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O pensamento de Simmel: uma introdução à sociologia da filosofia ou à filosofia da sociologia Julio Cesar de Mendonça Santos Filho (Programa de Pós-Graduação em Sociologia – IESP/UERJ) Simmel, um dos clássicos da sociologia era, no entanto, um filósofo. Sim, um filósofo, clássico da sociologia. Apesar de defender a existência da sociologia como ciência autônoma, independente das outras ciências sociais, ele trabalha sempre na zona de indiferenciação entre ambas as áreas das ciências humanas. Sempre analisando filosoficamente objetos sociológicos, o autor tenta evidenciar o sentido global da vida. Para ele, todos os detalhes remetem-se ao sentido global da vida, encontrando-se, portanto, a vida no fundo das aparências, que são como símbolos que remontam à unidade do mundo. É por isso que na análise dos mais diversos objetos de pesquisa, como o dinheiro, os sentidos, a aventura e a música, por exemplo, ele estabelece conexões analógicas e metonímicas entre estes temas, entendidos por ele como fragmentos da totalidade, representantes da totalidade da vida. Kracauer entendeu bem a lógica por detrás do princípio epistemológico do relacionismo em toda a obra de Simmel: “Todas as expressões da vida espiritual encontram-se em uma multiplicidade inumerável de relações, e nenhuma delas pode ser abstraída das relações em que se encontra com as demais (…) Cada ponto da totalidade remete a um outro ponto, um fenômeno carrega e sustenta um outro, não há nada de absoluto que não esteja ligad.o ao restante dos fenômenos e que possua uma validade em e para si” (KRACAUER, 1995) É fundamental começar, no entanto, com a defesa de Simmel da existência da sociologia como ciência autônoma. Segundo ele tudo que o que acontece é social, por isto todas as ciências tendem à sociologia. Segundo Adorno, Simmel foi o filósofo responsável por levar a filosofia de volta à análise de objetos concretos: os objetos sociais. É, portanto, a sociologia simmeliana uma análise filosófica dos fragmentos do real. Para ele a ciência da sociologia estudaria somente o que é especificamente social, ou seja, tudo o que toma lugar entre os homens, na relação entre eles. A sociologia, assim sendo, segundo Simmel: “De même que tout ce qui arrive arrive dans l'âme, de même, sous un autre point de vue, tout ce qui arrive arrive dans la société: or, bien que tout soit donné, en réalité, sous la condition d'une conscience, tout n'appartient pas, pour cela, à la psychologie, il ne serait pas plus légitime de supposer que, parce que tout est donné dans la société et sous la condition de son existence, tout appartient, du même coup, à la sociologie. La distinction entre ce qui est spécifiquement psychique et ce qui est matériel et objectif constitue une sience de la psychologie: de même une sociologie proprement dite étudiera seulement ce qui est spécifiquement social, la forme et les formes de l'association en tant que telle, abstraction faite des intérêts et des objets particuliers qui se réalisent dans et par l'association. Ces intérêts et ces objets sont le contenu des sciences spécifique matérielles ou historiques; c'est entre les cercles de ces sciences que la sociologie trace un cercle nouveau qui enferme les forces et les éléments sociaux en tant que tels, les formes de l'association. Il y a société, au sens large du mot, partout où il y a action réciproque des individus” (SIMMEL, 1894) É, ainda segundo Simmel, possível afirmar que há uma ciência da sociologia “parce que certaines formes spécifiques, à l'interieur de la complexité de l'histoire, se laissent ramener à des états et à des actions psychiques qui sortent directement de l'action réciproque des individus et des groupes du contact social” (SIMMEL, 1894) A associação é o objeto fundamental da sociologia. Ela não ocorre, todavia, sem causas e fins particulares, que são como o corpo do processo social, a matéria na qual ela se corporifica. Cada interação gera, por fim, uma forma de associação entre indivíduos que reveste o conteúdo social. É, além da relação, outro elemento central no pensamento simmeliano, a dualidade entre forma e conteúdo. Para ele, ambos são