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O jusnaturalismo e o positivismo jurídico de Hans Kelsen

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1 
O jusnaturalismo e o positivismo jurídico de Hans Kelsen 
Guilherme Arruda Aranha1 
 
 
 
 
CAPÍTULO 1: O UNIVERSALISMO JUSNATURALISTA 
 As teorias jusnaturalistas afirmam existir um direito natural, que tem 
validade em si mesmo (independentemente da vontade da autoridade política), e 
cujo conteúdo, além de ser anterior e eticamente superior ao direito positivo, pode 
ser conhecido objetivamente. Argumentam, ainda, que em caso de conflito entre 
as normas do direito natural e as do direito positivo são aquelas que devem 
prevalecer. 
 O que significa propriamente dizer que o direito pode ser “natural”? O direito 
positivo sabemos bem: é o conjunto de normas impostas e recepcionadas pela 
autoridade política em uma sociedade em um determinado período. Não se trata 
apenas das leis escritas (Constituição, leis complementares, federais, estaduais e 
municipais, estatutos, medidas provisórias, regulamentos, portarias, circulares, 
atos administrativos, contratos, sentenças etc.), mas também dos princípios gerais 
do direito (às vezes implícitos no ordenamento) e dos costumes, aceitos algumas 
vezes como fonte subsidiária do direito. É evidente que o direito positivo varia 
enormemente de período para período (o direito positivo do Brasil Império era bem 
diferente do atual) e de país para país (o direito positivo inglês é bem diferente do 
brasileiro). 
 A definição de direito natural, por sua vez, exige uma rápida reflexão sobre 
o conceito de natureza, um conceito extremamente genérico que não cessa de 
provocar os filósofos para determinar o seu significado. Para fins didáticos, porém, 
vamos nos limitar a dizer que a natureza abrange todos os seres e eventos que 
existem independentemente do ser humano, todas as coisas, portanto, que não 
 
1 Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP. Professor da PUC/SP e 
Coordenador Científico do Instituto Norberto Bobbio. 
 2 
foram produzidas pelo ser humano e que independem do seu fazer e da sua 
existência, tais como o oceano, os rios, as pedras, o fogo, a terra, as árvores, os 
animais etc. A partir de uma tal definição é possível compreender a oposição entre 
natureza e cultura: enquanto a primeira independe do agir humano, a segunda é 
justamente o resultado das coisas que só existem porque foram produzidas pelo 
ser humano. Dessa forma, todos os conceitos antitéticos ao de natureza têm 
sempre a função de contrapor o universo que o ser humano é obrigado a aceitar 
como uma necessidade (a natureza) ao universo criado e dominado por ele. Daí 
as diversas reformulações da grande dicotomia entre natureza e cultura, tais como 
natureza e arte, natureza e convenção, natureza e sociedade, natureza e 
civilidade, natureza e história etc. 
 De acordo com as teorias jusnaturalistas, portanto, o direito é em parte 
cultural (é produzido pelo ser humano) e em parte natural (independe do agir 
humano), daí a dicotomia entre o direito positivo, produzido pela autoridade 
política e, acima dele, pairando como um norte moral, o direito natural. 
 Mas como, afinal, podemos conhecer o direito natural? A resposta a essa 
pergunta não é fácil, pois depende da época e do autor considerado. Vamos tomar 
como exemplo da diversidade epistemológica das teorias jusnaturalistas três 
autores: Aristóteles (Antiguidade), Tomás de Aquino (Idade Média) e Thomas 
Hobbes (Modernidade). 
 
