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Anotações sobre o pensamento jurídico-filosófico na história

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1 
ANOTAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO JURÍDICO-
FILOSÓFICO NA HISTÓRIA 
Guilherme Arruda Aranha1 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 O presente artigo procura apresentar de maneira sucinta e panorâmica as 
marcantes diferenças que o pensamento jurídico-filosófico assumiu ao longo da 
história. Seu objetivo é apontar a existência do vasto campo do pensamento 
jurídico-filosófico e despertar o leitor para a idéia de que “a história não é apenas 
um verniz de erudição. (...) Ela desempenhará o papel de desmistificação do 
eterno e ajudará a compreender que vivemos no tempo da ação”, como afirma o 
professor e historiador José Reinaldo de Lima Lopes. 
 
I. SOCIEDADES TRIBAIS E DIREITO ARCAICO 
 As sociedades tribais têm na consciência mítica uma característica 
acentuada, isto é, são organizadas em torno de crenças míticas, tradições e 
costumes. A função dos mitos “é resolver, num plano imaginativo, tensões, 
conflitos e antagonismos sociais que não têm como ser resolvidos no plano da 
realidade. A narrativa os soluciona imaginariamente para que a sociedade possa 
continuar vivendo com eles, sem destruir a si mesma. Graças ao encantamento do 
mundo – cheio de deuses e heróis, de objetos mágicos e feitos extraordinários – o 
mito conserva a realidade social dando-lhes um instrumento imaginário para 
conviver com suas contradições e dificuldades” (Chaui, 2002, p. 36). 
 A consciência mítica que molda a interpretação do real predominante nas 
sociedades tribais é, também, uma consciência comunitária. Isso quer dizer que o 
aspecto coletivo supera e condiciona a dimensão pessoal do indivíduo. O saber 
produzido em tais culturas é predominantemente dogmático. Ou seja, aceitam-se 
as explicações míticas da realidade e os comportamentos impostos pelas crenças 
e tradições sem que haja grandes margens para críticas ou questionamentos. 
 
1 Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP. Professor da PUC/SP e Coordenador Científico do 
Instituto Norberto Bobbio. 
 2 
 À primeira vista pode parecer que não existe direito nesses grupos. De fato, 
não existe um conhecimento do direito propriamente dito. Os integrantes das 
sociedades tribais não têm qualquer consciência “jurídica”. Entretanto, há uma 
ordem social bastante rígida, assentada sobre o princípio do parentesco. “Todas 
as estruturas sociais, que aliás não se especificam claramente, deixam-se 
penetrar por esse princípio (...), produzindo uma segmentação que organiza a 
comunidade em famílias, grupos de famílias, clãs, grupos de clãs. Dentro da 
comunidade, todos são parentes, o não-parente é uma figura esdrúxula. As 
alternativas de comportamento são, assim, pobres, resumindo-se num ‘ou isto ou 
aquilo’, num ‘tudo ou nada’”(Ferraz Jr., 2001, pp. 52-53). 
 Todo comportamento novo, incomum, inesperado, quebra as expectativas 
consagradas pelo grupo gerando medo e incerteza, indicando o “perigo de desvio 
para caminhos desconhecidos, de descarrilamento irreversível dos trilhos da 
ordem, incapaz de desacertos e inovações.” Assim, “torna-se compreensível a 
preferência por meios simbólicos [mitos e tradições], os quais protegem o presente 
contra a ameaçadora irrupção de outras possibilidades (...) A palavra certa, o 
gesto certo, a mágica certa, o juramento ou a maldição ativam o direito 
imediatamente (...). Dessa forma também o juramento divino é experimentado 
como uma estipulação concreta e presente do direito, mas não como um 
prejulgado para casos futuros ou até mesmo como revelação de uma regra geral. 
E a obrigatoriedade do direito transparece no rompimento de uma expectativa 
justificada no presente; ela não é concebida como uma obrigação futura” 
(Luhmann, 1983, pp.188-190). 
 Não há, ainda, nenhuma instância supra-familiar competente para decidir 
conflitos e disputas. As proibições, antes de serem regras conscientes que 
delimitam o que se pode e o que não se pode fazer no convívio social, são tabus 
explicados de modo sobrenatural e condicionados pelo princípio do parentesco. 
 Daí que a violação do tabu – que não deixa de ser uma norma de conduta – 
ultrapassa a estrita individualidade de quem a violou, atingindo toda a comunidade 
que se vê ameaçada pelas divindades. Para a sociedade ver-se livre dos castigos 
sobrenaturais a que fica sujeita com a quebra do tabu, são realizados “ritos de 
 3 
purificação” que podem culminar com a expulsão do transgressor ou em sacrifícios 
que, muitas vezes, são sacrifícios humanos. 
 Na medida em que o transgressor é expulso ou punido, faz-se notar aí a 
existência de um direito. Direito, todavia, que se manifesta de modo maniqueísta: 
ou o indivíduo está dentro da sociedade e, portanto, com o direito ou, ao 
desrespeitá-lo, é associado ao mal e colocado para fora. Dito de outro modo, o 
“bem” é visto como jurídico e o “mal” como antijurídico. Em suma, existe nas 
sociedades tribais um direito. No entanto, sua existência, seu conhecimento, sua 
aplicação confundem-se (cf. Ferraz Jr., 2001, p. 53). 
 
