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Aula 11 - Guimarães Rosa: transfigurações do regionalismo
 “ Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando. ("O Espelho", p. 437) 
INTRODUÇÃO
Sobre a obra de Rosa muito tem sido escrito e, por sua grandeza, o futuro deixa 
em aberto diversificadas possibilidades de leitura. Estudos que privilegiam a sintaxe 
polêmica, o ineditismo lexical, os temas metafísicos e outros tantos foram e ainda têm 
sido largamente desenvolvidos em torno do trabalho do escritor mineiro. Todos estes 
recursos nos chamaram a atenção e nos estimularam a prosseguir na instigante tarefa de 
ler a obra de Guimarães Rosa. Seduziu-nos, sobretudo, a forma como o autor constrói os 
personagens, cujos comportamentos afrontam o pensamento instaurado pela lógica 
iluminista e racionalista e cuja linguagem se produz em harmoniosa adequação a estes 
comportamentos.
Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 2006.
Os personagens rosianos possuem um olhar que, longe da turvação 
corriqueira, penetra nas camadas invisíveis que deixaram de ser vistas por todos os que 
se acostumaram demais a ver e não consideram que as experiências podem ser 
inaugurais. Este olhar desperto, plurissignificativo e vazado de claridades pareceu-nos 
ser capaz de ressignificar a própria vida, trazida à tona a cada novo dia. 
Ainda que tenhamos tido vislumbres deste olhar a partir da narrativa fulcral 
que é Grande sertão: veredas, foi na leitura das estórias protagonizadas por crianças, 
velhos e cegos que esta particularidade ficou mais destacada. Exemplos típicos são a 
novela ou romancinho "Campo geral" de Corpo de baile, e as narrativas de Primeiras 
estórias, as quais nos levaram a pensar que, no fundo, todo o empenho do autor foi uma 
tentativa bem sucedida de revelar um modo novo de ver, e que, para revelá-lo, ele criou 
um modo novo de dizer. Um olhar atravessado, limpo, sem turvações, alçando voos no 
dentro e fundo de suas travessias exige uma linguagem à altura deste modo de ver. É o 
que autor realiza em sua obra. 
No conto "O Espelho", de Primeiras estórias, o autor tem oportunidade de 
teorizar um pouco sobre o olhar. Antecedendo a narração, esta narrativa faz uma 
descrição de como podemos nos iludir com os nossos olhos: 
E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com 
que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os 
objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só pouco a pouco é que consegue 
retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. (ROSA, 1994, p. 
438)
Nas narrativas do autor precisamos rever o foco, o ponto de vista de onde 
vemos, porque Guimarães Rosa sempre buscou ver as pessoas e as situações com olhos 
novos. Esta necessidade lhe era tão essencial, que criou uma escrita reveladora deste 
olhar penetrante e incomum. Incomum não porque exótico mas porque conseguiu 
captar as sutilezas onde estas pareciam não existir. Assim, as crianças, e também os 
loucos, os velhos e os cegos configuram um novo paradigma do olhar que se desloca do 
comum para o insólito, não porque eles sejam seres extraordinários, mas porque 
conseguiram manter acesa a flama que os faz ver onde muitos já deixaram de fazê-lo. 
Se olharmos atentamente, veremos que onde parecia estar o sobrenatural ou o fantástico, 
reside sim, um discurso que soube preencher as lacunas dos nossos esquecimentos e 
turvações diárias. Exemplos eficientes disso são "A menina de lá", "Um moço muito 
branco", "Partida do audaz navegante" (de Primeiras estórias) e "Campo geral" (de 
Corpo de baile).
No entanto, é preciso lembrar que a ênfase no olhar na obra de Rosa não se 
especifica apenas pelo sentido da visão propriamente dita, embora este sentido seja 
bastante explorado pelo autor, mas à forma como se vê. Nesse aspecto o motivo 
infantil merece ser visto como um tema simbólico, pois a presença da criança nos 
devolve um foco, uma camada do olhar em que o sentimento de renovação é sempre 
despertado. A criança, de certo modo, nos obriga a movimentar o olhar. A criança de 
Guimarães Rosa representa uma radical oposição aos efeitos devastadores da crença na 
razão instrumental. Se os outros personagens chamam a nossa atenção, as crianças o 
fazem de maneira especial, porque suas vivências e percepções são radicalizadas.