 1.1. O direito natural segundo Aristóteles 
 De acordo com Aristóteles as normas de direito natural têm validade 
universal, ou seja, valem em qualquer lugar e em qualquer época, “como o fogo 
que queima em toda parte do mesmo modo, tanto na Grécia quanto na Pérsia”. O 
direito natural corresponde ao que é justo e injusto por si mesmo, sem levar em 
conta nossas opiniões e preferências e, assim, estabelece comportamentos 
obrigatórios independentemente de nossa vontade. Por meio da razão, continua 
Aristóteles, podemos descobrir a justiça imanente à ordem natural das coisas. Já o 
direito positivo começa onde o direito natural termina, tornando obrigatórias por 
convenção todas as condutas que são indiferentes ao direito natural. Segundo 
 3 
Aristóteles, portanto, o direito natural e o direito positivo regulam, em princípio, 
matérias distintas. Para falar em termos contemporâneos, a opção de regular o 
tráfego de veículos nas vias públicas pela direita (como no Brasil) ou pela 
esquerda (como na Inglaterra) é indiferente ao direito natural. Mas o que acontece 
quando o direito positivo invade a esfera das coisas reguladas pelo direito natural? 
Nesses casos, explica Aristóteles, se a lei positiva regular o comportamento do 
mesmo modo que a lei natural, não há qualquer problema mas apenas o reforço 
da conduta boa em si mesma. O problema, explica Aristóteles, é se houver conflito 
entre a lei positiva e o direito natural. Nesses casos o antigo filósofo deixa explícita 
a sua preferência pelo direito natural, eticamente superior ao direito positivo. 
 
 1.2. O direito natural segundo Tomás de Aquino 
 Na Idade Média a natureza passa a ser considerada o produto da 
inteligência e da potência criadora de Deus, abrangendo tudo o que não depende 
do ser humano. O direito natural, nesse contexto, é visto ora como a lei inscrita por 
Deus no coração dos homens, ora como a lei revelada pelos textos sagrados que 
transmite a palavra divina, ora como a lei comunicada aos homens por Deus, por 
meio da razão. Tomás de Aquino se insere nesta última tradição. Segundo ele, 
acima da lei natural existe uma lei eterna, entendida como a razão divina que 
governa o mundo. O direito natural, por sua vez, é apenas uma partícula da lei 
eterna inserida por Deus na criatura racional e seu preceito único, a partir do qual 
a razão é capaz de deduzir todos os outros preceitos, é: “faça o bem e evite o 
mal”. Por fim, a autoridade política responsável pela produção da lei humana deve 
ser capaz de usar a razão para inferir do direito natural os preceitos particulares 
capazes de enfrentar as diferentes situações criadas pelo relacionamento entre as 
pessoas. Em Tomás de Aquino, portanto, há uma hierarquia: a lei humana retira 
sua legitimidade da lei natural, que retira sua legitimidade da lei eterna. Sendo 
assim: “qualquer lei estabelecida pelos homens é autêntica na medida em que 
deriva da lei da natureza; se discordar desta, já não será uma lei, mas uma 
corrupção da lei”. 
 
 4 
 1.3. O direito natural segundo Thomas Hobbes 
 Hobbes, finalmente, é um tipo de jusnaturalista muito peculiar. Ao contrário 
de outros pensadores modernos, Hobbes invoca a doutrina do direito natural para 
reforçar o poder da autoridade política e não para limitá-lo, como fazem, por 
exemplo, Locke, Rousseau e Kant. Aliás, pode-se afirmar que Hobbes é 
jusnaturalista somente ao partir, mas é positivista ao chegar. Segundo Hobbes, o 
estado de natureza é o estado de guerra de todos contra todos, um estado 
inseguro, marcado pela desconfiança, violência e crueldade. Nesse contexto, o 
direito natural não tem vigência alguma e ninguém está obrigado a respeitá-lo, sob 
pena de ter um triste fim. Impossível sequer falar em justiça ou injustiça no estado 
de natureza, já que cada indivíduo dispõe da própria força para satisfazer seus 
próprios desejos e proteger seus interesses. O estado civil, juridicamente 
organizado, é, por sua vez, uma conquista da razão. Os indivíduos se dão conta 
de que é melhor renunciar aos seus direitos naturais – exceto o direito à vida – em 
troca da segurança e da paz proporcionada pelo soberano. E como é que o 
soberano pode garantir segurança e paz aos súditos? Por meio do direito positivo. 
Assim, explicaHobbes, para salvar o direito natural à vida os súditos não mais 
podem usar a força e têm de se submeter às normas postas pela autoridade 
política, as únicas capazes de punir, de forma organizada e controlada, aqueles 
que não cumprem suas obrigações. Dessa forma, a obrigação de obedecer à lei 
natural se transforma no seu oposto: o súdito é obrigado antes de tudo a obedecer 
às leis positivas. E é nisso que Hobbes se distancia dos demais jusnaturalistas, 
tornando-se, ao final, um precursor do positivismo jurídico. 
 Os jusnaturalistas clássicos afirmam que as normas do direito positivo, para 
serem válidas, devem também ser justas, ou seja, devem corresponder ao direito 
natural. Hobbes, por sua vez, afirma exatamente o contrário: é justo o que é 
comandado pelo simples fato de ser comandado; e é injusto o que é proibido pelo 
simples fato de ser proibido. Em outras palavras: os jusnaturalistas consideram o 
direito uma derivação da moral; Hobbes considera a moral uma derivação do 
direito. 
 