II. A PÓLIS E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO 
 Ainda que o direito romano seja experiência autóctone, não se pode 
menosprezar a influência sobre ele exercida pela filosofia grega. Para que se 
compreenda essa influência, faz-se necessário ter a dimensão das transformações 
da mentalidade humana que estavam em curso quando do surgimento da cidade-
estado grega – a pólis. 
 Desde o início do segundo milênio a.C. até o século VIII a.C. – período que 
abrange a civilização micênica e os tempos homéricos – havia, na Grécia, a figura 
do mestre da verdade, isto é, alguns homens considerados excepcionais, 
inspirados pelos deuses. O poeta2, o adivinho e o rei-de-justiça são os sábios que, 
ao falar, proferem a verdade. Sua palavra é poderosa, soberana e mágica. Em 
suma, uma palavra “eficaz porque, quando o poeta canta, o passado se faz 
presente; quando o adivinho anuncia, o futuro se faz presente; quando o rei-de-
justiça enuncia a justiça, cria a lei. Não há distância entre falar e fazer, palavra e 
ação” (Chaui, 2002, p. 41). 
 A partir do século VIII a.C., porém, a pólis vai se solidificando como nova 
forma de organização social. É nesse período que os mestres da verdade 
começam gradativamente a perder importância para uma nova categoria de 
homem: o cidadão. Em detrimento das palavras-mágicas dos sábios, o modelo da 
 
2 Os poetas da Grécia Homérica, também chamados aedos e rapsodos, eram aqueles que cantavam os mitos 
da cultura grega, celebrando os feitos extraordinários de seus antepassados. A poesia era, ainda, o veículo de 
educação das crianças gregas que aprendiam desde cedo a recitar trechos de cor. 
 4 
pólis assenta-se no exemplo das assembléias dos guerreiros gregos: um círculo 
formado antes e após as batalhas; nele, cada guerreiro é igual perante a lei do 
grupo (isonomia) e tem direito à palavra, podendo emitir sua opinião (isegoria). 
Trata-se de uma palavra compartilhada, pública, leiga e humana, em tudo oposta 
à palavra proferida pelo mestre da verdade: impositiva, unilateral, secreta e 
religiosa. 
 Segundo o helenista Marcel Detienne, a palavra dos guerreiros está inscrita 
“no tempo dos homens e não dos deuses (...) Instrumento de diálogo, esse tipo de 
palavra não tira mais sua eficácia de um jogo de forças religiosas que 
transcendem os homens. Funda-se essencialmente no acordo do grupo social que 
se manifesta pela aprovação ou pela desaprovação (...) É na assembléia dos 
guerreiros que se prepara o futuro estatuto da palavra jurídica e da palavra 
filosófica, isto é, da palavra que se submete à ‘publicidade’ e que tira sua força do 
assentimento de um gruposocial” (apud, Chaui, 2002, p. 42). 
 No lugar deixado pelos mestres da verdade, surge a figura do filósofo. A 
principal diferença entre a consciência mítica dos períodos anteriores (e mesmo 
dos grandes impérios do Oriente) e a consciência filosófica nascente é a 
elaboração de um conhecimento reflexivo aberto à critica. Se os mitos oferecem 
uma explicação mágica e dogmática sobre o princípio do mundo (cosmogonia) e o 
nascimento dos deuses (teogonia), os primeiros filósofos buscam a racionalidade 
constitutiva da Universo (cosmologias). O que se nota nesse momento é a “ruptura 
quanto à atitude diante do saber recebido. Enquanto o mito é uma narrativa cujo 
conteúdo não se questiona, a filosofia problematiza e convida à discussão. 
Enquanto no mito a inteligibilidade é dada, na filosofia ela é procurada. A filosofia 
rejeita o sobrenatural, a interferência de agentes divinos na explicação dos 
fenômenos” (Aranha, 1993, p. 67). Ou ainda, como acentua Vernant, “com os 
milésios3, pela primeira vez, a origem e a ordem do mundo tomam a forma de um 
problema explicitamente colocado a que se deve dar uma resposta sem mistério, 
ao nível da inteligência humana, suscetível de ser exposta e debatida 
publicamente, diante do conjunto dos cidadãos, como as outras questões da vida 
 
