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118 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA AFRO-BRASILEIRA Luiz Antônio da Costa Chaves Especialista em Antropologia Social - UFRJ Professor do Centro Universitário Augusto Motta jricchaves@gmail.com RESUMO Este artigo propõe-se a elaborar um breve e panorâmico histórico da população afrodescendente na sociedade nacional, inserindo-a no processo histórico de construção da formação social brasileira. Procura resgatar as origens africanas desse segmento populacional, enfatiza o chamado tráfico negreiro e procura elaborar um painel dos aspectos mais significativos relacionados à condição de escravo na sociedade brasileira colonial e imperial. Enfoca, ainda, a inserção da população afrodescendente no contexto pós-abolição, explicitando as principais dificuldades para que, na atualidade, essa inserção se dê de forma efetiva e aborda também, no passado e na contemporaneidade, a questão conhecida como “resistência negra”, ou seja, a luta e as diferentes estratégias empregadas pela população afrodescendente contra o preconceito e a discriminação raciais e pelo reconhecimento de seus direitos. Palavras-chave: Negros. Escravidão. Tráfico Negreiro. Resistência Negra. “Uma chama não perde nada ao acender outra chama”1 1 Provérbio africano extraído de Gonçalves (2010). 119 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral A FEW REFLECTIONS ABOUT THE AFRO-BRAZILIAN HISTORY ABSTRACT This paper aims to develop a brief and panoramic history of African- descendant population in the national society, putting it into the historical process of building the Brazilin society. It seeks to uncover the African origins of this population segment, emphasizing the so called slave trade and to elaborate a panel of the most significant aspects related to slave status in Brazilian colonial and imperial society. It also focuses on the integration of people of African descent in the post-abolition, explaining the main difficulties so that, currently, this insertion effectively happens. And also, it deals with, in the past and in contemporary times, the issue known as “black resistance”, the struggle and the different strategies employed by people of African descent against prejudice and racial discrimination and the recognition of their rights. Keyword: Blacks people. Slavery. Slave Trade. Black Resistance. 1 A ÁFRICA PRÉ-COLONIAL Quanto às origens da população escrava no Brasil, pode-se observar que a chamada África Subsaariana2, e, em especial as suas regiões de onde foram enviados escravos para o Brasil, é caracterizada por uma grande diversidade e complexidade de suas populações e sociedades. Assim, algumas dessas sociedades se organizavam em pequenas aldeias agrícolas estruturadas em torno de linhagens, enquanto outras formavam sociedades estatais organizadas em grandes unidades territoriais. Em relação às últimas, pode-se exemplificá-las pelos reinos de Gana, Mali, Songai e Tecrur, localizados na região ocidental da África Subsaariana, sociedades estas de organização tributária3, participantes ativas do comércio transaariano de produtos como cereais, marfim, âmbar e escravos. Essas sociedades, por conta desse comércio, sofreram processo de islamização, religião que passaram a praticar juntamente com suas religiões tradicionais. Na área Centro−Ocidental africana, as sociedades nela localizadas formavam grandes reinos como o de Congo e o de Andongo, enquanto na região Oriental várias cidades− estado se destacaram, governadas por sultões e pelas leis islâmicas, por exemplo, Quíloa, Mogadixo, Mombaça, Moçambique, Zanzibar e Melinde, praticantes do comércio dentro e fora do continente africano. Nessas regiões, destacaram- se, ainda, os povos xonas, que fundaram o Grande Zimbábue, principal centro mercantil do Oceano Índico, que comerciava vários produtos com o reino Monomotapa. As sociedades subsaarianas, mesmo não- estatais, organizavam-se em torno de linhagens ou famílias, cada uma com seu chefe, e de conselhos de anciãos. A união de várias linhagens originava a aldeia, cujo chefe era escolhido entre os líderes dessas linhagens. Luiz Antônio da Costa Chaves 2 Esta região da África é tradicionalmente dividida em três áreas: Ocidental, Centro- Ocidental e Oriental. Dessas três áreas vieram escravos para o Brasil, predominando nesse aspecto, a área Centro-Ocidental. 3 Isto é, caracterizadas economicamente pelo chamado modo de produção tributário ou asiático. 