Representando a totalidade do ser humano, a criança simboliza, conforme nos 
diz Jung, 
tudo que é abandonado, exposto e ao mesmo tempo o divinamente poderoso, o 
começo insignificante e incerto e o fim triunfante. A 'eterna criança' no homem é uma 
experiência indescritível, uma incongruência, uma desvantagem e uma prerrogativa 
divina, um imponderável que constitui o valor ou desvalor último de uma 
personalidade. (JUNG, 2000, p. 179)
Encontramos na palavra rosiana uma tentativa de fundar ou de encontrar 
sempre o espírito de vida novo que a constitui, pois estamos apreciando um autor que 
prima pela exploração dos recursos adormecidos da palavra e que fundou, mais que uma 
escrita, uma variedade de enredos que se harmonizam e respondem a esta escrita. Não 
só enredos, mas uma variedade de personagens cuja singularidade compõe este ideal de 
fundação, que reside na diferença, naquilo que inaugura certo sentimento novo. 
Crianças, velhos, prostitutas, cegos, visionários, catrumanos fazem parte desta família 
de singulares e excluídos, e que nas narrativas de Guimarães Rosa fundam, ao lado da 
palavra, um universo novo, desconhecido. 
1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OLHAR 
Nem sempre é possível saber o que vem primeiro: fazemos perguntas para ver 
melhor, ou precisamos ver melhor para melhor perguntarmos? Na obra rosiana a 
mutabilidade constante das coisas é vivida integralmente, não só nas situações 
apresentadas nos enredos, mas no que diz respeito à linguagem movimentadíssima e 
irrequieta. O Real é colocado não como uma verdade, mas como ambiguidade, e, por 
isso mesmo, questionado. As certezas são corroídas de diversas formas, 
ininterruptamente. O discurso rosiano anda na contramão da história do pensamento 
ocidental que, ao longo dos séculos, buscou “domesticar” a nossa percepção da 
realidade, criando uma inteligibilidade anterior à nossa percpeção das coisas. Nesse 
sentido, Antônio Jardim faz uma crítica à linearização deste tipo de conhecimento que 
desconsidera a ambiguidade como uma instância importante e necessária para a 
experiência da verdade:
Produzimos instrumentos e os generalizamos, em todos os níveis e em todas as 
dimensões. Instrumentalizamos e generalizamos toda a realidade por meio de um 
instrumento e de um gênero que é entendido e colocado como perene – a idéia, o 
maior de todos os instrumentos já inventados pelo ser humano. Conformou-se assim o 
saber no Ocidente como conhecimento do gênero a priori, perdeu-se o sentido de 
verdade como o que se manifesta e se oculta, se vela se desvela, se vela e revela. A 
partir de então, procuramos uma identidade sem diferença, uma medida pela certeza e 
uma representação pela semelhança. (JARDIM: 2003, p. 5) 
Guimarães Rosa em fotografia do acervo da família Tess. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira 
Salles, 2006.
Guimarães Rosa acredita que o mistério pode ser melhor sondado e depurado 
numa literatura que esteja impregnada dos conteúdos que constituem a condição 
humana, muitos deles insondáveis a “olho nu”. Em entrevista ao seu tradutor Gunter 
Lorenz, o autor reflete sobre o que espera de sua literatura: “...Porisso também espero 
uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme o cosmo num sertão no qual a 
única realidade seja o inacreditável. A lógica, prezado amigo, é a força com a qual o 
homem algum dia haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar 
com justiça.” (LORENZ, 1991, p. 93) 
1.1 AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS: A ESTÓRIA NÃO QUER SER A 
HISTÓRIA
Na tentativa de nos fixarmos neste olhar de que temos falado apresentaremos, 
a seguir, algumas considerações acerca de um livro precioso para a contemplação deste 
olhar. Publicado em 1962, “Primeiras estórias” revela um escritor a quem não falta o 
domínio do gênero do conto curto. Os personagens deste livro vivem uma realidade 
enigmática, que se oferece em toda a sua complexidade, ambiguidade e imprecisão. 
Primeiras estórias apresenta, em estilo bastante diferente de Grande sertão: veredas e 
dos outros livros de Guimarães Rosa, o tema da perplexidade estreitamente vinculado 
ao tema da busca da identidade na singularidade e na diferença. E a estes temas está 
vinculado, sobretudo, o ato de ver. Conforme Costa Lima " 'Primeiras estórias', no seu 
todo, mostra o autor ainda explorando veios novos ou aprofundando antigos.” (LIMA, 
1991, p. 500) E continua: "Em Guimarães Rosa, o mundo se abre como problema. Ele 
é perplexidade e mistério. Às vezes pode ele raiar numa "verdade extraordinária" : a 
alegria cósmica, de que o amor é apenas uma das expressões. Outras vezes o mundo se 
fecha no seu círculo de enganos. É assim que o mundo é aberto por Guimarães Rosa 
como um leque de perspectivas." (Ibidem, p. 500)
Capa de Primeiras Histórias, Livraria José Olympio Editora, 6ª edição, 1972.
https://www.youtube.com/watch?v=Fzk6RnzQi58 (desenho animado)
Esta coletânea contendo.... contos é uma obra idiossincrática na trajetória do 
autor, pois apresenta vários desdobramentos temáticos sempre relacionados à questão da 
relativização das certezas, por meio de jogos constantes com uma linguagem que revela 
a inquietação dos personagens, retratada nas singularidades dos seus procedimentos. 
