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1 O jusnaturalismo e o positivismo jurídico de Hans Kelsen Guilherme Arruda Aranha1 CAPÍTULO 1: O UNIVERSALISMO JUSNATURALISTA As teorias jusnaturalistas afirmam existir um direito natural, que tem validade em si mesmo (independentemente da vontade da autoridade política), e cujo conteúdo, além de ser anterior e eticamente superior ao direito positivo, pode ser conhecido objetivamente. Argumentam, ainda, que em caso de conflito entre as normas do direito natural e as do direito positivo são aquelas que devem prevalecer. O que significa propriamente dizer que o direito pode ser “natural”? O direito positivo sabemos bem: é o conjunto de normas impostas e recepcionadas pela autoridade política em uma sociedade em um determinado período. Não se trata apenas das leis escritas (Constituição, leis complementares, federais, estaduais e municipais, estatutos, medidas provisórias, regulamentos, portarias, circulares, atos administrativos, contratos, sentenças etc.), mas também dos princípios gerais do direito (às vezes implícitos no ordenamento) e dos costumes, aceitos algumas vezes como fonte subsidiária do direito. É evidente que o direito positivo varia enormemente de período para período (o direito positivo do Brasil Império era bem diferente do atual) e de país para país (o direito positivo inglês é bem diferente do brasileiro). A definição de direito natural, por sua vez, exige uma rápida reflexão sobre o conceito de natureza, um conceito extremamente genérico que não cessa de provocar os filósofos para determinar o seu significado. Para fins didáticos, porém, vamos nos limitar a dizer que a natureza abrange todos os seres e eventos que existem independentemente do ser humano, todas as coisas, portanto, que não 1 Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP. Professor da PUC/SP e Coordenador Científico do Instituto Norberto Bobbio. 2 foram produzidas pelo ser humano e que independem do seu fazer e da sua existência, tais como o oceano, os rios, as pedras, o fogo, a terra, as árvores, os animais etc. A partir de uma tal definição é possível compreender a oposição entre natureza e cultura: enquanto a primeira independe do agir humano, a segunda é justamente o resultado das coisas que só existem porque foram produzidas pelo ser humano. Dessa forma, todos os conceitos antitéticos ao de natureza têm sempre a função de contrapor o universo que o ser humano é obrigado a aceitar como uma necessidade (a natureza) ao universo criado e dominado por ele. Daí as diversas reformulações da grande dicotomia entre natureza e cultura, tais como natureza e arte, natureza e convenção, natureza e sociedade, natureza e civilidade, natureza e história etc. De acordo com as teorias jusnaturalistas, portanto, o direito é em parte cultural (é produzido pelo ser humano) e em parte natural (independe do agir humano), daí a dicotomia entre o direito positivo, produzido pela autoridade política e, acima dele, pairando como um norte moral, o direito natural. Mas como, afinal, podemos conhecer o direito natural? A resposta a essa pergunta não é fácil, pois depende da época e do autor considerado. Vamos tomar como exemplo da diversidade epistemológica das teorias jusnaturalistas três autores: Aristóteles (Antiguidade), Tomás de Aquino (Idade Média) e Thomas Hobbes (Modernidade). 1.1. O direito natural segundo Aristóteles De acordo com Aristóteles as normas de direito natural têm validade universal, ou seja, valem em qualquer lugar e em qualquer época, “como o fogo que queima em toda parte do mesmo modo, tanto na Grécia quanto na Pérsia”. O direito natural corresponde ao que é justo e injusto por si mesmo, sem levar em conta nossas opiniões e preferências e, assim, estabelece comportamentos obrigatórios independentemente de nossa vontade. Por meio da razão, continua Aristóteles, podemos descobrir a justiça imanente à ordem natural das coisas. Já o direito positivo começa onde o direito natural termina, tornando obrigatórias por convenção todas as condutas que são indiferentes ao direito natural. Segundo 3 Aristóteles, portanto, o direito natural e o direito positivo regulam, em princípio, matérias distintas. Para falar em termos contemporâneos, a opção de regular o tráfego de veículos nas vias públicas pela direita (como no Brasil) ou pela esquerda (como na Inglaterra) é indiferente ao direito natural. Mas o que acontece quando o direito positivo invade a esfera das coisas reguladas pelo direito natural? Nesses casos, explica Aristóteles, se a lei positiva regular o comportamento do mesmo modo que a lei natural, não há qualquer problema mas apenas o reforço da conduta boa em si mesma. O problema, explica Aristóteles, é se houver conflito entre a lei positiva e o direito natural. Nesses casos o antigo filósofo deixa explícita a sua preferência pelo direito natural, eticamente superior ao direito positivo. 