 5 
1.4. O jusnaturalismo não é uma moral mas uma teoria da moral 
 Qual é, afinal, o conteúdo do direito natural? A resposta a essa pergunta 
também não é fácil. Como afirma o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), 
a natureza complacente já foi invocada como fundamento moral dos mais diversos 
valores e, se solicitada com habilidade, poder servir aos interesses de quem quer 
que seja: do patrão ou do empregado, do soberano ou do súdito, do rico ou do 
pobre, do opressor ou do oprimido, de um escritor, de um político, de um partido, 
de uma seita... O que, afinal, é mais natural: a liberdade (como queriam Locke, 
Rousseau e Kant) ou a escravidão (como defendia Aristóteles: “uns nascem para 
mandar, outros para servir”)? A propriedade privada (liberais) ou a propriedade 
coletiva (socialistas)? A obediência às leis mesmo que injustas ou a resistência à 
opressão? Enfim, no que diz respeito aos valores, cada um interpreta a natureza 
ao seu modo e de acordo com seus próprios anseios. 
 O que une todos os jusnaturalistas, portanto, não é um conteúdo moral 
específico (esse conteúdo, como vimos, pode ser qualquer um), mas sim o 
universalismo axiológico: todos eles (exceto Hobbes) acreditam em uma moral 
universal, atemporal e que pode ser objetivamente conhecida e fundamentada. 
Todos eles têm também um inimigo em comum: o relativismo dos valores. 
 
 1.5. A ruína do jusnaturalismo: uma ironia da história 
 Segundo o italiano Guido Fassò, o jusnaturalismo celebra o seu triunfo no 
momento mesmo em que esgota a sua função. De acordo com os jusnaturalistas 
modernos o direito natural é deduzido da natureza humana e consiste em um rol 
de direitos inatos, de caráter universal e indisponível, e que inclui não apenas o 
direito à vida (como em Hobbes) mas também o direito às liberdades de ir e vir, de 
expressar a própria opinião, de associação, de consciência política e religiosa. Foi 
justamente a exigência do respeito político a tais direitos que animou e inspirou a 
Declaração de Independência dos EUA (1776) e a Declaração Universal dos 
Direitos do Homem e do Cidadão (1789) da França revolucionária. Inspirou 
também a elaboração das Constituições, não apenas a norte-americana (1787) e 
as primeiras versões das Constituições francesas, mas também as de outros 
 6 
países europeus que foram seguindo o novo modelo jurídico que começava a se 
formar na passagem do século XVIII para o XIX. Essas reformas jurídicas 
resultaram, finalmente, na imposição de limites intransponíveis às autoridades 
políticas, consagrando no direito positivo aqueles que eram considerados direitos 
inatos dos indivíduos. A limitação jurídica do poder soberano foi, assim, a 
conquista política que melhor expressou o triunfo do jusnaturalismo moderno. 
 A ironia da história, porém, é que essas mesmas reformas desembocaram 
ainda na elaboração do Código Civil francês de 1804, o Código de Napoleão. A 
partir de então, em nome da certeza e da segurança jurídica, as leis se elevaram à 
condição de principal fonte do direito. Não se tratava mais de discutir e elencar 
quais eram os direitos inatos dos indivíduos, mas apenas e tão somente de aplicar 
as normas válidas, postas pela autoridade competente. Nasce aí a ciência 
dogmática do direito, responsável pelo desenvolvimento das técnicas 
interpretativas de respeito à lei como expressão da vontade do poder legislativo. 
Em outras palavras, a lei se transforma para o jurista em uma premissa inatacável, 
em um dogma, em uma certeza imposta por um ato de poder. Na França do início 
do século XIX, a Escola da Exegese é a primeira expressão do positivismo 
jurídico. Ultralegalista, essa escola entendia que a função do julgador era ater-se 
com rigor absoluto à letra da lei, aplicando-a mecanicamente mediante a lógica 
dedutiva, sem perder-se nas questões filosóficas acerca do que era e do que 
deixava de ser o direito natural. Na Alemanha, igualmente no século XIX, surge a 
Escola Histórica do Direito segundo o a qual o direito é a expressão do espírito de 
um povo e, onde quer que haja uma nação, há também um direito que o 
representa. Esse direito, situado historicamente no tempo e no espaço, não 
corresponde a nenhum valor universal e absoluto. Antes o contrário: ao 
reconhecer a dimensão histórica das relações jurídicas, a Escola Histórica tece 
severas críticas às teorias que entendiam como exigência absoluta da razão o que 
eram apenas aspirações políticas e econômicas da época. Em outras palavras, os 
direitos de liberdade que os jusnaturalistas julgavam inatos, passam a ser 
considerados a manifestação histórica de um determinado povo situado no tempo 
e no espaço. 
 7 
 O positivismo jurídico francês e o historicismo alemão, além das filosofias 
relativistas do século XIX como, por exemplo, a genealogia da moral de Nietzsche, 
ou o conceito de ideologia em Marx, contribuem com o declínio das teorias 
jusnaturalistas e com a superação de sua concepção universalista da moral. 
Voltando, enfim, à afirmação de Guido Fassò, podemos entendê-la também 
em sentido retrospectivo: a ruína do jusnaturalismo foi provocada pela elevação da 
lei à principal fonte do direito; a elevação da lei à principal fonte do direito foi o 
resultado da elaboração das codificações e constituições modernas; as 
codificações e constituições modernas representaram a conquista política da 
limitação da autoridade soberana em função dos direitos dos indivíduos; e, 
finalmente, a limitação da autoridade soberana em função dos direitos dos 
indivíduos foi o grande ideal do jusnaturalismo moderno. 
 