Povoada de crianças, loucos, cegos, e excluídos, o livro está repleto de elementos do 
plano mágico-simbólico, expressos na escolha dos personagens, no olhar do narrador, 
na luminosidade sugerida no jogo de luz e sombra, nas falas impactantes das crianças, 
no plano das reminiscências, e na evocação à loucura, como forma não de desordem, 
mas de busca de uma outra instauração da ordem. Se a razão é considerada um 
instrumento para uma apreensão ordenada do real, nestas estórias este conceito é 
polemizado, sendo os comportamentos estereotipados postos em crise. Nesse sentido, a 
presença das crianças consiste em uma expressão poética deste questionamento do real, 
e do conceito de Razão. A expressão "Pré-consciência", nesse sentido, – proposta por 
Alfredo Bosi, é muito adequada, pois diz respeito a "modos pré-lógicos da cultura: o 
mito, a psique infantil." (BOSI, 1970, p. 484)
É importante ressaltarmos que a opção por estes personagens excepcionais 
está muito relacionada com o próprio espírito criador do autor, que conseguiu construir 
uma obra que espelhasse sua própria inquietação. Tudo, em suas narrativas, revela este 
anseio pela renovação e pela busca de uma palavra ainda por dizer, porque, subjacente a 
estes procedimentos literários, está, mais que tudo, a busca de uma essência perdida, 
anestesiada no homem. Para iluminar nossas afirmações, são valiosas as palavras de 
Maria Luísa Ramos: 
Com efeito, é essa a condição essencial do estilo de Guimarães Rosa: renovar, 
redescobrir, criar. E, assim como procura desvendar nas desgastadas palavras de todos 
os dias a sua latente expressividade, lança-se inteiro na ansiosa busca do humano, 
oculto na brutal mediocridade da massificação. Talvez, por essa razão, o escritor 
explore tanto as personagens infantis, a ponto de abrir e fechar o volume com estórias 
que envolvem o Menino, assim sem nome, sem comportamento estereotipado, 
reagindo com o mais espontâneo fervor às coisas do mundo e ao seu peculiar suceder. 
(RAMOS, 1991, p. 515, 516)
O que mais nos angustia não será a nossa incompreensão acerca dos mistérios? 
E por isso mesmo, diante desta impossibilidade de apreensão do obscuro, os 
personagens de Rosa, ao invés de tentarem apreendê-lo, vivem-no intensamente. 
Riobaldo, em Grande sertão: veredas, desabafa: “Ah, o que eu não entendo, isso é que é 
capaz de me matar...” (ROSA, 1994, p. 211) Olhar também é uma tentativa de entender. 
De ver para crer, ou se não, para descrer. Riobaldo, jagunço corajoso, respeitado por 
todos, sofria por não ver, e depois por ter constatado que não viu o que sempre estivera 
tão próximo. “Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real 
verdade?” (ROSA, 1994, p. 220), pergunta-se mais uma vez Riobaldo. Para este, seu 
campo de visão só se alargou depois que o tempo passou e ele pôde parar, tomada a 
distância, e ver o que se passara. 
Muitas vezes, somos traídos pelo que vemos, porque somos o próprio processo 
que vivemos, somos a própria dor e a alegria que vivemos, somos o sujeito e o objeto, 
não nos distanciamos. Assim sendo, o desafio maior desses personagens, velhos, 
jagunços experientes, fazendeiros, crianças, mulheres... refere-se ao aprendizado da 
harmonia dentro da desarmonia, da organização das coisas, da busca da completude 
num universo onde reina o caos.1
1
A palavra “de lá”
De todas as expressões utilizadas pela protagonista de “A menina de lá”, a que 
mais nos chama a atenção é a frase que, segundo o narrador, ela sempre repetia: “Tudo 
nascendo!” (ROSA, 1994, p. 402) 
Guimarães Rosa em seu escritório no Rio de Jeneiro. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 
2006.
