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CAPÍTULO 7 Licitação 1. CONCEITO E FINALIDADES Licitação é um procedimento administrativo destinado à seleção da melhor proposta dentre as apresentadas por aqueles que desejam contratar com a Administração Pública. Esse instrumento estriba-se na ideia de competição a ser travada, isonomicamente, entre os que preenchem os atributos e as aptidões necessários ao bom cumprimento das obrigações que se propõem assumir. A licitação tem como finalidade viabilizar a melhor contratação possível para o Poder Público, além de permitir que qualquer um que preencha os requisitos legais tenha a possibilidade de contratar, representando o exercício do princípio da isonomia e da impessoalidade. (...) 3. A licitação é um procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia. Está voltada a um duplo objetivo: o de proporcionar à Administração a possibilidade de realizar o negócio mais vantajoso – o melhor negócio – e o de assegurar aos administrados a oportunidade de concorrerem, em igualdade de condições, à contratação pretendida pela Administração. Imposição do interesse público, seu pressuposto é a competição. Procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia, a função da licitação é a de viabilizar, através da mais ampla disputa, envolvendo o maior número possível de agentes econômicos capacitados, a satisfação do interesse público. A competição visada pela licitação, a instrumentar a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, impõe-se seja desenrolada de modo que reste assegurada a igualdade (isonomia) de todos quantos pretendam acesso às contratações da Administração. 4. A lei pode, sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações, a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra. Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio. 5. A Constituição do Brasil exclui quaisquer exigências de qualificação técnica e econômica que não sejam indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. A discriminação, no julgamento da concorrência, que exceda essa limitação é inadmissível354. Hoje esse procedimento conta com um novo objetivo que foi introduzido pela Lei n. 12.349, de 15.12.2010, conversão da Medida Provisória n. 495/2010, que, por sua vez, acrescentou ao art. 3º da Lei n. 8.666/93, dentre as finalidades buscadas através da licitação, a promoção do desenvolvimento nacional. Veja como ficou o dispositivo: Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional, e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. Esse procedimento apresenta três exigências públicas impostergáveis: a) proteção dos interesses públicos e recursos governamentais; b) respeito aos princípios da isonomia e impessoalidade (art. 5º e art. 37, caput, ambos da CF); c) obediência aos reclames da probidade administrativa (art. 37, caput, e art. 85, V, da CF). 2. COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR A competência para legislar sobre licitação está prevista no art. 22, XXVII, da Constituição Federal, o qual estabelece que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratos administrativos, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, observando o art. 37, inciso XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, observando o art. 173, § 1º, inciso III, todos da CF. Respeitando a previsão acima apontada, caberá à União a definição das normas gerais sobre o assunto, tendo todos os entes competência para legislar sobre normas específicas. Todavia, essas competências legislativas têm abrangências diferentes355. Por exemplo, quando a União cria norma geral, esta é de âmbito nacional, aplicável em todo o território e para todos os entes da federação, o que não acontece na lei que define norma específica, porque só atinge o próprio ente que legislou. Sendo assim, quando a União faz norma geral, todos devem observar e, quando legisla sobre norma específica, essa lei somente será aplicável a ela, o que se denomina lei federal. Entretanto, o grande problema é a definição de quais regras são normas gerais e quais são normas específicas. Para a doutrina, são normas gerais os preceitos que estabelecem os princípios, os fundamentos, as diretrizes, enfim, os critérios básicos conformadores das leis que necessariamente terão de sucedê-las para completar a regência da matéria. Em regra, são preceitos que podem ser aplicados uniformemente em todo o país, vale dizer, são nacionalmente utilizados. Todavia, na prática, a sua identificação não é tão simples assim. Atualmente, são tidas como normas gerais a Lei n. 8.666/93 e a Lei n. 10.520/2002. Para os contratos administrativos, tal rótulo é atribuído à Lei n. 8.987/95 e à Lei n. 11.079/2004. Além dessas regras gerais, que servem para todos os entes e todas as formas de contratação, atualmente o legislador vem definindo normas gerais para contratações específicas, como o que ocorreu com a Lei n. 12.232, de 29.04.2010, que dispõe sobre licitação e contratação pela Administração Pública de serviços de publicidade prestados por intermédio de agências de propaganda, além de outras providências (vide tópico 9.4). Adotando o mesmo raciocínio, no ano de 2011, foi aprovado o RDC – Regime Diferenciado de Contratação –, previsto na Lei n. 12.462, de 05.08.2011, que foi instituído inicialmente, de forma exclusiva, para as licitações e contratos necessários à realização da Copa das Confederações de 2013, da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, além das obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km das cidades sedes dos referidos mundiais. Ocorre, porém, que a lei já sofreu inúmeras alterações, sendo a aplicação do RDC ampliada para novas hipóteses, tais como as licitações e contratos necessários à realização das ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e nas obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino e no Sistema Único de Saúde (SUS), obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma e administração de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo, ações no âmbito da Segurança Pública, obras e serviços de engenharia, relacionadas a melhorias na mobilidade urbana ou ampliação de infraestrutura logística, o RDC também é aplicável às licitações e aos contratos necessários à realização de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino e de pesquisa, ciência e tecnologia, tendo sido incluída recentemente ainda a possibilidade de ser utilizado regime diferenciado nos contratos de locação de bens móveis e imóveis, nos quais o locador realiza prévia aquisição, construçãoou reforma substancial, com ou sem aparelhamento de bens, por si mesmo ou por terceiros, do bem especificado pela administração356. Nesse ponto, ressalte-se ainda a Lei n. 12.598, de 22.03.2012, conversão da Medida Provisória n. 544, de 29.09.2011 que estabelece normas especiais para as compras, as contratações de produtos, de sistemas de defesa, e de desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa, e dispõe sobre regras de incentivo à área estratégica de defesa. Para reforçar essa orientação, analisando alguns dispositivos da Lei n. 8.666/93, o Supremo Tribunal Federal aponta problemas de inconstitucionalidade quanto à abrangência da norma. No julgamento da ADI 927-3357, o STF, em sede de cautelar, reconhece que a União extrapola a sua competência para legislar sobre normas gerais, definindo, também, normas específicas. Nesse caso, a Corte reconhece que certos dispositivos definem normas específicas e, por isso, só são aplicáveis à própria União, representando somente uma lei de âmbito federal, e não nacional, podendo os demais entes também legislar sobre o assunto. Sendo assim, a decisão reconheceu a constitucionalidade dos dispositivos, se interpretados conforme a Constituição. Dessa forma, eles são constitucionais para a União enquanto norma específica e são inconstitucionais para os demais entes, que também gozam dessa competência legislativa. Essa orientação foi aplicada para o art. 17 da lei que cuida sobre alienação de bens públicos, especialmente no caso do inciso I, alíneas “b” e “c”, e § 1º e no inciso II, alínea “b”. Nessa oportunidade, houve a tentativa de definir a extensão do conceito de “normas gerais”, sem que o resultado fosse totalmente satisfatório. Ressalte-se, por fim, que a Lei n. 8.666/93 não esgotou a competência legislativa da União para editar normas gerais sobre a matéria. Nada impede que a União edite outras leis, disciplinando o mesmo tema, o que foi feito com a introdução da Lei do Pregão, Lei n. 10.520/2002. A competência para produzir “normas gerais” não significa o dever de concentrar todas elas em um único diploma legislativo. Também se encontram problemas de inconstitucionalidade