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Aula 11 - Guimarães Rosa: transfigurações do regionalismo “ Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando. ("O Espelho", p. 437) INTRODUÇÃO Sobre a obra de Rosa muito tem sido escrito e, por sua grandeza, o futuro deixa em aberto diversificadas possibilidades de leitura. Estudos que privilegiam a sintaxe polêmica, o ineditismo lexical, os temas metafísicos e outros tantos foram e ainda têm sido largamente desenvolvidos em torno do trabalho do escritor mineiro. Todos estes recursos nos chamaram a atenção e nos estimularam a prosseguir na instigante tarefa de ler a obra de Guimarães Rosa. Seduziu-nos, sobretudo, a forma como o autor constrói os personagens, cujos comportamentos afrontam o pensamento instaurado pela lógica iluminista e racionalista e cuja linguagem se produz em harmoniosa adequação a estes comportamentos. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 2006. Os personagens rosianos possuem um olhar que, longe da turvação corriqueira, penetra nas camadas invisíveis que deixaram de ser vistas por todos os que se acostumaram demais a ver e não consideram que as experiências podem ser inaugurais. Este olhar desperto, plurissignificativo e vazado de claridades pareceu-nos ser capaz de ressignificar a própria vida, trazida à tona a cada novo dia. Ainda que tenhamos tido vislumbres deste olhar a partir da narrativa fulcral que é Grande sertão: veredas, foi na leitura das estórias protagonizadas por crianças, velhos e cegos que esta particularidade ficou mais destacada. Exemplos típicos são a novela ou romancinho "Campo geral" de Corpo de baile, e as narrativas de Primeiras estórias, as quais nos levaram a pensar que, no fundo, todo o empenho do autor foi uma tentativa bem sucedida de revelar um modo novo de ver, e que, para revelá-lo, ele criou um modo novo de dizer. Um olhar atravessado, limpo, sem turvações, alçando voos no dentro e fundo de suas travessias exige uma linguagem à altura deste modo de ver. É o que autor realiza em sua obra. No conto "O Espelho", de Primeiras estórias, o autor tem oportunidade de teorizar um pouco sobre o olhar. Antecedendo a narração, esta narrativa faz uma descrição de como podemos nos iludir com os nossos olhos: E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só pouco a pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. (ROSA, 1994, p. 438) Nas narrativas do autor precisamos rever o foco, o ponto de vista de onde vemos, porque Guimarães Rosa sempre buscou ver as pessoas e as situações com olhos novos. Esta necessidade lhe era tão essencial, que criou uma escrita reveladora deste olhar penetrante e incomum. Incomum não porque exótico mas porque conseguiu captar as sutilezas onde estas pareciam não existir. Assim, as crianças, e também os loucos, os velhos e os cegos configuram um novo paradigma do olhar que se desloca do comum para o insólito, não porque eles sejam seres extraordinários, mas porque conseguiram manter acesa a flama que os faz ver onde muitos já deixaram de fazê-lo. Se olharmos atentamente, veremos que onde parecia estar o sobrenatural ou o fantástico, reside sim, um discurso que soube preencher as lacunas dos nossos esquecimentos e turvações diárias. Exemplos eficientes disso são "A menina de lá", "Um moço muito branco", "Partida do audaz navegante" (de Primeiras estórias) e "Campo geral" (de Corpo de baile). No entanto, é preciso lembrar que a ênfase no olhar na obra de Rosa não se especifica apenas pelo sentido da visão propriamente dita, embora este sentido seja bastante explorado pelo autor, mas à forma como se vê. Nesse aspecto o motivo infantil merece ser visto como um tema simbólico, pois a presença da criança nos devolve um foco, uma camada do olhar em que o sentimento de renovação é sempre despertado. A criança, de certo modo, nos obriga a movimentar o olhar. A criança de Guimarães Rosa representa uma radical oposição aos efeitos devastadores da crença na razão instrumental. Se os outros personagens chamam a nossa atenção, as crianças o fazem de maneira especial, porque suas vivências e percepções são radicalizadas. Representando a totalidade do ser humano, a criança simboliza, conforme nos diz Jung, tudo que é abandonado, exposto e ao mesmo tempo o divinamente poderoso, o começo insignificante e incerto e o fim triunfante. A 'eterna criança' no homem é uma experiência indescritível, uma incongruência, uma desvantagem e uma prerrogativa divina, um imponderável que constitui o valor ou desvalor último de uma personalidade. (JUNG, 2000, p. 179) Encontramos na palavra rosiana uma tentativa de fundar ou de encontrar sempre o espírito de vida novo que a constitui, pois estamos apreciando um autor que prima pela exploração dos recursos adormecidos da palavra e que fundou, mais que uma escrita, uma variedade de enredos que se harmonizam e respondem a esta escrita. Não só enredos, mas uma variedade de personagens cuja singularidade compõe este ideal de fundação, que reside na diferença, naquilo que inaugura certo sentimento novo. Crianças, velhos, prostitutas, cegos, visionários, catrumanos fazem parte desta família de singulares e excluídos, e que nas narrativas de Guimarães Rosa fundam, ao lado da palavra, um universo novo, desconhecido. 