Tal enunciado concentra toda a força dos personagens de Guimarães Rosa e a 
sua maneira única de ver o mundo, além de revelar o vigor que o autor deu à sua 
linguagem, porque este acreditava numa língua tão viva quanto a própria vida. Em 
entrevista a seu tradutor alemão Gunter Lorenz, Guimarães Rosa explica o seu método 
para escrever, o qual, segundo o autor, “implica na utilização de cada palavra como se 
ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e 
reduzi-la a seu sentido original.” (LORENZ, 1991, p. 81 ) Sua obra contempla um 
universo de coisas nascentes e moventes do qual fazem parte as crianças, com suas falas 
insólitas. Além das questões ligadas ao discurso, vale ressaltarmos que nas estórias de 
Guimarães Rosa tudo parece estar sempre nascendo, mesmo quando ronda a morte 
e/ou a velhice. Com base nisso, convém buscarmos um diálago com outros 
personagens e estórias do autor, nas quais estes princípios também estão presentes. Em 
Grande sertão: veredas, por exemplo, o clímax da estória não se dá quando Diadorim 
morre lutando com Hermógenes, mas quando, na cena seguinte, ele renasce com os 
seus aspectos femininos para a vida de Riobaldo. Neste momento, morre uma parte de 
Riobaldo, mas algo essencial que ele viera perseguindo é acordado nele para sempre. 
Nesta longa narrativa, o fluir constante do mundo é expresso em uma linguagem 
dinâmica e visceral, como é a própria existência e travessia do homem aqui na terra. 
Nesse sentido, é sempre valioso reiterarmos que a obra de Guimarães Rosa é a 
expressão de uma harmonia entre projeto literário, ideal de vida, construção dos 
personagens e dos enredos. Tudo conflui, em seus textos, para o rebrotar incessante da 
vida, e, consequentemente, da palavra.Por isso, as crianças na sua obra são presença tão 
marcante, porque elas concentram em suas atitudes e em sua linguagem este potencial 
criativo que a vida não cessa de jorrar. Na obra do autor também os velhos revelam 
este vigor, como se neles acendesse, de repente, uma derradeira centelha de vida, que 
vai modificar o rumo do destino ainda uma vez mais. Neles floresce o desejo de 
recomeçar, ou de dar início a algo ainda não vivido. A velhice não representa o fim, nem 
o estancamento de um processo criativo, mas a morte do que é velho e precisa, de fato, 
morrer, para que outras instâncias do ser, ainda inexploradas, possam ganhar corpo. 
Como diz o Vaqueiro Tadeu, em “Cara-de-Bronze”, “Olhe, irmão: Deus é menino em 
mil sertões, e chove em todas as cabeceiras...” (ROSA, 1994, p. 674) 
Além das crianças - os loucos, os cegos, os aleijados, as meretrizes, homens 
primitivos como João Urugem, (“Uma estória de amor”), e imprevisíveis como 
“Augusto Matraga”, ( “A hora e a vez de Augusto Matraga”) são alguns exemplos de 
como a literatura rosiana afronta o pensamento clássico-dicotomizado e evoca novos 
caminhos do ser e da linguagem que precisam estar sempre renascendo. 
Voltando a “A menina de lá” é importante pontuarmos que Nhinhinha não é a 
menina de lá porque veio de outro planeta, mas porque ela ainda consegue ver as 
“coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, 
p. 401) E a pura vida é movimento. Até o narrador demonstrava admiração por 
Nhinhinha e pela forma como ela falava. É o que nos mostram os fragmentos a seguir: 
“Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - “Tatu 
não vê a lua...” (idem) ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito 
curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos 
sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; 
ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem 
perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, p. 401)
Com relação às formas linguísticas utilizadas por Nhinhinha, estas 
proporcionam uma reflexão sobre o empobrecimento da língua, que deveria ser 
considerada como uma possibilidade de desdobramento criativo do potencial humano, e 
não um veículo de comunicação, um meio para se chegar a um objetivo. Nesta estória, 
há duas categorias de linguagem: uma que é fluxo e impacto, - a de Nhinhinha - e outra, 
a dos adultos, estagnada e funcional. Nessa perpectiva, Deleuze traz uma importante 
contribuição no que diz respeito à sintaxe: Para o autor: “Já não é a sintaxe formal ou 
superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma 
criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do 
desequilíbrio.” (DELEUZE, 1997, p. 127)
Na sua sintaxe singular, Nhinhinha apresenta uma língua “...em perpétuo 
desequilíbrio” ou, usando outra expressão, como “a gagueira criadora” (Ibidem, p. 
127):
Suspirava, depois: - “Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “ Não sei.” Aí observou: 
- “ O passarinho desapareceu de cantar...”
- “Jabuticaba de vem-me-ver...” 