nas leis que cuidam das Agências Reguladoras, mais especificamente na Lei n. 9.472/97, que instituiu a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e na Lei n. 9.478/97, que cuida da Agência Nacional de Petróleo (ANP). A Lei n. 9.472/97, que criou a ANATEL, é considerada Lei Geral das Telecomunicações e regulamenta, de forma inconstitucional, as licitações das agências reguladoras. Essa lei também foi objeto de controle de constitucionalidade, por meio da ADI 1.668358, ação que discutiu a inconstitucionalidade de diversos artigos, afastando os dispositivos que atribuíam competência normativa autônoma para a Agência, que é somente uma autoridade administrativa, impedindo que ela disciplinasse a matéria pertinente a contratos e licitações, submetendo essas pessoas jurídicas às regras da Lei n. 8.666/93. Essa lei, apesar do controle pelo STF, ainda mantém algumas regras incompatíveis com o ordenamento jurídico, como é o caso do art. 54, que estabelece modalidades licitatórias específicas, como o pregão e a consulta. Esse dispositivo ficou mantido pela Corte Suprema, consolidando entendimento muito criticado pela doutrina, pois se trata da edição de normas específicas, aplicáveis a uma única entidade, o que é incompatível com o conceito de normas gerais. Atualmente, o pregão deixou de ser modalidade específica, sendo regulado para todos os entes por meio da Lei n. 10.520/2002. No que se refere à Lei n. 9.478/97, as críticas envolvem a Petrobras. A lei autoriza, em seu art. 23, que a Petrobras obedeça à licitação, conforme procedimento previsto na própria lei, autorizando ainda, em seu art. 67, a utilização de um procedimento licitatório simplificado definido pelo Presidente da República, por meio de decreto359. Hoje, tem-se o Decreto Federal n. 2.745, de 24 de agosto de 1998, que trouxe muita discussão quanto à constitucionalidade dessa regra, tendo em vista que a Petrobras não poderia se esquivar do cumprimento do texto constitucional e, por conseguinte, da Lei n. 8.666/93. As críticas colocam-se primeiro, quanto à competência regulamentar e segundo, com a criação de procedimento simplificado somente para “uma empresa” integrante da Administração Indireta, o que contraria o art. 173, § 1º, III, da CF360. Por essas razões, o TCU, decidindo o Processo n. 008.210/2004-7(AC 39/2006), suspendeu a adoção do referido procedimento simplificado para a Petrobras, declarando, assim, a inconstitucionalidade da Lei n. 9.478/97. Em seu acórdão, o Tribunal reconhece que não tem competência para declarar, em abstrato, a inconstitucionalidade de atos normativos, todavia admite que “pode declará-la quando da apreciação, em concreto, de atos normativos e demais atos do Poder Público”. A Petrobras, indignada com a decisão, ajuizou Mandado de Segurança (MS 25.888) em face do Tribunal de Contas da União e obteve liminar no STF que garante à empresa a aplicação do Regulamento de Procedimento Licitatório Simplificado361. A empresa alega que o TCU não tinha competência para declarar inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, salientando que a Súmula n. 347 do STF que estatui: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”, editada em 1963, já estaria ultrapassada em razão de alterações posteriores na Constituição Federal. Em sua decisão, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que “a Emenda Constitucional n. 9/95, apesar de ter mantido o monopólio estatal da atividade econômica relacionada ao petróleo e ao gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, acabou com o monopólio do exercício dessa atividade”. Assim, segundo o ministro, essa emenda permitiu que empresas privadas participassem dessa atividade econômica mediante a celebração de contratos de concessão com a União. “A submissão legal da Petrobras a um regime diferenciado de licitação (previsto na Lei n. 9.478/97) parece estar justificada pelo fato de que, com a relativização do monopólio do petróleo trazida pela EC n. 9/95, a empresa passou a exercer a atividade econômica de exploração do petróleo em regime de livre competição com as empresas privadas concessionárias da atividade, as quais, frise-se, não estão submetidas às regras rígidas de licitação e contratação da Lei n. 8.666/93”, acentuou o Ministro Gilmar Mendes. Acrescentou também que a declaração de inconstitucionalidade do art. 67 da Lei n. 9.478/97 pelo TCU, obrigando a Petrobras a cumprir as exigências da Lei n. 8.666/93, parece estar em confronto com normas constitucionais. Assim, alegando a urgência da cautelar diante das consequências econômicas e políticas que seriam suportadas pela empresa, caso tivesse que cumprir a decisão do TCU, o ministro deferiu a liminar para suspender os efeitos do acórdão daquele Tribunal. Caso o Supremo entenda, em sua decisão definitiva, manter essa orientação, estará criando um novo precedente para as empresas estatais exploradoras da atividade econômica, quando em regime de competição com as empresas privadas, admitindo que estas escapem do regime rigoroso da Lei n. 8.666/93, adotando um procedimento simplificado, o que poderá comprometer a proteção ao interesse público362. 3. SUJEITOS À LICITAÇÃO O procedimentode licitação é obrigatório, conforme previsão do art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93, para os entes e órgãos da Administração Direta, isto é, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Também as pessoas jurídicas que compõem a Administração Indireta têm o dever de licitar. O fundamento é o mesmo art. 22, XXVII, que dá à União a competência para legislar sobre normas gerais. Entretanto, é imperioso diferenciar o regime de licitação entre as pessoas integrantes da Administração Pública. A sistemática padrão da Lei n. 8.666/93 deve ser aplicada à Administração Direta, autárquica363, fundacional, bem como às empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos, como obediência ao art. 37, XXI, da CF. Todavia, as entidades estatais organizadas, segundo padrões empresariais, quando exploradoras da atividade econômica, podem submeter-se a regime próprio, conforme autoriza o art. 173, § 1º, III, da CF. Isso não significa liberá-las das regras sobre licitação e publicidade, mas a possibilidade de adotar regras mais simples, dinâmicas e compatíveis com sua natureza privada. Apesar da possibilidade constitucional de um regime diferente, o estatuto próprio ainda não foi introduzido. Sendo assim, as entidades permanecem sujeitas ao regime da Lei n. 8.666/93, considerando que o art. 37, inciso XXI não as distingue, não se referindo às suas finalidades (prestadoras de serviços públicos ou exploradoras de atividade econômica). Admitindo a aplicação dessa lei, essas empresas poderão editar seus próprios regulamentos, ficando adstritos aos limites da Lei n. 8.666/93, conforme autoriza o art. 119 do mesmo diploma. As empresas também podem contratar diretamente, sem realizar o devido procedimento licitatório, quando caracterizada a hipótese de dispensa ou a de inexigibilidade, previstas na própria lei, o que se verifica em tópico seguinte. Os fundos especiais também estão na lista dos obrigados a licitar, o que parece uma impropriedade do legislador, visto que, em princípio, a expressão indica certas rubricas orçamentárias ou mera destinação de verbas. “O ‘fundo’ não se constitui em sujeito de direito autônomo. Trata-se de um conjunto de bens e recursos, de titularidade de um determinado sujeito. Portanto, o fundo é objeto de direito, não sujeito”364. Entretanto, excepcionalmente, esses fundos podem ser personificados como autarquias ou fundações públicas, incluindo-se na estrutura da Administração Indireta. Nas hipóteses em que o fundo não tem personalidade, ele não poderá celebrar contrato, sendo parte o gestor do fundo. Por fim, também estão sujeitos à licitação os demais entes controlados direta ou indiretamente pelo Poder Público. A expressão “controle” deve ser interpretada da forma mais ampla possível. Para as organizações sociais (OS), instituídas pela Lei n. 9.637/98, há previsão de dispensa de licitação no art. 24, inciso XXIV, da Lei n. 8.666/93. No entanto, a doutrina sempre interpretou com cautela esse dispositivo, estabelecendo que o texto não afasta a necessidade de licitação para a celebração do contrato principal, denominado contrato de gestão ou contrato-mãe, celebrado com as entidades públicas, dispensando-as, no entanto, para os demais contratos dele decorrentes e já preestabelecidos. A Lei n. 9.637/98 está sendo objeto de controle de constitucionalidade por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923. Na ação, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) questionam a disposição sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, bem