3 Milésios: são os primeiros filósofos, atuantes em Mileto, na Jônia (atual Turquia), entre eles, Tales. 
 5 
corrente. Assim se afirma uma função de conhecimento livre de toda preocupação 
de ordem ritual” (Vernant, 2000, pp. 84-85). 
 É com o advento da pólis, portanto, que a filosofia e a política4 se 
desenvolvem: instaura-se uma ordem humana, livre dos desígnios divinos, 
elevando o indivíduo à categoria de cidadão da pólis – figura inexistente no mundo 
coletivista da comunidade tribal –, garantindo-se-lhe acesso ao debate em praça 
pública. Concomitantemente, observa-se o esforço de superação do princípio do 
parentesco: na filosofia, Aristóteles enaltece a amizade entre os cidadãos 
demonstrando que a família não é o único fundamento da vida social; no direito, 
criam-se leis com o objetivo de impor o fim das vinganças familiares; na literatura, 
destaca-se a tragédia Antígona, de Sófocles, na qual “se chocam de um lado a 
solidariedade de Antígona com o irmão, e de outro a lei da cidade, encarnada por 
Creonte” (cf. Lopes, 2002, p 36). 
 Muito embora a lei continue exprimindo uma ordem concebida como 
sagrada, ela vai gradativamente se tornando supra-familiar, ou seja, vai se 
tornando comum e superior a todos. A grande novidade é que a confecção e a 
revogação das leis passam a ser responsabilidade de todos os cidadãos, estando 
irremediavelmente sujeitas à discussão e ao debate, abrindo-se um hiato nem 
sempre harmônico entre o direito “dos deuses” e o direito “dos homens” e cujo 
conflito pode ser igualmente percebido na tragédia Antígona (cf. Lopes, 2002, p 
40; Vernant, 2000, p. 44). 
 Pode-se dizer que o que se reivindica, nesse momento, é a redação das 
leis, possibilitando a imposição de normas prescritivas de validade permanente. O 
contraventor já não merece mais a expulsão. É dentro da sociedade que ele 
invoca, para se defender, o mesmo direito que invocam contra ele. O ilícito, afinal, 
não significa mais o exclusivo desrespeito à ordem querida pelos deuses, mas o 
desrespeito às leis humanas da cidade. 
 Está em curso, finalmente, a elaboração de uma nova concepção de justiça, 
capaz de garantir a todo cidadão o direito ao poder. Remetem-se, pois, a esse 
período as primeiras discussões acerca daquilo que, depois, viria a ser chamado 
 6 
de jusnaturalismo. Ao invés da palavra ritual e inquestionável do rei-de-justiça, 
capaz de “dizer” o direito, o que se vê agora são disputas em torno de conceitos 
como, por exemplo, “justo por natureza” e “justo por lei”. 
 Tais disputas, contudo, eram muito menos jurídicas do que filosóficas. Um 
bom exemplo disso é o conceito de phrônesis, palavra grega que não foge à 
tradição filosófica do rigor da linguagem. Definida por Heráclito como pensamento, 
por Sócrates (segundo Xenofonte) como inteligência divina e por Platão como 
pensamento puro, foi, todavia, por meio da filosofia aristotélica que, mais tarde, ela 
chegaria ao direito romano. 
 Em Ética a Nicômaco, Aristóteles define phrônesis como uma excelência 
moral: a virtude do discernimento5. Para ele, a pessoa capaz do discernimento é 
aquela que sabe “deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si 
mesma, não em um aspecto particular (...), e sim acerca das espécies de coisas 
que nos levam a viver bem de um modo geral” (Aristóteles, 2001, p. 116). Nesse 
sentido, o discernimento não se confunde nem com o conhecimento científico 
(forma de conhecimento no qual não há deliberação, mas demonstração de algo 
cujo princípio é invariável porque atrelado ao mundo da necessidade), nem com a 
técnica (domínio de procedimentos cuja finalidade é a realização de um produto 
exterior). A virtude do discernimento, diferentemente, é uma racionalidade capaz 
de identificar o que é bom ou mau para um ser humano, tornando-se hábil para 
agir na esfera dos bens humanos. Não se trata de um conhecimento puro, mas de 
uma razão intuitiva que discerne não o exato, mas o correto. Em suma, a 
phrônesis aristotélica é uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar 
desenvolvida pelo homem prudente, capaz de chegar a uma decisão após a 
análise de situações e possíveis soluções. É, em outras palavras, a busca do certo 
e do justo. 
 Para que o discernimento do homem prudente pudesse ser exercido, era 
necessário percorrer o caminho da dialética, entendida como a técnica das 
 
4 A palavra política deriva de pólis. Politikós é o cidadão da pólis e tudo aquilo que a ele diz respeito, ou seja, 
todos os negócios públicos e a administração pública. Política é, enfim, a arte de gerir a cidade. 
5 Mário da Gama Kury aponta na nota 162 de sua tradução de Ética a Nicômacos que o termo phrônesis, 
geralmente traduzido por prudência, corresponde melhor ao termo português discernimento. 
 7 
contradições. Do diálogo das opiniões contrárias seria possível, por meio de um 
procedimento crítico, refutar e erradicar as teses equivocadas, fortalecendo-se, em 
contra partida, as opiniões corretas. Desse modo, a dialética funcionava como 
uma espécie de lógica da verdade procurada (cf. Ferraz Jr., 2001, p. 57). Sob a 
influência de discussões filosóficas desse porte, o direito grego confundia-se com 
a atividade ética da prudência. 
 
III. A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ROMANA 
 Os gregos são responsáveis pelo desenvolvimento de idéias e conceitos 
caros à toda civilização ocidental. Diz-se que os romanos, tendo colonizado os 
gregos, foram por eles colonizados: à superioridade bélica do Império 
correspondia um maior refinamento filosófico ático. Mas não se diminua o mérito 
dos romanos que souberam reconhecer e usufruir de uma tal riqueza. E mesmo 
que já possuíssem um direito muito mais institucionalizado do que aquele que, 
ainda de modo incipiente, desenvolvia-se na Grécia, não hesitaram em adaptar 
conceitos filosóficos ao universo jurídico. Assim é que a prudência grega 
transforma-se na jurisprudência romana: a virtude moral do discernimento, uma 
vez ligada aos atos de julgar, confere ao direito o caráter de equilíbrio e 
ponderação. 
 Os romanos, tendo incorporado o pensamento prudencial e a técnica 
dialética, acabaram por produzir um saber jurídico de natureza prática, atingindo 
elevado nível de abstração. Ao contrário do que acontecia nas sociedades tribais, 
em Roma o comportamento em desacordocom a expectativa consagrada (e 
portanto a possibilidade de um futuro imprevisto) é suportado pela sociedade, 
reservando-se ao acusado a possibilidade de argumentar e provar. O direito não é 
mais a luta maniqueísta entre bem e mal, mas a ordem regulada por leis que 
valem para todos e em nome da qual se discute e se argumenta. 
 Gradativamente, observa-se a especialização de juízos e tribunais, bem 
como o desenvolvimento de uma linguagem própria dos juristas, com suas regras, 
princípios, figuras retóricas, meios de interpretação, instrumentos de persuasão. A 
 8 
atividade dos juízes em nada corresponde à palavra-mágica e ritual do rei-de-
justiça. Antes disso, o juiz é alguém que decide e que responde por sua decisão. 
 A jurisprudência separa-se do direito propriamente dito, possibilitando a 
diferenciação entre “questões de fato” e “questões de direito”, afinal a sua 
interpretação destaca-se do caso concreto constituindo uma discussão própria e 
abstrata quando comparada às disputas cotidianas. Passa a fazer sentido uma 
expressão como aplicação do direito. 
 Saliente-se, ainda, uma característica marcante do direito romano, a saber, 
seu comprometimento intrínseco com a fundação de Roma. É nota particular 
dessa cultura o mito da fundação da cidade, advindo daí uma espécie de 
veneração dos antepassados romanos. Assim, enquanto a prudência aristotélica, 
voltada fundamentalmente para a esfera política, era uma promessa de orientação 
da ação em busca do certo e do justo, a jurisprudência romana, voltada para a 
esfera jurídica, era a confirmação do certo e do justo nos feitos e exemplos dos 
antepassados e dos costumes daí derivados (cf. Ferraz Jr., 2001, pp. 55-61). 
 Há quem defenda, inclusive, que a tarefa original desempenhada pelos 
juristas romanos na adaptação ao universo jurídico das heranças filosóficas dos 
gregos, é fruto do conservadorismo e tradicionalismo que caracterizaram o 
Império. Enquanto a inquietude intelectual grega não se restringia aos estreitos 
limites de um pensamento dogmatizante, os romanos, habituados a respeitar os 
limites da tradição, teriam tido mais facilidade em transformar os métodos da 
retórica e da dialética em instrumento jurídico. Finalmente, anote-se que as fontes 
do direito romano eram a razão, a eqüidade das fórmulas e, por último, as leis, 
invocadas quando a solução não era óbvia do ponto de vista prudencial (cf. Lopes, 
2002, p. 55). 
 