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OLHAR Nem sempre é possível saber o que vem primeiro: fazemos perguntas para ver melhor, ou precisamos ver melhor para melhor perguntarmos? Na obra rosiana a mutabilidade constante das coisas é vivida integralmente, não só nas situações apresentadas nos enredos, mas no que diz respeito à linguagem movimentadíssima e irrequieta. O Real é colocado não como uma verdade, mas como ambiguidade, e, por isso mesmo, questionado. As certezas são corroídas de diversas formas, ininterruptamente. O discurso rosiano anda na contramão da história do pensamento ocidental que, ao longo dos séculos, buscou “domesticar” a nossa percepção da realidade, criando uma inteligibilidade anterior à nossa percpeção das coisas. Nesse sentido, Antônio Jardim faz uma crítica à linearização deste tipo de conhecimento que desconsidera a ambiguidade como uma instância importante e necessária para a experiência da verdade: Produzimos instrumentos e os generalizamos, em todos os níveis e em todas as dimensões. Instrumentalizamos e generalizamos toda a realidade por meio de um instrumento e de um gênero que é entendido e colocado como perene – a idéia, o maior de todos os instrumentos já inventados pelo ser humano. Conformou-se assim o saber no Ocidente como conhecimento do gênero a priori, perdeu-se o sentido de verdade como o que se manifesta e se oculta, se vela se desvela, se vela e revela. A partir de então, procuramos uma identidade sem diferença, uma medida pela certeza e uma representação pela semelhança. (JARDIM: 2003, p. 5) Guimarães Rosa em fotografia do acervo da família Tess. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 2006. Guimarães Rosa acredita que o mistério pode ser melhor sondado e depurado numa literatura que esteja impregnada dos conteúdos que constituem a condição humana, muitos deles insondáveis a “olho nu”. Em entrevista ao seu tradutor Gunter Lorenz, o autor reflete sobre o que espera de sua literatura: “...Porisso também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável. A lógica, prezado amigo, é a força com a qual o homem algum dia haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça.” (LORENZ, 1991, p. 93) 1.1 AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS: A ESTÓRIA NÃO QUER SER A HISTÓRIA Na tentativa de nos fixarmos neste olhar de que temos falado apresentaremos, a seguir, algumas considerações acerca de um livro precioso para a contemplação deste olhar. Publicado em 1962, “Primeiras estórias” revela um escritor a quem não falta o domínio do gênero do conto curto. Os personagens deste livro vivem uma realidade enigmática, que se oferece em toda a sua complexidade, ambiguidade e imprecisão. Primeiras estórias apresenta, em estilo bastante diferente de Grande sertão: veredas e dos outros livros de Guimarães Rosa, o tema da perplexidade estreitamente vinculado ao tema da busca da identidade na singularidade e na diferença. E a estes temas está vinculado, sobretudo, o ato de ver. Conforme Costa Lima " 'Primeiras estórias', no seu todo, mostra o autor ainda explorando veios novos ou aprofundando antigos.” (LIMA, 1991, p. 500) E continua: "Em Guimarães Rosa, o mundo se abre como problema. Ele é perplexidade e mistério. Às vezes pode ele raiar numa "verdade extraordinária" : a alegria cósmica, de que o amor é apenas uma das expressões. Outras vezes o mundo se fecha no seu círculo de enganos. É assim que o mundo é aberto por Guimarães Rosa como um leque de perspectivas." (Ibidem, p. 500) Capa de Primeiras Histórias, Livraria José Olympio Editora, 6ª edição, 1972. https://www.youtube.com/watch?v=Fzk6RnzQi58 (desenho animado) Esta coletânea contendo.... contos é uma obra idiossincrática na trajetória do autor, pois apresenta vários desdobramentos temáticos sempre relacionados à questão da relativização das certezas, por meio de jogos constantes com uma linguagem que revela a inquietação dos personagens, retratada nas singularidades dos seus procedimentos. Povoada de crianças, loucos, cegos, e excluídos, o livro está repleto de elementos do plano mágico-simbólico, expressos na escolha dos personagens, no olhar do narrador, na luminosidade sugerida no jogo de luz e sombra, nas falas impactantes das crianças, no plano das reminiscências, e na evocação à loucura, como forma não de desordem, mas de busca de uma outra instauração da