120 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral As religiões tradicionais africanas eram caracterizadas pela crença em um ser criador e em espíritos ancestrais e da natureza que controlavam a vida dos habitantes das aldeias. A escravidão doméstica ou de linhagem era praticada pela maioria das sociedades africanas. Esta forma de escravidão visava aumentar o número de componentes da família ou da linhagem e, segundo Mattos e Grinberg, “[…] era fundamentada na relação extremamente pessoal entre senhor e escravo, da qual derivava toda a inserção social desse último. O escravo era basicamente um dependente do senhor […], em essência era uma fonte de prestígio social e poder político para seu senhor.” (MATTOS; GRIBERG, 2003, p. 33). Nessa forma de escravidão4, o escravo era utilizado no trabalho agrícola e em atividades militares, também sendo utilizado para pagar tributos, punido ou morto no lugar de seus donos e oferecido em sacrifícios rituais. Em algumas sociedades da África Ocidental, o cativo podia ser vendido no comércio com o Saara, o Egito e o Índico. Com a Expansão Marítima e Comercial, iniciada no século XV, desenvolveu-se o chamado tráfico negreiro, isto é, o comércio de escravos para a América, atividade essa que teve papel primordial no contexto mercantilista, não só por garantir a necessária mão-de-obra para as atividades econômicas das colônias americanas, como por ter possibilitado imensos lucros para as metrópoles europeias, constituindo-se na principal fonte da chamada acumulação primitiva de capital5. A demanda de mão-de-obra para as plantações e as minas americanas intensificou as guerras entre as sociedades africanas, transformando a estrutura dessas sociedades e as características da escravidão na África, que, de uma forma de dependência pessoal, tornou-se uma instituição fundamental para a economia dessas comunidades. Os portugueses se estabeleceram primeiramente na Senegâmbia, na Alta Guiné, onde construíram a fortaleza de Arguim, base para o comércio de escravos. As ilhas de São Tomé e Cabo Verde foram transformadas em entrepostos de comércio português com a África. O desenvolvimento da agromanufatura do açúcar no Brasil nos séculos XVII e XVIII provocou o crescimento da demanda de mão-de-obra escrava. Assim, esses escravos passaram a ser procurados na Baixa Guiné, que englobava a Costa do Ouro, a baía de Biafra e o Golfo de Benin, o qual foi chamado de Costa dos Escravos. No Benin, os reinos Oió, Aladá e Daomé tornaram-se os principais fornecedores de cativos, destacando- se os portos de Ajudá, Porto Novo e Badagri. Na Costa do Ouro, os portugueses construíram o forte de São Jorge da Mina, em 1482. A África Centro−Ocidental, área onde os portugueses chegaram no final do século XV, foi a região que mais forneceu escravos para o Brasil6. Nessa região, os comerciantes portugueses realizaram alianças comos chefes africanos, em especial os dos reinos do Congo e Andongo. Na área Oriental da África, os portugueses construíram entrepostos comerciais nas principais cidades do litoral do Índico e estavam principalmente interessados em controlar o comércio de ouro. Sendo assim, o comércio de escravos na região, por ser muito dispendioso, não era o objetivo principal de Portugal. A partir do século XVII, devido à perda para os holandeses de pontos de tráfico na África Centro−Ocidental, notadamente São Paulo de Luanda, os portugueses passaram a investir mais no comércio de cativos ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA AFRO-BRASILEIRA 4 Segundo Regiane Mattos, as principais formas de escravidão na África foram: guerras de expansão, dos Estados africanos, disputas políticas, fome, penas por crimes e dívidas e sequestros (MATTOS, 2007, p. 65). 5 Ou seja, acumulação de capital a partir de várias atividades econômicas que possibilitou o acúmulo do necessário capital para o processo de industrialização que caracterizou a Revolução Industrial. 6 A primeira remessa de escravos para o Brasil ocorreu em 1538 (PEREGALLI, 1997). 121 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral na região Oriental. Nela, o comércio de escravos atingiu sua maior intensidade no século XIX por conta da proibição do tráfico de escravos pelas nações europeias ao norte do Equador, em 1815. 