IV. O DIREITO COMO DOGMA NA IDADE MÉDIA 
 O declínio do Império Romano foi marcado pela violência dos poderosos 
sobre os mais fracos e pela corrupção e venalidade da justiça. Contudo, foi 
marcado, paradoxalmente, pelo fim da pax romana e da estabilidade social. Os 
controles sociais se afrouxam e as garantias diminuem. Não há mais um poder 
 9 
político totalizante, capaz de absorver as variadas formas de manifestações 
sociais. Ao invés disso, nota-se um “vazio” político. No lugar de um Estado 
centralizador, prevalecem os costumes locais, os poderes senhoriais, as regras 
eclesiásticas. Ao lado de um poder localizado, abre-se a possibilidade da 
ingerência de um poder concorrente. Durante séculos, foi possível a coexistência 
no mesmo território de ordens jurídicas paralelas, aplicáveis a grupos distintos de 
pessoas. Após a conquista da Península Ibérica pelos mouros, por exemplo, havia 
na cidade de Toledo três religiões distintas e suas respectivas ordens jurídicas: a 
do cristianismo, a do judaísmo, a do islamismo, ficando proibido o casamento 
inter-religioso. Esse pluralismo e “a ausência de regras explícitas de delimitação 
dos diferentes direitos, tornavam o ‘sistema jurídico’ complexo, pesado, caótico e 
arbitrário” (Santos, 2000, p. 121) 
 Apesar da turbulência social, a herança cultural greco-latina é preservada 
nos mosteiros. Aos poucos a alfabetização torna-se um privilégio dos monges. 
Num mundo em que nobres e servos não sabem ler, torna-se compreensível a 
enorme influência exercida pela Igreja no controle da educação e da formação 
moral, política e jurídica. Compreende-se, igualmente, que algo do direito romano 
tenha sido conservado pela Igreja, nascida à sombra do Império Romano. 
 O cristianismo, contudo, ao mesmo tempo em que conservou 
características do direito romano, transformou-o inserindo aí a dimensão de uma 
sacralidade transcendente, de origem externa à vida na Terra, contrapondo-se, 
assim, à sacralidade imanente dos romanos, voltada para o mito da fundação de 
Roma. Essa mudança não é radical mas é decisiva: permanece o sentido da 
prudência romana, subordinada, entretanto, aos dogmas das Sagradas Escrituras, 
que não podiam ser contrariadas. 
 A maior parte da Alta Idade Média transcorre nesse clima de pluralismo 
jurídico e de disputas entre papas e imperadores, clero e nobreza. Muito embora 
essas disputas continuem na Baixa Idade Média, algo de novo e relevante 
acontece. No século IX, com o renascimento carolíngeo, o saber deixa de 
restringir-se aos mosteiros. Muito embora os intelectuais pertençam às ordens 
religiosas, conservando-se o caráter teocêntrico do saber, o ensino é reformulado 
 10 
e inúmeras escolas são fundadas. Muito lentamente o quadro político também 
começa a se alterar. A partir do século XI as Cruzadas acabam por liberar a 
navegação no Mediterrâneo, contribuindo de modo intenso para o renascimento 
comercial. As cidades, graças ao comércio florescente, voltam a crescer e dá-se o 
surgimento de uma nova classe: a burguesia. Com isso, iniciam-se as lutas contra 
o poder dos senhores feudais. Os reis, com a ambição de centralizar o poder em 
suas mãos, buscam o apoio da burguesia e dos camponeses livres, enfrentando, 
contudo, a resistência dos nobres. 
 O desenvolvimento do comércio impulsiona o aprendizado. Ler, escrever e 
calcular voltam a ser necessidades. O ensino que já havia deixado de se limitar 
aos mosteiros modifica-se novamente: surgem as escolas seculares, isto é, 
desvinculadas das atividades religiosas, o que não deixa de representar uma 
oposição ao poder religioso. Em uma sociedade que começa a tornar-se mais 
complexa, a criação das universidades atende à demanda pela ampliação dos 
estudos. 
 Nesse contexto histórico é fundada, em 1088, a Universidade de Bolonha. 
Em flagrante oposição ao irracionalismo da Alta Idade Média, assiste-se à 
retomada de um estudo racionalizado e à reativação do direito romano (ou “direito 
erudito”), desenvolvendo-se uma dogmaticidade em sentido estrito. Uma vez 
transformada em disciplina universitária, a teoria jurídica buscou assentar-se sobre 
textos que gozavam de autoridade. O Corpus Juris Civilis – também conhecido 
como Código de Justiniano6 – foi recuperado e os digestos transformados em 
textos escolares para ensino nas universidades (que, a partir do século XII, 
começaram a proliferar por quase toda a Europa Ocidental). 
 