indissociáveis, há o que ele chama de interpenetração absoluta entre eles, o que não impede a ciência, no entanto, de separá-los através da abstração. Não há evolução que seja puramente social, ela é, ao mesmo tempo, acompanhada de uma evolução no conteúdo das práticas. Este conteúdo pode ser tanto objetivo (como evoluções técnicas, desenvolvimento da linguagem, ascensão e queda de grupos políticos e etc) quanto subjetivo (como a moralidade e a imoralidade). No entanto, antes de adentrarmos no modus operandi do pensamento de Simmel, nos cabe entender primeiramente qual é especificamente o objeto de pesquisa do autor e qual o lugar do Homem em suas pesquisas. Segundo Kracauer (1995): “In fact, in countless cases the objects that engage the philosopher's reflections stem from the realm of experiences and encounters of the highly differentiated individual. It is always man – considered as bearer of culture and as a mature spiritual/intellectual being, acting and evaluating in full control of the powers of his soul and linked to his fellow man in collective action and feeling – who stands at the center of Simmel's field of vision. This world has an upper and lower limit. It is bounded above by the realm of cosmic, from which it has been cut away and which therefore surrounds it (…) It is bounded below by the realm of elementary, nonspiritual/nonintellectual activity, that of human drives: anything that is merely nature and not the emanation of a developed soul is exiled.” (KRACAUER, 1995) Simmel, com esta visão nada ortodoxa do mundo social, também não seguia outros padrões que eram impostos a todos que queriam “produzir ciência”. Era um pensador extremamente anti- sistemático, não se propondo a encontrar um conceito-chave que abra todas as manifestações do real e muito menos uma verdade universalmente válida. Apesar de ter um método mais ou menos uniforme, que parte, em geral, de análises extenuantes – e por vezes tidas como prolixas e pedantes – de fragmentos da realidade (instituições, comportamentos, tendências sociais...) buscando traçar o caminho de retorno à totalidade, algo que depois, ao que me parece, pode ter sido reapropriado na arqueologia do saber de Michel Foucault, já que, para ele, uma análise que buscasse compreender o poder (tema central de suas pesquisas, sejam elas sobre linguagem, sexualidade ou sistema penal) no seu aspecto mais intrínseco, não poderia ter a soberania (a aplicação do poder de forma material e última) como ponto de partida, mas, apenas como ponto de chegada de um longo e complexo processo de sujeição, cuja reflexão, deve começar por baixo e pelas bordas, e não de cima e do centro. Destarte um pensador anti-sistemático, Simmel não se propõe a fazer análises de fenômenos bem circunscritos,como era esperado à época de um cientista social- até porque, segundo Kracauer (1995, 226), há no filósofo uma forte rejeição à fenomenologia. Por esta rejeição dos métodos sociológicos mainstream contemporâneos a ele, Simmel é o primeiro sociólogo que se utiliza do ensaio como peça científica, dando um valor muito maior ao ensaio do que a um tratado científico, por exemplo. Habermas (1996) expõe muito bem as influências que o autor teve na academia no que tange à rejeição da fenomenologia e à forma de escrita: “Simmel no sólo animó a abandonar las vías de la filosofía académica y a pensar <<concretamente>>; sus trabajos dieron el impulso que, desde Lukács hastaAdorno, condujeron a la rehabilitación del ensayo científico como forma”. Ainda segundo Habermas (1996), Adorno, um dos influenciados pela forma de escrever de Simmel, entendia toda esta forma literária como momentos de liberação, sendo o ensaio o instrumento mais flexível para expressar ideias: “<<El ensayo no deja prescribirse el lugar a que ha de ajustarse, ni la sección en que ha de moverse. En lugar de producir algo científicamente o de crear algo artísticamente, su esfuerzo refleja todavía algo del ocio del niño que sin escrúpulo se entusiasma por aquello que otros han hecho. El ensayo refleja lo amado y lo odiado en lugar de representarse el espíritu como una creación de la nada conforme a una ilimitada moral del trabajo>> Ciertamente, Adorno menciona