1.6. O “renascimento” do direito natural 
 Diante de tantos ataques, o jusnaturalismo praticamente se extinguiu e, se 
não chegou a morrer de todo, sobreviveu ao longo do século XIX sobretudo em 
sua versão católica e sem maiores repercussões acadêmicas. Após a catástrofe 
que foi a Segunda Guerra Mundial, porém, o positivismo jurídico passou a ser 
acusado de legitimar a barbárie em nome da lei. O jusnaturalismo, por sua vez, 
experimentou uma espécie de “renascimento” e conheceu uma série de 
“conversões”. A mais célebre delas foi a do alemão Gustav Radbruch (1878-1949) 
que, antes do nazismo, era relativista e adepto do positivismo jurídico e, depois, 
tornou-se um convicto defensor do direito natural. Segundo ele, “ressurgiu com 
força a ideia de um direito acima das leis no qual se chega ao extremo de 
representar certas leis positivas como perversões jurídicas” (...). “Até que ponto”, 
indagava o Radbruch já convertido, “a certeza do direito pode propor a contra-
exigência de que o direito codificado, a despeito do seu caráter injusto, seja 
considerado válido?” (Introdução à Filosofiado Direito). 
 O também alemão Rudolf Stammler (1856-1938), em combate contra o 
positivismo jurídico, cria após o término da Segunda Guerra a teoria do “direito 
natural de conteúdo variável”. Segundo ele o direito natural não seria um sistema 
 8 
de regras universais, válidas universalmente, todo o tempo e em todos os lugares, 
mas um conjunto de princípios bastante genéricos e flexíveis, adaptáveis 
continuamente ao progresso histórico. 
 A objeção, porém, que se pode fazer ao suposto “renascimento” do direito 
natural tem um duplo aspecto. Para tanto, é preciso diferenciar a exigência da 
teoria jusnaturalista. A exigência de toda teoria jusnaturalista é a justiça, uma 
justiça que transcende o direito positivo e nos provoca a tomar uma posição 
política para modificá-lo, aperfeiçoá-lo e adaptá-lo às novas necessidades e 
valores. Nesse sentido, não se pode falar propriamente em “renascimento” da 
exigência jusnaturalista pelo simples fato de que ela nunca morreu e, portanto, 
não deve causar tanto estranhamento. Salvo as versões mais legalistas do 
positivismo jurídico, os relativistas mais críticos e refinados, como Bobbio, por 
exemplo, sustentam que a preocupação com a justiça não é uma exclusividade 
dos teóricos universalistas. Também os relativistas podem avaliar se a norma é 
justa ou injusta e se está ou não apta a realizar os valores históricos que inspiram 
um determinado ordenamento jurídico situado no tempo e no espaço. Em outras 
palavras, o juízo de valor acerca da justiça ou injustiça das normas jurídicas pode 
estar tranquilamente dissociado da teoria do direito natural. 
 Quanto à teoria jusnaturalista, o que “renasce” após a Segunda Guerra é 
alguma outra coisa que toma emprestado do jusnaturalismo só o nome mas não a 
substância. Afinal, afirmar a existência de um “direito natural de conteúdo variável” 
é perverter a essência do jusnaturalismo, aproximando-o tanto do historicismo que 
dele já não mais se distingue. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 9 
CAPÍTULO 2: O POSITIVISMO JURÍDICO RELATIVISTA DE HANS KELSEN 
 Hans Kelsen (1881-1973) foi um crítico severo das teorias jusnaturalistas e 
um dos maiores expoentes do positivismo jurídico do século XX. Adepto do 
relativismo axiológico, ou seja, da ideia segundo a qual os valores morais não são 
naturais, mas históricos e contingentes, variando no tempo e no espaço, Kelsen 
afirma que justiça e validade são critérios independentes de avaliação da norma 
jurídica e enxerga na sanção um aspecto fundamental da experiência jurídica, 
descrita por ele como ordem coercitiva da conduta humana. 
 