6 Justiniano foi imperador do Império Romano do Oriente, cuja capital situava-se em Constantinopla (atual 
Istambul), tendo reinado por quase quarenta anos (de 527 a 565 d.C.). Nesse período, a cultura romana já 
estava em declínio: o Império Romano do Ocidente havia sido conquistado pelos bárbaros (476 d.C) e as leis 
romanas eram numerosas, contraditórias e obsoletas. Não obstante, Justiniano pretendia restaurar o passado 
romano em seu esplendor cultural e militar. Além de ter reconquistado algumas das antigas possessões 
romanas (principalmente no mediterrâneo), foi responsável pela elaboração do Corpus Juris Civilis (Corpo do 
Direito Civil), também chamado de Código de Justiniano: trata-se de uma encomenda feita a um corpo de 
especialistas encarregados de compilar as antigas leis romanas, restaurandoo direito clássico. O Corpus Juris 
Civilis era composto de quatro partes: o Código (Codex), compilação e revisão sistemática das leis 
estabelecidas desde o reinado de Adriano; o Digesto (Digesta), compilação dos escritos dos grandes juristas 
da época clássica; as Instituições ou Institutas (Instituitiones Justiniani), princípios legais contidos no Código 
e no Digesto; as Novelas (Novellae), legislações do próprio Justiniano e de seus sucessores imediatos. 
 11 
 O Código de Justiniano representava a recuperação de um direito 
idealizado, trazendo em si a autoridade de textos de mais de cinco séculos, bem 
como a marca da Igreja Cristã e seus dogmas de fé. Sobre ele, os juristas 
medievais – também chamados de glosadores ou comentadores – começam a 
desenvolver nova técnica de estudos baseada na retórica, na dialética e na 
gramática e cujo objetivo era harmonizar o corpus eliminando suas contradições, 
esclarecendo os pontos obscuros e demonstrando sua racionalidade. Se, por um 
lado, essa atividade teórica encontrava-se desvinculada do pluralismo que 
caracterizava a realidade jurídica da Idade Média (o que, de início, valeu aos 
glosadores a pejorativa imagem de homens desligados da vida), ela correspondia, 
por outro lado, a um extenso projeto cultural e político de emancipação social7. 
 O direito romano, sendo um misto de autoridade e razão, propunha uma 
nova regulação da vida social. Essa regulação, contudo, subordinava-se à 
experiência racional e, longe de ser apenas um produto técnico com finalidades 
meramente instrumentais, representava também uma ética política e social 
ajustada aos novos ideais de autonomia e liberdade. Contra a insegurança 
característica do pluralismo jurídico e contra a ingerência arbitrária em seus 
negócios, a burguesia – que ainda não dominava nem política nem 
ideologicamente – vê na recepção do direito romano e na racionalização da vida 
social por ele proposta um projeto emancipatório, capaz de oferecer uma 
regulação jurídica favorável aos seus interesses. Estabelece-se, desse modo, uma 
tensão entre regulação e emancipação. 
 Progressivamente os juristas vão aperfeiçoando seus estudos e se 
aproximam dos reis, transformando-os nas personagens centrais do edifício 
jurídico que se começava a construir, criando condições favoráveis ao 
fortalecimento das monarquias nacionais. Sem se limitarem ao direito privado e à 
aplicação da justiça, os juristas desenvolvem também atividades diplomáticas e 
administrativas, elaborando um suporte técnico em favor do poder real, muitas 
vezes autoritário e absolutista (cf. Ferraz Jr., 2001, pp. 61-65). 
 
7 A idéia de um direito que é, ao mesmo tempo, regulador e motor de emancipação social é amplamente 
desenvolvida pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Para maiores informações, consultar A 
crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 
 12 
 Finalmente, com a finalidade de legitimar a centralização do poder e o 
monopólio do uso da força surgirá, no Renascimento, o conceito de soberania, 
organizando o universo jurídico em torno da relação direta que se estabelece entre 
soberano e súdito. O que se justifica, de um lado, são os direitos legítimos da 
soberania real e, de outro, o dever legal da obediência. Um pouco mais tarde, os 
juristas adversários dos reis começam a se valer igualmente do conceito de 
soberania, dessa vez para questionar os seus privilégios e impor limites ao seu 
poder (cf. Foucault, 2001, pp. 181-182). 
 Em suma, os juristas da Baixa Idade Média, ao recuperarem o direito 
romano, estavam contribuindo de modo intenso e fundamental não só com a 
construção de um novo edifício jurídico, centrado no poder do rei (e que, mais 
tarde, se abaterá sobre ele), como também com a construção do próprio Estado 
moderno racionalizado e burocratizado. 
 