ordem. Se a razão é considerada um instrumento para uma apreensão ordenada do real, nestas estórias este conceito é polemizado, sendo os comportamentos estereotipados postos em crise. Nesse sentido, a presença das crianças consiste em uma expressão poética deste questionamento do real, e do conceito de Razão. A expressão "Pré-consciência", nesse sentido, – proposta por Alfredo Bosi, é muito adequada, pois diz respeito a "modos pré-lógicos da cultura: o mito, a psique infantil." (BOSI, 1970, p. 484) É importante ressaltarmos que a opção por estes personagens excepcionais está muito relacionada com o próprio espírito criador do autor, que conseguiu construir uma obra que espelhasse sua própria inquietação. Tudo, em suas narrativas, revela este anseio pela renovação e pela busca de uma palavra ainda por dizer, porque, subjacente a estes procedimentos literários, está, mais que tudo, a busca de uma essência perdida, anestesiada no homem. Para iluminar nossas afirmações, são valiosas as palavras de Maria Luísa Ramos: Com efeito, é essa a condição essencial do estilo de Guimarães Rosa: renovar, redescobrir, criar. E, assim como procura desvendar nas desgastadas palavras de todos os dias a sua latente expressividade, lança-se inteiro na ansiosa busca do humano, oculto na brutal mediocridade da massificação. Talvez, por essa razão, o escritor explore tanto as personagens infantis, a ponto de abrir e fechar o volume com estórias que envolvem o Menino, assim sem nome, sem comportamento estereotipado, reagindo com o mais espontâneo fervor às coisas do mundo e ao seu peculiar suceder. (RAMOS, 1991, p. 515, 516) O que mais nos angustia não será a nossa incompreensão acerca dos mistérios? E por isso mesmo, diante desta impossibilidade de apreensão do obscuro, os personagens de Rosa, ao invés de tentarem apreendê-lo, vivem-no intensamente. Riobaldo, em Grande sertão: veredas, desabafa: “Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar...” (ROSA, 1994, p. 211) Olhar também é uma tentativa de entender. De ver para crer, ou se não, para descrer. Riobaldo, jagunço corajoso, respeitado por todos, sofria por não ver, e depois por ter constatado que não viu o que sempre estivera tão próximo. “Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?” (ROSA, 1994, p. 220), pergunta-se mais uma vez Riobaldo. Para este, seu campo de visão só se alargou depois que o tempo passou e ele pôde parar, tomada a distância, e ver o que se passara. Muitas vezes, somos traídos pelo que vemos, porque somos o próprio processo que vivemos, somos a própria dor e a alegria que vivemos, somos o sujeito e o objeto, não nos distanciamos. Assim sendo, o desafio maior desses personagens, velhos, jagunços experientes, fazendeiros, crianças, mulheres... refere-se ao aprendizado da harmonia dentro da desarmonia, da organização das coisas, da busca da completude num universo onde reina o caos.1 1 A palavra “de lá” De todas as expressões utilizadas pela protagonista de “A menina de lá”, a que mais nos chama a atenção é a frase que, segundo o narrador, ela sempre repetia: “Tudo nascendo!” (ROSA, 1994, p. 402) Guimarães Rosa em seu escritório no Rio de Jeneiro. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 2006. Tal enunciado concentra toda a força dos personagens de Guimarães Rosa e a sua maneira única de ver o mundo, além de revelar o vigor que o autor deu à sua linguagem, porque este acreditava numa língua tão viva quanto a própria vida. Em entrevista a seu tradutor alemão Gunter Lorenz, Guimarães Rosa explica o seu método para escrever, o qual, segundo o autor, “implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original.” (LORENZ, 1991, p. 81 ) Sua obra contempla um universo de coisas nascentes e moventes do qual fazem parte as crianças, com suas falas insólitas. Além das questões ligadas ao discurso, vale ressaltarmos que nas estórias de Guimarães Rosa tudo parece estar sempre nascendo, mesmo quando ronda a morte e/ou a velhice. Com base nisso, convém buscarmos um diálago com outros personagens e estórias do autor, nas quais estes princípios também estão presentes. Em Grande sertão: veredas, por exemplo, o clímax da estória não se dá quando Diadorim morre lutando com Hermógenes, mas quando, na cena seguinte, ele renasce com os seus aspectos femininos para a vida de Riobaldo. Neste momento, morre uma parte de Riobaldo, mas algo essencial que ele viera perseguindo é acordado nele para sempre. Nesta longa narrativa, o fluir constante do mundo é expresso em uma linguagem dinâmica e visceral, como é a própria existência e travessia do homem aqui na terra. Nesse sentido, é sempre valioso reiterarmos que a obra de Guimarães Rosa é a expressão de uma harmonia entre projeto literário, ideal de vida, construção dos personagens e dos enredos. Tudo conflui, em seus textos, para