1.2. O direito natural segundo Tomás de Aquino Na Idade Média a natureza passa a ser considerada o produto da inteligência e da potência criadora de Deus, abrangendo tudo o que não depende do ser humano. O direito natural, nesse contexto, é visto ora como a lei inscrita por Deus no coração dos homens, ora como a lei revelada pelos textos sagrados que transmite a palavra divina, ora como a lei comunicada aos homens por Deus, por meio da razão. Tomás de Aquino se insere nesta última tradição. Segundo ele, acima da lei natural existe uma lei eterna, entendida como a razão divina que governa o mundo. O direito natural, por sua vez, é apenas uma partícula da lei eterna inserida por Deus na criatura racional e seu preceito único, a partir do qual a razão é capaz de deduzir todos os outros preceitos, é: “faça o bem e evite o mal”. Por fim, a autoridade política responsável pela produção da lei humana deve ser capaz de usar a razão para inferir do direito natural os preceitos particulares capazes de enfrentar as diferentes situações criadas pelo relacionamento entre as pessoas. Em Tomás de Aquino, portanto, há uma hierarquia: a lei humana retira sua legitimidade da lei natural, que retira sua legitimidade da lei eterna. Sendo assim: “qualquer lei estabelecida pelos homens é autêntica na medida em que deriva da lei da natureza; se discordar desta, já não será uma lei, mas uma corrupção da lei”. 4 1.3. O direito natural segundo Thomas Hobbes Hobbes, finalmente, é um tipo de jusnaturalista muito peculiar. Ao contrário de outros pensadores modernos, Hobbes invoca a doutrina do direito natural para reforçar o poder da autoridade política e não para limitá-lo, como fazem, por exemplo, Locke, Rousseau e Kant. Aliás, pode-se afirmar que Hobbes é jusnaturalista somente ao partir, mas é positivista ao chegar. Segundo Hobbes, o estado de natureza é o estado de guerra de todos contra todos, um estado inseguro, marcado pela desconfiança, violência e crueldade. Nesse contexto, o direito natural não tem vigência alguma e ninguém está obrigado a respeitá-lo, sob pena de ter um triste fim. Impossível sequer falar em justiça ou injustiça no estado de natureza, já que cada indivíduo dispõe da própria força para satisfazer seus próprios desejos e proteger seus interesses. O estado civil, juridicamente organizado, é, por sua vez, uma conquista da razão. Os indivíduos se dão conta de que é melhor renunciar aos seus direitos naturais – exceto o direito à vida – em troca da segurança e da paz proporcionada pelo soberano. E como é que o soberano pode garantir segurança e paz aos súditos? Por meio do direito positivo. Assim, explicaHobbes, para salvar o direito natural à vida os súditos não mais podem usar a força e têm de se submeter às normas postas pela autoridade política, as únicas capazes de punir, de forma organizada e controlada, aqueles que não cumprem suas obrigações. Dessa forma, a obrigação de obedecer à lei natural se transforma no seu oposto: o súdito é obrigado antes de tudo a obedecer às leis positivas. E é nisso que Hobbes se distancia dos demais jusnaturalistas, tornando-se, ao final, um precursor do positivismo jurídico. Os jusnaturalistas clássicos afirmam que as normas do direito positivo, para serem válidas, devem também ser justas, ou seja, devem corresponder ao direito natural. Hobbes, por sua vez, afirma exatamente o contrário: é justo o que é comandado pelo simples fato de ser comandado; e é injusto o que é proibido pelo simples fato de ser proibido. Em outras palavras: os jusnaturalistas consideram o direito uma derivação da moral; Hobbes considera a moral uma derivação do direito. 