2 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL Os africanos atuaram como escravos em várias atividades econômicas tanto rurais quanto urbanas no Brasil. No início da colonização, os cativos foram empregados principalmente na produção açucareira, atuando nos engenhos, e eram oriundos das regiões da Senegâmbia e do Congo-Angola. Com a descoberta do ouro na região das Minas Gerais no final do século XVII e com a intensificação da extração desse metal ao longo do século seguinte, o tráfico atlântico de escravos verificou enorme incremento, bem como o comércio interno de cativos. Os escravos trazidos para o Brasil nesse período originavam-se principalmente da Costa da Mina. Segundo Regiane Mattos, esses escravos eram trazidos pelos comerciantes baianos, que detinham o privilégio do comércio de escravos na região ocidental da África devido à preferência que os comerciantes africanos de cativos tinham pelo fumo de solo baiano, utilizado na troca por mão-de-obra (MATTOS, 2007, p. 213). De acordo com a mesma autora, a demanda de cativos na região mineradora também favoreceu a atuação dos traficantes do Rio de Janeiro, que buscavam escravos principalmente na região Congo-Angola (MATTOS, 2007, p. 213). No século XIX, a expansão cafeeira no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista também favoreceu o chamado tráfico negreiro. Em relação às atividades em que os cativos eram empregados no contexto urbano, estes eram utilizados nos arredores das cidades em pequenas fazendas e sítios em serviços domésticos e de manutenção das propriedades. Nos centros urbanos maiores, os escravos realizavam uma série de serviços como limpeza, transportes de proprietários, abastecimento e obras públicas. Nas cidades atuavam os cativos conhecidos como escravos de ganho7, atuantes no comércio e em ofícios especializados (ferreiros, barbeiros, alfaiates, sapateiros e músicos). Muitos deles viviam do chamado jornal. Os africanos trazidos para o Brasil como escravos eram provenientes, como já observado anteriormente, de várias localidades da África e, assim sendo, oriundos de várias sociedades e etnias muito distintas umas das outras. Ainda no continente africano, eram identificadas pelos comerciantes pelos “nomes de nação”, terminologia que representava os principais portos africanos de envio de cativos, como, por exemplo, Mina, Congo, Benguela e Moçambique. É oportuno, então, observar que essa nomenclatura não correspondia aos nomes das etnias africanas que tiveram seus componentes trazidos para o Brasil. No Brasil, as “nações” eram empregadas pelos próprios africanos para criar ou recriar identidades, construir sociedades e estabelecer alianças8. Observações sobre a escravidão não podem esquecer a questão da resistência escrava. Esta ocorreu de várias formas, desde o enfrentamento direto por intermédio de fugas e revoltas até a utilização de estratégias cotidianas de negociação, como meio de garantir melhores condições de vida e de trabalho, bem como a almejada liberdade pela obtenção da alforria, que podia ser obtida por pagamento, concessão ou conquista judicial. Luiz Antônio da Costa Chaves 7 “Eles [os escravos] saíam com produtos em cestos para vender e a cada semana ou mês apareciam na casa senhorial para pagar uma quantia em dinheiro fixada previamente: era o chamado jornal. A sistemática se as-semelhava a um acordo de compromisso: o escravo se comprometia a entregar aquela quantia de dinheiro fixa na regularidade acordada, e o senhor a permitir que o escravo circulasse livremente pela cidade, morasse onde bem entendesse e guardasse para si a quantia de dinheiro que excedesse o valor do jornal.” (FARIAS et al., 2006, p. 79). Sobre os escravos de ganho ver também KARASCH (2000), especialmente as páginas 259-291. 8 Ver, como exemplo desse processo, a criação das irmandades de forros (alforriados), onde esse caráter de “nação” era fundamental em sua criação e organização. 122 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral No dia a dia dos escravos a obtenção do direito à “brecha camponesa” exemplifica bem o processo de negociação entre cativos e senhores. Permitindo aos escravos o cultivo de roças para seu próprio sustento, os senhores reduziam seus gastos coma a manutenção dos escravos e ainda diminuíam a insatisfação destes. A “brecha camponesa” tornou-se, por conseguinte, meio fundamental para a sobrevivência dos escravos, que, inclusive, podiam vender o excedente do que produziam, gerando, assim, pecúlio que lhes possibilitaria a alforria. Por conta disso, quando sua utilização lhes era negada podiam ocorrer fugas como reação. Quando os mecanismos de negociação não funcionavam ou eram negados, os cativos lançavam mão de enfrentamento direto com a sociedade senhorial por meio