como o inciso XXIV do art. 24 da Lei n. 8.666/93 (Lei das Licitações), com a redação dada pela Lei n. 9.648/98, que introduziu uma dispensa de licitação para essas organizações. Apesar da grande divergência, o plenário da Casa decidiu indeferir a medida cautelar reconhecendo a ausência dos pressupostos necessários para seu deferimento, ou seja, o fumus boni iuris e o periculum in mora, especialmente em razão do longo intervalo entre sua publicação em 1998 e o julgamento da medida. Julgado o mérito, a Suprema Corte por maioria de votos, deu interpretação conforme a Constituição às normas que dispensam licitação para a celebração desses contratos de gestão. Entretanto, tais convênios devem ser conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância aos princípios previstos no art. 37 da Constituição Federal. Eis a decisão publicada em 17.12.2015: Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TERCEIRO SETOR. MARCO LEGAL DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS. LEI N. 9.637/98 E NOVA REDAÇÃO, CONFERIDA PELA LEI N. 9.648/98, AO ART. 24, XXIV, DA LEI N. 8.666/93. MOLDURA CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO E SOCIAL. SERVIÇOS PÚBLICOS SOCIAIS. SAÚDE (ART. 199, CAPUT), EDUCAÇÃO (ART. 209, CAPUT), CULTURA (ART. 215), DESPORTO E LAZER (ART. 217), CIÊNCIA E TECNOLOGIA (ART. 218) E MEIO AMBIENTE (ART. 225). ATIVIDADES CUJA TITULARIDADE É COMPARTILHADA ENTRE O PODER PÚBLICO E A SOCIEDADE. DISCIPLINA DE INSTRUMENTO DE COLABORAÇÃO PÚBLICO-PRIVADA. INTERVENÇÃO INDIRETA. ATIVIDADE DE FOMENTO PÚBLICO. INEXISTÊNCIA DE RENÚNCIA AOS DEVERES ESTATAIS DE AGIR. MARGEM DE CONFORMAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE ATRIBUÍDA AOS AGENTES POLÍTICOS DEMOCRATICAMENTE ELEITOS. PRINCÍPIOS DA CONSENSUALIDADE E DA PARTICIPAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 175, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO. EXTINÇÃO PONTUAL DE ENTIDADES PÚBLICAS QUE APENAS CONCRETIZA O NOVO MODELO. INDIFERENÇA DO FATOR TEMPORAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO DEVER CONSTITUCIONAL DE LICITAÇÃO (CF, ART. 37, XXI). PROCEDIMENTO DE QUALIFICAÇÃO QUE CONFIGURA HIPÓTESE DE CREDENCIAMENTO. COMPETÊNCIA DISCRICIONÁRIA QUE DEVE SER SUBMETIDA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PUBLICIDADE, MORALIDADE, EFICIÊNCIA E IMPESSOALIDADE, À LUZ DE CRITÉRIOS OBJETIVOS (CF, ART. 37, CAPUT). INEXISTÊNCIA DE PERMISSIVO À ARBITRARIEDADE. CONTRATO DE GESTÃO. NATUREZA DE CONVÊNIO. CELEBRAÇÃO NECESSARIAMENTE SUBMETIDA A PROCEDIMENTO OBJETIVO E IMPESSOAL. CONSTITUCIONALIDADE DA DISPENSA DE LICITAÇÃO INSTITUÍDA PELA NOVA REDAÇÃO DO ART. 24, XXIV, DA LEI DE LICITAÇÕES E PELO ART. 12, § 3º, DA LEI N. 9.637/98. FUNÇÃO REGULATÓRIA DA LICITAÇÃO. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE, DA PUBLICIDADE, DA EFICIÊNCIA E DA MOTIVAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE EXIGÊNCIA DE LICITAÇÃO PARA OS CONTRATOS CELEBRADOS PELAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS COM TERCEIROS. OBSERVÂNCIA DO NÚCLEO ESSENCIAL DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (CF, ART. 37, CAPUT). REGULAMENTO PRÓPRIO PARA CONTRATAÇÕES. INEXISTÊNCIA DE DEVER DE REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO PARA CONTRATAÇÃO DE EMPREGADOS. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IMPESSOALIDADE, ATRAVÉS DE PROCEDIMENTO OBJETIVO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS CEDIDOS. PRESERVAÇÃO DO REGIME REMUNERATÓRIO DA ORIGEM. AUSÊNCIA DE SUBMISSÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PARA O PAGAMENTO DE VERBAS, POR ENTIDADE PRIVADA, A SERVIDORES. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 37, X, E 169, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO. CONTROLES PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRESERVAÇÃO DO ÂMBITO CONSTITUCIONALMENTE DEFINIDO PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE EXTERNO (CF, ARTS. 70, 71, 74 E 127 E SEGUINTES). INTERFERÊNCIA ESTATAL EM ASSOCIAÇÕES E FUNDAÇÕES PRIVADAS (CF, ART. 5º, XVII E XVIII). CONDICIONAMENTOÀ ADESÃO VOLUNTÁRIA DA ENTIDADE PRIVADA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À CONSTITUIÇÃO. AÇÃO DIRETA JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE PARA CONFERIR INTERPRETAÇÃO CONFORME AOS DIPLOMAS IMPUGNADOS. 1. A atuação da Corte Constitucional não pode traduzir forma de engessamento e de cristalização de um determinado modelo pré-concebido de Estado, impedindo que, nos limites constitucionalmente assegurados, as maiorias políticas prevalecentes no jogo democrático pluralista possam pôr em prática seus projetos de governo, moldando o perfil e o instrumental do poder público conforme a vontade coletiva. 2. Os setores de saúde (CF, art. 199, caput), educação (CF, art. 209, caput), cultura (CF, art. 215), desporto e lazer (CF, art. 217), ciência e tecnologia (CF, art. 218) e meio ambiente (CF, art. 225) configuram serviços públicos sociais, em relação aos quais a Constituição, ao mencionar que “são deveres do Estado e da Sociedade” e que são “livres à iniciativa privada”, permite a atuação, por direito próprio, dos particulares, sem que para tanto seja necessária a delegação pelo poder público, de forma que não incide, in casu, o art. 175, caput, da Constituição. 3. A atuação do poder público no domínio econômico e social pode ser viabilizada por intervenção direta ou indireta, disponibilizando utilidades materiais aos beneficiários, no primeiro caso, ou fazendo uso, no segundo caso, de seu instrumental jurídico para induzir que os particulares executem atividades de interesses públicos através da regulação, com coercitividade, ou através do fomento, pelo uso de incentivos e estímulos a comportamentos voluntários. 4. Em qualquer caso, o cumprimento efetivo dos deveres constitucionais de atuação estará, invariavelmente, submetido ao que a doutrina contemporânea denomina de controle da Administração Pública sob o ângulo do resultado (Diogo de Figueiredo Moreira Neto). 5. O marco legal das Organizações Sociais inclina-se para a atividade de fomento público no domínio dos serviços sociais, entendida tal atividade como a disciplina não coercitiva da conduta dos particulares, cujo desempenho em atividades de interesse público é estimulado por sanções premiais, em observância aos princípios da consensualidade e da participação na Administração Pública. 6. A finalidade de fomento, in casu, é posta em prática pela cessão de recursos, bens e pessoal da Administração Pública para as entidades privadas, após a celebração de contrato de gestão, o que viabilizará o direcionamento, pelo Poder Público, da atuação do particular em consonância com o interesse público, através da inserção de metas e de resultados a serem alcançados, sem que isso configure qualquer forma de renúncia aos deveres constitucionais de atuação. 7. Na essência, preside a execução deste programa de ação institucional a lógica que prevaleceu no jogo democrático, de que a atuação privada pode ser mais eficiente do que a pública em determinados domínios, dada a agilidade e a flexibilidade que marcam o regime de direito privado. 8. Os arts. 18 a 22 da Lei n. 9.637/98 apenas concentram a decisão política, que poderia ser validamente feita no futuro, de afastar a atuação de entidades públicas através da intervenção direta para privilegiar a escolha pela busca dos mesmos fins através da indução e do fomento de atores privados, razão pela qual a extinção das entidades mencionadas nos dispositivos não afronta a Constituição, dada a irrelevância do fator tempo na opção pelo modelo de fomento – se simultaneamente ou após a edição da Lei. 9. O procedimento de qualificação de entidades, na sistemática da Lei, consiste em etapa inicial e embrionária, pelo deferimento do título jurídico de “organização social”, para que Poder Público e particular colaborem na realização de um interesse comum, não se fazendo presente a contraposição de interesses, com feição comutativa e com intuito lucrativo, que consiste no núcleo conceitual da figura do contrato administrativo, o que torna inaplicável o dever constitucional de licitar (CF, art. 37, XXI). 10. A atribuição de título jurídico de legitimação da entidade através da qualificação configura hipótese de credenciamento, no qual não incide a licitação pela própria natureza jurídica do ato, que não é contrato, e pela inexistência de qualquer competição, já que todos os interessados podem alcançar o mesmo objetivo, de modo includente, e não excludente. 