V. O ESTADO MODERNO E O DIREITO COMO ORDENAÇÃO RACIONAL 
 O fim da Idade Média representa, também, o fim de um período teocêntrico. 
Com o Renascimento, isto é, desde o século XV, a racionalidade e a 
individualidade do ser humano voltam a ser valorizadas. A mentalidade 
antropocêntrica somada ao advento da Revolução Científica, no início do século 
XVII, mudam a face do mundo. A busca de um saber objetivo e pretensamente 
neutro impulsionará o progresso científico, resultando no aumento de 
produtividade e gerando, por conseqüência, a aceleração das mudanças sociais e 
a solidificação do capitalismo. 
 Aos poucos, as monarquias nacionais, com o apoio da burguesia, passam a 
dispor de um aparato administrativo centralizado capaz de prestar serviços 
públicos, de recolher impostos, de manter um exército, além de cunhar moedas 
com exclusividade e deter o monopólio não só da elaboração e aplicação das leis 
mas também do uso da força. Começa a nascer aí o Estado moderno. 
 Esse cenário estende suas influências também sobre o mundo jurídico: 
enquanto os pensadores antigos partiam de pressupostos morais, tendo por fim a 
busca e a confirmação do certo e do justo, os pensadores modernos preocupam-
 13 
se com as condições racionais de sobrevivência. Dito de outro modo: se, até 
então, o que se procurava era uma adequação à ordem natural, a partir da 
modernidade o que se pretende é dominar a natureza ameaçadora e, 
consequentemente, criar uma ordenação racional capaz de proteger a vida contra 
a agressão dos outros. 
 É notável, nesse período, a influência intelectual dos jusnaturalistas 
modernos. Sem recorrer a um direito de origem divina, invocam a existência de 
um direito natural ditado pela razão – independente não só da vontade de Deus 
como também da sua própria existência, conforme dirá Hugo Grócio (1583-1645) 
– para justificar a obrigatoriedade da obediência. Em oposição ao “estado de 
natureza”, carente de organização política, o Estado politicamente organizado é 
visto como um pacto entre soberano e cidadãos (contrato social) e cuja finalidade 
é tutelar e garantir os direitos naturais (cf. Fassò, 2000, pp. 657/658). Assim é que 
a noção ética e religiosa que atravessava o jusnaturalismo antigo e medieval é 
substituída pela noção de “estado de natureza”: uma situação hipotética do 
convívio humano anterior à organização social e que serve de padrão para 
analisar e compreender o homem civilizado. 
 Em tais circunstâncias, o que se vai exigir do direito é a sua progressiva 
racionalização, formalização e neutralização, como exigem as questões técnicas. 
Se a teoria da exegese e da interpretação desenvolvida na Idade Média restringia-
se a textos específicos e isolados, não alcançando um refinamento sistemático, o 
que se desenvolve na modernidade é uma nova interpretação de caráter lógico-
demonstrativo de um sistema fechado que procura garantir à teoria jurídica uma 
dignidade metodológica e a sua entrada na ciência moderna. É correto afirmar, 
então, que o direito não rompe com o caráter dogmático iniciado com os 
glosadores. Na verdade, modifica-o e aperfeiçoa-o. Desvinculados da idéia de 
transcendência divina, os dogmas jurídicos transformam-se em premissas 
inatacáveis que vão garantir ao direito a qualidade de um sistema lógico-
demonstrativo (cf. Ferraz Jr., 2001, pp. 66-67). 
 No embate entre as novas exigências científicas e os distintos e 
extremados anseios políticos e sociais de um mundo em crescente transformação, 
 14 
as teorias jurídicas, ao longo dos séculos XVII e XVIII, apresentam uma tensão 
entre regulação e emancipação. Essa tensão revela um dos paradoxos do 
pensamento moderno que procura ora legitimar o absolutismo e o despotismo e 
ora defender as idéias liberais que, mais tarde, conduziriam à Revolução 
Francesa.São exemplos dessa tensão, de um lado, o pensamento de Thomas 
Hobbes (1588-1679) e, de outro, o pensamentos de Jean-Jacques Rousseau 
(1712-1778). 
 Hobbes, seduzido pela metodologia da ciência moderna e sua 
potencialidade em descobrir uma ordem incontroversa, procura atingir, em seu 
pensamento jurídico-político, um elevado grau de certeza. Em seu pensamento, os 
termos aparentemente opostos da regulação e da emancipação tornam-se 
próximos e confundem-se. 
 Se a guerra permanente é o que caracteriza o estado de natureza (“... tudo 
aquilo que é valido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de 
todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens 
vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria 
força e sua própria intenção. Numa tal situação (...) não há sociedade; e o que é 
pior de tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é 
solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”, Hobbes, 1974, p. 80), então a 
regulação jurídica e absoluta é a única forma de emancipação possível. Regular 
equivale a garantir a paz, ou seja, equivale a emancipar o ser humano, libertando-
o da indesejável situação de guerra. 
 Compreende-se, assim, que a noção de justiça seja atrelada por Hobbes à 
paz e à vontade do soberano. No estado de natureza, argumenta o pensador 
inglês, cada um dispõe da própria força para impor, na medida do possível, sua 
própria noção pessoal e relativa de justiça. A justiça, porém, torna-se objetiva no 
estado juridicamente organizado. Se a paz depende da força da autoridade do 
soberano, então a lei posta por ele é necessariamente justa. E injusta é toda a 
ação que viola a vontade do soberano, colocando a paz em xeque: “Dado que 
todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano 
instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para 
 15 
com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. 
Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode 
nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo. Por esta 
instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, 
por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano 
estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar 
ninguém a não ser a si próprio, e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois 
causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do poder 
soberano podem cometer iniqüidades, mas não podem cometer injustiça nem 
injúria em sentido próprio” (Hobbes, 1974, p. 113). 
 Não é à toa que Hobbes exalta a lei em detrimento dos costumes e do 
common law: nenhum deles possui o selo da autoridade do soberano. Não é à toa, 
igualmente, que Norberto Bobbio identifica em Hobbes o embrião do processo de 
estatização do direito e de juridificação do Estado que tem em Max Weber e Hans 
Kelsen sua expressão mais acabada (cf. Bobbio, 2000, pp. 350-352). 
 Rousseau, por sua vez, critica a ciência moderna, julgando-a incapaz de 
resolver o mais grave problema ético e político da época: o de criar uma obrigação 
política erigida sobre a liberdade. Para ele, não faz sentido a noção de contrato 
hobbesiano: seria um absurdo aceitar de livre e espontânea vontade uma relação 
contratual que resultasse na perda da liberdade. 
 A tensão que irá se estabelecer no pensamento rousseauniano é entre a 
certeza e a justiça, ambas necessárias ao projeto de sociedade pelo qual o ser 
humano é moralmente responsável. Contudo, a síntese rousseauniana entre 
regulação e emancipação é identificada no conceito de vontade geral, ou seja, no 
exercício essencial de soberania inalienável e indivisível. 
 A contradição entre “só obedecer a si próprio” e a idéia de “ser forçado a 
ser livre”, presente na obra de Rousseau, é apenas aparente. A vontade individual 
pode ser boa ou má, em todo o caso ela é sempre contingente. Em contrapartida, 
aquele que age contra a vontade geral não é moralmente livre, mas escravo de 
suas paixões e apetites. Ser moralmente livre significa agir de acordo com leis que 
o próprio indivíduo prescreveu e que promovem o bem comum definido pela 
 16 
vontade geral. A vontade geral, diferentemente da individual, é sempre boa e nem 
sempre coincide com a vontade da maioria. O que caracteriza a vontade geral não 
é o número de vozes que a endossa, mas o interesse comum. 
 Atrás da idéia de “só obedecer a si próprio” e de “ser forçado a ser livre” 
reside o desejo de uma prática baseada na obrigação política horizontal, de 
cidadão para cidadão, e em relação à qual a obrigação vertical, entre cidadão e 
Estado, é derivada e secundária. Assim, a vontade geral consiste na elaboração 
de leis que preservem o bem comum, de modo que cada indivíduo não obedeça 
senão a si próprio. Concomitantemente, “(...) aquele que recusar obedecer à 
vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa 
senão que o forçarão a ser livre” (Rousseau, 1973, p. 42). O exercício da 
regulação, assim, torna-se exercício de emancipação. 
 
