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Hessel, a Matrix e a pilula vermelha

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Hessel, a Matrix e a pílula vermelha
Mostrando uma realidade distópica num futuro indefinido em termos cronológicos, a trilogia Matrix, das Irmãs Wachowski (1999/2003), ficou famosa não só pela forma – além dos inovadores efeitos visuais, uma só película foi produzida e depois dividida em três; e paralelemente, foram criados produtos da mesma franquia: quadrinhos, games e animações – como também pelo seu conteúdo denso e atual. “Quem passar por fóruns de fãs em internet, verá pessoas comparando-o às mais diversas (e por vezes contraditórias) correntes de psicologia, filosofia e sociologia. É uma evidência de que o filme funciona como um mito moderno, assim como as grandes histórias do passado, ele pode ser interpretado de diversas formas”, explicou o professor Christopher Grau, professor da Universidade da Flórida que coordenou uma seção chamada A filosofia de Matrix no site oficial da franquia, quando do seu lançamento há 18 anos (Superinteressante, 2003).[1: Em alguns conteúdos sobre essa obra, são apontados como cocriadores os Irmãos Wachowski. É que ambos os irmãos são, hoje, mulheres transexuais. ]
Muita gente acreditou que o filme fosse mais uma ficção científica. Mas a narrativa acabou se provando – principalmente, na última década, repletas de eventos drásticos e/ou traumáticos em todo o mundo – a representação de uma realidade que quase sempre não é visível ou clara para a maioria das pessoas em uma sociedade globalizada. “É verdade, os motivos para se indignar atualmente podem parecer menos nítidos [comparando com a Segunda Guerra Mundial e os fenômenos do nazismo e do holocausto], ou o mundo pode parecer complexo demais. Quem comanda, quem decide? Nem sempre é fácil distinguir entre todas as correntes que nos governam. Não lidamos mais com uma pequena elite cujas ações entendemos claramente. É um vasto mundo, no qual sentimos bem em que medida é interdependente. Vivemos em uma interconectividade que nunca existiu antes. Mas nesse mundo há coisas insuportáveis. Para vê-las é preciso olhar bastante, procurar. Digo aos jovens: procurem um pouco, vocês vão encontrar. A pior das atitudes é a indiferença” (Hessel, 2011, pág. 16). Esse trecho é do livreto “Indignai-vos”, do alemão naturalizado francês, Stéphane Hessel, um diplomata da Organização das Nações Unidas (ONU), que foi um pensador profícuo e manteve, até os últimos dos seus mais de 90 anos de vida, o espírito indignado. 
De que coisas insuportáveis fala Hessel? “Precisamos nos manter vigilantes, todos juntos, para que esta continue sendo uma sociedade da qual nos orgulhemos; não a sociedade dos imigrantes sem documento, das expulsões, das suspeitas aos imigrantes; não a sociedade na qual sejam questionadas as aposentadorias, os direitos adquiridos da Previdência Social; não a sociedade na qual a mídia está nas mãos dos ricos – todas essas coisas que teríamos recusado avalizar se fôssemos os verdadeiros herdeiros do Conselho Nacional da Resistência” (Hessel, 2011, pág. 8). Como Morpheus do filme Matrix, o sobrevivente do nazismo e agente da inteligência francesa durante a Segunda Guerra lutou para mostrar às pessoas como olhar para a vida além do óbvio. Pelo fato do indivíduo nascer e ser educado numa determinada morfologia ou uma estrutura social, se acostuma à fisiologia que está reservada ao seu estrato, o que Marx chamou de classe. E o indivíduo, como seu integrante, vai cumprir alguns papéis específicos que lhe cabem nesta classe. [2: Criado clandestinamente em 27 de maio de 1943, em Paris, pelos representantes dos oito grandes movimentos de Resistência e seis principais partidos políticos da Terceira República, o Conselho Nacional da Resistência (CNR) tinha por objetivo tornar mais eficiente a luta contra os nazistas e reforçar sua própria legitimidade diante dos aliados. O general Charles De Gaulle encarregou o Conselho de elaborar um programa de governo prevendo a libertação. O programa foi objeto de várias idas e vindas entre o CNR e o governo da França Livre, antes de ser adotado em assembleia plenária, em 15 de março de 1944 [texto adaptado do livro Indignais-vos!].]
Essa cegueira social é abordada na película. Um dos personagens principais, Morpheus, explica o que é a Matrix e convoca seu interlocutor e, por conseguinte, o espectador, a treinar o seu olhar (e o seu sentir) e se permitir enxergar o que parece sequer existir: “Você deseja saber o que ela é? A Matrix está em todo lugar. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você não visse a verdade. Que você é um escravo. Como todo mundo, você nasceu num cativeiro; nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para uma mente. (...) Infelizmente, é impossível dizer o que é a Matrix. Você tem de ver por si mesmo.” 