de ações individuais e coletivas, a saber, crimes, fugas, revoltas e a formação de quilombos9. Apesar de todos os instrumentos e estratégias que as dificultavam, rebeliões marcaram a história da escravidão no Brasil, gerando um clima de tensão permanente e justificando a repressão policial. Dentre as muitas revoltas acontecidas, cabe destacar, por sua originalidade e importância, por ter-se constituído na maior revolta de escravos urbanos na América, o levante dos Malês10, ocorrido em Salvador em 1835, no qual africanos escravos e libertos planejavam e executaram uma rebelião que, embora não deva ser considerada uma manifestação da jihad, utilizou o islamismo como elemento organizador. As fugas como mecanismo de resistência ocorriam individual ou coletivamente. Tinham como objetivo reivindicar melhores condições de trabalho ou protestar contra o não cumprimento por parte dos senhores de acordos feitos com os escravos ou buscavam a ruptura quando levavam à formação de ou se direcionavam para os quilombos. Eduardo Silva classificou essas fugas em reivindicatórias, fugas semelhantes às greves contemporâneas, que aconteciam quando seu objetivo era o primeiro exposto anteriormente, e fugas de rompimento, quando tinham por objetivo a liberdade e se direcionavam para os quilombos. O mesmo autor traça, ainda, um perfil do escravo fugitivo, caracterizando-o comopredominantemente do sexo masculino, jovem e solteiro (REIS; SILVA, 1989). Para muitos estudiosos a manifestação mais importante da resistência escrava foram os quilombos. Manifestação não exclusiva da sociedade escravista brasileira - pois ocorreram também em toda a América durante o período escravista - essas comunidades de escravos fugidos11 se formaram no Brasil desde o século XVI até a abolição, podendo ser rurais, como por exemplo, Palmares, e urbanos, como o Quilombo do Seixas ou do Leblon, no Rio de Janeiro. Podem ainda ser categorizados como faz Eduardo Silva em quilombos - rompimento, como o primeiro citado, e quilombos abolicionistas como o segundo (Ibid., 1989). É oportuno observar que, na atualidade, existem no Brasil centenas de comunidades identificadas como quilombos, ou, mais especificamente, comunidades remanescentes de quilombos, caracterizadas como comunidades principalmente rurais que constroem sua identidade a partir de um passado escravo comum. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA AFRO-BRASILEIRA 9 Para melhor conhecer os mecanismos de negociação e as manifestações da resistência escrava ver, entre outros, REIS & SILVA, Negociação e Conflito, São Paulo: Cia de Letras, 1989. 10 Malê era o nome pelo qual os africanos praticantes do islamismo eram conhecidos em Salvador. Segundo Pierre Verger, male era uma corruptela do vocábulo iorubá imale, que significava Islã. Desta forma, cabe observar que os malês não representavam uma etnia, mas sim, uma identidade de cunho religioso. Os chamados malês eram oriundos de várias etnias como haussás, iorubás e etnias vizinhas. 11 Segundo as autoridades coloniais, quilombo era “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. (resposta do rei de Portugal a consulta do Conselho Ultramarino). A palavra quilombo se origina do vocábulo africano kilombo, que significa acampamento militar. 123 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral Na segunda metade do século XIX, surgiu o movimento abolicionista, organizado por advogados, jornalistas, comerciantes, estudantes e maçons, que apoiou a luta dos escravos por sua libertação. Foram fundadas várias sociedades abolicionistas e várias lideranças abolicionistas se destacaram nesse contexto, como José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e André Rebouças, entre muitos. Esse movimento veio a se juntar a fatores externos, como a pressão estrangeira contra a escravidão, notadamente inglesa, motivada pela expansão do capitalismo e pelas ideias liberais e a aspectos internos à sociedade brasileira, como a quebra do “paradigma colonial”, com a formação de uma camada média urbana que adere ao abolicionismo e a resistência dos escravos, contribuindo para o fim da escravidão em 1888. 