11. A previsão de competência discricionária no art. 2º, II, da Lei n. 9.637/98 no que pertine à qualificação tem de ser interpretada sob o influxo da principiologia constitucional, em especial dos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art. 37, caput). É de se ter por vedada, assim, qualquer forma de arbitrariedade, de modo que o indeferimento do requerimento de qualificação, além de pautado pela publicidade, transparência e motivação, deve observar critérios objetivos fixados em ato regulamentar expedido em obediência ao art. 20 da Lei n. 9.637/98, concretizando de forma homogênea as diretrizes contidas nos inc. I a III do dispositivo. 12. A figura do contrato de gestão configura hipótese de convênio, por consubstanciar a conjugação de esforços com plena harmonia entre as posições subjetivas, que buscam um negócio verdadeiramente associativo, e não comutativo, para o atingimento de um objetivo comum aos interessados: a realização de serviços de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, meio ambiente e ciência e tecnologia, razão pela qual se encontram fora do âmbito de incidência do art. 37, XXI, da CF. 13. Diante, porém, de um cenário de escassez de bens, recursos e servidores públicos, no qual o contrato de gestão firmado com uma entidade privada termina por excluir, por consequência, a mesma pretensão veiculada pelos demais particulares em idêntica situação, todos almejando a posição subjetiva de parceiro privado, impõe-se que o Poder Público conduza a celebração do contrato de gestão por um procedimento público impessoal e pautado por critérios objetivos, por força da incidência direta dos princípios constitucionais da impessoalidade, da publicidade e da eficiência na Administração Pública (CF, art. 37, caput). 14. As dispensas de licitação instituídas no art. 24, XXIV, da Lei n. 8.666/93 e no art. 12, § 3º, da Lei n. 9.637/98 têm a finalidade que a doutrina contemporânea denomina de função regulatória da licitação, através da qual a licitação passa a ser também vista como mecanismo de indução de determinadas práticas sociais benéficas, fomentando a atuação de organizações sociais que já ostentem, à época da contratação, o título de qualificação, e que por isso sejam reconhecidamente colaboradoras do Poder Público no desempenho dos deveres constitucionais no campo dos serviços sociais. O afastamento do certame licitatório não exime, porém, o administrador público da observância dos princípios constitucionais, de modo que a contratação direta deve observar critérios objetivos e impessoais, com publicidade de forma a permitir o acesso a todos os interessados. 15. As organizações sociais, por integrarem o Terceiro Setor, não fazem parte do conceito constitucional de Administração Pública, razão pela qual não se submetem, em suas contratações com terceiros, ao dever de licitar, o que consistiria em quebra da lógica de flexibilidade do setor privado, finalidade por detrás de todo o marco regulatório instituído pela Lei. Por receberem recursos públicos, bens públicos e servidores públicos, porém, seu regimejurídico tem de ser minimamente informado pela incidência do núcleo essencial dos princípios da Administração Pública (CF, art. 37, caput), dentre os quais se destaca o princípio da impessoalidade, de modo que suas contratações devem observar o disposto em regulamento próprio (Lei n. 9.637/98, art. 4º, VIII), fixando regras objetivas e impessoais para o dispêndio de recursos públicos. 16. Os empregados das Organizações Sociais não são servidores públicos, mas sim empregados privados, por isso que sua remuneração não deve ter base em lei (CF, art. 37, X), mas nos contratos de trabalho firmados consensualmente. Por identidade de razões, também não se aplica às Organizações Sociais a exigência de concurso público (CF, art. 37, II), mas a seleção de pessoal, da mesma forma como a contratação de obras e serviços, deve ser posta em prática através de um procedimento objetivo e impessoal. 17. Inexiste violação aos direitos dos servidores públicos cedidos às organizações sociais, na medida em que preservado o paradigma com o cargo de origem, sendo desnecessária a previsão em lei para que verbas de natureza privada sejam pagas pelas organizações sociais, sob pena de afronta à própria lógica de eficiência e de flexibilidade que inspiraram a criação do novo modelo. 18. O âmbito constitucionalmente definido para o controle a ser exercido pelo Tribunal de Contas da União (CF, arts. 70, 71 e 74) e pelo Ministério Público (CF, arts. 127 e seguintes) não é de qualquer forma restringido pelo art. 4º, caput, da Lei n. 9.637/98, porquanto dirigido à estruturação interna da organização social, e pelo art. 10 do mesmo diploma, na medida em que trata apenas do dever de representação dos responsáveis pela fiscalização, sem mitigar a atuação de ofício dos órgãos constitucionais. 19. A previsão de percentual de representantes do poder público no Conselho de Administração das organizações sociais não encerra violação ao art. 5º, XVII e XVIII, da Constituição Federal, uma vez que dependente, para concretizar-se, de adesão voluntária das entidades privadas às regras do marco legal do Terceiro Setor. 20. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido é julgado parcialmente procedente, para conferir interpretação conforme à Constituição, à Lei n. 9.637/98 e ao art. 24, XXIV, da Lei n. 8666/93, incluído pela Lei n. 9.648/98, para que: (i) o procedimento de qualificação seja conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e de acordo com parâmetros fixados em abstrato segundo o que prega o art. 20 da Lei n. 9.637/98; (ii) a celebração do contrato de gestão seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iii) as hipóteses de dispensa de licitação para contratações (Lei n. 8.666/93, art. 24, XXIV) e outorga de permissão de uso de bem público (Lei n. 9.637/98, art. 12, § 3º) sejam conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iv) os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; (v) a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; e (vi) para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas (ADI 1.923, STF – Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, Relator p/ Acórdão: Min. Luiz Fux, julgamento 16.04.2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe 17.12.2015). Para as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), aplica-se o mesmo raciocínio utilizado para o contrato de gestão nas organizações sociais, pois são instrumentos de natureza similar. A Lei n. 13.019/2014 introduziu em nosso ordenamento jurídico as denominadas parcerias. Essa lei permite que a administração pública realize, em regime de mútua cooperação, um conjunto de direitos, responsabilidade e obrigações decorrentes de uma relação jurídica estabelecida formalmente entre o poder público e organizações da sociedade civil, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividade ou de projeto expressos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação. O marco regulatório havia estabelecido inicialmente um procedimento obrigatório denominado “chamamento público” para selecionar a organização da sociedade civil, tornando-a apta a receber recursos públicos. O chamamento público está conceituado na Lei, em seu art. 2º, XII, que assim dispõe: (...) XII – chamamento público: procedimento destinado a selecionar organização da sociedade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos; No entanto, com o advento da Lei n. 13.204/2015, as regras para o chamamento público foram flexibilizadas, mantendo-se, entretanto, a sua essência, como por exemplo o rol no art. 30 das situações em que a Administração poderá dispensar o procedimento e, no art. 31, as hipóteses de inexigibilidade, determinando em qualquer desses casos uma justificativa detalhada. O diploma legislativo também define todas as regras para a realização do chamamento desde a elaboração do edital até o julgamento das propostas, dispondo de normas que se assemelham em muito ao processo licitatório (vide Capítulo 4). No caso dos serviços sociais autônomos – segundo entendimento do TCU – essas pessoas jurídicas, se realmente tiverem natureza de serviço social, não sendo um mero uso da terminologia, estão sujeitas à licitação. Entretanto, não precisam obedecer, na íntegra, à Lei n. 8.666/93, sendo possível a definição de um regulamento próprio de licitações e contratações administrativas, com regras próprias simplificadas, previamente aprovadas pelo TCU (o Regulamento Simplificado do Sistema “S” foi aprovado no julgamento dos autos TC – 001.620/98-3, publicado no DOU de 07.08.1998)365. Para esclarecer a necessidade de licitação nessas pessoas jurídicas elucidativas são as palavras de Marçal Justen Filho366: “é problemático identificar as atividades por elas desenvolvidas àquela atuação peculiar e própria do Estado, inclusive porque sua submissão aos postulados inerentes à organização administrativa poderia resultar na frustração de seus fins institucionais”. No mesmo sentido, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes367 orienta que o mesmo raciocínio aplicado aos serviços sociais autônomos deve ser utilizado nessas entidades, reconhecendo que, na medida em que são gestores de recursos de origem pública, devem prestar contas ao TCU e submeter-se à Lei n. 8.666/93, enquanto não tiverem adotado regulamento simplificado próprio368. 