5 1.4. O jusnaturalismo não é uma moral mas uma teoria da moral Qual é, afinal, o conteúdo do direito natural? A resposta a essa pergunta também não é fácil. Como afirma o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), a natureza complacente já foi invocada como fundamento moral dos mais diversos valores e, se solicitada com habilidade, poder servir aos interesses de quem quer que seja: do patrão ou do empregado, do soberano ou do súdito, do rico ou do pobre, do opressor ou do oprimido, de um escritor, de um político, de um partido, de uma seita... O que, afinal, é mais natural: a liberdade (como queriam Locke, Rousseau e Kant) ou a escravidão (como defendia Aristóteles: “uns nascem para mandar, outros para servir”)? A propriedade privada (liberais) ou a propriedade coletiva (socialistas)? A obediência às leis mesmo que injustas ou a resistência à opressão? Enfim, no que diz respeito aos valores, cada um interpreta a natureza ao seu modo e de acordo com seus próprios anseios. O que une todos os jusnaturalistas, portanto, não é um conteúdo moral específico (esse conteúdo, como vimos, pode ser qualquer um), mas sim o universalismo axiológico: todos eles (exceto Hobbes) acreditam em uma moral universal, atemporal e que pode ser objetivamente conhecida e fundamentada. Todos eles têm também um inimigo em comum: o relativismo dos valores. 1.5. A ruína do jusnaturalismo: uma ironia da história Segundo o italiano Guido Fassò, o jusnaturalismo celebra o seu triunfo no momento mesmo em que esgota a sua função. De acordo com os jusnaturalistas modernos o direito natural é deduzido da natureza humana e consiste em um rol de direitos inatos, de caráter universal e indisponível, e que inclui não apenas o direito à vida (como em Hobbes) mas também o direito às liberdades de ir e vir, de expressar a própria opinião, de associação, de consciência política e religiosa. Foi justamente a exigência do respeito político a tais direitos que animou e inspirou a Declaração de Independência dos EUA (1776) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) da França revolucionária. Inspirou também a elaboração das Constituições, não apenas a norte-americana (1787) e as primeiras versões das Constituições francesas, mas também as de outros 6 países europeus que foram seguindo o novo modelo jurídico que começava a se formar na passagem do século XVIII para o XIX. Essas reformas jurídicas resultaram, finalmente, na imposição de limites intransponíveis às autoridades políticas, consagrando no direito positivo aqueles que eram considerados direitos inatos dos indivíduos. A limitação jurídica do poder soberano foi, assim, a conquista política que melhor expressou o triunfo do jusnaturalismo moderno. A ironia da história, porém, é que essas mesmas reformas desembocaram ainda na elaboração do Código Civil francês de 1804, o Código de Napoleão. A partir de então, em nome da certeza e da segurança jurídica, as leis se elevaram à condição de principal fonte do direito. Não se tratava mais de discutir e elencar quais eram os direitos inatos dos indivíduos, mas apenas e tão somente de aplicar as normas válidas, postas pela autoridade competente. Nasce aí a ciência dogmática do direito, responsável pelo desenvolvimento das técnicas interpretativas de respeito à lei como expressão da vontade do poder legislativo. Em outras palavras, a lei se transforma para o jurista em uma premissa inatacável, em um dogma, em uma certeza imposta por um ato de poder. Na França do início do século XIX, a Escola da Exegese é a primeira expressão do positivismo jurídico. Ultralegalista, essa escola entendia que a função do julgador era ater-se com rigor absoluto à letra da lei, aplicando-a mecanicamente mediante a lógica dedutiva, sem perder-se nas questões filosóficas acerca do que era e do que deixava de ser o direito natural. Na Alemanha, igualmente no século XIX, surge a Escola Histórica do Direito segundo o a qual o direito é a expressão do espírito de um povo e, onde quer que haja uma nação, há também um direito que o representa. Esse direito, situado historicamente no tempo e no espaço, não corresponde a nenhum valor universal e absoluto. Antes o contrário: ao reconhecer a dimensão histórica das relações jurídicas, a Escola Histórica tece severas críticas às teorias que entendiam como exigência absoluta da razão o que eram apenas aspirações políticas e econômicas da época. Em outras palavras, os direitos de liberdade que os jusnaturalistas julgavam inatos, passam a ser considerados a manifestação histórica de um determinado povo situado no tempo e no espaço. 