleção
natural, da estéril luta de vontades egoístas.
A autonomia privada depende, para sua afirmação, da existênciade um equilíbrio
entre os contratantes. A ordem jurídica somente deve reconhecer validade e eficácia à
composição dos interesses pelos próprios titulares, mediante acordo de vontades, se eles
possuírem iguais meios para defendê-los na mesa de negociação. Caso contrário, o mais
forte acabará fazendo prevalecer seus interesses, e não se realizará a articulação de
interesses amparada na autonomia privada.
Entre os contratantes iguais, o equilíbrio é alcançado pela isonomia. Nesse caso,
nenhum deles pode titularizar um direito contratual que não seja reconhecido pela ordem
jurídica também para o outro. As normas devem ter caráter supletivo, destinadas apenas a
suprir as eventuais omissões do instrumento contratual livremente negociado entre as
partes. Já entre os desiguais, o equilíbrio não se estabelece pela isonomia. Aqui, a lei deve
atribuir à parte fraca direitos e prerrogativas negados à outra, para equalizar as condições
com que comparecem à mesa de negociação. Os direitos e prerrogativas concedidos ao
contratante vulnerável ou hipossuficiente compensam, por assim dizer, a sua debilidade
econômica, cognoscitiva, social etc.
Os contratantes devem estar equilibrados para exercitar a autonomia privada, ou
seja, para que as vontades declaradas em convergência produzam efeitos jurídicos
válidos e eficazes.
Entre os contratantes desiguais, o equilíbrio faz-se mediante o reconhecimento de
direitos e prerrogativas ao mais débil, de modo a compensar sua vulnerabilidade ou
hipossuficiência.
Já entre os iguais, o equilíbrio resulta do tratamento isonômico dispensado aos
contratantes.
O injusto, no modelo reliberalizante, é tratar isonomicamente contratantes desiguais
ou não isonomicamente os iguais. Quando o consumidor quer contratar um plano de
saúde, ele entabula negociações com um contratante muito diferente dele. A operadora
privada de planos de saúde (OPPA) está em melhores condições para negociar, sob
qualquer prisma por que se examine o quadro: econômico, financeiro, profissional, de
mercado etc. Esses contratantes não podem ser tratados de forma isonômica. Equivaleria
a condenar o consumidor à integral submissão aos interesses da OPPA. O justo, nessa
relação entre desiguais, é conceder ao consumidor direitos e prerrogativas tendentes a
neutralizar sua vulnerabilidade, equilibrando os contratantes. Por outro lado, se dois
empresários de grande porte - um industrial, outro banqueiro - estão discutindo um
financiamento, ambos têm as mesmas condições de negociação. Sentam à mesa como
iguais, e seria injusto e irracional que um deles pudesse valer-se de institutos destinados à
tutela dos contratantes vulneráveis para obter qualquer tipo de vantagem. Também se
encontram em situação de igualdade negocial os não profissionais. Se o dentista negocia a
venda de seu automóvel usado com o vizinho arquiteto, são dois contratantes iguais, que
devem ser tratados isonomicamente pelo direito contratual.
O equilíbrio dos contratantes alcança-se, portanto, por vias diferentes, de acordo com a
condição deles. O essencial é assentar que apenas contratantes equilibrados podem
exercitar a autonomia privada.
d) Relatividade. Outra decorrência da autonomia privada é a impossibilidade de um
contrato criar obrigações para quem não é parte dele. Denomina-se princípio
darelatividade à regra que obstaculiza a extrapolação dos efeitos atinentes à criação de
obrigação para além dos próprios contratantes. Quem, por exemplo, promete fato de
terceiro obriga-se a indenizar o declaratário se o prometido não for executado (CC, art.
439), exatamente porque os efeitos obrigacionais do contrato são limitados aos
contratantes.