4. PRINCÍPIOS BÁSICOS O procedimento licitatório deve observar todos os princípios constitucionais e alguns princípios específicos, conforme apontado no art. 3º da Lei n. 8.666/93.O primeiro princípio indispensável é o da legalidade que, além de estar no rol do citado artigo, encontra-se definido no art. 4º. O texto legal garante a todos o direito subjetivo de participar de um procedimento licitatório que obedeça fielmente à lei, permitindo, ainda, que qualquer cidadão acompanhe o seu desenvolvimento, desde que não perturbe ou prejudique os trabalhos. Em decorrência desse princípio, a doutrina também aponta o princípio do procedimento formal, devendo o administrador observar todas as formalidades exigidas pela lei, sob pena de nulidade da licitação, representando, assim, um procedimento vinculado (art. 4º, parágrafo único). Ressalte-se, entretanto, que a jurisprudência só reconhece como nulidade a ausência de formalidade que realmente causar prejuízo para o licitante ou para o interesse público369. Também deve ser observado na licitação o princípio da impessoalidade, que representa a própria finalidade desse instrumento, impedindo o favoritismo, exigindo que todos sejam tratados com absoluta neutralidade, o que também representa uma forma de designar o princípio da igualdade perante a Administração. No que tange à isonomia, também se exige o tratamento igualitário entre os licitantes, consoante previsto no § 1º do art. 3º dessa lei e no art. 37, XXI, da CF, sendo vedado tratamento diferenciado entre eles. A violação a esse princípio caracteriza desvio de poder e até crime da própria Lei de Licitações. Entretanto, hoje, frente a nova finalidade da licitação, que é promover o desenvolvimento nacional, esse dispositivo também sofreu alterações e passou a permitir algumas ressalvas, regra resultante da Lei n. 12.349/2010 e da Lei Complementar n. 147, publicada em 08.08.2014. A Lei Complementar n. 147, dentre outras disposições, inseriu ao art. 3º os §§ 14 e 15, que estabelecem expressamente o tratamento privilegiado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte370, com a seguinte redação: (...) § 14. As preferências definidas neste artigo e nas demais normas de licitação e contratos devem privilegiar o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei. (Incluído pela Lei Complementar n. 147, de 07.08.2014) § 15. As preferências dispostas neste artigo prevalecem sobre as demais preferências previstas na legislação quando estas forem aplicadas sobre produtos ou serviços estrangeiros. (Incluído pela Lei Complementar n. 147, de 07.08.2014) O art. 3º supracitado, com a redação estipulada pela Lei n. 12.349/2010, estabelece, entre os §§ 5º a 12, um regime de preferência em favor de produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras (§ 5º) assim como de produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País (§ 7º) com a finalidade de assegurar proteção à indústria nacional e incentivar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico interno. Com a inserção dos §§ 14 e 15 ao artigo 3º, o regime de preferência nele instituído, quando adotado, deverá ser compatibilizado com o tratamento privilegiado conferido às microempresas e empresas de pequeno porte. Acrescente-se ainda que tal regra foi reforçada com a inserção do art. 5º-A que expressamente dispõe que “as normas de licitações e contratos devem privilegiar o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei”. Outro ponto relevante trazido pela LC n. 147/2014 foi a revogação do art. 49 da Lei Complementar n. 123/2006 deixando de existir, atualmente, a exigência de previsão em instrumento convocatório para os critérios de tratamento diferenciado e simplificado. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146/2015, também instituiu normas estabelecendo tratamento diferenciado às empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos para pessoa com deficiência ou reabilitado da Previdência Social. Foi introduzido o inciso V no § 2º do art. 3º, acrescentando-se mais uma norma de desempate, qual seja: § 2º Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços: (...) V – produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação. Além desta alteração, o § 5º passou a ter nova redação, sendo admitida nos processos de licitação margem de preferência para produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras, bem como para bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação371. A Lei de Licitações, além de exigir a observância ao princípio da isonomia, estabelece também ser vedado aos agentes públicos admitir, prever incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvadas duas possibilidades. Reiterando que há possibilidade de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras, atendidos os parâmetros previstos nos §§ 6º a 12 do art. 3º da Lei n. 8.666/93372. Além das restrições que ocorrem nas licitações atinentes a bens e serviços de informática e automação, previstas no art. 3º da Lei n. 8.248/91. A Administração deverá observar, igualmente, os princípios da moralidade e da probidade administrativa, que exigem a observância dos padrões éticos e morais, da correção de atitudes, da lealdade e da boa-fé. A licitação, assim como qualquer outro procedimento administrativo, deverá observar o princípio da publicidade373, permitindo o conhecimento pelos interessados, bem como o controle pelos administrados. Em razão desse princípio, os atos e termos da licitação, inclusive a motivação, devem ser expostos ao conhecimento de quaisquer interessados, devendo suas sessões ser realizadas de portas abertas, como ato público (art. 3º, § 3º; art. 4º; e art. 43, § 1º, todos da Lei n. 8.666/93). A Lei n. 12.527, de 18.11.2011, que regulamentou o art. 37, § 3º, inciso II, da Constituição Federal, dispõe, no inciso VI do art. 7º, que o acesso à informação compreende, entre outros, os direitos de obter informação pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos, licitação, contratos administrativos. Quanto ao controle, tem-se que: qualquer cidadão poderá requerer os quantitativos sobre determinadas obras, bem como impugnar o edital de licitação (art. 7º, § 8º, e art. 41, § 1º, todos da Lei n. 8.666/93); os preços registrados na Administração deverão ser publicados trimestralmente, o que também poderá ser impugnado pelo cidadão (art. 15, §§ 2º e 6º, da mesma lei); todas as compras da Administração deverão ser mensalmente divulgadas (art. 16 daquela norma); além da possibilidade que tem qualquer licitante – contratado ou pessoa física ou jurídica – de representar juntoao Tribunal de Contas e demais órgãos de controle. (art. 113, § 1º, do mesmo diploma). Excepcionando a regra da publicidade, encontra-se o princípio do sigilo de proposta, obrigando a lei que todas as propostas sejam sigilosas até o momento de sua abertura em sessão pública, não podendo ninguém conhecer o seu conteúdo, exceto o próprio licitante que a apresentou. A violação do dever de sigilo, devassando o seu conteúdo ou permitindo que alguém o faça, caracteriza crime previsto no art. 94 da própria Lei de Licitações, além da tipificação de improbidade administrativa, prevista no art. 10, VIII, da Lei n. 8.429/92. Como princípio específico da licitação, tem-se a vinculação ao instrumento convocatório. Tal instrumento é, em regra, o edital, exceto no convite, que é a carta-convite. Assim o edital é dito a lei interna da licitação e deve definir tudo que é importante para o certame, não podendo o Administrador exigir nem mais, nem menos do que está previsto nele. Na elaboração do edital, o Administrador tem liberdade, há uma discricionariedade ampla; entretanto, após sua publicação, ele ficará estritamente vinculado às normas estabelecidas neste edital (art. 41 da lei). O procedimento licitatório também deve obedecer ao princípio do julgamento objetivo, devendo o edital estabelecer, de forma clara e precisa, qual será o critério para a seleção da proposta vencedora, denominado “tipo de licitação”. Os possíveis critérios estão previstos no art. 45 da Lei n. 8.666/93, que admite o “menor preço”, a “melhor técnica”, a “melhor técnica e preço” e o “maior lance” para o leilão, não se admitindo a utilização de outros critérios, exceto no caso do concurso. Escolhido o critério, a Comissão de