3 O CONTEXTO PÓS-ABOLIÇÃO A escravidão encontrou no racismo sua justificativa ideológica, uma vez que, no contexto americano, os senhores brancos eram proprietários de indivíduos de raças diferentes da sua, fossem índios ou negros. Ocorrida a abolição, a escravidão se extinguiu, mas não o racismo. Podemos mesmo afirmar que ele se atualizou, pois como não era mais possível discriminar e excluir negros e mestiços por sua condição social, uma vez que estes não eram mais escravos e, em tese, - somente em tese - haviam se tornado cidadãos, sendo, por conseguinte, utilizado pelas elites para manter a discriminação e exclusão dos negros e mestiços no contexto pós- abolição. No processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre ocorrido nas últimas décadas do século XIX e no contexto pós- abolição das primeiras décadas do século XX, o chamado racismo científico12, conjunto de teorias formuladas na Europa, passa a ser utilizado por vários intelectuais brasileiros como explicação e justificativa de uma pretensa inferioridade de negros, índios e mestiços. Nesse processo a imigração europeia para o Brasil, ocorrida principalmente entre 1880 e 1920, articulou-se à preocupação da elite dirigente nacional em branquear a população brasileira, proposta essa corroborada pela teoria ou ideologia do branqueamento defendida por intelectuais da época, que consistia numa espécie de “leitura brasileira” do racismo científico europeu, uma espécie de tentativa de viabilização do Brasil como nação apesar e a partir do que afirmavam as teorias europeias - em especial, o principal formulador destas, o conde Gabineau - de que não só a dita raça branca era superior às demais como o mestiço era inferior aos elementos que o formavam e sinônimo de degenerescência racial. Assim sendo: A solução foi entender a mestiçagem [traço que caracterizaria a sociedade brasileira] com o índio e com o negro como a maneira pela qual o branco pudera se adaptar ao meio físico tropical hostil. Sem a mestiçagem com raças mentalmente inferiores, mas mais resistentes do ponto de vista físico, o branco - e com ele a civilização ocidental - não poderia ter vingado no Brasil. Mais ainda, com o tempo, a imigração europeia e a miscigenação racial, haveria um processo de branqueamento da população. Negros e mestiços desapareceriam no futuro (SALLES; SOARES, 2005, p. 115-116). Luiz Antônio da Costa Chaves 12 Segundo Nei Lopes, racismo é a “doutrina que afirma a superioridade de determinados grupos étnicos, naci-onais, linguísticos, religiosos etc., sobre outros. Por extensão, o termo passou a designar as ideias e práticas discriminatórias advindas dessa afirmada superioridade. A formalização do racismo como doutrina coube a J. A. Gabineau, em seu Essai sur l’inégalité des races humaines, publicado em 1853” (LOPES, 2004, p. 557). 124 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral Do acima exposto, depreende-se, então, que, para a elite governante e para os intelectuais defensores da teoria do branqueamento, como João Batista de Lacerda, estimular a imigração europeia era acelerar o desaparecimento, via mestiçagem, das raças inferiores na população brasileira. A articulação entre raça e nação dominou como tema o pensamento social nas primeiras décadas da República no Brasil, calcando- se em teorias racistas. Na década de 1930, principalmente a partir da obra de Gilberto Freyre, a mestiçagem no país passa a ser vista como elemento caracterizador e positivo de nossa formação nacional, sendo, então, esse fenômeno considerado “uma via de convivência salutar entre os segmentos sociais diversos” (GORENDER, 2000, p. 57), ideia que dá origem ao chamado mito da “democracia racial” no Brasil, mito este que vem sendo sistematicamente refutado pelos estudos sobre relações raciais no país, notadamente os trabalhos pioneiros de Florestan Fernandes, em especial Integração do Negro na Sociedade de Classes, obra elaborada em uma época que o mito da “democracia social” ainda era fortemente vigente em nosso sistema de representações e no discurso oficial sobre o Brasil. No contexto do Brasil pós-escravista, o racismo em nossa sociedade colocou os negros e mestiços numa situação peculiar de discriminação, para muitos diferente da segregação que ocorreria em países como os EUA e a África do Sul. Desta forma, o que caracterizaria racialmente no Brasil não seria a ausência de preconceito racial, mas a forma particular de preconceito13 que, em nossa sociedade, ocorreria. Segundo muitos pesquisadores, a população negra brasileira não teria sofrido “segregação legalizada sob o aspecto espacial e institucional” (GORENDER, 2000, p.59). Segundo Gorender: Como os negros eram e são os mais pobres, deu-se sua aglomeração em favelas e bairros de periferia, configurando uma segregação estabelecida na prática. Contudo, nunca houve restrições legais formalizadas à