también el precio que hay que pagar por esta liberación respecto de toda coerción metodológica: << Pero el precio que el ensayo tiene que pagar por su afinidad con la experiencia mental abierta es esa falta de seguridad que la norma del pensamiento establecido teme como a la muerte>>.” (HABERMAS, 1996) Simmel permanece antes de tudo um ensaísta. E é por esta liberdade ganha somente através dos ensaios que Simmel pode mudar constantemente tanto de objetos, quanto de pontos de vista sobre os objetos de escolha para a análise. Esta mudança constante não empreendida a toa, é feita por razões filosóficas, tendo relação com o modo de apreensão do real escolhido pelo filósofo em questão. Segundo Vandenberghe (2005): “O real é inesgotável, não se pode descrevê-lo “como ele é na realidade” (Ranke) porque não se pode descrevê-lo em sua totalidade. O real só pode ser apreendido através de uma pluralidade de perspectivas que captam, cada uma, um aspecto da vida sem jamais esgotar sua significação. Nenhuma perspectiva é o reflexo exato da realidade de que trata. Reorganizando a realidade de maneira sintética a partir de um ponto de vista particular que dá unidade ao diverso da intuição, cada perspectiva oferece uma reconstrução parcial da realidade, mas ela jamais dá acesso à realidade como tal. Contra os realistas de todo tipo, Simmel insiste, com Kant, sobre o caráter construtivista do conhecimento: a verdade não é adequação, mas construção, e mesmo reconstrução, do real a partir de um ponto de vista particular que reorganiza e sintetiza os fragmentos do real em uma forma unitária e bem determinada (…) O erro consiste simplesmente nisso: em que uma verdade parcial seja generalizada em uma verdade absolutamente válida.” (VANDENBERGHE, 2005) Simmel dá vida a suas proposições com exemplos empíricos, mas reconhece que estes exemplos teriam o mesmo valor (e peso) do que elementos fictícios, já que em ambos os casos, as análises resultantes seriam construções ou reconstruções de uma pretensa realidade, não a reprodução, ou o reflexo dela. Elas oferecem ambas reorganizações do real e não um reflexo da “realidade como é”. O cientista é, portanto, tão livre quanto o artista, que, através de quadros, poesias, peças e etc também (re)constroem/reorganizam o real. “Em princípio obrigado a ser tão fiel aos dados quanto o retratista a seu modelo, o cientista é, logo, tão livre quanto o artista para modelar e dar forma à matéria” (VANDENBERGHE, 2005). É por isto que a escolha do objeto de pesquisa é o menos importante para Simmel, desde que os objetos pertençam a reinos materiais acessíveis a ele: “Any individual phenomenom can serve as the target for his philosophical examination, since all phenomena afford equally good entry points from which to delve into the interconnections of the life totality that sorrounds them all. Whatever his object of contemplation is at the time, it becomes a focus of inquiry only to the extent that it consists of a more or less finite group of relationships that points beyond itself on all sides to the plenitude of relations in the universe that surrounds us” (KRACAUER, 1995). Simmel visa através desta infinidade de objetos e pontos de vista subtrair cada elemento de seu isolamento particular e inseri-los numa rede dispersiva de relações funcionais, já que o único motivo para a análise de quaisquer fenômenos é expor as interconexões, tornando-as visíveis. Estas conexões se estabelecem por caminhos bastante irregulares e arbitrários, sendo sistematicamente assistemáticos. Esta rede não é construída segundo um plano, como um sistema de pensamento firmemente estabelecido, pelo contrário, não há outro propósito, que não estar lá, ser, testemunhar através de sua própria existência a interconectividade de todas as coisas. Para essas mediações entre fenômenos e ideias, Simmel usa uma rede de relações de analogia para partir da superfície das coisas para seus subtratos espirituais/intelectuais. No processo ele demonstra que a superfície está plena de relações simbólicas e que ela – a superfície - é a manifestação e o resultado dos poderes e essencialidades espirituais e intelectuais. O evento mais trivial leva aos veios da alma, há sempre