É quase impossível não associar o argumento principal do filme aos conceitos clássicos de Marx de superestrutura e infraestrutura, bem como a lógica de funcionamento do capitalismo e a luta de classes, sempre presente como fato central nas relações trabalhistas e na economia. Para Marx, a luta de classes é um elemento constitutivo do capitalismo insubstituível e sempre esteve presente antes mesmo de surgir esse sistema econômico. “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas das classes” (Marx e Engels, 1848). 
As questões são: esse indivíduo que nasceu em determinado estrato social tem uma visão sistêmica e crítica sobre sua condição? Ele consegue perceber se essa condição é justa e corrobora, por exemplo, nos dias atuais, os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos? Sobre essa carta que teve Hessel como um de seus redatores: desde que foi adotada pela Organizações das Nações Unidas (ONU) em 1948, recebeu versões em 500 idiomas, sendo o documento mais traduzido do mundo e inspirou as constituições de muitos Estados e democracias recentes. Os países que integram a ONU são signatários do documento, o que deveria se traduzir no compromisso de por em prática o que ele preconiza. As indagações agora são: todos cumprem a Declaração? E as sociedades conduzidas por cada um desses Estados refletem sobre o cumprimento desses princípios? As respostas para as quatro perguntas acima é, na maioria dos casos, não. O Brasil está, não só incluso, como totalmente mergulhado nesse panorama sombrio. 
Uma rápida leitura na carta constata a situação crítica do brasileiro comum, com pessoas voltando a morrer de fome, enclausuradas em suas comunidades pauperizadas sem qualquer ajuda dos poderes públicos e sofrendo com violência constante sob olhar indiferente dos governantes que recebem representativas quantias em impostos para sanar esses problemas. “Artigo III – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” Julgamentos arbitrários se difundem em todo território nacional: “Artigo XI – 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” Ataque a direitos dos LGBT com propostas advindas do Poder Legislativo perduram: “Artigo XVI – 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.” Subtração flagrante de direitos trabalhistas que são resultado de conquistas históricas de décadas de luta a cada dia se aprofunda: “Artigo XXIV - Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.” Os exemplos para a indignação de Hessel (e de cada brasileiro) com base na Declaração não são poucos. 
Na película repleta de referências mitológicas, Morpheus – não à toa, é o nome do deus grego dos sonhos – é responsável por acordar as pessoas desta realidade que não lhes é clara. Na verdade, o que elemostra é a vida humana, a humanidade inteira, totalmente submetida a uma grande máquina. Cada indivíduo apenas seria bateria para fornecer energia para esse sistema. Em troca, ela daria uma série de Ilusões de uma vida feliz e cheia de prazeres – com alguns problemas e dificuldades para que não parecesse tão perfeita e não viesse a gerar desconfiança. O panis et circenses do imperador Otávio do antigo império romano, que pretendia manter o povo longe das discussões políticas, que já virou um clássico na lógica de dominação de quase todas, se não todas as nações do mundo. O Brasil também não está de fora deste ranking.
O próximo passo é pensar: e se for identificada uma distopia como ocorreu em Matrix, como reverter essa condição? Para Hessel e as Irmãs Wachowski, o caminho está nos movimentos sociais. Vale ressaltar a definição dessa expressão. "Os movimentos sociais, ao contrário, são altamente dinâmicos e de duração temporária. Duram o tempo necessário para atingir o objetivo proposto (...) têm como características comum o fato de possuírem clareza de objetivos, programas que visam atingir esses objetivos e uma ideologia" (Dias, 2012, pág. 140). 
E Hessel, do alto de seus mais de 90 anos de vida – com episódios como fuga de dois campos de concentração nazistas – mostra a sua conclusão sobre esse fenômeno. “É com prazer que constato que, ao longo das últimas décadas, se multiplicaram as organizações não governamentais, os movimentos sociais, como a Attac (Associação para a Taxação das Transações Financeiras), a FIDH (Federação Internacional dos Direitos do Homem), e a Amnesty, que são atuantes e apresentam resultados notáveis. É evidente que, para ser eficiente hoje, é necessário atuar em rede, aproveitar todos os meios de comunicação modernos” (Hessel, 2011, pág. 18). É nesse ponto que a fala de Hessel diverge da fala do personagem Morpheus: a luta deve vir por meio da paz, da resistência intelectual articulada contra toda forma de totalitarismo, para o primeiro; e de uma inevitável guerra bélica, para o segundo. Embora essa guerra possa ser interpretada também como um símbolo, a fim de ressaltar o peso que os cineastas gostariam de dar ao fenômeno revolução. 