- “Eu ... to-u... fa-a-zendo.” (ROSA, 1994, p. 401)
- “E eu? Tou fazendo saudade.”(ROSA, 1994, p. 402)
- “Eu queria o sapo vir aqui.” (Ibidem, p. 402)
- “Está trabalhando um feitiço...(Ibidem, p.402)
- “Alturas de urubu não ir...” (Ibidem, p.402)
- “Estrelinhas pia-pia.” (Ibidem, p. 402)
- “Ele xurugou?” (Ibidem, p. 401) 2
2 XURUGAR Voc. Inventado de significado indeterminável.// O autor revela com ele a 
estranheza da menina que o usou, dotada do pendor de criar palavras. (LÉXICO, G.ROSA, MARTINS, 
2001, p. 531)
 Palavra em movimento
O uso dessas e de outras expressões e palavras revela uma habilidade 
“suasibilíssima”3 da menina, que faz recuperar a originalidade que há no fundo das 
coisas esquecidas. Nhinhinha vê “só a pura vida”, o que a faz parecer excêntrica, 
usuária de um discurso esdrúxulo, mas livre de estereótipos. É nesse sentido que esta 
estória inova muito mais no que poderia haver de estranhamento nas atitudes da menina. 
Quem está mais conectado com o sentido das coisas não se assustará com o sentido das 
palavras que urge em ser recuperado na fala da menina. De certo modo, esta narrativa 
nos faz pensar sobre o esvaziamento das experiências linguísticas do mundo pós-
moderno, reflexos, talvez, de um momento em que os paradigmas estão sendo 
desconstruídos, bem como de uma concepção de linguagem entendida como puro 
instrumento ou veículo de informação e conhecimento. Um mundo que instrumentaliza 
as experiências e as relações só aceita uma linguagem-instrumento, comprometendo a 
dimensão expressiva e transcendente da linguagem. Na contramão disto, esta estória 
redimensiona o papel da literatura como o lugar de desvio onde as questões humanas 
são priorizadas e singularizadas. A presença de Nhinhinha nos propicia compreender 
melhor o mal-estar da cultura do adulto num mundo ao qual ele se acostumou e com o 
qual perdeu as conexões mais profundas. Isto não é privilégio apenas desta estória. Ao 
contrário, tal impasse infância/mundo adulto está colocado em quase todos os contos. 
Em “A menina de lá” a reação dos adultos mostra, sobretudo, que eles perderam contato 
justamente com aquilo a que a menina está mais sintonizada: a vida e a revelação 
cotidiana dos mistérios. Por isso, como diz o narrador “Ninguém entende muita coisa 
que ela fala...” (ROSA, 1994, p. 401) De fato, não é tarefa fácil para um adulto 
compreender o que uma criança diz, porque ele está cheio de roupagens da cultura, e 
cada uma diz respeito a um setor de sua vida. A criança, ao contrário, ainda não está 
setorizada e capta o mundo com um olhar capaz de penetrar em lugares que uma visão 
dicotomizada não consegue. Em Um sopro de vida, Clarice Lispector nos faz lembrar 
que “Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade que se 
repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o 
3 A expressão em destaque foi empregada pelo narrador ao se referir à menina como “ – 
suasibilíssima, inábil como uma flor.” (ROSA, 1994, p. 401) e mostra que ele reconhece o poder 
persuasivo da menina. Conforme Martins, esta palavra vem de "suasível” var. de suasivo, próprio para 
persuadir.” (MARTINS, 2001, p. 470)
apaziguamento do medo, a negação do medo – a civilização enfim.(...)” E no mesmo 
trecho, continua a autora: “Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda 
verei muitas coisas. Para falar a verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também 
é algo para se ver.” (LISPECTOR, 1978, p. 74)
"Nonada". Xilogravura de Arlindo Daibert, 1984. Imagens so Grande Sertão, Editora UFJF, 1998
“A menina de lá” propicia a reflexão sobre um tema bastante valioso que é a 
recuperação da singularidade da palavra. As experiências da menina parecem ser 
sustentadas pela própria linguagem, pois não parece haver neste conto disparidades 
entre o vivido e o dito. A palavra brota, assim como brotam as percepções. Elas são 
imediatas, coladas às experiências. Por meio das falas de Nhinhinha penetramos na 
corrente viva da língua e da infância. Nhinhinha é descrita como “perpétua”, e isso 
assustava os adultos. (ROSA, 1994, p. 401) Mas o que importa é que o tempo em que 
ela vive as coisas diz respeito mais ao tempo real de suas experiências, e não a um 
porvir. Diante da pergunta – “ Nhinhinha, que é que você está fazendo?” Ela respondia: 
“ –Eu... to-u... fa-a-zendo.” (Ibidem, p. 401) Ela é um processo de vida que se faz e de 
linguagem que se renova. Quando há menção ao futuro é também para se referir a um 
lugar desconhecido. “Suspirava, depois: ‘ Eu quero ir para lá.’ – Aonde? – ‘ Não sei.’” 