um significado valioso a ser obtido de toda ação. Um dos objetivos mais fundamentais de Simmel em toda sua obra é libertar cada fenômeno espiritual ou intelectual de sua falsa auto-validade independente auto-suficiente, restrita somente a si mesma, e mostrar como os fenômenos estão inseridos em contextos mais amplos da vida. Neste ínterim, a maneira de pensar de Simmel trabalha tanto para conectar quanto para dissolver relações entre fenômenos, objetos e/ou indivíduos. Este modus operandi de pensar de Simmel, se interconecta com dois outros princípios marcantes de toda a obra do filósofo-sociólogo: o vitalismo e a dualidade. O vitalismo, de inspiração kantiana, é o princípio da interação; já a dualidade é entre forma e conteúdo. Um princípio relacionista da dialética sem síntese, é o dualismo trabalhando sob uma síntese heterodoxa do neokantismo. A maioria dos ensaios de Simmel começa com a lógica da dialética sem síntese, expondo sempre um dualismo seja numa oposição ou num paradoxo. Tudo só existe relacionalmente, cada princípio só pode exercer sua função em relação a outro princípio. O princípio de estruturação dualista da realidade se exprime duplamente na obra simmeliana: na oposição neokantiana entre forma e conteúdo e o conceito vitalista de interação. A combinação dialética do neokantismo e do vitalismo, que oferecem unidade ao pensamento de Simmel, estão na base de sua epistemologia relacionista, de sua sociologia formal e de sua metafísica vitalista. Simmel propõe, portanto, uma sociologia interacionista das formas de associação, por meio de uma interpretação dialética das formas e dos conteúdos. Encontra-se por toda a parte na obra de Simmel o vitalismo interacionista interagindo com a vida que passa pelas formas para ser vivida, encontrando-se aqui a mais básica dualidade entre conteúdo/forma (vida/formas). Como diz Vandenberghe (2005), ele “vitaliza o kantismo e kantianiza o vitalismo”. Para Simmel, o conceito nada mais é que uma representação parcial da realidade, “os conceitos são essenciais, pois eles funcionam, por assim dizer, como “faróis” (Popper) que, ao iluminarem aspectos da realidade, transformam-na em uma representação da realidade” (VANDENBERGHE, 2005) e o que acontece é que os objetos se moldam ao conhecimento e não o conhecimento que se molda ao objeto. O conhecimento pressupõe sempre a intervenção ativa da razão na realidade, tentando tornar a natureza – a totalidade, o real - concebível, então, é neste esforço intelectual ativo que se produz os objetos. O conhecimento não é um reflexo passivo,mas uma construção e mesmo uma tranformação ativa da realidade. Daí, de novo, um cientista ser tão livre quanto um artista. É só através da razão que “a natureza aparece para nós como um conjnuto previamente estruturado pelos conceitos e pelas categorias fundamentais do entendimento” (VANDENBERGHE, 2005). É através das formas que os conteúdos sensíveis são classificados ou em um sistema ou em um esquema conceitual, segundo Vandenberghe (2005) a forma desempenha “uma função epistemológica: ela define as condições de possibilidade da experiência e da representação do mundo, as condições transcedentais sob as quais o mundo pode se tornar objeto da experiência e do conhecimento”. É, portanto, através das formas, que são historicamente variáveis, que se produz conhecimento e, portanto, a realidade. Deixando claro que, para Simmel, a história é “imagem do passado [que] não é um reflexo da realidade, mas uma formalização seletiva, que, acentua certos traços e ignora outros, dependendo do ponto de vista do historiador”(VANDENBERGHE, 2005). O mundo, consequentemente, se deixa conceber a partir de um grande número de pontos de vista unilaterais, cada um projetando a unidade no infinito de um lugar imaginário. Voltando, contudo, à importância da associação para Simmel, é necessário antes de qualquer coisa, definir o que se entende por associação: “Para construir uma associação, não basta interagir, é preciso ainda que os indivíduos em interação “uns com, para e contra os outros” formem, de alguma maneira, uma “unidade”, uma “sociedade” e estejam conscientes disso” (VANDENBERGHE, 2005). Como se vê, deve-se, conscientemente – logo, ativamente -, formar uma sociedade para que haja associação, sendo entendido por sociedade a unidade objetiva das consciências subjetivas, como a síntese de todos com todos. As interações são, assim, a condição necessária e suficiente da sociedade, locus onde o homem é determinado por viver em interação com seus pares. Para Simmel, o que interessa são exatamente estas interações, como matéria, como substrato vivo do social, sendo através destas interações que o indivíduo produz a sociedade e se torna produto dela, consequentemente. Simmel critica até mesmo os que afirmam ser a guerra mais uma forma de dissociação do que de associação; segundo ele, até mesmo o conflito é uma forma de interação e, portanto, de associação; e, vai além, diz que toda forma de associação tem em si um elemento de conflito, que, na verdade, eclode justamente nas superfícies de interação entre os elementos distintos que estão se relacionando. A sociologia de Georg Simmel não é uma ciência empírica, mas uma ciência eidética, das essências de natureza fenomenológica. O método eidético consiste em “imaginar o objeto em um grande número de variações possíveis para extrair dele os predicados essenciais que permanecem constantes e que tornam as variações possíveis justamente como variações de uma mesma essência” (VANDENBERGHE, 2005). É através deste método que ele analisa por exemplo, o dinheiro como fato social global, símbolo que exprime e condensa todas as relações sociais de maneira mais ou menos unitária, como uma metáfora da vida. Ele começa por analisar a emergência do dualismo entre sujeito e objeto, do eu e do não-eu, para deixar claro o processo de distinção entre o homem e o mundo exterior a ele. O sujeito é exatamente o produto de um processo de distanciamento entre o eu e o o objeto. Neste sentido, é devido a esta clivagem entre o eu e o objeto que surge a distância que o sujeito se apressa para suprimir, que é a base do fetichismo que temos pelos objetos. É este fetichismo, é esta distância, que, objetivamente, constitui o que chamamos de valor, proporcional sempre à distância entre o sujeito e o objeto em questão. “A objetivação do desejo, instaurando uma distância entre o sujeito desejante e o objeto desejado, é, portanto, o móvel da valorização” (VANDENBERGHE, 2005). A economia está, consequentemente, englobada no social, emergindo dele e é, assim, uma forma de associação, ao menos no momento da troca. A troca é uma forma de associação de resignação, de sacrifício, já que para se obter o objeto desejado, é preciso necessariamente abandonar um outro objeto já possuído, sendo o sacrifício a condição absoluta do valor. Para Simmel, a troca é tão criadora de valores e tão produtiva quanto o que se chama especificamente de produção, assim como o trabalho não deixa de ser uma mercadoria como qualquer outra. O dinheiro é a expressão do acordo relacional de troca entre os sujeitos, que atinge sua autonomia enquanto forma social. O dinheiro é, em última instância, o valor imobilizado em substância. Ele desempenhou uma função ímpar na história da humanidade por conseguir igualar as coisas mais desiguais e por suprimir seu próprio valor, durante muito tempo, para se tornar puro símbolo da troca. Contudo, o dinheiro só pode funcionar como mediador simbólico e acelerador das trocas se os indivíduos confiarem na estabilidade do dinheiro, se estiverem dispostos a trocar valores substanciais, mercadorias, por valores nominais, valores-puros aprisionados simbolicamente nas notas de papel-moeda. A confiabilidade da população no dinheiro tende a aumentar quanto maior for a coesão social e a confiança no Estado. O dinheiro, porém, se autonomizou gradualmente até inverter-se em fim em si mesmo, virando ele mesmo mais uma das mercadorias que media. “O dinheiro, precisamente porque é meio absoluto, se torna o fim absoluto” (VANDENBERGHE, 2005), torna-se objeto desejado não mais mercadorias específicas, mas a acumulação de capital em si, ter dinheiro acumulado significa potencial de troca. Passa-se a ser um dos maiores desejos do homem na modernidade então simplesmente a acumulação de dinheiro, dinheiro por dinheiro, sem vinculação imediata à troca de nenhuma