o rebrotar incessante da vida, e, consequentemente, da palavra.Por isso, as crianças na sua obra são presença tão marcante, porque elas concentram em suas atitudes e em sua linguagem este potencial criativo que a vida não cessa de jorrar. Na obra do autor também os velhos revelam este vigor, como se neles acendesse, de repente, uma derradeira centelha de vida, que vai modificar o rumo do destino ainda uma vez mais. Neles floresce o desejo de recomeçar, ou de dar início a algo ainda não vivido. A velhice não representa o fim, nem o estancamento de um processo criativo, mas a morte do que é velho e precisa, de fato, morrer, para que outras instâncias do ser, ainda inexploradas, possam ganhar corpo. Como diz o Vaqueiro Tadeu, em “Cara-de-Bronze”, “Olhe, irmão: Deus é menino em mil sertões, e chove em todas as cabeceiras...” (ROSA, 1994, p. 674) Além das crianças - os loucos, os cegos, os aleijados, as meretrizes, homens primitivos como João Urugem, (“Uma estória de amor”), e imprevisíveis como “Augusto Matraga”, ( “A hora e a vez de Augusto Matraga”) são alguns exemplos de como a literatura rosiana afronta o pensamento clássico-dicotomizado e evoca novos caminhos do ser e da linguagem que precisam estar sempre renascendo. Voltando a “A menina de lá” é importante pontuarmos que Nhinhinha não é a menina de lá porque veio de outro planeta, mas porque ela ainda consegue ver as “coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, p. 401) E a pura vida é movimento. Até o narrador demonstrava admiração por Nhinhinha e pela forma como ela falava. É o que nos mostram os fragmentos a seguir: “Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - “Tatu não vê a lua...” (idem) ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, p. 401) Com relação às formas linguísticas utilizadas por Nhinhinha, estas proporcionam uma reflexão sobre o empobrecimento da língua, que deveria ser considerada como uma possibilidade de desdobramento criativo do potencial humano, e não um veículo de comunicação, um meio para se chegar a um objetivo. Nesta estória, há duas categorias de linguagem: uma que é fluxo e impacto, - a de Nhinhinha - e outra, a dos adultos, estagnada e funcional. Nessa perpectiva, Deleuze traz uma importante contribuição no que diz respeito à sintaxe: Para o autor: “Já não é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio.” (DELEUZE, 1997, p. 127) Na sua sintaxe singular, Nhinhinha apresenta uma língua “...em perpétuo desequilíbrio” ou, usando outra expressão, como “a gagueira criadora” (Ibidem, p. 127): Suspirava, depois: - “Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “ Não sei.” Aí observou: - “ O passarinho desapareceu de cantar...” - “Jabuticaba de vem-me-ver...” - “Eu ... to-u... fa-a-zendo.” (ROSA, 1994, p. 401) - “E eu? Tou fazendo saudade.”(ROSA, 1994, p. 402) - “Eu queria o sapo vir aqui.” (Ibidem, p. 402) - “Está trabalhando um feitiço...(Ibidem, p.402) - “Alturas de urubu não ir...” (Ibidem, p.402) - “Estrelinhas pia-pia.” (Ibidem, p. 402) - “Ele xurugou?” (Ibidem, p. 401) 2 2 XURUGAR Voc. Inventado de significado indeterminável.// O autor revela com ele a estranheza da menina que o usou, dotada do pendor de criar palavras. (LÉXICO, G.ROSA, MARTINS, 2001, p. 531) Palavra em movimento O uso dessas e de outras expressões e palavras revela uma habilidade “suasibilíssima”3 da menina, que faz recuperar a originalidade que há no fundo das coisas esquecidas. Nhinhinha vê “só a pura vida”, o que a faz parecer excêntrica, usuária de um discurso esdrúxulo, mas livre de estereótipos. É nesse sentido que esta estória inova muito mais no que poderia haver de estranhamento nas atitudes da menina. Quem está mais conectado com o sentido das coisas não se assustará com o sentido das palavras que urge em ser recuperado na fala da menina. De certo modo, esta narrativa nos faz pensar sobre o esvaziamento das experiências linguísticas do mundo pós- moderno, reflexos, talvez, de um momento em que os paradigmas estão sendo desconstruídos, bem como de uma concepção de linguagem entendida como puro instrumento ou veículo de informação e conhecimento. Um mundo que instrumentaliza as experiências e as relações só aceita uma linguagem-instrumento, comprometendo a dimensão expressiva e transcendente da linguagem. Na contramão disto, esta estória redimensiona o papel da literatura como o lugar de desvio onde as questões humanas são priorizadas e singularizadas. A presença de Nhinhinha nos propicia compreender melhor o mal-estar da cultura do adulto num mundo ao qual ele se acostumou e com o qual perdeu as conexões mais profundas. Isto não é privilégio apenas desta estória. Ao contrário, tal impasse infância/mundo adulto está colocado em quase todos os contos. Em “A menina de lá” a reação dos adultos mostra, sobretudo, que eles perderam contato