(ROSA, 1994, p. 402 ) O título da estória metaforiza o entre-lugar em que a 
protagonista vive. “De lá” é uma expressão de lugar que evoca outras possibilidades: 
lugar do discurso, lugar do sem lugar, lugar da infância. Nesse sentido, são inspiradoras 
as palavras de Solange Jobim e Sousa:
A criança está sempre pronta para criar outros sentidos para os objetos que possuem 
significados fixados pela cultura dominante, ultrapassando o sentido único que as 
coisas novas tendem a adquirir (...) A criança conhece o mundo enquanto o cria e, ao 
criar o mundo, ela nos revela a verdade sempre provisória da realidade em que se 
encontra. Construindo seu universo particular no interior de um universo maior 
reificado, ela é capaz de resgatar uma compreensão polifônica do mundo, 
desenvolvendo, através do jogo que estabelece na relação com os outros e com as 
coisas, os múltiplos sentidos que a realidade física e social pode adquirir. Por isso 
enriquece permanentemente a humanidade com novos mitos. Grifos do autor 
(JOBIM E SOUZA, 2001, p. 160)
A língua de Nhinhinha, de Brejeirinha, de Miguilim e de outras crianças 
extrapola os limites do poder do mundo adulto. Quando o narrador em “A menina de lá” 
a respeito de Nhinhinha diz que “Ninguém tem real poder sobre ela...” (ROSA, 1994, p. 
402) está legitimando o universo imprescrutável da criança e da própria literatura, que é 
também o espaço fora do poder. Enfocando o “lá” que sobressai no título, remetemo-nos 
ao conto “A terceira margem do rio” no que o seu título possui de carga semântica 
similar ao primeiro. Ambos são lugares simbólicos mais líquidos e flutuantes. 
Representam, sobretudo, as diferenças entre os espaços e apontam para outros, que, 
embora existam, precisam ser inaugurados. E é pela linguagem, a partir e de dentro do 
próprio discurso que este lugar passa a existir. É o lugar da criação, e da indefinição. 
Não é de se estranhar esses termos marcadores de lugar na obra de Guimarães Rosa; 
eles são também nomeadores de um mundo no seu sentido mais inominável. Portanto é 
de se compreender que o autor recupera a palavra estória, e que nas suas “Primeiras 
estórias” as crianças sejam tão prestigiadas, porque a presença e o discurso delas resgata 
o que há de poético no prosaico, o que há de verossímil no acontecido, o que há de 
simbólico no real, e o que há de inconsciente no consciente. Sobre esse aspecto Saraiva 
chama a atenção para o fato de que o advérbio “lá” aparece somente uma vez no corpo 
do conto e “que todavia lhe dá a relevância titular, sem que mesmo assim seja fácil 
determinar o seu real ou simbólico valor espácio-temporal. Para o autor, 
O ‘lá’ rosiano tanto pode indicar o espaço celeste, ou o ‘além’ da vida, como o espaço 
terrestre ou a vida terrena, e até o espaço do corpo; não é necessariamente a diferença 
interespacial que justifica a oposição cá/lá, já que esta pode dar-se no interior do 
mesmo espaço, o que justifica é a visão ou a consciência, por parte do narrador ou de 
algum personagem, de uma fratura ou distância... (SARAIVA, 1998, p. 95)
Nesta narrativa retornam a força da palavra e as suas repercussões. A palavra é 
uma personagem importante, responsável por estreitar os laços entre os territórios do 
mito e do real, levando um ao outro, fundindo um no outro. Sobressaem as palavras, na 
mesma proporção em que emergem os personagens. A estória funde a imaginação da 
protagonista com a imaginação do autor no que esta tem de prodigiosa, misteriosa e 
desafiadora. Funde também a perspicácia de ambos em criar palavras que não traduzem 
o intraduzível, mas que recriam os fatos esquecidos. Em Guimarães Rosa existe, como 
afirma Wendell Santos, “uma euforia da linguagem, um retorno ao estilo metafórico que 
o diferencia do estilo metonímico da tradição anterior.” (SANTOS, 1978, p. 176) As 
falas da menina são mágicas e prodigiosas porque são geradas e alimentadas no que elas 
possuem de genuína originalidade. A magia e o milagre só podem ser interpretados se 
concebidos dentro do vigor da própria palavra, inédita, que é, por si só, um milagre. 