Dois sujeitos podem, por contrato, criar direitos a terceiros estranhos à relação
contratual. O segurado dum seguro de vida por morte deve indicar o beneficiário da
prestação em caso de sinistro. Esse beneficiário não é parte do contrato de seguro, mas
terá, em razão dele, direito de crédito perante a seguradora no caso de falecimento do
segurado. Qualquer contrato pode ser celebrado com o objetivo de gerar direitos a
terceiros (CC, art. 467). No tocante às vantagens, portanto, os efeitos do contrato podem
afetar patrimônio de sujeito não contratante. No que diz respeito à criação de obrigações,
porém, os efeitos são restritos aos contratantes. Ninguém pode ser obrigado por
declaração de vontade alheia - este é outro desdobramento da autonomia privada. A
ordem jurídica reconhece o poder de os próprios titulares dos interesses disporem acerca
deles mediante acordo, mas não o de obrigar terceiros estranhos à negociação.
Pelo princípio da relatividade, os efeitos do contrato atinentes à criação
de obrigações são restritos às partes contratantes. Ninguém pode ser
obrigado em razão de contrato de que não participa.
O princípio da relatividade já fundamentou, no passado, a exoneração de
responsabilidade do fabricante por acidentes de consumo quando demandado pelo
consumidor. Como este havia contratado com o comerciante, argumentava-se com a
relatividade dos contratos para afastar a legitimidade passiva do fabricante na ação
intentada pela vítima. O comerciante, se condenado, poderia regredir contra o fabricante,
porque entre eles houve contrato; mas por não existir qualquer vínculo contratual entre o
fabricante e o consumidor, a demanda entre eles era descabida. O desenvolvimento do
consumerismo importou a superação do princípio da relatividade na relação de consumo
(Coelho, 1998, 1:256/260).
6. Cláusulas gerais do direito contratual
Cláusulas gerais são normas jurídicas vazadas em um ou mais conceitos vagos
destinados a deixar em aberto a questão dos exatos contornos do seu âmbito de
incidência. O elaborador da norma, diante da alta complexidade do fato a regular,
intencionalmente emprega expressão dotada de vagueza, de modo que o juiz possa
nortear-se mais confortavelmente por ela na solução dos conflitos de interesses. Trata-se,
portanto, de uma técnica legislativa. À cláusula geral se contrapõe a norma casuística, em
que não se empregam conceitos propositadamente vagos (Engish, 1983:228/234). Se uma
norma estabelecesse, por exemplo, que "o devedor inadimplente deve pagar juros a título
de consectários", ela adotaria a técnica casuística; mas, se estatuísse que "o emprego pelo
empresário de meios imorais na captação de clientela configura concorrência desleal", a
técnica utilizada seria a da cláusula geral.
No plano retórico, tanto as normas casuísticas como as cláusulas gerais possibilitam ao
tecnólogo sempre certa margem para argumentar que determinado conflito de interesses
pode ser superado em certo sentido em função dos termos que elas empregam. A margem,
contudo, é maior na cláusula geral, relativamente às normas casuísticas.
As cláusulas gerais não são princípios. Há uma diferença significativa entre esses dois
tipos de normas jurídicas. Os princípios, estudou-se, são normas de âmbito de incidência
extremamente largo, que se projetam sobre as demais, informando-lhe a interpretação.
Podem estar expressos em dispositivos de direito positivo ou ser revelados pelos
tecnólogos (Cap. 3, item 3). Já as cláusulas gerais não se caracterizam pela amplitude do
âmbito de incidência e, embora possam servir à interpretação de outras normas, não são
propriamente vocacionadas para esse desiderato. A liberdade de iniciativa, por exemplo, é
um princípio (constitucional, aliás) por ser norma jurídica de larguíssima incidência -
disciplina matérias afetas ao direito econômico (repressão às infrações contra a ordem
econômica e controle preventivo da concorrência), propriedade industrial (exclusividade
na exploração de marcas e patentes), direito penal (repressão à concorrência desleal) e
contratual (liberdade negocial dos contratantes) etc. - e informa a interpretação de outras
normas, objetivando conferir pseudossistematicidade ao ordenamento jurídico. Já a regra
da boa-fé inserida no art.422 do CC é cláusula geral, porque incide apenas na conclusão e
execução dos contratos, e quando empregada numa interpretação sistemática, comparece
como um elemento a mais do repertório do ordenamento a sistematizar e não como fator
de sistematização.
