Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
3 A Comissão de Direitos Humanos 3.1. A Comissão e suas atribuições gerais Atendendo aos preceitos do artigo 68 da Carta da ONU1, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) organiza em 1946 uma comissão dedicada à promoção dos direitos humanos, batizando-a de Comissão de Direitos Humanos. O ECOSOC instruiu a nova comissão a desenvolver propostas para: a) a criação de uma carta internacional de direitos b) a promoção de convenções e declarações relativas a liberdades civis, o “status” da mulher, liberdade de informação, etc. c) a proteção de minorias d) a prevenção da discriminação no tocante à raça, sexo, língua ou religião. e) qualquer outro assunto relativo aos direitos humanos. A Comissão Sobre Direitos Humanos conta, hoje2, com representantes de 53 Estados, eleitos pela Assembléia Geral para mandatos de 3 anos que se reúnem anualmente por um período cinco ou seis semanas3. A Comissão encomendaria e examinaria estudos, elaborados geralmente por rapporteurs ou pelo Centro de Direitos Humanos4 em Genebra, que constitui uma divisão do Secretariado da ONU. Além dessa e outras tarefas, a Comissão destinar-se-ia, principalmente, a investigar as 1 Artigo 68: “O Conselho Econômico e Social criará comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção dos direitos do homem, assim como outras comissões que forem necessárias para o desempenho de suas funções”. 2 Após a expansão de 1992. 3 A escolha dos Estados-membros obedece a uma distribuição geográfica pré-definida, qual seja: 15 países africanos, 12 asiáticos, 11 latino-americanos e do Caribe, 5 da Europa do Leste e 10 da Europa ocidental e outros países. 4 Até 1982 chamado de Divisão para Direitos Humanos DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 49 violações a direitos humanos e a receber e processar comunicações relacionadas às mesmas. A evolução dos trabalhos da Comissão Sobre Direitos Humanos costuma ser dividida em três fases principais5: a de redação de normas gerais, de 1947 a 1954; a de promoção dos valores (através de cursos, publicações, etc.), de 1955 a 1966; e a de iniciativas para a proteção de direitos, a partir de 1967. As duas primeiras etapas correspondem ao período chamado de “abstencionista”, já a terceira, que prossegue no presente, constitui a fase “intervencionista”. Em 1948, Eleanor Roosvelt, primeira presidente da Comissão de Direitos Humanos, afirmou que a Comissão deveria ocupar-se principalmente em esboçar convenções e documentos sobre temas específicos. De fato, nos seus primeiros anos, a Comissão esteve a tal ponto ocupada com a elaboração dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos que não pôde, por exemplo, cuidar do esboço de uma convenção sobre genocídio em 1948 ou considerar a questão da autodeterminação, conforme solicitado pela Assembléia Geral em 1951. Para Phillip Alston: “ The Commission’s effectiveness in preparing the first draft of the Covenants also came at the cost of its non-involvement in the drafting of an important range of other human rights instruments during the same period”6 Pode-se observar que a fase “abstencionista” deriva da relutância dos Estados em reconhecer a competência da CDH para agir em casos concretos, e em aceitar a criação de mecanismos destinados a avaliar e opinar sobre sua atuação doméstica. Assim, na sua primeira sessão em 1947, a CDH procedeu a uma “autodenegação” de sua competência ao afirmar: “A Comissão reconhece que não tem competência para tomar qualquer medida a respeito de reclamações concernentes aos direitos humanos”. 3.2. A Comissão e a elaboração de normas gerais 5 J.A.Lindgren Alves. Os Direitos Humanos como Tema Global. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, p. 6. 6 Philip Alston, op. cit., pp. 131-132. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 50 Vale dizer que a fase “abstencionista” permitiu a elaboração de normas, consubstanciadas em convenções, declarações e pactos. De fato, foi nesse período que surgiu a Carta Internacional de Direitos Humanos, composta pela Declaração Universal de Diretos Humanos (1948) e pelos Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Um claro golpe a esse afinco e empenho da Comissão de Direitos Humanos na redação de normas gerais foi dado pela relutância dos Estados Unidos, o mais influente membro das Nações Unidas, em aderir aos diversos acordos internacionais, inclusive os Pactos. Ainda assim, a Comissão conseguiu levar adiante o trabalho de elaboração dos mesmos, completando-os em 1954. A partir de então, contudo, houve um declínio nas tarefas de elaboração de normas da CDH, exceções sejam feitas ao rascunho da Declaração sobre o Direito de Asilo completado pela Comissão por volta de 1960 e ao trabalho de revisão e debate da Declaração sobre os Direitos da Criança que foi finalmente adotada pela Assembléia Geral em1959. O período de 1961 a 1976 representa uma fase em que a Comissão comportou-se muito mais como um órgão de aconselhamento técnico para a Assembléia Geral, do que propriamente como um mecanismo de elaboração e esboço de instrumentos normativos. De fato, nesse lapso de tempo, a iniciativa na maioria dos casos recaía sobre a própria Assembléia Geral, que muitas vezes atuava unilateralmente, como quando da adoção do Protocolo Opcional ao Pacto de Direitos Civis e Políticos (1966), em que a participação da CDH foi considerada desnecessária.7 Além disso, mesmo quando a Comissão em tese atuava na elaboração de normas e tratados, quem, na verdade, preparava o esboço inicial e por vezes fazia todo o trabalho era a Sub- Comissão Sobre Prevenção de Discriminação e Proteção de Minorias. A partir de 1977, a Comissão de Direitos Humanos novamente ganhou certo protagonismo no papel de standard-setting. Nesse mesmo ano, a Assembléia escolheu a Comissão como o foro propício para a elaboração do rascunho da Convenção sobre a Tortura, que seria finalmente adotada em 1984. Da mesma forma, coube à Comissão, por indicação do governo da Polônia em 1978, o trabalho de elaboração do rascunho da Convenção sobre os Direitos da Criança que terminaria 7 Ibid., pp. 134-135. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 51 por ser adotada em 1989. É bem verdade, todavia, que a despeito desse crescimento na autuação da CDH, ela estava longe de gozar de um monopólio na elaboração dos rascunhos. Com efeito, a Assembléia Geral por diversas vezes avocou-se essa tarefa, atuando quase que independentemente, por exemplo, no esboço do Segundo Protocolo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, que objetivava a eliminação da pena de morte e foi adotado em 1989, e na elaboração do Corpo de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Submetidas a Alguma Forma de Detenção, adotado em 1988. 3.3. A Comissão e a atividade promocional A atividade promocional da Comissão de Direitos Humanos foi claramente impulsionada por países como os Estados Unidos e o Reino Unido, que consideravam-na uma boa alternativa ao papel de elaboração de normas gerais e standard-setting, que tão veemente repeliam e boicotavam. Assim, em 1953, os Estados Unidos lançam o chamado “plano de ação”, que englobava um sistema de relatórios periódicos por parte dos países, uma série de estudos e um programa de seminários, incluindo-se serviços de consultoria e aconselhamento (advisory services).8 O sistema de relatórios periódicos propostopelos Estados Unidos foi finalmente adotado pelo ECOSOC em 1956. Obrigava-se, então, os países a submeterem um relatório trienal descrevendo os desenvolvimentos e progressos alcançados durante os três anos precedentes na área dos direitos humanos, bem como as medidas tomadas para salvaguardar a liberdade humana. Após diversas discussões acerca de quem deveria revisar os relatórios e diante da falta de substância dos mesmos, decidiu-se abandonar o sistema em 1981. Também a partir do “plano de ação” foi realizada uma série de seminários e estudos na área dos direitos humanos sob os auspícios da CDH. É curioso notar, 8 Ibid., pp. 133 e 182. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 52 contudo, que o tema objeto dos mesmos não era escolhido pela Comissão e, sim, pelo país-sede, assegurando assim um caráter abstrato e genérico, evitando a discussão de temas polêmicos que pudessem causar embaraços a seus organizadores. A partir de 1987, mudou-se um pouco o enfoque, passando-se a privilegiar programas de treinamento e capacitação na área dos direitos humanos, com a realização de cursos e workshops em cidades como Assunção, Manilha, Moscou, Montevidéu e Nova Déli. No tocante aos serviços de aconselhamento propostos pelos EUA em 1953, com base na idéia de que as sociedades pré-democráticas solicitariam assistência ao elaborar suas constituições e códigos penais e ao realizar eleições, pode-se dizer que muito pouca aplicação prática tiveram no período de 1955 a 1980. No decorrer dos anos 80, contudo, verificou-se um considerável aumento no número de solicitações de assistência técnica das Nações Unidas, em países como Bolívia, Guatemala, Haiti, Guiné, Uganda e Guiné Equatorial. Esse crescimento quantitativo não significou, todavia, a garantia de efetividade das atividades de assistência. De fato, muitas críticas foram feitas, por exemplo, a atuação da Comissão em Guiné Equatorial, onde o aconselhamento e assistência fornecidos por mais de uma década não foram capazes de assegurar o estabelecimento de uma democracia representativa ou a criação de um quadro institucional capaz de promover o respeito aos direitos humanos.9 Parece indicado fazer uma reavaliação acerca do modo como esses programas de assistência e aconselhamento estão sendo implementados, bem como acerca da plausibilidade e praticidade dos mesmos. 