mercadoria. O valor puro, a substância pura da unidade de troca, torna-se, portanto, em si mesmo objeto de fetiche: mercadoria. Esse desejo desenfreado pela acumulação de dinheiro se dá porque ele é o centro onde as coisas mais opostas, mais estranhas, mais distantes encontram seu ponto comum e entram em contato umas com as outras, como se ignorassem as distâncias subjetivas entre elas. Apesar de ter citado aqui a análise do dinheiro de Simmel, por ser a mais conhecida dele, poderia ter citado qualquer outra, sendo possível encontrar nelas a mesma dinâmica de pensamento. Até mesmo em sua análise sobre a arte o objetivo dele é sempre afastar o véu que esconde o núcleo que subjaz a criatividade do artista ou até mesmo do período que ele está tratando, ele entra no espírito das criações artísticas com ingenuidade e então luta para estabelecer fórmulas capazes de dar conta dos conteúdos específicos dos fenômenos em questão. Tentando entender um pouco mais da análise do dinheiro, pode-se dizer que a autonomização dele que aconteceu na modernidade, é comum entre todos os produtos da vida que, ao se separarem do homem, passam a influenciá-los, impondo suas próprias formas de vida sobre os homens que os produziram, tornando-se cada vez mais distintos destes homens. Como Kracauer (1995) disse “Life is after all always more than life; It wrenches itself free of itself and encounters itself as a sharply defined form. It is simultaneously the stream and the firm shore” (KRACAUER, 1995). A autonomização das formas e esferas sociais é um risco, como expõe Habermas (1996), até mesmo para a cultura: “Por cultura entiende el procesoque cuelga entre el <<alma>> y sus <<formas>>. Cultura significa ambas cosas: tanto las objetivaciones en las que se extraña una vida que brota de la subjetividad, es decir, el espíritu objetivo, como también, a la inversa, la formación de un alma que desde la naturaleza se eleva a la cultura es decir, la formación del espíritu subjetivo (…) este proceso cultural lleva inscrito en sí el riesgo de que la cultura objetiva se autonomice frente a los indivíduos que son, sin embargo, quienes la han producido. Pues el espíritu objetivo obedece a leyes distintas que el subjetivo. Simmel insiste con Rickert en la lógica específica de las distintas esferas culturales de valor.” (HABERMAS, 1996) Apesar de toda esta lógica complexa do sociólogo filósofo poder ser entendida como conjunto, como explicitei aqui nesta resenha, há vários críticos da obra dele. Críticos reprovaram Simmel pela afetação de seu estilo, seu pendantismo e sua sutileza sofista ocasional, seu estilo chegou a ser até mesmo chamado de arbitrariedade barroca, de distrações e devaneios perspicazes e pretensamente inteligentes sem objetivos de investigação claramente atingíveis, sendo relegado, por vezes, à literatura, estigmatizado como se não fosse acadêmico, como se não fizesse ciência da sociologia. Outros o acusam de falta de rigor metodológico justamente pela escolha consciente pelo ensaio como forma preferencial de texto científico. Outro fator que atrapalhou e muito Simmel em sua vida acadêmica foi o antissemitismo da academia alemã, que o impediu de ser nomeado professor titular em universidades alemães, sendo condenado a uma carreira medíocre de Privatdozent até quase o fim da vida, quando finalmente conseguiu uma vaga numa universidade rural bem isolada do centro da comunidade intelectual alemã da época. Talvez por isto seu impacto tenha sido relativamente pequeno na Alemanha após suas publicações, só muito depois sendo reapropriada e veiculada por outros autores em seus trabalhos, como Kracauer, Habermas e Vandenberghe. BIBLIOGRAFIA HABERMAS, Jürgen. Georg Simmel sobre filosofía y cultura: epílogo a una colección de ensayos. In: HABERMAS, Jürgen. Textos y contextos. Barcelona: Editorial Ariel S.A. 1996. KRACAUER, Siegfried. Georg Simmel. In: KRACAUER, Siegfried. The mass ornament. Cambridge, MA: Harvard University Press. 1995. SIMMEL, Georg. Le problème de la sociologie. Revue de metaphysique et de Morale. Berlim, 1894. VANDENBERGHE, Frederick. As sociologias de Georg Simmel. Bauru: Edusc. 2005.
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