Nesta lista, entretanto, o Brasil não parece estar incluso se considerarmos um panorama mundial. Com um cenário político caótico – e que afeta profundamente questões econômicas e sociais –, os grupos que se intitulam movimentos sociais ou não apresentam objetivos claros ou se propõem a causas que não representam a massa e ainda geram simulacros dessa representação. Em ambos os casos, não há força neles para promover transformações sociais. 
Morpheus convocava algumas pessoas – somente aquelas que ele achava que estavam preparadas para esse rompimento – e as convidava a tomar a pílula vermelha para despertar do sono em que viviam dentro da Matrix. Para quem ouvisse toda aquela narrativa assustadora e preferisse se manter no sistema, tinha a opção de tomar a pílula o azul, esquecer todo o diálogo com suas revelações e retornar à vida “tranquila e feliz” que levava. “Talvez tenhamos em Matrix elementos para uma reflexão sobre uma nova ética emancipadora típica dos tempos de sociabilidade regressiva. O que significa que, em tempos de barbárie social é que se exige cada vez mais discernimento contra a manipulação que, na era digital, assume formas candentes; distinção do que é real e imaginário e capacidade ético-moral de escolha como condição para a consciência de si” (Alves, 2004). Onde estaria a capacidade da massa do Brasil de distinguir o real do imaginário com uma cultura do não ler, não estudar, discutir tudo superficialmente e seguir em frente com a oportunista oferta de panis et circenses por governos sucessivos ao longo de décadas?
Para mais uma reflexão comparativa, há que se diferenciar os ajustes e mudanças pontuais de uma sociedade de uma revolução. “O movimento revolucionário é aquele que pretende modificar radicalmente a estrutura social. Os integrantes desse tipo de movimento pretendem subverter completamente o sistema social existente, substituindo-o por outro” (Dias, 2012, pág. 142). Morpheus, no filme, buscava munição para uma revolução por meio de luta armada, a fim de se livrar do domínio das máquinas. Enquanto Hessel pregou uma revolução por meio da paz: uma paz profunda, uma paz inteligente, que toma a alma; uma paz que só poderia existir na era da informação com seu potencial de derrubar ditaduras declaradas ou não; derrubar injustiças, legalizadas ou não; combater desumanidades, humanas ou não. Que caminho o Brasil precisa adotar para sobreviver à dilapidação das forças, dignidade e, até a vida, de seu povo? 
A resposta para essa pergunta pode não estar clara ainda. Mas a trajetória para alcançá-la tem um possível começo: Hessel ministra a pílula vermelha ao homem pós-moderno, não só com sua produção escrita, como também com a sua biografia memorável, repleta de atos verdadeiramente heroicos. E convoca a todos: acordai-vos!
Referências
ALVES, Giovanni. The Matrix in Projeto de Extensão Tela Crítica. Site, online, 2004. [Data de consulta: 22 de outubro de 2017] Disponível em: <http://www.telacritica.org/Matrix.htm>
DIAS, Reinaldo. Sociologia. São Paulo: Pearson Education do Brasil. 2012.
HESSEL, Stéphane. Indignai-nos. Reprodução eletrônica, online, 2011. (Mensanapress) [Data de consulta: 08 de outubro de 2017] Disponível em: <https://pt.slideshare.net/augustodefranco/indignaivos>  [3: Tentei adquirir o livro do Hessel, mas não consegui nem versão física, nem digital (mesmo em copyleft). Por isso recorri uma versão não oficial.]
Revista Superinteressante. Bem-vindo à Matrix. Revista online, 2003 [Data de consulta: 22 de outubro de 2017] Disponível em: <https://super.abril.com.br/historia/bem-vindo-a-matrix/>  
MARX, Karl e Friedrich, ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. LCC Publicações [Copyleft], online, 2014 [Data de consulta: 22 de outubro de 2017] Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/manifestocomunista.htm>
Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Site, online [Rio de Janeiro: UNIC, 2009]. [Data de consulta: 22 de outubro de 2017] Disponível em: <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/>
WACHOWSKI, Lana e Lily (como Irmãos Wachowski). The Matrix. Estados Unidos/Austrália: Warner, 1999.
____________. Matrix reloaded. Estados Unidos/Austrália: Warner, 2003.
____________. Matrix revolutions. Estados Unidos/Austrália: Warner, 2003.

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