3.4. A Comissão e a proteção de direitos e respostas a violações No início de suas atividades, a Comissão se autodenegou o poder de atuar com base em queixas relativas a violações de direitos humanos, no que ficou conhecido como doutrina de 1947. De fato, a resolução 75 (V) de 1947 previa que a Comissão 9 Ibid., pp. 186-187. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 53 seria simplesmente informada, de modo confidencial, de queixas recebidas10, sem ter acesso à identidade dos atores envolvidos, ficando-lhe vedada toda sorte de ações práticas no sentido de responder às violações. O objetivo alegado desse procedimento era dar uma idéia do tipo de problemas e transgressões correntes no mundo. Para Phillip Alston: “In any event, there is no question that this highly restrictive and unproductive procedure failed to do justice to the concerns and hopes of the tens of thousands who petitioned to the United Nations annually”.11 Tal abstencionismo tem suas justificativas nas posições adotadas pelos diversos países. O bloco ocidental, por exemplo, não estava interessado no desenvolvimento de procedimentos que autorizassem a realização de investigações mais aprofundadas que pudessem futuramente lhe criar embaraços em alguns temas, como discriminação racial (para os Estados Unidos, principalmente) ou práticas coloniais abusivas (para países como Reino Unido, França e Bélgica, entre outros). No bloco soviético, igualmente, temia-se que com a criação de mecanismos que quebrassem o princípio da não-intervenção, assegurado no artigo 2º (7) da Carta das Nações Unidas, as práticas estalinistas passassem a ser objeto de investigações discriminatórias e acabassem por ensejar intervenções no âmbito doméstico do Estado. Nos anos 60, uma série de fatores combinados levaria, finalmente, ao abandono da doutrina de 1947. Em primeiro lugar, podemos citar a considerável mudança na composição da organização, com a entrada de novos membros vindos do processo de descolonização da África e da Ásia12. Em segundo lugar, vale destacar a criação da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1965, que contemplava no seu artigo 14 a possibilidade de submissão, por indivíduos ou grupos, de reclamações em face de Estados que aceitassem o procedimento. Esse procedimento serviu de precedente para que, no ano seguinte, se adotasse um Protocolo Opcional ao Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos que também autorizava o encaminhamento de queixas aos Estados-parte. 10 Num período de 13 meses entre 1951 e 1952 a Comissão recebeu mais de 25.000 comunicações. 11 Philip Alston, op. cit., pp. 140-141. 12 O ECOSOC pulou de 18 membros em 1961 para 32 em 1966, 20 dos quais pertencentes ao Terceiro Mundo. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 54 Contudo, o mais importante desenvolvimento que definitivamente contribuiria para a adoção de procedimentos de proteção a direitos no âmbito da Comissão de Direitos Humanos, foi a decisão tomada pelos países do Terceiro Mundo e endossada pelos países do Leste europeu, acerca da necessidade da criação de procedimentos extraconvencionais de recebimento de comunicações, como forma efetiva de combater as políticas colonialistas e o racismo, principalmente na África do Sul. Diferentemente dos procedimentos convencionais, que obrigam apenas os Estados contratantes de convenções específicas de direitos humanos, os procedimentos extraconvencionais buscam vincular os membros das Nações Unidas, com base em uma interpretação ampla dos objetivos de proteção aos direitos humanos da ONU e do dever de cooperação dos Estados para alcançar tais objetivos. Já em 1965, ao ser advertido pelo Comitê de Descolonização sobre comunicações de torturas e maus tratos infligidos a prisioneiros políticos sul-africanos pelo Governo aparteísta de Pretória, o ECOSOC decidiu recomendar à CDH a consideração urgente do assunto. Um ano mais tarde, a resolução 1102 (XL) do próprio ECOSOC autorizava a Comissão a considerar as violações de direitos humanos, com referência expressa a questões como discriminação racial, segregação e apartheid, em quaisquer países, mas principalmente em territórios coloniais ou dependentes. O caráter restritivo da resolução acima foi suplantado pelo teor mais genérico da resolução 2144 (XXI) da Assembléia Geral, de 1966, que conclamava a CDH a considerar os meios e caminhos necessários para interromper as violações de direitos humanos, onde quer que elas ocorressem. Todos esses desenvolvimentos podem ser considerados os movimentos precursores do que, a partir de 1967, ficaria consagrado como o período intervencionista da CDH.13 Ainda em 1967 o Conselho Econômico e Social adota a resolução 1235, intitulada Questão das violações dos direitos humanos e liberdades fundamentais, inclusive políticas de discriminação racial e de apartheid, em todos os países, com referência especial aos países e territórios coloniais e dependentes. Desse modo, a CDH levanta a barreira auto-imposta a sua competência diante de casos concretos de13 J.A.Lindgren Alves, op. cit., p. 6. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 55 violação. Já em 1967, estabelece-se um Grupo Especial de Peritos sobre a situação dos Direitos Humanos na África Austral. Em 1969, surge o Grupo Especial de Peritos para investigar alegações de violações por Israel da Convenção de Genebra de 1949 nos territórios árabes ocupados. Em 1975, designa-se um Grupo de Trabalho Especial para investigar sobre a situação de direitos humanos no Chile. Este foi o primeiro caso de investigação ostensiva de situação específica não-atinente ao apartheid, ao colonialismo ou à ocupação estrangeira, ampliando o escopo original da resolução 1235. Faltava à CDH desenvolver método para considerar as queixas que, desde 1947, recebia passivamente. Assim, após muita discussão, o ECOSOC aprovou em 27 de maio de 1970 a resolução 1503, intitulada: Procedimento para lidar com comunicações relativas a violações de direitos humanos e liberdades fundamentais. A resolução 1503 autoriza a Comissão a investigar comunicações (queixas) que “appear to reveal a consistent pattern of gross and reliably attested violations of human rights”. Este mecanismo é extremamente cauteloso com as soberanias nacionais. As deliberações são mantidas em sessões fechadas, sem acesso ao público ou a observadores de qualquer espécie, havendo apenas o anúncio em sessão aberta dos países que são objeto de consideração. A maior sanção prevista pela resolução 1503 consiste na publicidade, passando o caso à consideração em sessão ostensiva, sob a 1235. Muito embora estes mecanismos tenham gerado grandes esperanças quanto a uma maior efetividade da Comissão na proteção a direitos e na resposta às violações aos mesmos, os registros de sua primeira década de atuação mostraram-se profundamente decepcionantes. De fato, regimes transgressores de direitos humanos como o de Idi Amin em Uganda e o de Pol Pot no Camboja pouco protagonismo tiveram nas discussões da Comissão. Inúmeras críticas foram, então, formuladas relativas tanto à demora nas respostas e à complexidade burocrática e procedimental, quanto à suposta preferência da Comissão em proteger os opressores, mais do que as próprias vítimas. Mais especificamente sobre o procedimento 1503, afirma J.A.Lindgren: “Saudada entusiasticamente, ao ser adotada, como uma iniciativa que criava o direito individual de petição às Nações Unidas, a resolução 1503 decepcionou os ativistas mais DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 56 ardorosos, que passaram a criticá-la por seus procedimentos indevassáveis, sua prática lenta e as considerações e cautelas políticas envolvidas em cada decisão”14. 3.4.1. O procedimento confidencial 1503 Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que muito embora o procedimento 1503 assegure o direito de petição individual à Comissão de Direitos Humanos, ele não se destina a uma proteção dos indivíduos, assegurando direitos de reparação ou compensação. Na verdade, o procedimento se destina a identificar um padrão consistente de violações graves, servindo as comunicações individuais simplesmente como elementos de prova. Segundo Philip Alston: “an individual victim is but a piece of evidence whose case might, if accompanied by a sufficient number of related cases, spur the United Nations into action of some kind”.15 Aprovado pelo ECOSOC em 27 de maio de 1970, pela resolução 1503 (XLVIII), o procedimento confidencial pode ser divido em distintas etapas. Primeiramente, atua o chamado Grupo de Trabalho Sobre Comunicações, que no âmbito da Sub-Comissão Sobre Prevenção de Discriminação e Proteção de Minorias, procede a uma seleção das diversas comunicações recebidas, selecionando aquelas que pareçam revelar um padrão consistente de violações graves, para encaminhamento ao pleno da Sub-Comissão. A própria resolução prevê diversas situações em que se deve rejeitar a comunicação, como, por exemplo, no caso de faltarem provas substanciais da violação, na hipótese de haver manifestas motivações políticas, ou, ainda, no caso de não se terem esgotado todas os recursos domésticos possíveis. Num segundo momento, a Sub-Comissão, formada no seu todo por 26 membros16, escolhidos de acordo com sua capacidade e técnica, embora mantenham certos laços com seus países de origem, decidirá, em conjunto e por maioria simples, ora encaminhar o país à Comissão, ora reconsiderá-lo no ano seguinte, ou, ainda, simplesmente deixá-lo de fora do procedimento. Neste estágio, os governos 14 Ibid., p. 10. 