A diferenciação entre princípio e cláusula geral é importante porque a interpretação
desta última não pode contrariar o primeiro. Há, por assim dizer, uma hierarquia que
privilegia o princípio sobre a cláusula geral - a mesma hierarquia que o destaca
relativamente à norma jurídica de qualquer outro tipo. A cláusula geral, como qualquer
outra norma de âmbito específico, deve ser harmonizada com os princípios do direito.
Veja um exemplo. Nas negociações preliminares de venda de empresas é imprescindível
que determinadas informações estratégicas sejam sonegadas aos compradores. Assim é
porque, na hipótese de as negociações se frustrarem, a empresa que poderia ter sido
vendida não pode ficar exposta ao risco de ver suas informações estratégicas utilizadas
pelo potencial comprador - muitas vezes, um concorrente - em seu prejuízo. Por isso, nos
documentos preparatórios das negociações, os potenciais contratantes costumam acordar
expressamente acerca de quais informações da empresa são disponibilizáveis e quais não
são. Nesse contexto, o comprador não poderá alegar descumprimento, pelo vendedor, da
cláusula geral de boa-fé, porque as informações sonegadas o foram em razão de um
acordo de vontades. A autonomia privada, por ser princípio, baliza os limites da boa-fé
objetiva, que é cláusula geral.
As cláusulas gerais são normas jurídicas intencionalmente redigidas com o emprego
de conceitos vagos para que os exatos limites de seu âmbito de incidência sejam
definidos na sua aplicação pelos juízes.
Diferem-se dos princípios, cujo âmbito de incidência, embora largo, não está
necessariamente impreciso.
Em outros termos, na interpretação e aplicação de qualquer cláusula geral do direito
contratual, deve-se antes e sempre respeito aos princípios do direito, em particular os
desse ramo jurídico. No direito contratual brasileiro, são duas as cláusulas gerais: boa-fé
objetiva e função social.
6.1. Boa-fé objetiva
A virtude da boa-fé consiste em acreditar no que diz e dizer o que acredita. Quem está
de má-fé, mente; mas quem mente não está necessariamente de má-fé. No clássico
exemplo do cidadão alemão que, durante o nazismo, dá guarida ao amigo judeu e mente a
respeito para a gestapo, encontra-se a convergência da boa-fé e a mentira. O cidadão
alemão acredita, de verdade, que não há mal em enganar se isso é necessário para salvar
a vida do amigo, o que revela sua boa-fé. No mesmo sentido, quem está de má-fé, engana;
mas quem engana não está sempre de má-fé. Isso porque age de boa-fé aquele que
acredita no que diz, mesmo quando está equivocado. Se alguém desconhece a verdade dos
fatos sobre os quais fala, mas acredita sinceramente ser veraz o que deles sabe, está de
boa-fé (cf. Comte-Sponville, 1995:213/228).
A tecnologia jurídica enfrenta dificuldades na operacionalização do conceito de boa-fé,
quando associado à virtude moral. Como definir se o contratante, na mesa de negociações,
acredita no que diz e diz apenas o que acredita, se impossível invadir sua intimidade
cerebral? Nos Estados Unidos, quando se mostrou insustentável o paradigma do "coração
puro e mente vazia" na identificação da conduta de boa-fé (good faith), a tecnologia
jurídica introduziu um conceito diverso (fair dealing) para delinear o padrão desejado de
comportamento para os contratantes (Calamari-Perrillo, 1970:508/512; Rouhette, 2003:74).