7 O positivismo jurídico francês e o historicismo alemão, além das filosofias relativistas do século XIX como, por exemplo, a genealogia da moral de Nietzsche, ou o conceito de ideologia em Marx, contribuem com o declínio das teorias jusnaturalistas e com a superação de sua concepção universalista da moral. Voltando, enfim, à afirmação de Guido Fassò, podemos entendê-la também em sentido retrospectivo: a ruína do jusnaturalismo foi provocada pela elevação da lei à principal fonte do direito; a elevação da lei à principal fonte do direito foi o resultado da elaboração das codificações e constituições modernas; as codificações e constituições modernas representaram a conquista política da limitação da autoridade soberana em função dos direitos dos indivíduos; e, finalmente, a limitação da autoridade soberana em função dos direitos dos indivíduos foi o grande ideal do jusnaturalismo moderno. 1.6. O “renascimento” do direito natural Diante de tantos ataques, o jusnaturalismo praticamente se extinguiu e, se não chegou a morrer de todo, sobreviveu ao longo do século XIX sobretudo em sua versão católica e sem maiores repercussões acadêmicas. Após a catástrofe que foi a Segunda Guerra Mundial, porém, o positivismo jurídico passou a ser acusado de legitimar a barbárie em nome da lei. O jusnaturalismo, por sua vez, experimentou uma espécie de “renascimento” e conheceu uma série de “conversões”. A mais célebre delas foi a do alemão Gustav Radbruch (1878-1949) que, antes do nazismo, era relativista e adepto do positivismo jurídico e, depois, tornou-se um convicto defensor do direito natural. Segundo ele, “ressurgiu com força a ideia de um direito acima das leis no qual se chega ao extremo de representar certas leis positivas como perversões jurídicas” (...). “Até que ponto”, indagava o Radbruch já convertido, “a certeza do direito pode propor a contra- exigência de que o direito codificado, a despeito do seu caráter injusto, seja considerado válido?” (Introdução à Filosofiado Direito). O também alemão Rudolf Stammler (1856-1938), em combate contra o positivismo jurídico, cria após o término da Segunda Guerra a teoria do “direito natural de conteúdo variável”. Segundo ele o direito natural não seria um sistema 8 de regras universais, válidas universalmente, todo o tempo e em todos os lugares, mas um conjunto de princípios bastante genéricos e flexíveis, adaptáveis continuamente ao progresso histórico. A objeção, porém, que se pode fazer ao suposto “renascimento” do direito natural tem um duplo aspecto. Para tanto, é preciso diferenciar a exigência da teoria jusnaturalista. A exigência de toda teoria jusnaturalista é a justiça, uma justiça que transcende o direito positivo e nos provoca a tomar uma posição política para modificá-lo, aperfeiçoá-lo e adaptá-lo às novas necessidades e valores. Nesse sentido, não se pode falar propriamente em “renascimento” da exigência jusnaturalista pelo simples fato de que ela nunca morreu e, portanto, não deve causar tanto estranhamento. Salvo as versões mais legalistas do positivismo jurídico, os relativistas mais críticos e refinados, como Bobbio, por exemplo, sustentam que a preocupação com a justiça não é uma exclusividade dos teóricos universalistas. Também os relativistas podem avaliar se a norma é justa ou injusta e se está ou não apta a realizar os valores históricos que inspiram um determinado ordenamento jurídico situado no tempo e no espaço. Em outras palavras, o juízo de valor acerca da justiça ou injustiça das normas jurídicas pode estar tranquilamente dissociado da teoria do direito natural. Quanto à teoria jusnaturalista, o que “renasce” após a Segunda Guerra é alguma outra coisa que toma emprestado do jusnaturalismo só o nome mas não a substância. Afinal, afirmar a existência de um “direito natural de conteúdo variável” é perverter a essência do jusnaturalismo, aproximando-o tanto do historicismo que dele já não mais se distingue. 9 CAPÍTULO 2: O POSITIVISMO JURÍDICO RELATIVISTA DE HANS KELSEN Hans Kelsen (1881-1973) foi um crítico severo das teorias jusnaturalistas e um dos maiores expoentes do positivismo jurídico do século XX. Adepto do relativismo axiológico, ou seja, da ideia segundo a qual os valores morais não são naturais, mas históricos e contingentes, variando no tempo e no espaço, Kelsen afirma que justiça e validade são critérios independentes de avaliação da norma jurídica e enxerga na sanção um aspecto fundamental da experiência jurídica, descrita por ele como ordem coercitiva da conduta humana. 