15 Philip Alston, op. cit., p. 146. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 57 envolvidos são convidados a apresentar observações por escrito e a defender-se perante a Comissão. Uma vez na Comissão, o caso em questão passa à atenção do chamado Grupo de Trabalho Sobre Situações, constituído em 1974 e composto de cinco membros, que cuida da elaboração de recomendações à CDH sobre cada uma das situações em exame. Em seguida, caberá a Comissão decidir, no âmbito de suas sessões anuais, o tipo de ação a ser seguida. Segundo o parágrafo 6º e 7º da resolução, poderá a Comissão: a) manter o caso sob revisão, sendo mais provas reunidas até o ano seguinte, quando o governo interessado será novamente convocado; b) mandar um enviado com a missão de coletar informações in loco e relatá-las à Comissão; c) submeter a situação a uma investigação por comitê ad hoc, a ser designado pela Comissão, e com a autorização expressa do respectivo Estado, com o fim de buscar uma solução amistosa; d) transferir o caso para o procedimento 123517, tornando-o público e permitindo, então, um estudo mais completo pela Comissão e o envio de relatórios de recomendações ao ECOSOC. O parágrafo 8º da resolução 1503 explicitamente assegura que todas as ações contempladas no âmbito da Subcomissão ou da Comissão permanecerão confidenciais, “até que a Comissão possa decidir fazer recomendações ao Conselho Econômico e Social”. A partir de 1978 a CDH passou a anunciar em sessão pública os países que foram objeto de escrutínio nas sessões fechadas, sem indicar, contudo, o teor e conteúdo das deliberações. Esta novidade permitiu aferir com precisão o número de países que foram objeto de análise sob o procedimento 1503. De 1978 a 1991, por exemplo, 39 Estados foram submetidos à investigação. Apesar do inegável amplo alcance do procedimento em termos quantitativos, não é possível dizer o mesmo quanto a sua efetividade. No caso de Uganda, por exemplo, tendo a Comissão recebido informações acerca da morte de 75.000 pessoas sob o 16 Os 26 membros da Subcomissão obedecem à seguinte distribuição: 7 africanos, 5 asiáticos, 6 da Europa Ocidental, 5 latino-americanos e do Caribe e 3 da Europa Central e Oriental. 17 A primeira vez em que esta transferência foi feita foi no caso de Guiné Equatorial em 1979, onde o governo recusava-se a cooperar no âmbito do procedimento confidencial. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 58 regime de Idi Amin, muito pouco se fez de caráter prático para reverter tal situação. De fato, a influência e o lobby exercido pelo referido dirigente, na época presidente da Organização da Unidade Africana, entravaram qualquer resposta mais efetiva no contexto da CDH. Somente em 1978, quatro anos após as primeiras comunicações, e pouco antes da derrubada do regime por tropas da Tanzânia, a Comissão decidiu mandar um enviado aopaís. Vale notar, outrossim, que o procedimento 1503 nunca foi firmemente aplicado a alegações de violações de direitos econômicos, sociais e culturais, a despeito da resolução 5 (XXXIII) de 1977 da CDH, que expressamente reconheceu a aplicabilidade de tal mecanismo nesses casos.18 Mesmo no plano dos direitos civis e políticos, as repostas da Comissão ficaram limitadas a apenas certo grupo de garantias, fazendo com que o elenco de países de Terceiro Mundo submetidos a análise fosse desproporcionalmente superior ao número de países desenvolvidos. Conforme já comentado acima, muitas foram as críticas endereçadas ao procedimento 1503 e ao seu caráter confidencial. Ian Guest, por exemplo, ficou profundamente decepcionado com a demora e ineficácia do referido procedimento em lidar com a questão dos desaparecimentos e as violações de direitos humanos em geral durante o regime militar argentino. Tal autor chega a afirmar que: “1503 has become truly dangerous to human rights – and it offers a useful refuge to repressive regimes”19. Diante das severas objeções feitas ao procedimento confidencial ao longo dos anos, surgiram no início da década de 90 algumas propostas formuladas com o fim de reformá-lo e revitalizá-lo. Dentre elas, Philip Alston destaca20: a redução do prazo entre a comunicação e a análise do caso pela Comissão; a necessidade de votação secreta no âmbito da Subcomissão e seu Grupo de Trabalho como forma de evitar pressões de caráter político; uma participação mais ativa dos reclamantes durante o procedimento, podendo fornecer informações adicionais e responder às negativas dos 18 Philip Alston, op. cit., p.151. 19 Ian Guest. Behind Disappearances: Argentina’s Dirty War against Human Rights and the United Nations, 1990, p. 441. 20 Philip Alston, op. cit., pp.154-155 DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 59 governos; o estabelecimento de um prazo limite de 2 a 3 anos para a conclusão do procedimento; e, obviamente, uma ampliação na transparência do mesmo, com a publicação de estatísticas sobre os caso tratados, dando detalhes acerca dos resultados obtidos e, ao cabo de um prazo a ser definido, a abertura total dos registros confidencias. No plano prático, porém, muito pouco foi feito no sentido de reformular o procedimento 1503. Hoje, embora continue a funcionar, em geral para situações que geram menor mobilização internacional, o procedimento em questão parece estar fadado à obsolescência diante da proliferação de mecanismos de monitoramento ostensivos. Por fim, vale ressaltar que a despeito de suas fragilidades, o procedimento 1503 também legou ao regime de direitos humanos alguns avanços. Primeiramente, acostumou os Estados com a idéia de terem que se defender diante de comunicações feitas, colocando em xeque as falácias acerca da intangibilidade da jurisdição doméstica. Contribui, igualmente, para expor a Comissão e Subcomissão ao mundo real das violações de direitos humanos. Finalmente, representou um inovador mecanismo extraconvencional de proteção aos direitos humanos. Para Cançado Trindade: “A significação do procedimento da resolução 1503 (XLVIII) (...) parece residir, sobretudo, no fato de ter“institucionalizado” e aperfeiçoado a prática do tratamento de petições independentemente do requisito de ratificação dos Pactos e a aceitação do direito de petição individual ali consagrado”21 3.4.2. O procedimento 1235 Aprovado pelo ECOSOC em 6 de junho de 1967, o procedimento 1235 atribui à Comissão de Direitos Humanos e a seu órgão subsidiário, a Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, a competência para “examinar as violações graves de direitos humanos e liberdades fundamentais em todos os países”. Nesse contexto, poderia a CDH “realizar um estudo aprofundado das 21 Antonio Augusto Cançado Trindade. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito Internacional. Editora Universidade de Brasília, 1984, p. 187. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 60 situações que revelem um padrão sistemático de violações de direitos humanos (...) e relatá-lo, com recomendações ao Conselho”. As origens imediatas do procedimento 1235 residem na luta contra o racismo em geral e contra o apartheid em particular. Assim, o primeiro instrumento ostensivo criado pela CDH foi o Grupo Especial de Peritos sobre a Situação dos Direitos Humanos na África Austral em 1967. Este ficou encarregado de investigar sobre torturas e maus tratos de prisioneiros na África do Sul. Em pouco tempo, o mandato original foi ampliado para alcançar igualmente a Namíbia, a Rodésia do Sul (atual Zimbábue) e as, então, colônias portuguesas. Impedido de entrar nos territórios jurisdicionados, o grupo limitou-se a realizar suas investigações através de depoimentos de exilados, militantes de movimentos de libertação nacionais, organizações governamentais e ONG’s, entre outras fontes disponíveis. Dois anos mais tarde, em 1969, a CDH estabeleceu um segundo Grupo Especial de Peritos, que composto pelos mesmos integrantes do primeiro, destinava-se a investigar alegações de violações por Israel da Convenção de Genebra de 1949 sobre o tratamento de civis em tempos de guerra, nos territórios árabes ocupados após a Guerra dos Seis Dias. Israel não cooperou com o grupo, que igualmente a seu predecessor também ficou impedido de realizar investigações in situ. Em 1970, dada a criação pela Assembléia Geral do Comitê Especial sobre as Práticas Israelenses nos territórios ocupados, o grupo teve seu mandato encerrado. Na linha evolutiva do procedimento 1235, tem enorme destaque o Grupo de Trabalho Especial sobre a Situação dos Direitos Humanos no Chile, estabelecido pela resolução 8 (XXXI) da CDH, de 27 de fevereiro de 1975. Este grupo, composto por cinco membros, destinava-se a investigar a situação dos direitos humanos no país “com base em testemunhos orais e escritos, a serem recolhidos de todas as fontes pertinentes, e numa visita ao Chile”. Esta visita não pôde ser realizada até 1978, quando o governo chileno finalmente permitiu a entrada do Grupo de Trabalho. Tendo tido sua missão reconhecida pela Assembléia Geral, o Grupo foi dissolvido em 20 de dezembro de 1978, sendo designado um relator especial para sucedê-lo e acompanhar a evolução da situação no país. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 61 O precedente do caso chileno é particularmente relevante por representar o primeiro mecanismo de controle ostensivo de situação específica não atinente ao apartheid, ao colonialismo ou à ocupação estrangeira, e sim a violações severas de direitos civis e políticos em âmbito nacional. Nas palavras de Philip Alston: “In principle at least, the door has finally been opened, albeit only a fraction, to permit the effective use of 1235 in virtually any situation, provided only that the political will could be mustered”22 3.4.2.1. Grupos ou Relatores de Investigação por Países (geográficos) Seguindo o exemplo chileno, a Comissão estabeleceu, nos primeiros anos da década de 80 Relatores Especiais, Representantes e Enviados Especiais para vários países como Bolívia (1981), El Salvador (1981), Guatemala (1982), Irã (1984) e Afeganistão (1984). Estes Grupos ou Relatores de Investigação Geográficos têm incumbência de acompanhar a evolução de determinadas situações nacionais, tanto em contato direto com as autoridades do governo envolvido, se forem cooperativas, quanto indiretamente, em consultas com ONG’s, movimentos de oposiçãolegais ou ilegais e cidadãos no exílio. Inaugurava-se, assim, um importante caminho em direção ao aperfeiçoamento dos mecanismos de controle ostensivo, num processo que se expandiu na década seguinte. Sobre os órgãos de investigação geográfica, é importante notar que apesar de suas contribuições inegáveis, tem sido alvo de críticas tanto de Estados-alvos quanto de ativistas autenticamente devotados aos direitos humanos, por padecer de um caráter inevitavelmente seletivo, que se presta a manipulações políticas. De fato, diz-se que os membros escolhidos carecem de imparcialidade, sendo muitas vezes de países cuja posição é manifestamente crítica aos Estados sob investigação. Critérios como competência e especialidade são geralmente negligenciados no momento da indicação, diferentemente do que ocorre em outros órgãos como a Organização Internacional do Trabalho23. Critica-se, de outro lado, o fato de muitas vezes o país- 22 Philip Alston, op. cit., p.158. 23 As escolhas geralmente recaem sobre diplomatas, não necessariamente entendidos em direitos humanos ou conhecedores das realidades sociais e culturais em que se manifestam as violações. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 62 alvo dos procedimentos ser consultado acerca das indicações, o que poderia comprometer a objetividade e o distanciamento dos escolhidos. Vale observar, outrossim, que o número de relatores especiais estabelecidos é consideravelmente inferior ao número de países submetidos a discussão na CDH sob o procedimento 1235. Muitas vezes, a mera indicação de preocupação ou a ameaça de uma resolução prontificam os países a cooperar. Da mesma forma, a adoção de uma resolução pela Comissão não significa necessariamente que um procedimento especial será criado, pode-se optar por fazer uma simples declaração em relação a alguma situação específica. É passível de nota, igualmente, que o procedimento 1235 teve, principalmente após 1979, um amplo alcance geográfico, atingindo países de diversos continentes, inclusive comunistas e aliados das grandes potências. Isto não significa, todavia, que tenha havido um equilíbrio espacial nas investigações, ou que se tenham deixado de lado as pressões políticas. De fato, somente dois países do leste europeu foram objeto de escrutínio, Polônia e Romênia, a despeito dos inegáveis abusos de direitos humanos praticados na região. Na Europa ocidental, nenhum país teve que prestar contas à CDH, nem mesmo a Turquia, que durante os anos 80 foi objeto de severas críticas no Conselho Europeu por suas violações a direitos humanos. Devido ao peso político e econômico que detém, grandes potências como China, Rússia, Estados Unidos, França e Reino Unido e, até mesmo, potências regionais como Índia e Brasil, sempre gozaram de certa imunidade no âmbito da Comissão. De outro lado, a solidariedade regional assegurou que diversas nações africanas e asiáticas ficassem de fora do alcance da CDH. Para Philip Alston: “ (…) it remains true that double standards have prevailed and that many countries which have been thoroughly deserving of scrutiny have been intentionally overlooked ”24 Finalmente, vale notar que a Comissão tende a agir somente quando há provas documentadas e consistentes de violações maciças de direitos humanos. A simples supressão da democracia, ou a mera violação de direitos econômicos, sociais e culturais não costumam ensejar o estabelecimento de quaisquer procedimentos especiais. Além disso, o procedimento 1235 não está preparado para agir em casos 24 Philip Alston, op. cit., p. 164. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 63 urgentes, como mecanismo de reparação ou interrupção de violações específicas. Falta-lhe a celeridade necessária, perdida em longos debates acerca do estabelecimento ou não de procedimentos especiais, ou pelo caráter anual das reuniões da Comissão. 3.4.2.2. Grupos ou Relatores de Investigação por Temas Específicos (temáticos) Uma última etapa na clara evolução dos mecanismos de controle de violações de direitos humanos no âmbito da CDH, parece ter sido dado pelo estabelecimento de Grupos ou Relatores de Investigação por Temas Específicos. Estes recebem a atribuição de monitorar em todo o mundo, de forma não-seletiva, a observância de normas atinentes a determinados temas. O primeiro mecanismo desse tipo foi o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, estabelecido em 1980, ao qual se seguiriam vários outros. “Vencidas as resistências iniciais ao seu estabelecimento e funcionamento, os Relatores Especiais e Grupos de Trabalho temáticos constituem hoje instrumentos regulares do trabalho de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas, não se registrando mais, salvo raras exceções, gestos de rejeição ou recusas expressas para o fornecimento dos esclarecimentos por eles solicitados com base no princípio da não-intervenção”.25 Em 19 de fevereiro de 1980, a Comissão de Direitos Humanos aprovou, por consenso, a criação do Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, surgido em resposta a uma série de desaparecimentos ocorridos por conivência ou ação de governos na Argentina, Chile e Uruguai, entre outros, e destinado a “examinar questões concernentes ao desaparecimento forçado ou involuntário de pessoas:”. Para tanto, o grupo ficava autorizado a “buscar e receber informações de governos, organizações intergovernamentais, organizações humanitárias e outras fontes confiáveis”. Por fim, o grupo ficava instado a “reagir de maneira efetiva diante das informações que lhe cheguem e a realizar seu trabalho com discrição”. 25 J. A. Lindgren Alves, op. cit., p. 19. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 64 Criado inicialmente para funcionar por um ano, o Grupo de Trabalho teve seu mandato renovado regularmente, tornando-se, na prática, um mecanismo semipermanente, que se reúne três vezes ao ano. O chamado “procedimento de ações urgentes” constitui uma novidade importante deste mecanismo em relação aos grupos ou relatores geográficos. Este instrumento permite ao grupo responder a comunicações que pareçam requerer uma atuação imediata. Anualmente, o grupo fornece à CDH relatórios no quais relaciona as consultas enviadas, as respostas obtidas, os casos esclarecidos e os casos pendentes, mas evitando transparecer um julgamento sobre as situações. Já na sua primeira década de atuação, o Grupo de Trabalho analisou cerca de 19 mil casos, sendo que em cerca de dez por cento dos mesmos as respostas governamentais ora levaram ao paradeiro das pessoas desaparecidas, ora ajudaram a esclarecer o sucedido. Assim como no caso dos grupos geográficos, o Grupo Sobre Desaparecimentos Forçados serviu de precedente para o futuro estabelecimento de outros mecanismos de investigação temáticos. Já em 1982, foi criada a figura do relator Especial Sobre Execuções Sumárias ou Arbitrárias, em resposta à notoriedade de execuções em massa em países como Libéria e Suriname e a uma ferrenha campanha da Anistia Internacional. Com seu mandato continuamente renovado, o Relator Especial também faz parte do instrumental semipermanente de acompanhamento dos direitos humanos pela ONU. Hoje, esse mecanismo conta igualmente com o chamando “procedimento de ações urgentes”, com vistas a evitar, sobretudo, a consumação de execuções