licitação não poderá levar em consideração outros fatores não previstos no edital. Todavia, reconhece-se que essa objetividade nem sempre é absoluta, especialmente quando se exige qualificação técnica, sendo somente possível nos certames decididos unicamente pelo preço. Vale ressaltar que frente ao princípio da legalidade, e em sua decorrência, dos princípios da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo, a discricionariedade do Administrador Público, no que tange às regras da licitação, se esgota com a elaboração do edital de convocação, uma vez publicado tal ato, o cumprimento de suas exigências é medida vinculada, não podendo a comissão de licitação modificá-las374. Também se reconhece como princípio pertinente à licitação o sigilo de proposta, devendo as propostas serem apresentadas em envelopes lacrados e mantidas em sigilo até o momento determinado para sua abertura em sessão pública. Violar o sigilo de proposta representa improbidade administrativa e crime na licitação. Excetuando essa regra, tem-se a modalidade leilão, hipótese em que os lances são verbais e, portanto, não há esse cuidado. É relevante incluir também nessa lista o princípio do procedimento formal que determina que o processo licitatório deve atender a todas as formalidades da lei, não podendo o Administrador inventar uma nova modalidade de licitação, nem mesmo misturar duas modalidades em um só certame. Afasta-se ainda a possibilidade de se pular uma fase ou inventar uma etapa nova. Assim, o procedimento deve seguir inteiramente a previsão legal. Apesar de tal formalismo, é importante lembrar que elas devem ser necessárias, evitando prejuízos às partes e ao interesse público, considerando que formalidade por mera formalidade não se justifica, as medidas devem ser as necessárias. Também o reconhecimento de nulidade de um processo licitatório por desatendimento ao formalismo só deve prosperar quando a ausência da exigência causar prejuízos aos licitantes ou à Administração Pública375. Para Celso Antônio Bandeira de Mello376, “são princípios cardeais”, peculiares, “de relevo invulgar” para a licitação: “a) competitividade; b) isonomia; c) publicidade; d) respeito às condições prefixadas no edital; e e) possibilidade de o disputante fiscalizar a obediência dos anteriores”. Contudo, o autor reconhece que o assunto é bastante divergente na doutrina brasileira, havendo dissenção entre os autores quanto ao número de princípios da licitação. 5. CONTRATAÇÃO DIRETA – DISPENSA E INEXIGIBILIDADE Para a doutrina brasileira, a Constituição acolheu a presunção absoluta de que a realização de prévia licitação produz a melhor contratação, porque assegura a maior vantagem possível à Administração Pública, com observância de princípios como isonomia e impessoalidade. Todavia, o art. 37, inciso XXI, da CF limita essa presunção, permitindo a contratação direta sem a realização do certame nas hipóteses ressalvadas na legislação. Desse modo, a contratação direta não representa desobediência aos princípios constitucionais. A legislação anterior previa três hipóteses de contratação direta: a vedação (licitação proibida), a dispensa e a inexigibilidade. Com o advento da Lei n. 8.666/93, as hipóteses ficaram mais restritas, resumindo-se em dispensa e inexigibilidade, consoante a presença dos pressupostos e requisitos legais. Quando a disputa for inviável, o certame será inexigível. De outro lado, a dispensa pressupõe uma licitação “exigível” que só não ocorrerá por vontade do legislador. Em termos práticos, o administrador deverá verificar primeiramente se a licitação é exigível ou inexigível, conforme a possibilidade ou não de competição. Sendo assim, afastada a inexigibilidade, passará a verificar a presença dos pressupostos de dispensa da licitação. Ressalte-se, ainda, que a contratação direta, sem a realização de licitação, não é sinônimo de contratação informal, não podendo a Administração contratar quem quiser, sem as devidas formalidades, o que é denominado procedimento de justificação, previsto no art. 26 da lei377. Visando impedir a fraudulenta utilização dos dispositivos que autorizam a contratação direta, o administrador deverá cumprir alguns requisitos. Na etapa interna do procedimento, a Administração deve: identificar a necessidade, fixar o objeto e definir recursos orçamentários, o que acontecerá independentemente da realização ou não do procedimento licitatório. Em seguida, o administrador deverá não apenas justificar a presença dos pressupostos da ausência de licitação, com a respectiva documentação, como também apresentar o fundamento da escolha de um determinado contratante e de uma específica proposta. Essas circunstâncias devem ser comunicadas à autoridade superior em três dias, para que essa autoridade realize a ratificação e a publicação na imprensa oficial no prazo de cinco dias, como condição de eficácia do ato. O citado procedimento de justificação deve ser aplicado nos casos do art. 17, §§ 2º e 4º, no art. 24, incisos III e seguintes, e nos casos do art. 25, com previsão no art. 26, caput, com a redação dada pela Lei n. 11.107/2005. O processo de justificação para contratação direta deve ser instruído com os seguintes elementos: caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso; razão da escolha do fornecedor ou executante; justificativa do preço; e o documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados. A contratação direta, sem a presença dos requisitos de dispensa ou inexigibilidade ou a utilização dessas, sem a devida justificação, caracteriza crime definido no art. 89 da Lei n. 8.666/93, com penade detenção de três a cinco anos e multa. Nas contratações diretas, não há qualquer impedimento para que o administrador tome providências para a escolha da melhor proposta, utilizando-se de regras de competitividade mais simples que as exigidas na licitação. Para a viabilidade e a exigibilidade de um procedimento licitatório, exige-se, obrigatoriamente, a presença dos pressupostos da licitação, bem como de um objeto licitável, caso contrário, é impossível sua realização. 5.1. Inexigibilidade A contratação direta, em caso de inexigibilidade de licitação, resulta da inviabilidade de competição, o que decorre da ausência dos pressupostos que justificam a sua realização. 5.1.1. Pressupostos para a realização da licitação Para a realização da licitação, exige-se a presença de três pressupostos: a) Pressuposto lógico Este pressuposto exige a pluralidade de objetos e de ofertantes, pois, caso contrário, a competição não terá qualquer sentido e a licitação será inviável. Ocorrerá essa hipótese quando o objeto ou o serviço for singular e, ainda, quando se tratar de produtor ou fornecedor exclusivo. b) Pressuposto jurídico A licitação tem que ser um meio apto para a Administração perseguir o interesse público. Caso o procedimento coloque em risco esse interesse, ele será inviável, já que a licitação não pode prejudicar o que deve proteger. Ela não é um fim em si mesma, mas um meio, um instrumento para a proteção do interesse coletivo, não devendo jamais prejudicá-lo. Verifica-se a hipótese de inexigibilidade no caso das empresas públicas e sociedades de economia mista que estão obrigadas a licitar. De acordo com o já explicado no Capítulo 3 deste estudo, essas empresas estatais podem ser constituídas para a prestação de serviços públicos e para a exploração da atividade econômica. Tratando-se de prestação de serviços públicos, elas perseguem o interesse coletivo. O mesmo ocorre quando exploram a atividade econômica, tendo em vista que o texto constitucional estabelece, em seu art. 173, que o Estado não intervirá na atividade econômica, exceto no caso dessas empresas, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, caracterizando, sem dúvida alguma, proteção do interesse público. Para essas empresas que precisam competir com a iniciativa privada, a licitação nem sempre é compatível com as exigências do mercado. Sendo assim, a licitação será inexigível quando inviabilizar o desempenho das atividades específicas para as quais foi instituída a entidade, a denominada “atividade-fim”, porque estará prejudicando o próprio interesse público que justificou a sua criação, causando a ausência de pressuposto jurídico. O caso é peculiar nas atividades tipicamente comerciais, que demandem a agilidade e a rapidez dos procedimentos comuns da vida comercial, o que muitas vezes é incompatível com o formalismo e a demora do procedimento licitatório378. O tratamento diferenciado, segundo Marçal Justen Filho379, pode ser aplicado tanto para as exploradoras da atividade econômica quanto para as prestadoras de serviços públicos que atuem no mercado. Basta que a empresa estatal tenha que disputar com as empresas privadas e, portanto, precise assegurar aos administrados condições de competitividade. c) Pressuposto fático Exige a presença de interessados no objeto da licitação. A inexistência de interessados para disputá- la, nos casos em que tal interesse não seja atrativo para o mercado, impede a realização da licitação. Nessa hipótese, os possíveis prestadores do serviço almejado pela Administração simplesmente não se engajariam na disputa dele, em certame licitatório, inexistindo, pois, quem, com as aptidões necessárias, se dispusesse a disputar o objeto do certame. Por exemplo, a necessidade de contratação de um cirurgião cardíaco de alta qualificação para atendimento de necessidades emergenciais em hospital público com baixa remuneração. A enumeração desses pressupostos é bastante divergente. A primeira divergência é quanto ao nome, e a segunda, quanto às consequências causadas pela sua ausência. Para a maioria da doutrina, a ausência de qualquer dos pressupostos levará à inviabilidade da competição e, portanto, à inexigibilidade da licitação, e não à dispensa como defendem alguns doutrinadores. 