 
VI. AS CODIFICAÇÕES DO DIREITO A PARTIR DO SÉCULO XIX 
 Assim como o edifício jurídico construído na Idade Média, com a finalidade 
de fortalecer a figura do rei, acaba por gerar o seu declínio, também o 
jusnaturalismo moderno, ao celebrar o seu apogeu, produz involuntariamente a 
sua própria ruína. 
 No século XVIII, o Código de Justiniano continuava sendo fonte do direito, 
só que modificado e complicado através dos tempos, misturando-se com outras e 
distintas fontes. Era quase impossível conhecer e dominar o universo jurídico com 
segurança. O confronto entre os diversos conjuntos normativos dificultava a 
interpretação sistemática, disseminando-se um grave estado de incerteza e 
confusão desfavorável, sobretudo, à burguesia ascendente que se via prejudicada 
na realização de seus negócios. Sentia-se a necessidade de reformas que 
dessem maior certeza ao direito (Fassò, 2000, p. 659). 
 É nesse contexto que se operam algumas transformações substanciais. De 
natureza política, duas delas contribuem para o golpe de morte do absolutismo: a 
transformação do conceito de soberania e o desenvolvimento do princípio da 
separação dos poderes. A soberania, assim, deixa de ser conceito personalíssimo, 
 17 
substituindo-se a figura concreta do rei pelo conceito mais abstrato e maleável de 
nação (o artigo 3º da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, de 1789, 
proclamava: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação”). Já 
o princípio da separação dos poderes, ao mesmo tempo em que limita, confere 
uma autonomia original ao poder judiciário, separando-o da administração (poder 
executivo) e da produção de leis (poder legislativo). Após a Revolução Francesa, a 
Constituição daquele país, promulgada em 1791, estabelecerá: “O poder judiciário 
não pode em nenhum caso ser exercido pelo corpo legislativo, nem pelo rei” (art. 
1º, cap. V) e “Os tribunais não podem se imiscuir no exercício do poder legislativo, 
nem suspender a execução das leis” (art. 3º, cap. V) – (cf. Ferraz Jr., 2001, p. 73). 
 Na esteira dessas transformações políticas, impõe-se outra, de natureza 
técnico-jurídica: a lei assume, cada vez mais, um caráter privilegiado como fonte 
do direito. É aí que o jusnaturalismo moderno experimenta o seu apogeu: ao 
defender a existência de um direito universalmente válido porque ditado pela 
razão, é considerado o modelo perfeito para orientar a reforma legislativa, 
bastando converter as normas do direito natural em normas positivas que, uma 
vezpromulgadas, deveriam ser seguidas para todo o sempre. 
 Todavia, a promulgação dos Códigos (com especial destaque para o 
napoleônico, de 1804) foi acompanhada pela Revolução Industrial e, 
consequentemente, por fortes mudanças sociais e culturais. Nota-se, ao longo do 
século XIX, não apenas o significativo aumento de relações sociais não 
contempladas pela legislação positiva como, também, a mudança de mentalidade 
que levou, por exemplo, a “escola histórica do direito” a acusar as teorias 
jusnaturalistas de “abstratismo intelectualista ao pretender determinar normas e 
valores imunes ao devir histórico” (Fassò, 2000, p. 659). Ou seja, a idéia de um 
direito natural imutável e eterno, cujo fundamento se achava na razão, perde a 
consistência, revelando-se pouco operante em uma sociedade cada vez mais 
complexa. Ao mesmo tempo em que o jusnaturalismo exaure sua função, o 
universo jurídico reduz-se às normas postas pelo legislador competente, iniciando-
se o fenômeno da crescente positivação do direito pelo Estado. 
 18 
 Até então, o direito havia conservado uma essência que o tornava, em certa 
medida, refratário a grandes mudanças. O direito romano estava atado à tradição 
(ao mito da fundação de Roma); o direito medieval, à revelação divina; o direito 
moderno dos séculos XVII e XVIII, à razão. Com as codificações do século XIX, 
porém, a estabilidade social passa a ser garantida mais pela institucionalização 
formal do direito do que por seu variável conteúdo ético. 
 Em suma, uma vez divorciado da prudência greco-romana e medieval, 
assim como da racionalidade pretensamente universal do Renascimento, o 
conteúdo do direito passa a ser visto como fenômeno histórico, sujeito às 
mudanças políticas e sociais. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, 
essa mutabilidade do conteúdo do direito fortalece a segurança jurídica tão 
desejada pela burguesia. O valor que a norma traz embutida em si não é mais tão 
relevante. O que importa, agora, é que as leis tenham sido postas pelo poder 
legislativo e que o poder judiciário, ao julgar os fatos, atenha-se aos termos das 
leis. 
 No espaço aberto pela derrocada do jusnaturalismo fortaleceram-se as 
teorias do positivismo jurídico, chamando para si a responsabilidade de 
sistematizar e interpretar as normas postas pelo Estado. Limitando-se ao estudo 
das leis positivas, o pensamento jurídico faz-se profundamente dogmático e 
supostamente neutro. 
 Na primeira metade do século XX acentua-se o caráter dogmático da 
ciência do direito, privilegiando-se as questões formais. Em resumo, o que se 
observa, desde o século XIX, é o predomínio de teorias segundo as quais o direito 
não possui essência. O que se procura, então, é estudar a forma do direito. Forma 
essa que passa a admitir qualquer conteúdo. O ápice dessa visão teórica, 
fortemente influenciada pelo pensamento científico moderno, dá-se com Hans 
Kelsen, para quem a legitimidade do direito é igual à sua legalidade. 
 