Este é um dos milagres que a narrativa em questão nos oferece, o qual encontra a sua 
melhor expressão neste comentário do narrador acerca de Nhinhinha: “O que ela queria, 
que falava, súbito acontecia.” (ROSA, 1994, p. 402) 
Acreditamos que a “movência” é um princípio catalisador da obra de 
Guimarães Rosa, e que a linguagem não pode estar separada da vida. A infância não 
pode se separar do devaneio. A linguagem da infância revela tal dinâmica, esse fluxo 
constante que é a vida. Outro autor inspirador neste sentido é Gaston Bachelard, cujo 
pensamento revela como o espirito fabuloso da criança se expressa na sua própria 
linguagem. Cremos também que a presença de tantas crianças na obra de Guimarães 
Rosa é uma perfeita ilustração de como a vida é um jorro de mudanças, e de ciclos que 
não param de fluir e refluir. Assim é a linguagem, porque assim é a vida. Nesse sentido, 
reflete Bachelard:
Toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa. Não que ela se deixe impregnar, 
como se acredita com excessiva facilidade, pelas fábulas sempre tão factícias que lhe 
contamos e que só servem para divertir o ancestral que a conta. Quantas avós não 
tomam o seu neto por um tolinho! Mas a criança que nasceu esperta atiça a mania de 
contar as sempiternas repetições da velhice contadora de histórias. Não é com essas 
fábulas fósseis, esses fósseis de fábulas, que vive a imaginação da criança. É nas suas 
próprias fábulas. É no seu próprio devaneio que a criança encontra as suas fábulas, 
fábulas que ela não conta a ninguém. Então, a fábula é a própria vida." 
(BACHELARD, 1998, p. 113)
O discurso infantil 
No desejo de ampliar nossas reflexões acerca deste olhar póetico na obra de 
João Guimarães Rosa, teceremos alguns comentários a respeito de um tema que é 
reincidente e que se encontra num dos mais altos patamares de todas as discussões 
referentes à infância. Trata-se da questão da imaginação, da força do pensamento 
mágico na criança, que a ajuda a encontrar soluções para situações incompreensíveis, 
por meio de um brincar não só corporal mas que, transcendendo o próprio corpo, resvala 
para o pensamento..
Manuelzão, companheiro de viagens de Guimarães Rosa. Documentário: https://www.youtube.com/watch?
v=yAROdFxCvSM
Guimarães Rosa soube dar ao imaginário infantil o seu devido valor. Por meio 
dos meninos e meninas espalhados em Primeiras estórias, encontramos as crianças de 
todos os tempos e lugares, e sua presença, aliada a uma linguagem totalmente adequada 
ao espírito da infância, revela uma verdadeira celebração desta. 
Ao observarmos as falas das crianças, veremos que elas estão carregadas de 
poesia, seja no aspecto fônico, rítmico, ou do ponto de vista semântico. Podemos dizer 
que, ao dar voz às crianças, Guimarães Rosa apura o que no seu discurso já é 
inquietante e imprevisível, uma vez que a fala da criança está longe de ser aquela 
esperada pelos adultos, emaranhados no seu discurso racional e padrão. 
Não há dúvida de que Guimarães Rosa conseguiu captar o âmago da infância 
com uma palavra extremamente "infantil", no sentido de revelar os mecanismos 
linguísticos específicos da criança, mas sem apresentá-la como um ser alienado. O autor 
de Primeiras estórias conseguiuolhar e narrar a criança, colocando-a em foco com o 
que ela tem de mais poderoso e dinâmico, que é a sua linguagem. É uma forma distensa 
de falar. O que parece pertencer ao reino do nonsense é, em verdade, o uso da fantasia 
para o estabelecimento de uma relação ativa com a realidade.
Trata-se de uma gramática interna ainda intocada pelo discurso dominante. 
Esta fala distingue a criança do mundo dos adultos, preservando-a do discurso 
automatizado, atrelado às especificidades do dia-a-dia racional e funcional ao qual o 
homem se submete, e que Guimarães Rosa tanto procurou redimensionar. A tendência 
dos adultos é rejeitar este discurso, introduzindo a criança no discurso em que 
predominam as concordâncias e a "coerência" . Se a fala da criança nos parece 
incoerente é porque, entre outras questões, podemos pensar no discurso poético como 
fator de incoerência no sentido de desestabilizar o discurso que faz parte do lugar 
comum, com o qual todos já se acostumaram. Nessa perspectiva, o discurso poético 
escapa àquela coerência que não nos tira do lugar.Tal discurso, inclusive, já foi 
associado por Bachelard, na sua Poética do Devaneio, ao discurso infantil. O discurso 
considerado polifônico por Bakhtin é o tipo de discurso produzido por poetas e crianças, 
e que se diferencia do discurso monofônico pelo seu tom incoerente, imprevisível, 
chocante. 