justamente com aquilo a que a menina está mais sintonizada: a vida e a revelação cotidiana dos mistérios. Por isso, como diz o narrador “Ninguém entende muita coisa que ela fala...” (ROSA, 1994, p. 401) De fato, não é tarefa fácil para um adulto compreender o que uma criança diz, porque ele está cheio de roupagens da cultura, e cada uma diz respeito a um setor de sua vida. A criança, ao contrário, ainda não está setorizada e capta o mundo com um olhar capaz de penetrar em lugares que uma visão dicotomizada não consegue. Em Um sopro de vida, Clarice Lispector nos faz lembrar que “Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade que se repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o 3 A expressão em destaque foi empregada pelo narrador ao se referir à menina como “ – suasibilíssima, inábil como uma flor.” (ROSA, 1994, p. 401) e mostra que ele reconhece o poder persuasivo da menina. Conforme Martins, esta palavra vem de "suasível” var. de suasivo, próprio para persuadir.” (MARTINS, 2001, p. 470) apaziguamento do medo, a negação do medo – a civilização enfim.(...)” E no mesmo trecho, continua a autora: “Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas coisas. Para falar a verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver.” (LISPECTOR, 1978, p. 74) "Nonada". Xilogravura de Arlindo Daibert, 1984. Imagens so Grande Sertão, Editora UFJF, 1998 “A menina de lá” propicia a reflexão sobre um tema bastante valioso que é a recuperação da singularidade da palavra. As experiências da menina parecem ser sustentadas pela própria linguagem, pois não parece haver neste conto disparidades entre o vivido e o dito. A palavra brota, assim como brotam as percepções. Elas são imediatas, coladas às experiências. Por meio das falas de Nhinhinha penetramos na corrente viva da língua e da infância. Nhinhinha é descrita como “perpétua”, e isso assustava os adultos. (ROSA, 1994, p. 401) Mas o que importa é que o tempo em que ela vive as coisas diz respeito mais ao tempo real de suas experiências, e não a um porvir. Diante da pergunta – “ Nhinhinha, que é que você está fazendo?” Ela respondia: “ –Eu... to-u... fa-a-zendo.” (Ibidem, p. 401) Ela é um processo de vida que se faz e de linguagem que se renova. Quando há menção ao futuro é também para se referir a um lugar desconhecido. “Suspirava, depois: ‘ Eu quero ir para lá.’ – Aonde? – ‘ Não sei.’” (ROSA, 1994, p. 402 ) O título da estória metaforiza o entre-lugar em que a protagonista vive. “De lá” é uma expressão de lugar que evoca outras possibilidades: lugar do discurso, lugar do sem lugar, lugar da infância. Nesse sentido, são inspiradoras as palavras de Solange Jobim e Sousa: A criança está sempre pronta para criar outros sentidos para os objetos que possuem significados fixados pela cultura dominante, ultrapassando o sentido único que as coisas novas tendem a adquirir (...) A criança conhece o mundo enquanto o cria e, ao criar o mundo, ela nos revela a verdade sempre provisória da realidade em que se encontra. Construindo seu universo particular no interior de um universo maior reificado, ela é capaz de resgatar uma compreensão polifônica do mundo, desenvolvendo, através do jogo que estabelece na relação com os outros e com as coisas, os múltiplos sentidos que a realidade física e social pode adquirir. Por isso enriquece permanentemente a humanidade com novos mitos. Grifos do autor (JOBIM E SOUZA, 2001, p. 160) A língua de Nhinhinha, de Brejeirinha, de Miguilim e de outras crianças extrapola os limites do poder do mundo adulto. Quando o narrador em “A menina de lá” a respeito de Nhinhinha diz que “Ninguém tem real poder sobre ela...” (ROSA, 1994, p. 402) está legitimando o universo imprescrutável da criança e da própria literatura, que é também o espaço fora do poder. Enfocando o “lá” que sobressai no título, remetemo-nos ao conto “A terceira margem do rio” no que o seu título possui de carga semântica similar ao primeiro. Ambos são lugares simbólicos mais líquidos e flutuantes. Representam, sobretudo, as diferenças entre os espaços e apontam para outros, que, embora existam, precisam ser inaugurados. E é pela linguagem, a partir e de dentro do próprio discurso que este lugar passa a existir. É o lugar da criação, e da indefinição. Não é de se estranhar esses termos marcadores de lugar na obra de Guimarães Rosa; eles são também nomeadores de um mundo no seu sentido mais inominável. Portanto é de se compreender que o autor recupera a palavra estória, e que nas suas “Primeiras estórias” as crianças sejam tão prestigiadas, porque a presença e o discurso delas resgata o que há de poético no prosaico, o que há de verossímil no acontecido, o que há de simbólico no real, e o que há de inconsciente no consciente. Sobre esse aspecto Saraiva chama a atenção para o fato de que o advérbio “lá” aparece somente uma vez no corpo do conto e “que todavia lhe dá a relevância titular, sem que mesmo assim seja fácil determinar o seu real ou simbólico valor espácio-temporal. Para o autor, O ‘lá’ rosiano tanto pode indicar o espaço celeste, ou o ‘além’ da vida, como o espaço terrestre ou a vida terrena, e até o espaço do corpo; não é necessariamente a diferença interespacial que justifica a oposição cá/lá, já que esta pode dar-se no interior do mesmo espaço, o que justifica é a visão ou a consciência, por parte do narrador ou de algum personagem, de uma fratura ou distância... (SARAIVA, 1998, p. 95) Nesta narrativa retornam a força da palavra e as suas repercussões. A palavra é uma personagem importante, responsável por estreitar os laços entre os territórios do mito e do real, levando um ao outro, fundindo um no outro. Sobressaem as palavras, na mesma proporção em que emergem os personagens. A estória funde a imaginação da protagonista com a imaginação do autor no que esta tem de prodigiosa, misteriosa e desafiadora. Funde também a perspicácia de ambos em criar palavras que não traduzem o intraduzível, mas que recriam os fatos esquecidos. Em Guimarães Rosa existe, como afirma Wendell Santos, “uma euforia da linguagem, um retorno ao estilo metafórico que o diferencia do estilo metonímico da tradição anterior.” (SANTOS, 1978, p. 176) As falas da menina são mágicas e prodigiosas porque são geradas e alimentadas no que elas possuem de genuína originalidade. A magia e o milagre só podem ser interpretados se concebidos dentro do vigor da própria palavra, inédita, que é, por si só, um milagre. Este é um dos milagres que a narrativa em questão nos oferece, o qual encontra a sua melhor expressão neste comentário do narrador acerca de Nhinhinha: “O que ela queria, que falava, súbito acontecia.” (ROSA, 1994, p. 402) Acreditamos que a “movência” é um princípio catalisador da obra de Guimarães Rosa, e que a linguagem não pode estar separada da vida. A infância não pode se separar do devaneio. A linguagem da infância revela tal dinâmica, esse fluxo constante que é a vida. Outro autor inspirador neste sentido é Gaston Bachelard, cujo pensamento revela como o espirito fabuloso da criança se expressa na sua própria linguagem. Cremos também que a presença de tantas crianças na obra de Guimarães Rosa é uma perfeita ilustração de como a vida é um jorro de mudanças, e de ciclos que não param de fluir e refluir. Assim é a linguagem, porque assim é a vida. Nesse sentido, reflete Bachelard: Toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa. Não que ela se deixe impregnar, como se acredita com excessiva facilidade, pelas fábulas sempre tão factícias que lhe contamos e que só servem para divertir o ancestral que a conta. Quantas avós não tomam o seu neto por um tolinho! Mas a criança que nasceu esperta atiça a mania de contar as sempiternas repetições da velhice contadora de histórias. Não é com essas fábulas fósseis, esses fósseis de fábulas, que vive a imaginação da criança. É nas suas próprias fábulas. É no seu próprio devaneio que a criança encontra as suas fábulas, fábulas que ela não conta a ninguém. Então, a fábula é a própria vida." (BACHELARD, 1998, p. 113) O discurso infantil No desejo de ampliar nossas reflexões acerca deste olhar póetico na obra de João Guimarães Rosa, teceremos alguns comentários a respeito de um tema que é reincidente e que se encontra num dos mais altos patamares de todas as discussões referentes à infância. Trata-se da questão da imaginação, da força do pensamento mágico na criança, que a ajuda a encontrar soluções para situações incompreensíveis, por meio de um brincar não só corporal mas que, transcendendo o próprio corpo, resvala para o pensamento.. Manuelzão, companheiro de viagens de Guimarães Rosa. Documentário: https://www.youtube.com/watch? v=yAROdFxCvSM Guimarães Rosa soube dar ao imaginário infantil o seu devido valor. Por meio dos meninos e meninas espalhados em Primeiras estórias, encontramos as crianças de todos os tempos e lugares, e sua presença, aliada a uma linguagem totalmente adequada ao espírito da infância, revela uma verdadeira celebração desta. Ao observarmos as falas das crianças, veremos que elas estão carregadas de poesia, seja no aspecto fônico, rítmico, ou do ponto de vista semântico. Podemos dizer que, ao dar voz às crianças, Guimarães Rosa apura o que no seu discurso já é inquietante e imprevisível, uma vez que a fala da criança está longe de ser aquela esperada pelos adultos, emaranhados no seu discurso racional e padrão. Não há dúvida de que Guimarães Rosa conseguiu captar o âmago da infância com uma palavra extremamente "infantil", no sentido de revelar os mecanismos linguísticos específicos da criança, mas sem apresentá-la como um ser alienado. O autor de Primeiras estórias conseguiuolhar