VII. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A CRISE DO POSITIVISMO 
 A experiência dos totalitarismos do século XX elevou o respeito à lei a um 
patamar mítico e acabou por colocar em xeque os paradigmas do positivismo 
 19 
jurídico, afinal, foi dentro da legalidade estatal que se praticaram os maiores 
genocídios e expurgos do século passado. Vale dizer, o Estado, inicialmente 
criado para tutelar e garantir os direitos outrora considerados inatos, passa a ser o 
grande agressor e violador da dignidade humana. O respeito cego a leis 
absolutamente desumanas foi chamado por Hannah Arendt de “banalização do 
mal”: o apego à burocracia somado à incapacidade crítica, podem transformar o 
direito em um eficiente mecanismo de dominação e, pior, de extermínio, como 
aconteceu na Alemanha, na China ou na União Soviética, isso sem falar nas 
ditaduras latino-americanas e africanas 
 Acrescente-se, ainda, que o mundo vem passando por novas e radicais 
transformações de caráter irreversível. A própria soberania que, num primeiro 
momento, pretendeu defender o poder dos reis e, depois, passou a integrar o 
conceito liberal de nação, parece passar agora, com a globalização econômica, 
por nova e decisiva transformação. Tem-se observado a fusão de grandes 
corporações multinacionais. Ao enriquecimento de pequenos grupos, corresponde 
o empobrecimento de enormes parcelas da população mundial e a crescente 
vulnerabilidade econômica dos Estados denominados “emergentes”. O século XXI 
assiste também a intensificação do terrorismo e sua organização em redes 
transnacionais. Diversos países vem sendo chacoalhados por protestos nem 
sempre pacíficos, conflitos separatistas e guerras civis. E, por ora, pouca coisa 
tem sido feita para que se consiga delinear uma sociedade transnacional 
minimamente organizada, com governos e justiça próprios, capaz de deter os 
malefícios do novo século e distribuir justiça. 
 Como reação aos abusos cometidos pelos Estados totalitários do século XX 
e aos trágicos “efeitos colaterais” da globalização, reaparecem, de um lado, as 
velhas doutrinas jusnaturalistas e, de outro, começam lentamente a se 
desenvolver e se firmar teorias de Direitos Humanos. Seja como for, a maior 
ambição do pensamento jurídico-filosófico atual é superar o divórcio entre o direito 
e a ética que persiste em nossa cultura altamente tecnicizada e resgatar a 
dignidade inalienável do ser humano. 
 20 
 Do mesmo modo que os glosadores medievais e os jusnaturalistas 
modernos, cada um a seu tempo, não se limitaram a descrever como era o direito 
existente em sua época, mas esforçaram-se para criar uma nova ordem jurídica, 
mais eficaz e emancipadora, a ambição das teorias contemporâneas de Direitos 
Humanos não está em contradição com a existência de Estados reguladores e 
não raro violadores da dignidade humana: ao contrário, denuncia a sua crise. 
 Em suma, o que se exige, em termos éticos, é a elaboração de um novo 
paradigma jurídico. Pensá-lo é o desafio do nosso tempo. 
 
Referência Bibliográfica: 
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VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 11ª ed.Rio de Janeiro: 
Bertrand Brasil, 2000.

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