 2.1. As normas jurídicas e o mundo da imputação 
 O mundo jurídico, afirma Kelsen, caracteriza-se pela imputação. Isso 
significa que a sanção, ou seja, o castigo previsto pela violação de uma norma, é 
uma consequência atribuída pela vontade da autoridade política e que deve ser 
aplicada ao autor da conduta ilícita. As normas jurídicas podem ser descritas, 
assim, pela equação “Se A é, então B deve ser”, em que “A” é um ilícito enquanto 
“B” é a consequência que deve ser imputada à prática do respectivo ilícito. O 
homicídio simples, por exemplo, é uma conduta punida com a pena de reclusão de 
6 a 20 anos (Art. 121 do Código Penal). O homicídio, portanto, é a conduta “A”, 
enquanto a pena de reclusão é a consequência “B”. A pena, porém, não é uma 
consequência natural ou necessária mas uma consequência imputada, isto é, que 
deve ser aplicada como resposta à conduta “A”. Pode acontecer, contudo, que o 
indivíduo que tenha praticado um homicídio não seja punido com a pena de 
reclusão por não ter sido descoberto, por estar foragido, por ter morrido antes que 
a sanção tivesse sido aplicada, o que não invalida a norma jurídica que, apesar de 
violada, continua válida. 
 
 2.2. O mundo desencantado da natureza 
 O ser humano primitivo, continua Kelsen, não se pergunta quais são as 
causas dos fenômenos naturais, mas sim quem é por eles responsável. Suas 
explicações não são causais (como são as explicações científicas), mas 
normativas e encantadas, por isso se diz também que os primitivos são animistas. 
 10 
Para eles, espíritos invisíveis mas poderosos animam todas as coisas naturais e 
são capazes de punir ou premiar os humanos conforme suas condutas. Os 
fenômenos naturais são, assim, interpretados como castigos por uma conduta má 
ou como prêmios por uma conduta boa. Nas palavras de Kelsen, “a infelicidade, 
isto é, os eventos desvantajosos como as más colheitas, o insucesso na caça, a 
derrota na guerra, a doença, a morte, são atribuídos, como castigos, à conduta 
contrária à norma dos membros do grupo; ao passo que os eventos vantajosos, 
tais como as boas colheitas, o sucesso na caça, a vitória na guerra, a saúde, uma 
longa vida, são atribuídos, como prêmio, à conduta conforme às normas dos 
membros do grupo.”2 
 A moderna ciência da natureza, ao contrário, não se pergunta quem é 
responsável pelos fenômenos naturais, mas quais as causas desses fenômenos. 
Um tsunami ou a erupção de um vulcão, em escala coletiva, ou o câncer, por 
exemplo, no que toca a este ou aquele indivíduo, não são um castigo. A boa 
colheita, a abundância da caça e uma vida longa, não são um prêmio. Os 
fenômenos naturais, incluídas aí as doenças, são apenas a consequência 
necessária de uma causa anterior, uma causa natural e indiferente aos valores 
morais, indiferente, portanto, à conduta moralmente reta ou condenável do doente 
ou dos membros do grupo. A natureza, assim, deixa de ser encantada e passa a 
ser vista como o mundo em que as coisas se dão por causalidade. 
 A função das ciências da natureza é descrever os fenômenos naturais por 
meio de leis científicas. Isso significa que o seu objetivo é descobrir relações de 
causa e efeito e descrever a natureza como ela é. As leis científicas obedecem à 
seguinte fórmula: “Se A é, então B também é”, sendo “A” uma causa e “B” a sua 
consequência necessária. A lei da gravidade, por exemplo, não impõe um dever 
de atração aos os corpos que têm massa, apenas descreve de que modo se dá 
essa atração. Se um dia dois corpos que têm massa não se atraírem desse 
determinado modo, não serão os corpos que estarão errados, mas a lei da 
gravidade, que, aliás, não seria propriamente uma lei, mas um equívoco. Se 
afirmo que a água passa do estado líquido para o gasoso a 100˚C ao nível do mar, 
 