2.1. As normas jurídicas e o mundo da imputação O mundo jurídico, afirma Kelsen, caracteriza-se pela imputação. Isso significa que a sanção, ou seja, o castigo previsto pela violação de uma norma, é uma consequência atribuída pela vontade da autoridade política e que deve ser aplicada ao autor da conduta ilícita. As normas jurídicas podem ser descritas, assim, pela equação “Se A é, então B deve ser”, em que “A” é um ilícito enquanto “B” é a consequência que deve ser imputada à prática do respectivo ilícito. O homicídio simples, por exemplo, é uma conduta punida com a pena de reclusão de 6 a 20 anos (Art. 121 do Código Penal). O homicídio, portanto, é a conduta “A”, enquanto a pena de reclusão é a consequência “B”. A pena, porém, não é uma consequência natural ou necessária mas uma consequência imputada, isto é, que deve ser aplicada como resposta à conduta “A”. Pode acontecer, contudo, que o indivíduo que tenha praticado um homicídio não seja punido com a pena de reclusão por não ter sido descoberto, por estar foragido, por ter morrido antes que a sanção tivesse sido aplicada, o que não invalida a norma jurídica que, apesar de violada, continua válida. 2.2. O mundo desencantado da natureza O ser humano primitivo, continua Kelsen, não se pergunta quais são as causas dos fenômenos naturais, mas sim quem é por eles responsável. Suas explicações não são causais (como são as explicações científicas), mas normativas e encantadas, por isso se diz também que os primitivos são animistas. 10 Para eles, espíritos invisíveis mas poderosos animam todas as coisas naturais e são capazes de punir ou premiar os humanos conforme suas condutas. Os fenômenos naturais são, assim, interpretados como castigos por uma conduta má ou como prêmios por uma conduta boa. Nas palavras de Kelsen, “a infelicidade, isto é, os eventos desvantajosos como as más colheitas, o insucesso na caça, a derrota na guerra, a doença, a morte, são atribuídos, como castigos, à conduta contrária à norma dos membros do grupo; ao passo que os eventos vantajosos, tais como as boas colheitas, o sucesso na caça, a vitória na guerra, a saúde, uma longa vida, são atribuídos, como prêmio, à conduta conforme às normas dos membros do grupo.”2 A moderna ciência da natureza, ao contrário, não se pergunta quem é responsável pelos fenômenos naturais, mas quais as causas desses fenômenos. Um tsunami ou a erupção de um vulcão, em escala coletiva, ou o câncer, por exemplo, no que toca a este ou aquele indivíduo, não são um castigo. A boa colheita, a abundância da caça e uma vida longa, não são um prêmio. Os fenômenos naturais, incluídas aí as doenças, são apenas a consequência necessária de uma causa anterior, uma causa natural e indiferente aos valores morais, indiferente, portanto, à conduta moralmente reta ou condenável do doente ou dos membros do grupo. A natureza, assim, deixa de ser encantada e passa a ser vista como o mundo em que as coisas se dão por causalidade. A função das ciências da natureza é descrever os fenômenos naturais por meio de leis científicas. Isso significa que o seu objetivo é descobrir relações de causa e efeito e descrever a natureza como ela é. As leis científicas obedecem à seguinte fórmula: “Se A é, então B também é”, sendo “A” uma causa e “B” a sua consequência necessária. A lei da gravidade, por exemplo, não impõe um dever de atração aos os corpos que têm massa, apenas descreve de que modo se dá essa atração. Se um dia dois corpos que têm massa não se atraírem desse determinado modo, não serão os corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade, que, aliás, não seria propriamente uma lei, mas um equívoco. Se afirmo que a água passa do estado líquido para o gasoso a 100˚C ao nível do mar, 2 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 93. 11 não digo com isso que a água tem o dever de evaporar, apenas descrevo uma relação de causalidade: toda vez que observarmos a causa “A” (a temperatura se elevou a 100˚C ao nível do mar), observaremos também a consequência “B” (a água passará ao estado gasoso). Assim, a água evapora não porque existe um espírito do vapor d’água para o qual eu deva rezar se quiser fazer um café. Basta, apenas, que eu a coloque sobre o fogo e aguarde seu aquecimento. A metodologia do conhecimento científico resultou naquilo que Max Weber denominou de “o desencantamento do mundo”. Onde as coisas se dão por uma relação de causa e efeito, se dão também sem intenções deliberadas. O maior erro das teorias jusnaturalistas, segundo Kelsen, foi justamente o de tentar deduzir um dever ser (as normas morais ou jurídicas) de um ser (a natureza), ou ainda um juízo de valor moral de uma natureza amoral, regida pela causalidade e, portanto, sujeita apenas ao conhecimento descritivo e que se dá por meio de juízos de fato. 2.3. O relativismo axiológico Afinal, o que tudo isso tem a ver com a moral? Simples: os valores morais não são naturais, não podem serdeduzidos da natureza, não podem ser descritos