5.1.2. Objeto licitável e a pluralidade Para a viabilidade da competição, conforme já apontado, exige-se a pluralidade de objetos, portanto, não é possível competição se o bem é singular. Também não se licitam coisas desiguais. Para o procedimento licitatório, além da pluralidade, os bens existentes devem ser homogêneos, intercambiáveis e equivalentes. O mesmo raciocínio deve ser aplicado para os ofertantes. Logo, haverá inexistência de pressuposto lógico e a consequente inexigibilidade de licitação quando: a) o objeto pretendido é singular (bem ou serviço singular); b) só há um ofertante: há vários objetos, mas todos disponíveis por um único sujeito, caracterizando-se produtor e fornecedor exclusivo. 5.1.2.1. Bem singular Bem singular consiste naquele bem que possui uma individualidade tal, que o torna inassimilável a quaisquer outros bens, vale dizer, é inconfundível. Essa individualidade pode provir de o bem ser singular em razão de três aspectos: a) em sentido absoluto: quando só existe uma unidade, um único exemplar, e.g., uma indústria automobilística que fabrica um único carro de modelo extravagante para uma Feira de Automóveis; b) em razão de evento externo: é o bem que, apesar de não ser o único exemplar, agrega-se à significação particular excepcional, v.g., uma espada utilizada em um acontecimento histórico, a chuteira utilizada por um jogador de futebol na vitória de uma competição importante para o país; c) em razão da natureza íntima do objeto: consiste no bem em que se substancia uma realização artística, técnica ou científica, caracterizada pelo estilo ou cunho pessoal de seu autor, como um livro, uma tela ou uma escultura. 5.1.2.2. Serviços singulares Serviços singulares são aqueles que não se revestem de características análogas. Esses serviços são identificados sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal, expressa em características científicas, técnicas ou artísticas importantes para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suprida, como ocorre nas produções intelectuais. São serviços que se singularizam por um estilo ou uma orientação pessoal; são singulares embora não sejam únicos. Ressalte-se, contudo, que nem toda singularidade no serviço autoriza a contratação direta sem o devido procedimento licitatório. Para caracterizar a inviabilidade de competição, causando a inexigibilidade de licitação, é preciso que: a) o serviço esteja arrolado no rol do art. 13 da Lei n. 8.666/93, tratando-se, portanto, de: I – estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos; II – pareceres, perícias e avaliações em geral; III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; IV – fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; VI – treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; VII – restauração de obras de arte e bens de valor histórico. b) se trate de serviço singular, cuja singularidade seja relevante, indispensável para a Administração; c) o contratado tenha notória especialização,ou seja, que o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho seja essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato (art. 25, § 1º, da Lei n. 8.666/93). Dessa forma, orienta o STJ: (...) 3. Contudo, a inexigibilidade da licitação, nos termos do art. 25, II, da Lei n. 8.666/1993, pressupõe a presença concomitante dos seguintes requisitos: a) serviço técnico listado no art. 13; b) profissional (pessoa física) ou empresa de notória especialização; c) natureza singular do serviço a ser prestado. 4. Sem a demonstração da natureza singular do serviço prestado, o procedimento licitatório é obrigatório e deve ser instaurado, com o objetivo maior de a) permitir a concorrência entre as empresas e pessoas especializadas no mesmo ramo profissional e, b) garantir ampla transparência à contratação pública e, com isso, assegurar a possibilidade de controle pela sociedade e os sujeitos intermediários (...) (REsp 942.412/SP, STJ – Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento 28.10.2008, DJ 09.03.2009). Além desses critérios objetivos, é natural, em situações desse gênero, um componente subjetivo inalienável por parte de quem contrata na escolha do contratado, restando ao Administrador responsável determinada discricionariedade na tomada da decisão, conforme também reconhece a Suprema Corte. Observe trecho de uma ementa: (...) 2. ‘Serviços técnicos profissionais especializados’ são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado. Nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo. Daí que a realização de procedimento licitatório para a contratação de tais serviços – procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo – é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do ‘trabalho essencial e indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato’ (cf. o § 1º do art. 25 da Lei n. 8.666/93). O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança. Há, no caso concreto, requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de inexigibilidade de licitação: os profissionais contratados possuem notória especialização, comprovada nos autos, além de desfrutarem da confiança da Administração. Ação Penal que se julga improcedente (AP 348/SC, STF – Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, julgamento 15.12.2006, DJ 03.08.2007). A Primeira Turma do STJ, analisando o Recurso Especial 1.192.332, em que se discutia a existência de ato de improbidade administrativa na contratação direta de advogado por Prefeito Municipal, concluiu que o administrador, desde que movido pelo interesse público, pode fazer uso da discricionariedade que lhe foi conferida pela Lei n. 8.666/93 para escolher o melhor profissional. O relator do processo, o Min. Napoleão Nunes Maia Filho, entendeu que os serviços de assessoria jurídica possuem natureza intelectual, singular e personalíssima, o que inviabiliza a competição, sendo inexigível a licitação. Afirmou o relator que: “a singularidade dos serviços prestados pelo advogado consiste em seus conhecimentos individuais, estando ligada à sua capacitação profissional, sendo, desta forma, inviável escolher o melhor profissional, para prestar serviço de natureza intelectual, por meio de licitação, pois tal mensuração não se funda em critérios objetivos (como o menor preço)”380. 5.1.2.3. Hipóteses legais de inexigibilidade Algumas hipóteses de inexigibilidade estão previstas no texto legal, em seu art. 25. Entretanto, lembre-se de que o rol é só exemplificativo e envolve basicamente a ausência de pressuposto lógico (pluralidade de objeto ou de ofertante), que não é a única causa que gera a impossibilidade de competição. As hipóteses expressas são: a) para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo. Saliente-se que essa hipótese não pode ser utilizada para a escolha de marca de produto. A exclusividade deve ser comprovada por intermédio de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação, ou a obra, ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes. b) para a contratação de serviços de natureza singular, conforme requisitos apresentados no tópico anterior, sendo vedada essa hipótese para os serviços de publicidade e divulgação381. c) para a contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou por meio de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública. Por fim, se em qualquer desses casos, em que for possível a contratação direta, ficar comprovada a ocorrência de superfaturamento, devem ser responsabilizados solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis. 5.2. Dispensa de licitação Nas hipóteses de dispensa de licitação, embora haja