2 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 93. 
 11 
não digo com isso que a água tem o dever de evaporar, apenas descrevo uma 
relação de causalidade: toda vez que observarmos a causa “A” (a temperatura se 
elevou a 100˚C ao nível do mar), observaremos também a consequência “B” (a 
água passará ao estado gasoso). Assim, a água evapora não porque existe um 
espírito do vapor d’água para o qual eu deva rezar se quiser fazer um café. Basta, 
apenas, que eu a coloque sobre o fogo e aguarde seu aquecimento. 
 A metodologia do conhecimento científico resultou naquilo que Max Weber 
denominou de “o desencantamento do mundo”. Onde as coisas se dão por uma 
relação de causa e efeito, se dão também sem intenções deliberadas. O maior 
erro das teorias jusnaturalistas, segundo Kelsen, foi justamente o de tentar deduzir 
um dever ser (as normas morais ou jurídicas) de um ser (a natureza), ou ainda um 
juízo de valor moral de uma natureza amoral, regida pela causalidade e, portanto, 
sujeita apenas ao conhecimento descritivo e que se dá por meio de juízos de fato. 
 
 2.3. O relativismo axiológico 
 Afinal, o que tudo isso tem a ver com a moral? Simples: os valores morais 
não são naturais, não podem serdeduzidos da natureza, não podem ser descritos 
cientificamente. Isso significa que a universalidade de um valor moral não pode 
ser objetivamente demonstrada e, por isso, só pode resultar de uma crença. O 
problema da universalidade dos valores torna-se ainda mais espinhoso ao 
constatarmos que são muitas as crenças existentes no mundo e 
consequentemente os valores delas resultantes. Kelsen não nega a existência dos 
valores, apenas reconhece a existência de diversos valores muitas vezes 
contraditórios entre si, sem que seja possível demonstrar objetivamente qual deles 
deva prevalecer sobre os demais. Por esse motivo, a afirmação de Jules Lequier 
expressa muito bem o relativismo valorativo de Kelsen: “aquele que crê com a fé 
mais inabalável que possui a verdade, deve saber que crê, e não crer que sabe”. 
Quando se trata de valores, o que existe não é um fundamento universal e último, 
mas apenas e tão-somente uma preferência. Quando muito, uma crença. 
 Conclusão: no campo da moral, não há objetividade possível. O que é justo 
afinal: proibir o aborto ou permitir à mulher que decida sobre seu corpo? Reduzir a 
 12 
menoridade penal ou tratar o assassino de 16 anos como relativamente incapaz 
de compreender seu ato? Proibir o fumo de cigarros em locais fechados como 
restaurantes e boates ou permitir ao proprietário do estabelecimento que decida 
livremente se é permitido fumar? Proibir e criminalizar o uso e o comércio de 
drogas ou descriminalizá-los e regulamentá-los? Todos esses exemplos possuem 
adeptos calorosos de ambos os lados e nos revela a ausência de consenso em 
questões morais. 
 Talvez fique ainda mais fácil perceber a ausência de critérios universais 
para definir o que é justo e injusto sob uma perspectiva histórica ou de culturas 
muito diversas. O que é justo: permitir que o mais forte escravize o mais fraco ou 
proibir a escravidão? Segregar pessoas em função da cor da sua pele e do 
formato de seu nariz ou proibir a segregação? Em nome da diversidade cultural 
aceitar e proteger a prática da mutilação genital feminina ou militar a favor de sua 
proibição? A nós, ocidentais do século XXI, nos parece óbvio e quase evidente 
que a segunda alternativa é sempre a melhor. No entanto, a primeira alternativa já 
foi ou continua sendo considerada a mais adequada em diversos quadrantes do 
planeta. Em suma: quando resolvemos buscar o fundamento último dos valores, 
quaisquer que sejam eles, não os encontramos em lugar algum. Ao menos, não 
de forma objetiva. 
 