escolha de moradia, acesso a locais públicos e meios de transporte, nem discriminação com relação a hospitais, escolas, igrejas etc. O racismo não veio a ter, assim, expressão concentrada, mas difusa (GORENDER, 2000, p. 59-60). Para muitos, inclusive, esse racismo difuso ou “disfarçado” (para Florestan Fernandes o brasileiro teria “preconceito de ter preconceito”) teria favorecido a preferência por procurar soluções individuais pelos negros brasileiros em vez de enfrentar coletivamente os problemas relacionados ao preconceito e à discriminação raciais. Apesar disto, desde o imediato pós-abolição, os negros brasileiros procuraram lutar contra essa situação, surgindo várias instituições e movimentos de luta antirracista ao longo de nossa história recente. No contexto pós-abolição, os negros encontraram dificuldades imediatas de inserção no mercado de trabalho livre, tanto no meio rural quanto urbano. No meio rural, o estímulo à imigração europeia e a preferência pelo imigrante como mão-de-obra, especialmente nas fazendas do centro-oeste de São Paulo, restringiu a presença de negros, restando-lhes as piores e menos qualificadas tarefas, em geral sem qualquer tipo de contrato estabelecido. No meio urbano a situação de exclusão também se repetiu com os negros subempregados em tarefas de menor qualificação e remuneração, excluídos ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA AFRO-BRASILEIRA 13 O sociólogo Oracy Nogueira caracterizou o preconceito racial no Brasil como “preconceito de marca”, isto é, incidindo sobre as pessoas com aparência de negro. O mesmo pesquisador contrapôs o preconceito no Brasil ao que aconteceria nos EUA, onde ele seria “de origem”, ou seja, ocorrendo contra indivíduos de ascendência negra independentemente de sua aparência física. Essa oposição tem sido recentemente relativizada por autores como Thomas Skidmore, que apontam para o desenvolvimento de um certo multirracialismo na sociedade norte-americana e um birracialismo na brasileira. 125 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral também geograficamente na medida em que eram obrigados, pela condição financeira extremamente precária, a habitar em áreas periféricas da cidade e em moradias extremamente deficientes. Com o crescimento do setor industrial, especialmente em São Paulo nas primeiras décadas do século XX, a formação e o crescimento das classes média e operária se intensificaram. Apesar de essas classes, nesse período, serem formadas predominantemente por brancos, alguns negros conseguiram delas participar, principalmente do segmento operário. Com isso tem início a organização por trabalhadores imigrantes europeus do movimento operário ao qual os trabalhadores negros vão aderir. Essa participação negra foi incentivada pelos jornais organizados no período pela população negra14. Segundo Flávio Gomes, a chamada “imprensa negra” representou a “parte mais conhecida e citada da mobilização negra nas primeiras décadas republicanas” (GOMES, 2005, p. 27). Surgidos desde o final do século XIX, esses jornais tinham, de acordo com o mesmo autor, “como objetivo tanto festejar a abolição como refletir a seu respeito” (GOMES, 2005, p. 28). Vinculados a sociedades dançantes, clubes recreativos e associações beneficentes, tinham como propósito geral, propósito este não atendido pela grande imprensa da época, “[...] denunciar as condições de vida, a segregação, a falta de oportunidades, o cotidiano de racismo e a violência experimentada pelas populações negras, sobretudo nas cidades.” (GOMES, 2005, p. 32). Ao longo do século XX, o segmento negro da população brasileira atuou também em associações culturais como, por exemplo, a Companhia Negra de Revistas, a Companhia Bataclã Preta e o Centro Cívico Palmares, fundadas na década de 1920. O último dos citados, segundo Regiane Mattos, ampliou seu âmbito de ação passando a promover conferências sobre temas de interesse direto dos negros, tendo, inclusive, organizado uma campanha contra o decreto estadual que proibia o ingresso de negros na Guarda Civil (MATTOS, 2007, p. 189). Em 1931, Henrique Cunha e José Correia Leite fundaram a Frente Negra Brasileira (FNB), instituição que alcançou grande repercussão e receptividade não só no estado de São Paulo como em outros estados da federação. Segundo Gomes, a FNB, diferentemente das organizações negras que a precederam, não era mais apenas uma associação: [...] e sim uma frente que deveria alcançar várias regiões e reunir lideranças e iniciativas diversas no meio “meio negro” [...]