e narrar a criança, colocando-a em foco com o que ela tem de mais poderoso e dinâmico, que é a sua linguagem. É uma forma distensa de falar. O que parece pertencer ao reino do nonsense é, em verdade, o uso da fantasia para o estabelecimento de uma relação ativa com a realidade. Trata-se de uma gramática interna ainda intocada pelo discurso dominante. Esta fala distingue a criança do mundo dos adultos, preservando-a do discurso automatizado, atrelado às especificidades do dia-a-dia racional e funcional ao qual o homem se submete, e que Guimarães Rosa tanto procurou redimensionar. A tendência dos adultos é rejeitar este discurso, introduzindo a criança no discurso em que predominam as concordâncias e a "coerência" . Se a fala da criança nos parece incoerente é porque, entre outras questões, podemos pensar no discurso poético como fator de incoerência no sentido de desestabilizar o discurso que faz parte do lugar comum, com o qual todos já se acostumaram. Nessa perspectiva, o discurso poético escapa àquela coerência que não nos tira do lugar.Tal discurso, inclusive, já foi associado por Bachelard, na sua Poética do Devaneio, ao discurso infantil. O discurso considerado polifônico por Bakhtin é o tipo de discurso produzido por poetas e crianças, e que se diferencia do discurso monofônico pelo seu tom incoerente, imprevisível, chocante. Ao reproduzir as falas das crianças, por exemplo, o autor revela um procedimento literário e linguístico que se aproxima bastante do processo de aquisição e de construção da linguagem peculiar à criança. É redundante dizer que a língua de Guimarães Rosa singulariza as experiências, e singulariza-se a si mesma, entre outras coisas, pelo inesperado da sintaxe, pelas insólitas e inquietas desacomodações na própria estrutura da língua. No entanto, nas narrativas em que o enfoque é a criança, vemos saltar no texto as criações inesperadas de Guimarães Rosa, e julgamos que é neste momento que a língua do autor se alia com total liberdade à linguagem da criança, que é como a do autor, um processo em construção, puro movimento. Podemos verificar que, por meio desta desconstrução ou reconstrução linguistica (lexical, sintática, estilística, morfológica), Rosa perverte (assim como as crianças o fazem) as normas gramaticais, usando procedimentos dinâmicos e extremamente produtivos. Esta nova maneira de dizer revela, sem dúvida, um intenso desejo de olhar e de mudar os pontos de vista. Olhado do ponto de vista da criança, o mundo poderia ser lido sob a perspectiva de uma gramática da fantasia. Gianni Rodari compartilha conosco deste pensamento, ao valorizar, por exemplo, o emprego dos prefixos, na linguagem da criança. (RODARI, 1973, p. 32) Para o autor, um dos modos de tornar produtivas as palavras, em sentido fantástico, é deformá-las. As crianças devem fazê-lo, como um jogo, um jogo muito sério, porque as ajuda a explorar as possibilidades da palavra, a dominá-la, forçando declinações até então inéditas, e estimula a liberdade da criança enquanto ser "falante" com direito à sua ‘prosa pessoal’, (...) encoraja o inconformismo." (RODARI, 1973, p. 32) Conforme o autor, "Muitos dos "erros" das crianças não são erros: são criações autônomas das quais elas se servem para assimilar uma realidade desconhecida." (RODARI, 1973, p. 35) As crianças, quando brincam, levam isso muito a sério. A articulação da linguagem é também para elas um jogo em que os sons, o ritmo, a melodia das frases, a opção por uma palavra inexistente no dicionário, a inversão da posição dos adjetivos, o uso de prefixos onde estes não são esperados, a improvisação de palavras únicas para traduzir um único sentimento ou uma impressão das coisas, fazem parte da sua fantasia criadora, bem como da do escritor, principalmente de Guimarães Rosa. Portanto, quando Nhinhinha diz: “...xurugou...” e outras tresloucadas palavras, quer dizer que o significado extrapolou os limites do significante, e que assim como se brinca com objetos concretos, brinca-se com as palavras, e é possível estabelecer com elas uma relação lúdica e séria. Bachelard já nos alertou sobre esta delicada ligação entre os códigos do poeta e da criança. Tal atitude lúdica em relação às palavras, própria dos poetas e das crianças, é o que faz com que as possibilidades e impossibilidades da palavra sejam exploradas ao máximo. Ambos, cada qual a seu modo, instauram uma forma de libertar a língua das redomas que a limitam; a criança ainda sem consciência de que faz, o poeta com uma consciência que às vezes só se explica pelos seus processos inconscientes, que permeiam os seus atos de criação. Nhinhinha e Brejeirinha são excelentes exemplos de uma liberdade absoluta de expressão: elas, assim como Guimarães Rosa, exercitam uma prosa poética, pessoal e única, e os significados do que dizem só podem