2.4. A norma jurídica pode ser válida mesmo que seja injusta 
 Quais as consequências teóricas do relativismo axiológico kelseniano? Em 
primeiro lugar, Kelsen afirma a independência entre a justiça e a validade das 
normas jurídicas. A justiça, admite Kelsen, diz ao seres humanos qual deve ser o 
conteúdo das normas jurídicas. Mas isso não a transforma no seu fundamento de 
validade. Segundo ele, uma norma de direito positivo não vale pelo fato de ser 
justa e vale mesmo que seja injusta. É claro: a mesma norma pode ser 
considerada justa por uns e injusta por outros, já que a justiça é relativa. Sendo 
assim, o fundamento de validade de uma norma jurídica não é a justiça, mas outra 
norma de direito positivo. O que devemos nos perguntar para saber se uma norma 
jurídica é válida ou inválida? Se ela foi posta pela autoridade competente, se ela 
 13 
não contraria o conteúdo de uma norma superior e se ele não foi revogada por 
uma norma mais nova. Se respondermos positivamente à primeira pergunta e 
negativamente às seguintes, então a norma é valida, ainda que a consideremos 
injusta. 
 Pode-se concluir desse raciocínio que temos o dever moral de obedecer as 
normas jurídicas? É claro que não. Significa, apenas, que a conduta que viola uma 
norma jurídica válida está sujeita a à sanção jurídica prevista. Uma conduta, afinal, 
pode ser lícita e moral ou ilícita e imoral. Mas também pode ser lícita e imoral ou, 
ainda, ilícita e moral. É que direito e moral são duas ordens independentes, ainda 
que se relacionem. 
 
 2.5. A teoria da justiça e a teoria geral do direito 
 Outra consequência do relativismo axiológico de Kelsen consiste na clara 
distinção entre duas disciplinas diferentes, com metodologias próprias. Uma delas 
é a teoria da justiça. A outra é a teoria geral do direito. Na primeira, o teórico 
preocupa-se em responder o que é a justiça e pode manifestar-se ideologicamente 
dizendo como o direito deveria ser. A teoria geral do direito, por sua vez, ocupa-se 
com a validade das normas jurídicas. O objetivo, aqui, não é mais dizer como deve 
ser o direito em função da justiça, mas descrever como ele é de fato. Não se trata 
de desprezar o tema da justiça como se fosse algo desprezível ou desimportante, 
mas de delimitar adequadamente o objeto de estudo. 
 Uma das obras mais famosas de Kelsen é a sua Teoria Pura do Direito. 
Logo na primeira página o autor nos esclarece: “A Teoria Pura do Direito é uma 
teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica 
específica. É teoria geral do Direito, não interpretação de normas jurídicas 
particulares, nacionais ou internacionais. Como teoria, quer única e 
exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: 
o que é e como é o Direito? Já não lhe importa a questão de saber como deve ser 
o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito”3. 
 