previsíveis. No decorrer de seu trabalho, pode o relator solicitar, conforme o caso, ora a suspensão da execução depenas de morte judicialmente impostas e esclarecimentos sobre as salvaguardas existentes, ora uma proteção policial a pessoas ameaçadas, ou, ainda, informações acerca das investigações e medidas tomadas para a apuração de responsabilidade e punição dos culpados. Vale mencionar, outrossim, como marco da evolução dos mecanismos de controle “temático” a figura do Relator Especial sobre a Tortura, criado em 13 de março de DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 65 1985. Este tem como objetivo primordial investigar denúncias específicas sobre torturas e procurar evitar sua ocorrência ou repetição em casos determinados. Assegura-se também ao Relator a possibilidade de adotar “medidas urgentes” com o fim de socorrer as possíveis vítimas. Diferentemente do Comitê sobre a Tortura, o Relator Especial, não sendo constituído por um instrumento jurídico, pode na prática atuar em relação a qualquer Estado, sendo esta, aliás, uma das vantagens principais dos procedimentos de proteção extraconvencional26 sobre os mecanismos convencionais. Seguiram-se à criação desses mecanismos temáticos precursores vários outros, para monitorar diversos temas como: intolerância religiosa, venda de crianças e prostituição infantil, detenções arbitrárias e uso de mercenários como meio de violação de direitos humanos e de impedir o exercício do direito de autodeterminação dos povos. De um modo geral, os grupos e relatores temáticos têm um mandato comum no sentido de estudar e investigar os fenômenos relevantes ao assunto de sua competência e responder de modo efetivo às alegações recebidas. Para o bom cumprimento de suas atribuições os mecanismos temáticos dispõem de valiosos instrumentos de pressão. Primeiramente, podem requerer informações e esclarecimentos dos governos, buscando dessa forma esclarecer as circunstâncias e peculiaridades de cada caso recebido e intimidar a prática de novas violações. Em segundo lugar, pode o grupo ou relator solicitar a adoção de “medidas urgentes” destinadas a interromper ou evitar a consumação de uma violação específica. Outro recurso possível é a realização de visitas in situ, importante meio para a obtenção de informações de primeira mão e para o estabelecimento de contatos com parentes, testemunhas, ONG’s e autoridades, entre outros27. Por fim, os grupos ou relatores temáticos elaboram relatórios anuais de suas atividades onde fazem conclusões e 26 O termo extraconvencional, apesar de inexato (a Carta da ONU é convenção internacional) é utilizado justamente para enfatizar a diferença entre os procedimentos que nascem de convenções específicas de direitos humanos e aqueles que derivam de dispositivos genéricos da Carta. 27 Para M.T. Kamminga: “all procedures appear to have had a healthy disregard for formality and to have employed a wider range of sources than officially permitted”, citado em Philip Alston, op. cit., p. 177. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 66 recomendações específicas e os repassam à Comissão, que pode e deve deliberar a partir deles. Certamente, uma primeira vantagem estrutural da abordagem temática reside no fato de combinar a objetividade de uma investigação global sobre determinado tipo de violação com a capacidade de lidar com violações reais e específicas sofridas por indivíduos concretos. Pode-se dizer, ainda, que o estabelecimento de mecanismos temáticos não suscita tantas discussões e é mais facilmente conseguido. Com efeito, por seu caráter universal e não-seletivo, são encarados como elementos construtivos da cooperação determinada no artigo 56 da Carta da ONU, para a promoção universal do respeito e da observância dos direitos humanos. Segundo Patrick Flood: “(...) here the politically explosive atmosphere generated by debate over establishing a country- specific procedure is absent”.28 Diferentemente, durante as negociações para a criação de um mecanismo geográfico, os Estados-alvo comportam-se como se estivessem num tribunal de acusação, alegando serem vítimas de manobras políticas e preconceitos culturais. Nesse contexto é comum igualmente a atuação de grupos regionais e lobbies como forma de bloquear a aprovação dos procedimentos. A.H. Robertson e J.G. Merrills reconhecem também diversas vantagens nos procedimentos temáticos29, quais sejam: um maior alcance geográfico; a possibilidade de investigar violações em países que gozam de popularidade política nas Nações Unidas e a certeza da existência de certos temas que por sua natureza se encaixam melhor numa investigação de alcance global, como a escravidão e as migrações em massa, por exemplo. Com o passar do tempo e a criação de novos procedimentos de proteção aos direitos humanos, é importante notar uma crescente disposição dos membros das Nações Unidas para com o emprego de mecanismos de persuasão multilaterais, que atuam em nome da própria comunidade internacional. De fato, no início, eles nem existiam e depois só passaram a ser admitidos em bases confidenciais (procedimento 28 Patrick J. Flood, op. cit., p.126. 29 Ibid., p. 125. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 67 1503). Aos poucos ganharam maior publicidade (avanço do procedimento 1235) e, finalmente, acabariam por ser aceitos de modo amplo e regular, primeiro sob a forma dos mecanismos geográficos de proteção e, posteriormente, marcando a continuidade da evolução, sob a forma dos mecanismos de controle temáticos. Todos estes instrumentos foram gradualmente consagrando e fortalecendo o conceito e a prática da responsabilidade internacional dos Estados para com a comunidade internacional, na área dos direitos humanos. Por fim, a criação do posto de Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos em 199330 constitui a mais nova inovação do regime com vistas ao aperfeiçoamento e a uma maior efetividade na proteção aos direitos humanos. 3.5. O Alto Comissário das Nações Unidas sobre Direitos Humanos Muito embora não constitua um dos mecanismos de proteção à disposição da Comissão em Genebra, vale discorrer brevemente acerca da figura do Alto Comissário das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, sem dúvida o mais recente e notável desenvolvimento dentro do regime de direitos humanos da ONU. Apesar de ser considerado uma grande novidade, o seu processo de criação remonta à década de 50. De fato, foi em 1952 quando pela primeira vez se falou na criação do referido posto. A proposta inicial foi lançada pelo Uruguai e não tendo provocado maiores adesões foi novamente apresentada em 1965 pela Costa Rica.31 Em ambos os casos o maior obstáculo à sua aprovação foi imposto pela oposição ferrenha da União Soviética, que alegava temer a criação de uma autoridade supranacional autorizada a interferir em assuntos supostamente de competência doméstica. Parece que pesou igualmente na posição soviética o temor de que o Alto Comissário, como encarregado na promoção dos valores expressos na Declaração Universal de 1948, terminasse por centrar boa parte de sua atenção em abusos cometidos em países comunistas. A 30 Cargo criado por consenso através da resolução 48/141 da Assembléia Geral, em 20 de dezembro de 1993, seguindo recomendação feita durante a Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena, em junho daquele mesmo ano. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 68 URSS pôde contar também em sua oposição com várias nações recém-descolonizadas que viam na proposta em debate clarasintenções imperialistas. Em 1977, relançou-se novamente o projeto na Assembléia Geral, sob a iniciativa de Estados Unidos, Costa Rica e Suécia. Mais uma vez, e a despeito de todos os avanços conseguidos até o momento no regime de direitos humanos da ONU, a União Soviética opôs-se à medida, alegando agora serem suficientes os procedimentos já em vigor (1235 e 1503), não sendo necessários quaisquer outros meios que pudessem comprometer ainda mais a soberania nacional. A despeito de novas tentavas apresentadas na década de 80, foi somente com o fim da Guerra Fria e da intransigência soviética, e com a superação do temor imperialista pelos países não-alinhados, que a proposta para a criação do posto de Alto Comissário sobre Direitos Humanos pôde ser aprovada. Assim, na própria Conferência Mundial Sobre os Direitos Humanos, realizada em Viena em junho de 1993, a proposta ganhou ares de prioridade32 e foi incluída no programa de ação da Convenção, que recomendava explicitamente: “a consideração prioritária pela Assembléia Geral da questão do estabelecimento de um Alto Comissário para os Direitos Humanos”. Então, no bojo da XLVIII Sessão da Assembléia Geral em dezembro de 1993, e não sem antes ensejar algumas discussões acaloradas, foi finalmente aprovada, por resolução consensual (nº 48/141), a proposta para a criação do referido cargo. O Alto Comissário deveria, segundo redação da própria resolução, ser uma pessoa íntegra e de reputação imaculada, que, além de conhecedor da área, deveria desempenhar suas funções de modo imparcial, objetivo, não-seletivo e eficaz. A nomeação do mesmo, para um mandato de quatro anos, renováveis por igual período, caberia ao Secretário Geral. Percebe-se pelo teor da resolução que o novo cargo não deveria, de per si, representar ameaça às soberanias dos Estados, ou constrangimentos para governos legítimos, que procurassem assegurar os direitos humanos de seus cidadãos. 