ser compreendidos se entrarmos no jogo do qual são peças fundamentais o inconformismo, a liberdade criadora, a confiança na mudança. Guimarães Rosa cria uma linguagem extraordinariamente impactante (principalmente do ponto de vista da sintaxe e dos padrões gramaticais de um modo geral), justamente porque buscou aproximar a linguagem da vida, porque considerava a vida fluxo constante, instabilidade, mudança. Como a infância. É interessante associarmos estes "desvios" de linguagem com os próprios "desvios" cometidos pela criança, diante dos quais os adultos se chocam, ou se surpreendem. Também formas de "desvios" são os textos poéticos, por sua autonomia em relação aos critérios estabelecidos pelo discurso monofônico. Podemos dizer que a linguagem da criança, da poesia e de Guimarães Rosa estão numa relação de semelhança; na obra de Rosa, especialmente para nós que estamos ouvindo o ser das crianças, é como se não houvesse barreiras entre criança, fala e poesia. Toda criança é poeta, todo poeta é criança. Se ouvirmos o que elas reinventam e como ressignificam a linguagem, ouviremos uma poesia em potencial, seja em relação à criança real ou à ficcional. São ilustrativos os exemplos de enunciados extraídos dos contos de Primeiras estórias. "Tanto chove, que me gela!" ("Partida do audaz navegante", p. 469)"... E o cajueiro ainda faz flores..." (“Partida do audaz navegante”, p. 469) "Ah, e você vai conosco ou sem-nosco?" (“Partida do audaz navegante”, p. 471) "Você já viu jacaré lá?" – caçoava Pele. – "Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar..." (“Partida do audaz navegante”, p. 472) Este último trecho revela como o pensamento da criança pode mostrar-se insólito, só podendo ser expresso se for por meio de uma desacomodação linguística, ou, no caso, pela transformação de um sintagma verbal em um substantivo composto. No trecho abaixo, a poesia encontra-se justamente onde o desvio gramatical se instala, quando a palavra nos detém e nos faz voltar a ela. Agora, eu sei. O Audaz Navegante não foi sozinho; pronto! (ROSA, 1994, p. 474) Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais bonito, o navio ... pronto: e virou vagalumes. (Ibidem, p. 474) O que é desvio consciente em Guimarães Rosa pode ser associado com o que é desvio inconsciente no falar da criança. Certamente que no texto acima as expressõesem destaque têm uma explicação gramatical sobre a qual não nos deteremos, pois não queremos nos prender a uma análise formal, já que o que nos importa é a apreciação desta presença coesa e harmoniosa entre o universo-discurso infantil e a linguagem do escritor, repleta de desvios, de expressões despropositadas, inesperadas, como é a criança. “G S : V". Xilogravura de Arlindo Daibert, 1984. Imagens do Grande Sertão, Editora UFJF, 1998. CONSIDERAÇÕES FINAIS O diálogo com as personagens rosianas está intimamente ligado ao diálogo com a linguagem, ou seja, ambos constituem os dois lados do tecido deste texto repleto de alinhaves imprevisíveis. Para tal propósito, um léxico comum não seria suficiente, como não o seria uma sintaxe ordenada pelos padrões gramaticais. Esta não cumpriria a tarefa de revelar as intrincadas relações humanas, - o impossível que é o homem. Se, como afirmamos no início deste artigo, o olhar está ligado ao perguntar, ao desejo de entender, o texto de Guimarães Rosa concentra a potencialidade deste questionamento. Sertão fechado, difícil e perigoso, sua escritura oferece-nos também veredas e campos gerais; atravessá-lo é um exercício, uma educação do olhar. A radicalização da linguagem, a singularidade dos personagens, as artimanhas dos discursos, os encaixes narrativos, a abrupta inversão da sintaxe, o novo posicionamento do narrador são apenas alguns pre-textos para a realização de um projeto humano/literário cuja travessia só faz sentido se desencadear esse processo contínuo que é o da construção e desconstrução do olhar. No entanto, por mais sertão que seja o texto rosiano, existe sempre a esperança da vereda. Ao leitor, caberá fazer a travessia literária. Sem dúvida precisará de um olhar incansável, que permeie mais descaminhos que caminhos certos, que não seja turvo para ver as linhas ocultas, invisíveis por trás daquelas outras, visíveis e estereotipadas. O desafio é um aprendizado, e para o leitor significa também aprender a olhar. Olhar, sobretudo, as belíssimas e singulares imagens poéticas que brotam ininterruptamente do seu texto, dos textos que elas fazem extrair de nós, e da promessa de novos olhares que elas nos despertam. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMÓS, Eduardo. Teimando em sonhar. São Paulo: Moderna, 1987. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão Gomes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 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