. A ideia fundamental era realizar a ‘união política e social da Gente Negra Nacional’, para afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais na comunhão brasileira (GOMES, 2005, p. 52). Ainda de acordo com Gomes, a FNB em seus estatutos colocava-se “como força social ‘visando à ‘elevação moral, intelectual, artística, técnica, profissional e física’, assim como ‘assistência, proteção e defesa social, jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra.” (GOMES, 2005, p. 52). Embora não tenha conseguido organizar-se como movimento de massa, a FNB se transformou em partido político, aproximou-se do integralismo, embora fosse contrária à ideia de existência de uma democracia racial brasileira e, no contexto do Estado Novo de Vargas, acabou extinta juntamente com os jornais da imprensa negra. Luiz Antônio da Costa Chaves 14 Antes do surgimento da chamada imprensa negra, cabe destacar a criação no final de 1888 no Rio de Janeiro da Guarda Negra que, segundo Flávio Gomes, aparentemente desapareceu imediatamente após a proclamação da República sob acusações de ser uma instituição monarquista (GOMES, 2005). 126 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral É curioso observar, contudo, que durante o período do autoritarismo varguista, as escolas de samba e seus desfiles foram estimulados pelo governo, desde que, é claro, se submetessem ao controle do Estado divulgando temáticas nacionalistas. O movimento negro retomou sua força com o término do Estado Novo. Um ano antes do fim da ditadura varguista, Abdias Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), visando combater a exclusão de atores negros das artes cênicas e contando com a participação de Pixinguinha, Grande Otelo e Ruth de Souza, entre outros artistas. Em 1945 o movimento negro promoveu a Convenção Nacional dos Negros Brasileiros, com o objetivo de apresentar propostas para a Assembleia Constituinte encarregada de elaborar o texto da Constituição que seria promulgada em 1946. Em 1950 foi organizado o Congresso Negro Brasileiro15, organizado por intelectuais ligados ao TEN, e em 1954, fundada a Associação Cultural do Negro, que atuou, junto com outras organizações, com o objetivo de promover a igualdade racial, reivindicando os direitos do segmento negro e a preservação da cultura afro-brasileira. Nas décadas de 1960 e 1970, apesar e talvez por conta da ditadura militar que vigorava no país, os negros se destacaram no movimento sindical e novos grupos foram formados pela intelectualidade negra. Com o incremento do movimento negro internacional, que crescia com omovimento pelos direitos civis nos EUA e o processo de descolonização africano, mais jovens passam a atuar no movimento negro brasileiro. Destaque desse processo é a implantação no Brasil em 1978 do Movimento Negro Unificado (MNU), com o objetivo de [...] conscientizar a população negra de existência de desigualdades sociais e da necessidade de lutar contra a discriminação e de promover políticas públicas geradoras de melhores oportunidades aos negros nas áreas de educação, saúde, economia e cultura. (MATTOS, 2007, p. 191) Atualmente, como resultado da luta organizada pela inserção dos negros na sociedade brasileira e pela igualdade racial, podem ser citadas leis como a que prevê cotas para artistas negros na publicidade (n° 4.370/98) e a que torna obrigatório o ensino de História da África e cultura afro-brasileira (n° 10.639/2003), além é claro, da tão polêmica adoção por várias universidades públicas de cotas para afrodescendentes. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA AFRO-BRASILEIRA 15 O Congresso do Negro Brasileiro “denunciou, por meio de exposições e debates a posição dos cientistas sociais da época em face da questão racial no Brasil; na ocasião foram igualmente criticados os congressos afro-brasileiros que na década de 1930 tiveram lugar em Recife e Salvador.” (LOPES, 2004, p. 205) 127 TEMAS LIVRES UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Augustus | ISSN 1415-398X | Rio de Janeiro | v. 17 | n. 33 | Janeiro de 2012 | Semestral REFERÊNCIAS FARIAS, Juliana Barreto et al. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006. GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política: 1888- 1937. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. GORENDER, Jacob. Brasil em preto & branco: o passado escravista que não passou. São Paulo: SENAC, 2000. KARASCH, Mary C. 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