31 Patrick J. Flood, op. cit., p.119. 32 Principalmente através da ação dos Estados Unidos, que pressionou pelo apoio à proposta. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 69 Em 1994, Boutros Boutros Ghali nomeia o equatoriano José Ayala Lasso, ex- chanceler em seu país, para a função. Certamente, com esta escolha buscava-se ampliar o apoio dos países em desenvolvimento, onde se temia que a nova função pudesse ser usada como forma de pressão em temas de direitos civis e políticos.Com efeito, durante o exercício da função, Ayala Lasso optou por uma atuação conciliatória, evitando entrar em choque com qualquer Estado, tendo como marco de sua gestão a quiet diplomacy. É função do Alto Comissário coordenar os programas de proteção, promoção, educação e informação do regime de direitos humanos do sistema ONU, buscando sempre o aperfeiçoamento e fortalecimento dos mesmos, com vistas a ampliar o grau de efetividade e eficiência de todo o regime. Para desempenhar suas funções, o Alto Comissário tem a autoridade para estabelecer missões de campo e fact finding, bem como utilizar meios de negociação, conciliação e pressão, já desenvolvidos anteriormente e largamente empregados pelos procedimentos de controle geográfico e temático, com a vantagem de poder atuar sobre qualquer tema em qualquer país. O novo posto passa a ter controle direto, igualmente, sobre os recursos humanos e financeiros do Centro de Direitos Humanos em Genebra. Como exemplos de realização de missões de campo vale citar, a titulo de ilustração, a pioneira em Ruanda, e outras que se seguiram, também em áreas de conflito, como Colômbia, El Salvador, Burundi e Camboja. Após a renúncia de Ayala Lasso para retornar ao cenário político de seu país, coube a Koffi Annan nomear a ex-presidente da Irlanda Mary Robinson para o exercício da função. Durante a sua gestão, Robinson foi muito mais ativa na proteção aos direitos humanos do que havia sido seu predecessor. De fato, segundo David Forsythe: “Ms. Robinson was so assertive that she raised questions about whether her activism was matched by enough diplomatic acumen”33. Por fim, cumpre notar que a própria disposição dos Estados em aceitar a concentração das funções de coordenação, seja no âmbito diplomático, orçamentário, operacional ou de pessoal, nas mãos de um único funcionário internacional, 33 David P. Forsythe, op. cit., p.65. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 70 representa outro forte indício do maior comprometimento dos países com a idéia de responsabilidade perante a comunidade internacional em matéria de direitos humanos. 3.6. Um enfoque da teoria de regimes sobre a evolução dos mecanismos de proteção aos direitos humanos 3.6.1. Definição e características do regime Segundo Philip Alston, o regime de direitos humanos: “consists of those international norms, processes, and international arrangements, as well as the activities of domestic and international pressure groups, that are directly related to promoting respect for human rights”.34 Jack Donnelly caracteriza o regime de direitos humanos como a strong promotional regime, por contar com normas coerentes e largamente aceitas, sem dispor, contudo, de um sistema de monitoramento eficiente ou de um processo de tomada de decisões vinculante. Este autor afirma que um regime promocional exige um baixo nível de comprometimento por parte dos Estados, o qual deve aumentar consideravelmente quando pretende passar-se para um implementation ou enforcement regime. Nos termos de Donnelly: “(…) enforcement activities involve international decision making and the stronger forms of international monitoring. International implementation activities include weaker monitoring procedures, policy coordination and some form of information exchange. Promotional activities may involve international information exchange, promotion or assistance, and perhaps even weak monitoring of international guidelines.”35 A contribuição dada pelos novos mecanismos extraconvencionais de proteção (os temáticos principalmente) ao regime de direitos humanos das Nações Unidas parece 34 Philip Alston, op. cit., p. 1 35 Jack Donnelly. International Human Rights: a Regime Analysis. International Organization. v.40, n.3, summer, 1986, pp. 604-605. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 71 inserir-se justamente na tentativa de criação de sistemas de monitoramento mais eficientes e na passagem a atividades de implementation. Estes procedimentos especiais teriam representado um reforço à aquiescência com o regime, por estabelecerem instrumentos de monitoramento e coleta de dados apolíticos e não-seletivos “for managing compliance”.36 A origem do estabelecimento do regime de direitos humanos das Nações Unidas, conforme já exposto no capítulo anterior, reside no fato de as nações buscarem evitar a repetição das agruras e do sofrimento à pessoa humana ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. Contudo, vale notar que a ONU é composta de Estados, que são os principais sujeitos às obrigações dos direitos humanos internacionais e também os maiores transgressores. Assim, é compreensível que esses Estados não se preocupassem com o estabelecimento de mecanismos de enforcement eficientes que pudessem criar-lhes embaraços, mas simplesmente com a criação de normas de caráter geral e abstrato desprovidas de caráter cogente. Mesmo no plano dos direitos humanos,os Estados não esquecem o caráter predominantemente anárquico do sistema internacional, onde prevalece a noção de self-help e a busca pela maximização dos ganhos, não apenas em termos absolutos, mas igualmente em termos relativos. Assim, para muitos, a inclusão e o avanço na proteção aos direitos humanos responde às necessidades de alguns Estados em desmoralizar e deslegitimar certos governos rivais37. Tal pensamento pode inclusive ser verificado nos primeiros anos da Guerra Fria, quando as propostas na Comissão de Direitos Humanos representavam basicamente tentativas de um bloco em comprometer a reputação e a posição internacional de países do bloco rival, através da ênfase em direitos que sabidamente não gozavam de proteção ampla nesses países. Os Estados Unidos, por exemplo, insistiam em exaltar o respeito aos direitos civis e políticos, enquanto os países socialistas, em contrapartida, clamavam pelo fim da discriminação racial. Da mesma forma, conforme já apresentado acima, diversas tentativas em criar novos procedimentos de proteção aos direitos humanos (como o posto de Alto Comissário Sobre Direitos Humanos) foram entravados pela firme 36 Abram Chayes & Antonia Handler Chayes, op. cit., parte 2. 37 Weiss et al., op. cit., p. 210. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 72 oposição de países socialistas, bem como de países do Terceiro Mundo, temerosos de que com isso pudesse se abrir um grave precedente para uma ingerência contínua e ilimitada na cidadela da soberania. Uma maior preocupação com os direitos humanos pode igualmente ser o resultado de pressões e constrangimentos externos. De Alemanha e Japão, por exemplo, na posição de candidatos a um assento permanente no Conselho de Segurança, não se pode esperar senão uma postura respeitosa e coerente com os direitos humanos. Para o fim do regime de segregação racial na África do Sul certamente somaram-se aos movimentos e contexto nacionais, as pressões exercidas no âmbito internacional, com grande destaque para a atuação da Comissão de Direitos Humanos. Aliás, vale dizer que boa parte dos procedimentos convencionais e extraconvencionais do regime de direitos humanos da ONU tem no temor à exposição pública, inegavelmente uma importante forma de pressão, sua maior força. Outro importante motivo para o avanço dos sistemas de proteção aos direitos humanos pode ser encontrado na correlação, para muitos indiscutível, entre o respeito aos direitos e garantias individuais e a estabilidade e paz internacionais. Para tanto, conforme já afirmado na parte inicial deste trabalho, costuma-se sublinhar a quase inexistência de guerras entre países democráticos, ou a menor propensão para ataques externos quando se vive um clima de paz e tranqüilidade internamente.38 Assim, em países como El Salvador, afirmou-se a necessidade de consagrar previamente o respeito aos direitos humanos como forma de alcançar a paz.39 Por fim, é certo que em determinados casos o respeito aos direitos humanos pode derivar de uma preocupação legítima dos países com a dignidade humana.40 Nestas hipóteses, o que se têm é a profusão de uma solidariedade moral na comunidade internacional, independentemente de nacionalidades ou fronteiras, contrariando boa parte dos preceitos realistas que prevêem a atuação dos Estados com o único objetivo de maximizar seu poder (“interesses definidos em termos de poder41”). A notável política de Jimmy Carter para com os direitos humanos, por exemplo, parece 38 Ibid., p. 210. 39 Para o conceito de paz democrática, ver capítulo 4, item 4.8. 