cientificamente. Isso significa que a universalidade de um valor moral não pode ser objetivamente demonstrada e, por isso, só pode resultar de uma crença. O problema da universalidade dos valores torna-se ainda mais espinhoso ao constatarmos que são muitas as crenças existentes no mundo e consequentemente os valores delas resultantes. Kelsen não nega a existência dos valores, apenas reconhece a existência de diversos valores muitas vezes contraditórios entre si, sem que seja possível demonstrar objetivamente qual deles deva prevalecer sobre os demais. Por esse motivo, a afirmação de Jules Lequier expressa muito bem o relativismo valorativo de Kelsen: “aquele que crê com a fé mais inabalável que possui a verdade, deve saber que crê, e não crer que sabe”. Quando se trata de valores, o que existe não é um fundamento universal e último, mas apenas e tão-somente uma preferência. Quando muito, uma crença. Conclusão: no campo da moral, não há objetividade possível. O que é justo afinal: proibir o aborto ou permitir à mulher que decida sobre seu corpo? Reduzir a 12 menoridade penal ou tratar o assassino de 16 anos como relativamente incapaz de compreender seu ato? Proibir o fumo de cigarros em locais fechados como restaurantes e boates ou permitir ao proprietário do estabelecimento que decida livremente se é permitido fumar? Proibir e criminalizar o uso e o comércio de drogas ou descriminalizá-los e regulamentá-los? Todos esses exemplos possuem adeptos calorosos de ambos os lados e nos revela a ausência de consenso em questões morais. Talvez fique ainda mais fácil perceber a ausência de critérios universais para definir o que é justo e injusto sob uma perspectiva histórica ou de culturas muito diversas. O que é justo: permitir que o mais forte escravize o mais fraco ou proibir a escravidão? Segregar pessoas em função da cor da sua pele e do formato de seu nariz ou proibir a segregação? Em nome da diversidade cultural aceitar e proteger a prática da mutilação genital feminina ou militar a favor de sua proibição? A nós, ocidentais do século XXI, nos parece óbvio e quase evidente que a segunda alternativa é sempre a melhor. No entanto, a primeira alternativa já foi ou continua sendo considerada a mais adequada em diversos quadrantes do planeta. Em suma: quando resolvemos buscar o fundamento último dos valores, quaisquer que sejam eles, não os encontramos em lugar algum. Ao menos, não de forma objetiva. 2.4. A norma jurídica pode ser válida mesmo que seja injusta Quais as consequências teóricas do relativismo axiológico kelseniano? Em primeiro lugar, Kelsen afirma a independência entre a justiça e a validade das normas jurídicas. A justiça, admite Kelsen, diz ao seres humanos qual deve ser o conteúdo das normas jurídicas. Mas isso não a transforma no seu fundamento de validade. Segundo ele, uma norma de direito positivo não vale pelo fato de ser justa e vale mesmo que seja injusta. É claro: a mesma norma pode ser considerada justa por uns e injusta por outros, já que a justiça é relativa. Sendo assim, o fundamento de validade de uma norma jurídica não é a justiça, mas outra norma de direito positivo. O que devemos nos perguntar para saber se uma norma jurídica é válida ou inválida? Se ela foi posta pela autoridade competente, se ela 13 não contraria o conteúdo de uma norma superior e se ele não foi revogada por uma norma mais nova. Se respondermos positivamente à primeira pergunta e negativamente às seguintes, então a norma é valida, ainda que a consideremos injusta. Pode-se concluir desse raciocínio que temos o dever moral de obedecer as normas jurídicas? É claro que não. Significa, apenas, que a conduta que viola uma norma jurídica válida está sujeita a à sanção jurídica prevista. Uma conduta, afinal, pode ser lícita e moral ou ilícita e imoral. Mas também pode ser lícita e imoral ou, ainda, ilícita e moral. É que direito e moral são duas ordens independentes, ainda que se relacionem. 2.5. A teoria da justiça e a teoria geral do direito Outra consequência do relativismo axiológico de Kelsen consiste na clara distinção entre duas disciplinas diferentes, com metodologias próprias. Uma delas é a teoria da justiça. A outra é a teoria geral do direito. Na primeira, o teórico preocupa-se em responder o que é a justiça e pode manifestar-se ideologicamente dizendo como o direito deveria ser. A teoria geral do direito, por sua vez, ocupa-se com a validade das normas jurídicas. O objetivo, aqui, não é mais dizer como deve ser o direito em função da justiça, mas descrever como ele é de fato. Não se trata de desprezar o tema da justiça como se fosse algo desprezível ou desimportante, mas de delimitar adequadamente o objeto de estudo. Uma das obras mais famosas de Kelsen é a sua Teoria Pura do Direito. Logo na primeira página o autor nos esclarece: “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica específica. É teoria geral do Direito, não interpretação de normas jurídicas particulares, nacionais ou internacionais. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito”3. 3 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p 1. 14 A teoria geral do direito, desta forma, ocupa-se das normas válidas, isto é, das normas existentes, e procura definir de modo objetivo conceitos próprios ao universo do jurista, respondendo questões como: o que é norma? o que é ordenamento? o que é sistema? o que é antinomia? o que é lacuna? o que é direito objetivo e subjetivo? quais são as fontes do direito? etc. Se, por um lado, as teorias da justiça estão liberadas para fazer a crítica do direito como ele é e propor mudanças para torná-lo mais justo, por outro lado as teorias gerais do direito se abstém de criticar ideologicamente o direito existente e concentram-se em descrevê-lo. Há uma diferença muito grande, por exemplo, em qualificar o ordenamento jurídico nazista como injusto, cruel e desumano (o que caracteriza um juízo de valor) e reconhecer a sua existência histórica (o que caracteriza um juízo de fato). Desnecessário dizer que a constatação de sua existência não significa adesão à sua causa. 2.6. O mais frequente equívoco dos críticos de Kelsen São diversos os juristas que acusam o formalismo kelseniano de justificar politicamente e legitimar moralmente regimes jurídicos injustos e violentos como o nazismo. A crítica, porém, carece de fundamento teórico, biográfico e valorativo. Em primeiro lugar, não cabe a uma teoria geral justificar qualquer regime político, mas apenas e tão somente descrever o que o direito é. Quanto a isso, não pode haver dúvidas: o ordenamento da Alemanha nazista foi tão jurídico quanto qualquer outro ordenamento, seja aquele de um Estado da democracia liberal, como são os Estados Unidos, ou de um Estado da democracia social, como é, por exemplo, a Suécia. Dizer que as normas jurídicas nazistas pertenciam a um ordenamento jurídico válido em determinado período da história é somente uma constatação de fato e não uma justificativa política ou uma legitimação moral. A crítica a Kelsen tampouco se dá conta de sua biografia. Austríaco e judeu, Kelsen teve de fugir da Europa com a ascensão do nazismo, exilando-se primeiro na Suíça e, em seguida e definitivamente,nos Estados Unidos. Será que Kelsen estava justificando moralmente o regime que o perseguiu? Absurdo. 15 Finalmente, o nazismo nunca tolerou o relativismo axiológico. Muito pelo contrário: todos aqueles que não concordavam ou não se adequavam aos valores pregados pelo nazismo e por seu líder eram perseguidos, presos e, em grande escala, assassinados. Não é à toa que o nazismo, ao lado do stalinismo, é a expressão máxima do totalitarismo político, um regime caracterizado pelo culto à personalidade do chefe de Estado, pela centralização das decisões políticas e econômicas, pela imposição de uma ideologia única e pela vigilância e controle de todos os aspectos da vida pública e privada. Por fim, os críticos de Kelsen esquecem que ele também produziu a sua teoria da justiça e, aí sim, declara-se explicitamente um democrata: “Uma vez que democracia, de acordo com sua natureza mais profunda, significa liberdade, e liberdade significa tolerância, nenhuma outra forma de governo é mais favorável à ciência que a democracia. A ciência só pode prosperar se for livre; ela será livre não somente quando o for externamente, ou seja, quando estiver independente de influências políticas, mas também quando o for interiormente, quando houver total liberdade no jogo do argumento e do contra-argumento. Nenhuma doutrina pode ser reprimida em nome da ciência, pois a alma da ciência é a tolerância. “Iniciei este ensaio com a questão: o que é a justiça? Agora, ao final, estou absolutamente ciente de não tê-la respondido. A meu favor, como desculpa, está o fato de que me encontro nesse sentido em ótima companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja a justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância”4. 4 KELSEN, Hans. O que é a justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.25.
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