3 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p 1. 
 14 
 A teoria geral do direito, desta forma, ocupa-se das normas válidas, isto é, 
das normas existentes, e procura definir de modo objetivo conceitos próprios ao 
universo do jurista, respondendo questões como: o que é norma? o que é 
ordenamento? o que é sistema? o que é antinomia? o que é lacuna? o que é 
direito objetivo e subjetivo? quais são as fontes do direito? etc. 
 Se, por um lado, as teorias da justiça estão liberadas para fazer a crítica do 
direito como ele é e propor mudanças para torná-lo mais justo, por outro lado as 
teorias gerais do direito se abstém de criticar ideologicamente o direito existente e 
concentram-se em descrevê-lo. Há uma diferença muito grande, por exemplo, em 
qualificar o ordenamento jurídico nazista como injusto, cruel e desumano (o que 
caracteriza um juízo de valor) e reconhecer a sua existência histórica (o que 
caracteriza um juízo de fato). Desnecessário dizer que a constatação de sua 
existência não significa adesão à sua causa. 
 
 2.6. O mais frequente equívoco dos críticos de Kelsen 
 São diversos os juristas que acusam o formalismo kelseniano de justificar 
politicamente e legitimar moralmente regimes jurídicos injustos e violentos como o 
nazismo. A crítica, porém, carece de fundamento teórico, biográfico e valorativo. 
Em primeiro lugar, não cabe a uma teoria geral justificar qualquer regime político, 
mas apenas e tão somente descrever o que o direito é. Quanto a isso, não pode 
haver dúvidas: o ordenamento da Alemanha nazista foi tão jurídico quanto 
qualquer outro ordenamento, seja aquele de um Estado da democracia liberal, 
como são os Estados Unidos, ou de um Estado da democracia social, como é, por 
exemplo, a Suécia. Dizer que as normas jurídicas nazistas pertenciam a um 
ordenamento jurídico válido em determinado período da história é somente uma 
constatação de fato e não uma justificativa política ou uma legitimação moral. 
 A crítica a Kelsen tampouco se dá conta de sua biografia. Austríaco e 
judeu, Kelsen teve de fugir da Europa com a ascensão do nazismo, exilando-se 
primeiro na Suíça e, em seguida e definitivamente,nos Estados Unidos. Será que 
Kelsen estava justificando moralmente o regime que o perseguiu? Absurdo. 
 15 
 Finalmente, o nazismo nunca tolerou o relativismo axiológico. Muito pelo 
contrário: todos aqueles que não concordavam ou não se adequavam aos valores 
pregados pelo nazismo e por seu líder eram perseguidos, presos e, em grande 
escala, assassinados. Não é à toa que o nazismo, ao lado do stalinismo, é a 
expressão máxima do totalitarismo político, um regime caracterizado pelo culto à 
personalidade do chefe de Estado, pela centralização das decisões políticas e 
econômicas, pela imposição de uma ideologia única e pela vigilância e controle de 
todos os aspectos da vida pública e privada. 
 Por fim, os críticos de Kelsen esquecem que ele também produziu a sua 
teoria da justiça e, aí sim, declara-se explicitamente um democrata: “Uma vez que 
democracia, de acordo com sua natureza mais profunda, significa liberdade, e 
liberdade significa tolerância, nenhuma outra forma de governo é mais favorável à 
ciência que a democracia. A ciência só pode prosperar se for livre; ela será livre 
não somente quando o for externamente, ou seja, quando estiver independente de 
influências políticas, mas também quando o for interiormente, quando houver total 
liberdade no jogo do argumento e do contra-argumento. Nenhuma doutrina pode 
ser reprimida em nome da ciência, pois a alma da ciência é a tolerância. 
 “Iniciei este ensaio com a questão: o que é a justiça? Agora, ao final, estou 
absolutamente ciente de não tê-la respondido. A meu favor, como desculpa, está o 
fato de que me encontro nesse sentido em ótima companhia. Seria mais do que 
presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que 
fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja 
a justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me 
com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma 
vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha 
vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao 
lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da 
democracia, da tolerância”4. 
 
4 KELSEN, Hans. O que é a justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.25.

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