No Brasil, preferiu-se adjetivar o conceito, distinguindo entre boa-fé subjetiva e objetiva. A
boa-fé subjetiva corresponde à virtude de dizer o que acredita e acreditar no que diz. Tem
relevância para o direito das coisas, na qualificação da posse, mas não é operacionalizável
no direito dos contratos. Já a boa-fé objetiva é representada por condutas do contratante
que demonstram seu respeito aos direitos da outra parte (Marques, 1992:105/107). Agir de
boa-fé, entenda-se, não significa passar a defender, nas negociações, os interesses do outro
contratante. Isso não se exige de ninguém e seria um extraordinário contrassenso: cada
um continua perseguindo os seus próprios interesses ao contratar e não precisa abrir mão
deles. É necessário, contudo, que as partes nutram mútuo respeito, que prestem sempre
informações completas, claras e verdadeiras, não enganem nem busquem ocultar com
subterfúgios aspectos essenciais ao negócio (Silva, 1976). Se as ações ou omissões de um
sujeito denunciam ou sugerem desrespeito aos direitos do outro contratante, considera-se
que ele descumpriu o dever geral de boa-fé objetiva. Imagine que, antes de anunciar a
venda da casa, o vendedor mandou pintá-la com o único objetivo de disfarçar uma séria
infiltração; se ele não avisar os potenciais compradores do problema, configura-se a
ausência de boa-fé objetiva.
Se o contratante não age de boa-fé - nas negociações ou na execução do contrato -, ele
descumpre uma obrigação imposta pela lei. Incorre, portanto, num ato ilícito. As
consequências do descumprimento do dever geral de boa-fé objetiva, portanto, são as
mesmas de qualquer ilicitude: o outro contratante tem direito à indenização pelos
prejuízos que sofrer. Quer dizer, se não houver expressa previsão contratual prevendo a
resolução do contrato, a ausência de boa-fé de um contratante não implica a
desconstituição do vínculo. Na lei, não é prevista a revisão ou extinção do contrato pela
desobediência do dever geral de boa-fé, mas apenas a responsabilidade civil subjetiva do
contratante de má-fé (CC, arts. 186, 422 e 927 combinados).
Os tecnólogos brasileiros mais percucientes atribuem a natureza de cláusula geral à
previsão legal de boa-fé objetiva na negociação e execução dos contratos. Com isso,
querem dizer que a lei emprega propositadamente uma expressão vaga ("boa-fé") visando
construir uma disciplina adequada à dinâmica da realidade contratual. Consideram esses
tecnólogos que a adoção da técnica legislativa da cláusula geral implica a impossibilidade
de se fixarem os limites exatos do âmbito de incidência da norma por mera intelecção de
seus termos em abstrato. Concluem, então, que nesse caso a jurisprudência tem a função
de delimitar os contornos daquele âmbito. O tecnólogo, diante do art. 422 do CC ("os
contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé"), pode apenas lembrar as hipóteses que
melhor ilustram sua aplicação, mas sempre haverá margem para o juiz considerar uma
conduta como alcançada ou não pelo preceito, em razão da vaguidade proposital da
expressão usada pelo legislador. Uma norma casuística aqui, concluem esses tecnólogos,
não permitiria a normatização conveniente do dever de lealdade entre os contratantes,
dada a alta complexidade do tema (Martins-Costa, 1998 e 1999: 273/377; Nery Jr., 2003; cf.
Cordeiro, 1983:1182/1184).
Em razão da cláusula geral da boa-fé objetiva, os contratantes devem-se, tanto nas
negociações como na execução do contrato, mútuo respeito quanto aos direitos da
outra parte. Condutas que denunciam ou sugerem o desrespeito - como a ocultação
de vícios da coisa - caracterizam a ausência de boa-fé.
O descumprimento do dever geral de boa-fé objetiva implica, pela lei, apenas a
responsabilidade civil do contratante faltoso, que deve indenizar todos os prejuízos
sofridos pela parte cujos direitos desrespeitou. Não há previsão legal que
fundamente a revisão ou resolução do contrato em virtude da má-fé do contratante.
A tecnologia civilista brasileira, ao considerar a boa-fé dos contratantes uma cláusula
geral, manifesta a marcante influência da evolução que o trato da matéria experimentou
no direito germânico. A partir de dispositivo do Burgeliches Gesetzbuch (BGB: Código
Civil), que obriga

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