40 Weiss et al., op. cit., p.211 DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 73 embasar-se numa vontade genuína de ver ao menos o Hemisfério Ocidental em consonância com os direitos individuais fundamentais. Em contrapartida, a administração Eisenhower apenas usou os direitos humanos como instrumento de luta e pressão contra o bloco socialista, claramente caracterizando uma concepção realista da proteção aos direitos humanos. Então, conforme visto, várias são as razões que podem impulsionar os Estados a aceitarem e respeitarem os direitos humanos, bem como a integrarem o seu regime. Em estreita correlação com as motivações acima apresentadas, muitas são as teorias formuladas para explicar o surgimento, a permanência e a evolução dos regimes em relações internacionais. Cumpre identificar aquela que mais adequadamente explique os recentes desenvolvimentos procedimentais dentro da Comissão de Direitos Humanos, especificamente os grupos de trabalho temáticos, e melhor sirva para avaliar seus impactos no regime de direitos humanos da ONU. 3.6.2. Três perspectivas teóricas Peter Hass (1993) identifica três grandes perspectivas teóricas no plano dos regimes42. A primeira, acorde com a posição neoliberal e chamada de “teoria baseada no interesse”, afirma que os Estados, mesmo num ambiente anárquico, podem cooperar com o fim de realizar interesses comuns. Nesta perspectiva os Estados são atores racionais e egoístas que se preocupam apenas com seus ganhos (em termos absolutos). Em suma, os regimes ajudariam os Estados a coordenar seus comportamentos com o fim de evitar coletivamente resultados que individualmente seriam subótimos. Os Estados teriam interesse em manter o regime mesmo não estando mais presentes os motivos que lhe deram causa. É marcante nesta teoria o fato das preferências e identidades dos atores serem dadas de forma exógena, presumindo-as alheias a políticas estatais, bem como à ação de instituições. É parte 41 Este constitui um dos seis princípios do realismo político consagrados por Hans Morgenthau em Politics Among Nations. 42 Arild Underdal. The Study of International Regimes. Journal of Peace Research, v.32, n.1, 1995, p. 117. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 74 importante desta corrente a teoria funcional desenvolvida por Robert Keohane43, pela qual os regimes reduziriam os custos de transação e informação, facilitando a cooperação. Como exemplo marcante desta linha teórica temos a teoria dos jogos em que sobressai o “dilema do prisioneiro”, que para Keohane é representativo de boa parte do comportamento dos Estados em relações internacionais.44 A teoria realista, também chamada de “teoria baseada no poder” considera o poder tão importante na cooperação quanto no conflito. Segundo ela, a distribuição dos recursos de poder entre os atores em jogo determina tanto a perspectiva de surgimento de regimes eficazes e duradouros, como a natureza do próprio regime a ser criado. Diferentemente da teoria anterior, os realistas estão preocupados com ganhos relativos, considerados em face dos ganhos obtidos pelos demais atores. Nesta perspectiva se destaca a teoria da estabilidade hegemônica45, que identifica num poder hegemônico o caráter de estrutura constrangedora em direção à cooperação. Vale mencionar neste contexto a perspectiva da “Guerra dos Sexos” desenvolvida por Krasner46 (em seu power-oriented research program) em que, diferentemente da teoria proposta por Keohane, há mais de um ponto de equilíbrio, mais de um modo de satisfazer-se o ótimo de Pareto, inviabilizando a cooperação a partir de ajustamento mútuo. Na verdade, nesse exemplo formulado por Krasner, as preferências dos atores em relação ao ponto de equilíbrio a ser buscado são conflitantes. Segundo o autor, o papel de coordenadorcaberá ao poder, ensejando não um ajustamento mútuo e, sim, o ajustamento de um ator às preferências do outro. Por fim, a “teoria cognitiva” de regimes defende que a cooperação não pode ser explicada sem referência à ideologia, aos valores dos atores e ao conhecimento. Ressaltando a importância do aprendizado, as teorias cognitivas identificam o caráter dinâmico da realidade, o que ajuda a explicar a evolução dos regimes. “Cognitivists 43 Robert Keohane. Cooperation and International Regimes. In:__After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy. Princeton University Press, 1984. 44 Ibid., p. 68. 45 Teoria primeiro desenvolvida por Charles Kindleberger em The World In Depression 1929- 1939.The Penguin Press, 1973. 46 Stephen Krasner. Global Communications and National Power: Life on the Pareto Frontier. World Politics, n.43, 1991, p. 336-366. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 75 argue that learning and, in somewhat different fashion, ideology, affect international rules and cooperation by showing the merit (or futility) of certain lines of action”47. A grande crítica que a teoria cognitiva faz às teorias racionalistas diz respeito ao fato de elas tratarem os interesses dos Estados como dados externamente. “Cognitivists pose a simple, yet profound question: can interests in an issue area be unambiguously deduced from power and situational constraints?”48 Segundo a divisão proposta por Hasenclever et al.,49 é possível distinguir entre cognitivistas fracos e cognitivistas fortes. Os primeiros têm por base a investigação dos processos de formação de interesses e preferências que precedem a tomada de decisões racionais.50 Os cognitivistas fortes vão além em sua considerações e propõem mudanças mais profundas. Combatem a noção dos Estados como “utility-maximizers”, e propõe outra que os coloca com “role-players”. As normas e instituições não se limitariam a um caráter regulador, teriam igualmente um caráter constitutivo, moldando os atores. Assim, os regimes não são o resultado de escolhas racionais de Estados pré- existentes. Estes últimos é que, na verdade, dependeriam de instituições sociais anteriores, como soberania, diplomacia e direito internacional, para poder exercer sua racionalidade. Em suma, as normas constituiriam um mundo de conhecimento comum, uma “web of meaning” (Neufeld, 1993), a partir da qual poderia se interpretar e entender a ação dos demais atores, e propor respostas às mesmas. “The behavioral regularities observed in the social world – human practices, in other words – constitute and are constitutive of this ‘web of meaning’ ”51 Mark Neufeld reforça o caráter constitutivo dos entendimentos intersubjetivos: “the relationship between the ‘intersubjective meanings’ which make up the ‘web of meaning’ and human practices is not one of correlation, where ‘intersubjective 47 Stephan Haggard & Beth Simmons. Theories of International Regimes. International Organization, v.41, n.3, summer 1987, p.510. 48 Ibid., pp. 512-513. 49 Andreas Hasenclever; Peter Mayer; Volker Rittberger. Theories of International Regimes. Cambridge University Press, 1997, pp.137-138. 50 Vale esclarecer que fraqueza e força aqui nada tem a ver com a qualidade dos argumentos em que se baseiam as teorias, são termos que designam simplesmente maior proximidade ou afastamento das teorias racionalistas. 51 Nayef H. Samhat. International Regimes as Political Community. Millennium Journal of International Studies, v.26, n.2, 1997, p. 360. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 76 meanings’ serve as an ‘intervening variable’ in a causal sequence. Rather, the ‘intersubjective meanings’ are constitutive of those practices.”52 3.6.3. A teoria escolhida Sabendo que se procura uma base teórica capaz de explicar a evolução dos procedimentos de investigação da Comissão de Direitos Humanos, bem como o fortalecimento do próprio regime, não parece muito indicado adotar teorias que defendam respostas atemporais por parte dos Estados, como é o caso das teorias racionalistas (neorealistas e neoliberais). Para estas, os Estados racionais sempre se comportariam da mesma forma diante de certas condições, desprezando-se os processos intrínsecos de formação de interesses e preferências, importando apenas os constrangimentos externos para explicar as mudanças (teorias estruturais). Assim, parece mais indicado recorrer à vertente cognitiva da teoria de regimes para embasar o presente estudo. É certo, todavia, que em se tratando especificamente do regime de direitos humanos, ainda é difícil reconhecer nas suas normas um caráter constitutivo, capaz de moldar e formar a identidade dos Estados. Ademais, a despeito de todos os progressos alcançados nos últimos cinqüenta anos e por mais que na última década tenha se reconhecido os direitos humanos como tema de interesse global (no âmbito da 2ª Conferência Mundial em Viena), fica difícil enxergar nos Estados um caráter de “role-players”, em que eles não se preocupariam com seus interesses e objetivos individuais no momento de decidir o curso de ação a ser seguido e, sim, apenas com o papel e as inerentes obrigações que a sociedade (de Estados) lhes atribui. Na verdade, no plano dos direitos humanos ainda é sensível o caráter de “utility- maximizers”. Ainda que haja genuínas preocupações com o avanço dos direitos humanos na política externa de determinados países, não se exclui a existência de interesses individuais que paralelamente procura-se atender. No caso da administração Carter e a sua política de vinculação dos direitos humanos à política externa americana, por exemplo, paralelamente às pressões pela ampliação da 52 Mark Neufeld. The Restructuring of International Relations Theory. Cambridge University Press, 1995, p. 77. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 77 proteção a direitos, buscava-se atender aos anseios da sempre influente opinião pública americana. Assim, o ideal é empregar uma teoria que permita tanto explicar mudanças, mesmo na ausência de transformações estruturais sensíveis, quanto incluir certos conceitos das teorias racionalistas, bastante caros, ainda, à realidade atual do regime de direitos humanos das Nações Unidas. Sobressai, então, a teoria cognitiva fraca, que nas palavras de Hasenclever et al.: “may be used to fill – frequently admitted – gaps in rational explanations of international regimes”.53 Arild Underdal, igualmente, afirma em artigo de 1995 que o fato de duas proposições teóricas serem diferentes, não significa que elas são incompatíveis. Diz o autor: “Any theory predicting or explaining the formation of these inputs (preferences and beliefs) would neither challenge nor corroborate game theory itself: it would simply be a theory about something else, and should be evaluated as such”54 Então, já sob uma ótima cognitiva, vale notar que a definição tradicional de regimes apresentada por Krasner 55 deve ser acrescida de um elemento intersubjetivo, qual seja: os “principled and shared understandings”, propostos por Kratochwil e Ruggie em 1986. Com efeito, para os cognitivistas fracos os significados intersubjetivamente compartilhados são essenciais tanto para explicar a formação dos regimes quanto o seu desempenho. “(...) a minimum of collective understanding concerning the issue at stake is supposed to be a necessary condition for the choice of a substantive body of rule. Otherwise convergent expectations amongindependent actors in an international issue-area would be impossible, and cooperation would be doomed to failure.”56 3.6.4. Características da Teoria Cognitiva Fraca 53 Hasenclever et al., op. cit., p. 216. 54 Arild Underdal, loc. cit. 55 “Princípios explícitos ou implícitos, normas, regras e processos de tomada de decisões em torno dos quais as expectativas dos atores convergem em determinada área das relações internacionais”. 56 Hasenclever et al., op. cit., p.141. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 78 3.6.4.1. As idéias Em sua essência o cognitivismo vai de encontro a duas premissas dos racionalistas. De um lado, não mais seria possível explicar o comportamento dos Estados a partir de interesses egoísticos dados, sem referência às idéias. De outro, defende-se que mudanças nos interesses podem resultar de mudanças nas crenças dos atores. De fato, parece razoável que variações nas crenças normativas e causais alterem interesses e provoquem mudanças de comportamento. As crenças normativas dizem respeito às concepções de certo e errado, justo e injusto. No caso da escravidão, por exemplo, durante milhares de anos pouco se debateu sua adequação com os valores humanos. Foi somente no século XX, após muita discussão e com uma mudança marcante nas concepções do que era certo e errado, que se decidiu reconhecer o caráter indispensável da liberdade para a realização da dignidade humana. No tocante à descolonização deu-se um fenômeno parecido. Não foi uma alteração na balança de poder ou nas utilidades econômicas do imperialismo que desencadearam o movimento, na verdade houve uma mudança nas idéias de legitimidade e ilegitimidade nas regras.57 O que antes era aceito e inclusive incentivado como forma de garantir uma certa posição na comunidade internacional passou a ser visto como um meio de ação ilegítimo. O colonialismo seria definitivamente posto em xeque com a consagração do direito de autodeterminação na Carta Internacional de Direitos. As crenças causais se referem às relações de causa e efeito. É evidente que alterações nestas crenças provocarão variações nos cursos de ação a serem adotados para alcançar determinados objetivos. “Ideas serve the purpose of guiding behavior (...) by stipulating causal patterns or by providing compelling ethical or moral motivations for action” (Goldstein & Keohane, 1993)58 57 Robert H. Jackson. The weight of Ideas in Decolonization: Normative Change in International Relations. In: Goldstein and Keohane (Eds.), 1993, p. 130. 58 Hasenclever et al., op. cit., p. 143. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 79 Na concepção de Keohane e Goldstein desenvolvida em 199359, as idéias ganham maior importância do que nas teorias funcionalistas tradicionais, atuando como variáveis explicativas (explanatory variables), importantes para se entenderem mudanças no comportamento dos Estados. Vale notar, contudo, que esses autores condicionam a utilidade das idéias à ocorrência paralela de mudanças em interesses materiais ou relações de poder.60 Dentro dessa linha de explanatory variables, Keohane e Goldstein atribuem às idéias alguns papeis segundo os quais elas influenciariam o comportamento dos Estados. Em primeiro lugar, elas funcionariam como road maps, ou seja, ajudam os Estados a escolher entre diversos objetivos, considerando aqueles que melhor se adeqüem às suas crenças normativas e suas noções de certo e errado, justo e injusto. Em seguida, as crenças causais (relações de causa e efeito) ajudarão os atores a definir quais os meios mais indicados para alcançar tais objetivos. Assim, sob está ótica, fica mais fácil entender diferentes escolhas e diferenças no comportamento, mesmo em condições materiais similares (como no caso dos processos de descolonização). Em segundo lugar, em resposta a uma das grandes críticas feitas ao funcionalismo61, que diz respeito ao fato de ele negligenciar a possibilidade de existir mais de um ponto de equilíbrio possível, Keohane e Goldestein propõem a noção de idéias como focal points, ajudando a definir soluções aceitáveis para problemas de ação coletiva. Isto poderia aplicar-se à guerra dos sexos proposta por Krasner, com a diferença de que não mais o poder funcionaria como elemento coordenador e sim as idéias, que uma vez compartilhadas, ajudariam na cooperação.62 Vale observar, por fim, que para o cognitivismo fraco, a afirmação do papel das idéias como indutoras de mudanças de comportamento nos Estados não é um fim em si mesmo, mas atende à necessidade maior de explicar a criação e transformação de regimes, a partir de um processo de aprendizado (learning cooperation). 59 Judith Goldstein & Robert Keohane. Ideas and Foreign Policy: An Analytical Framework. In: Goldstein and Keohane (Eds.). Ideas and Foreign Policy: Beliefs, Institutions and Political Change. Cornell University Press, 1993 60 Hasenclever et al., loc. cit. 61 Funcionalismo usado aqui para referir-se à teoria de regimes desenvolvida por Keohane, conforme denominação empregada por Hasenclever et al., op. cit. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 80 3.6.4.2. O aprendizado Quando as idéias efetivamente induzem uma mudança de comportamento podemos falar em aprendizado. Segundo a concepção de Joseph Nye63, pode haver um aprendizado simples, em que os objetivos permanecem inalterados, havendo mudança apenas nos instrumentos ou estratégias propostos para alcançá-los e um aprendizado complexo em que se redefine o conteúdo mesmo dos interesses nacionais. Ernst Hass64 chama a primeira categoria proposta por Nye de adaptação e apenas à segunda confere o caráter de aprendizado. Vale notar que o aprendizado proposto pelos cognitivistas difere daquela noção apresentada pelos racionalistas em que os Estados reagiriam a mudanças estruturais com mudanças comportamentais. Nesse caso as informações novas e o aprendizado feito a partir das mesmas dizem respeito apenas a mudanças estruturais no ambiente em que atuam os atores. Não há qualquer preocupação com o modo como os interesses são redefinidos. Um claro exemplo de aprendizado sob a ótica cognitiva pode ser encontrado nas relações entre os Estados Unidos e a União Soviética no período da Guerra Fria. Diante do conhecimento do poderio de destruição dos armamentos nucleares e da impossibilidade de proteger de modo efetivo suas populações, as duas potências entenderam ou aprenderam a necessidade de passar do unilateralismo para uma posição mais cooperativa, ao menos no tocante às estratégias de segurança e controle de conflito.65 No caso dos direitos humanos, a certeza da necessidade de evitar-se a repetição dos abusos da Segunda Guerra Mundial chamou a atenção para a criação de um sistema de garantias, até então largamente entravado pela resistência dos Estados. Com o decorrer do tempo, a crescente imbricação dos mesmos com conceitos como democracia e paz e a pressão exercida por novos membros do Terceiro Mundo em 62 Hasenclever et al., op. cit., p. 144. 63 Joseph Nye. Nuclear Learning and U.S. – Soviet Security Regimes. International Organization, v.42, 1987, p. 371-402. 64 Ernst Hass. When Knowledge is Power. University of California Press, 1990. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 81 relação a temas sensíveis como
Compartilhar