possibilidade de competição, algumas razões de tomo justificam que se deixe de efetuá-la em nome de outros interesses públicos que merecem acolhida, segundo o que estabelece o legislador. Nesse caso, a licitação poderá ser dispensada ou dispensável. Na licitação dispensada, não cabe ao Administrador o juízo de valor, ou seja, não há possibilidade de escolha se vai ou não realizar o certame. A lei diz que não licita e pronto. Encontra-se essa hipótese nas alienações de bens públicos móveis e imóveis, previstas no art. 17, incisos I e II382. De outro lado, a licitação também poderá ser dispensável, hipótese em que a competição é possível. O legislador a dispensa, mas quem decide se esta deve ou não ocorrer é o administrador, cabendo-lhe o juízo de valor. As situações em que é dispensável a licitação estão enumeradas no art. 24 da Lei n. 8.666/93, que teve a última alteração, até o fechamento desta edição, pela Lei n. 12.873, de 24.10.2013, representando, esse, um rol taxativo. Todavia, a doutrina critica essa distinção, explicando o seguinte: se nas hipóteses em que a licitação é dispensada, o Administrador não tem liberdade alguma, significa que ele está proibido de licitar, caracterizando-se uma “vedação”, hipótese que foi abolida pela lei vigente. Portanto, segundo essa orientação, em ambos os casos (dispensada e dispensável), o legislador autoriza a contratação direta, não sendo essa autorização legislativa vinculante para o administrador, cabendo-lhe escolher entre realizar ou não a licitação. 5.2.1. Hipóteses de licitação dispensável O art. 24 apresenta um rol de hipóteses em que a licitação pode ser dispensada, contendo atualmente trinta e dois incisos. Para Marçal Justen Filho383, as hipóteses de dispensa podem ser organizadas segundo a relaçãocusto/benefício do seguinte modo: Custo econômico da licitação quando o custo econômico da licitação for superior ao benefício dele extraível (ex.: art. 24, I e II) Custo temporal da licitação quando a demora na realização da licitação puder acarretar a ineficácia da contratação (ex.: art. 24, III, IV, XII e XVIII) Ausência de potencialidade de benefício quando inexistir potencialidade de benefício em decorrência da licitação (ex.: art. 24, V, VII, XI, XIV, XVII e XIII) Destinação da contratação quando a contratação não for norteada pelo critério da vantagem econômica, porque o Estado busca realizar outros fins (ex.: art. 24, VI, IX, X, XIII, XV, XVI, XIX, XX, XXI, XXIV, XXV, XXVI, XXVII, XXVIII, XXIX, XXX, XXXI, XXXII e XXXIII) Obs.: os incisos VIII, XXII, XXIII e XXXIV do art. 24 são peculiares e não podem ser incluídos em nenhuma das hipóteses. A seguir, analisaremos as hipóteses em que a licitação é dispensável, consoante o rol do art. 24, com seus diversos detalhes. Nos primeiros incisos do citado dispositivo, a dispensa decorre de valor pequeno, considerando obras e serviços de engenharia no inciso I e outros bens e serviços no inciso II. Dessa forma, para obras e serviços de engenharia de valor até R$ 15.000,00 (quinze mil reais) e para outros bens e serviços até R$ 8.000,00 (oito mil reais) é dispensada a licitação desde que não se refiram às parcelas de uma mesma obra ou serviço ou, ainda, para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizados conjunta e concomitantemente. Esses valores correspondem a 10% dos limites previstos na lei para a modalidade convite. Ressalte-se que os valores serão dobrados quando se tratar de empresa pública, sociedade de economia mista e agências executivas384. A hipótese está prevista no § 1º do art. 24 da Lei n. 8.666/93, entretanto, esse dispositivo ganhou redação nova a partir da Lei n. 11.107/2005, para incluir na sua enumeração os consórcios públicos que também ganharam a liberalidade de 20%, em que a licitação é dispensável e foi renumerado a partir da Lei n. 12.715/2012 em razão da inserção do § 2º ao referido artigo. Nesses casos, o limite será de até R$ 30.000,00 (trinta mil reais) para obras e serviços de engenharia e de até R$ 16.000,00 (dezesseis mil reais) para outros bens e serviços, correspondendo a 20% dos limites previstos para a modalidade convite. Importante acrescentar que a Lei Complementar n. 147/2014, apesar de não ter inserido novas regras no texto da Lei n. 8.666/93, trouxe modificações contundentes quanto à dispensa de licitação, já que a atual redação do inciso IV do art. 49 do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte estabelece expressamente que nas hipóteses dos incisos I e II do art. 24 da Lei de Licitações a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte. Complementa, ainda, que, neste caso, deverá ser aplicado o disposto no inciso I do art. 48 que determina que deverá ser realizado processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). Dessa forma, altera-se substancialmente a atual aplicação dos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93, cuja aplicação deverá ser observada por todos os entes federativos. Nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem, também é possível contratação direta. Nesses casos, parte da doutrina exige o ato do Presidente da República, declarando a guerra ou, ainda, a decretação das medidas previstas nos arts. 136 e 137 da CF, que definem o estado de defesa e o estado de sítio. Para a perturbação da ordem, a gravidade deve ser equivalente à guerra. Nas hipóteses de emergência ou de calamidade pública, a licitação é dispensável, desde que atendidas algumas condições. Exige-se a caracterização da urgência de atendimento de situação que possa prejudicar a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares. Refere-se aos casos em que o decurso de tempo necessário ao procedimento licitatório normal impediria a adoção de medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis. Restringe-se aos bens necessários ao atendimento da situação emergencial e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídos em 180 dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência do evento, sendo vedada a prorrogação dos respectivos contratos. Considera-se licitação deserta quando há ausência de interessados. Nesse caso, a regra é uma nova licitação, todavia, é possível a contratação direta quando presentes quatro elementos: a realização de uma licitação anterior concluída infrutiferamente; a ausência de interessados em participar da licitação anterior, o que provocou a frustração da disputa; o risco de prejuízos se a licitação vier a ser repetida; e, por fim, a contratação tem que ser efetivada em condições idênticas àquelas da licitação anterior. Importante ressaltar que não se admite a modificação das condições sob pena de violação do princípio da isonomia. Também não poderá ser utilizada quando a licitação anterior for eivada de vício e, por isso, anulada ou, quando inconveniente e, portanto, revogada. Nos dois casos, não é possível contratar diretamente em razão da impossibilidade de manutenção das condições do edital anterior. Entretanto, essa hipótese de licitação deserta não pode ser confundida com a licitação fracassada. O fracasso ocorre quando todos os licitantes forem desclassificados, porque apresentaram propostas com preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes. Em tal situação, a Comissão deverá abrir diligência para que os interessados adequem suas propostas (regra prevista no art. 48, § 3º, da Lei n. 8.666/93). Persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não superior ao constante do registro de preços, ou dos serviços. A terminologia “licitação fracassada” também é utilizada, por parte da doutrina, quando todos os licitantes são inabilitados, conquanto esta não seja considerada hipótese de dispensa, devendo a Administração realizar uma nova licitação. O Poder Público ainda poderá escapar da licitação de forma lícita nas situações em que a União tiver que intervir no domínio econômico para regular os preços ou normalizar o abastecimento e quando houver possibilidade de comprometimento da segurança nacional, nos casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, ouvido o Conselho de Defesa Nacional. A licitação é dispensável para a aquisição por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública, desde que ela tenha sido criada para esse fim específico, em data anterior à vigência da Lei de Licitações e o preço contratado seja o praticado no mercado. Também é possível celebrar contrato sem licitação nos casos de compra ou locação de imóvel, destinado ao atendimento das finalidades precípuas da Administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia. O certame também é dispensável quando da contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em consequência de rescisão
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