Ao reproduzir as falas das crianças, por exemplo, o autor revela um 
procedimento literário e linguístico que se aproxima bastante do processo de aquisição e 
de construção da linguagem peculiar à criança. É redundante dizer que a língua de 
Guimarães Rosa singulariza as experiências, e singulariza-se a si mesma, entre outras 
coisas, pelo inesperado da sintaxe, pelas insólitas e inquietas desacomodações na 
própria estrutura da língua. No entanto, nas narrativas em que o enfoque é a criança, 
vemos saltar no texto as criações inesperadas de Guimarães Rosa, e julgamos que é 
neste momento que a língua do autor se alia com total liberdade à linguagem da criança, 
que é como a do autor, um processo em construção, puro movimento. Podemos verificar 
que, por meio desta desconstrução ou reconstrução linguistica (lexical, sintática, 
estilística, morfológica), Rosa perverte (assim como as crianças o fazem) as normas 
gramaticais, usando procedimentos dinâmicos e extremamente produtivos. Esta nova 
maneira de dizer revela, sem dúvida, um intenso desejo de olhar e de mudar os pontos 
de vista. Olhado do ponto de vista da criança, o mundo poderia ser lido sob a 
perspectiva de uma gramática da fantasia. Gianni Rodari compartilha conosco deste 
pensamento, ao valorizar, por exemplo, o emprego dos prefixos, na linguagem da 
criança. (RODARI, 1973, p. 32) Para o autor, um dos modos de tornar produtivas as 
palavras, em sentido fantástico, é deformá-las. As crianças devem fazê-lo, como um 
jogo, um jogo muito sério, porque as ajuda a explorar as possibilidades da palavra, a 
dominá-la, forçando declinações até então inéditas, e estimula a liberdade da criança 
enquanto ser "falante" com direito à sua ‘prosa pessoal’, (...) encoraja o 
inconformismo." (RODARI, 1973, p. 32) Conforme o autor, "Muitos dos "erros" das 
crianças não são erros: são criações autônomas das quais elas se servem para assimilar 
uma realidade desconhecida." (RODARI, 1973, p. 35) 
As crianças, quando brincam, levam isso muito a sério. A articulação da 
linguagem é também para elas um jogo em que os sons, o ritmo, a melodia das frases, a 
opção por uma palavra inexistente no dicionário, a inversão da posição dos adjetivos, o 
uso de prefixos onde estes não são esperados, a improvisação de palavras únicas para 
traduzir um único sentimento ou uma impressão das coisas, fazem parte da sua fantasia 
criadora, bem como da do escritor, principalmente de Guimarães Rosa. Portanto, 
quando Nhinhinha diz: “...xurugou...” e outras tresloucadas palavras, quer dizer que o 
significado extrapolou os limites do significante, e que assim como se brinca com 
objetos concretos, brinca-se com as palavras, e é possível estabelecer com elas uma 
relação lúdica e séria. Bachelard já nos alertou sobre esta delicada ligação entre os 
códigos do poeta e da criança. Tal atitude lúdica em relação às palavras, própria dos 
poetas e das crianças, é o que faz com que as possibilidades e impossibilidades da 
palavra sejam exploradas ao máximo. Ambos, cada qual a seu modo, instauram uma 
forma de libertar a língua das redomas que a limitam; a criança ainda sem consciência 
de que faz, o poeta com uma consciência que às vezes só se explica pelos seus 
processos inconscientes, que permeiam os seus atos de criação. Nhinhinha e Brejeirinha 
são excelentes exemplos de uma liberdade absoluta de expressão: elas, assim como 
Guimarães Rosa, exercitam uma prosa poética, pessoal e única, e os significados do 
que dizem só podem ser compreendidos se entrarmos no jogo do qual são peças 
fundamentais o inconformismo, a liberdade criadora, a confiança na mudança.
Guimarães Rosa cria uma linguagem extraordinariamente impactante 
(principalmente do ponto de vista da sintaxe e dos padrões gramaticais de um modo 
geral), justamente porque buscou aproximar a linguagem da vida, porque considerava a 
vida fluxo constante, instabilidade, mudança. Como a infância. É interessante 
associarmos estes "desvios" de linguagem com os próprios "desvios" cometidos pela 
criança, diante dos quais os adultos se chocam, ou se surpreendem. Também formas de 
"desvios" são os textos poéticos, por sua autonomia em relação aos critérios 
estabelecidos pelo discurso monofônico. Podemos dizer que a linguagem da criança, 
da poesia e de Guimarães Rosa estão numa relação de semelhança; na obra de Rosa, 
especialmente para nós que estamos ouvindo o ser das crianças, é como se não houvesse 
barreiras entre criança, fala e poesia. Toda criança é poeta, todo poeta é criança. Se 
ouvirmos o que elas reinventam e como ressignificam a linguagem, ouviremos uma 
poesia em potencial, seja em relação à criança real ou à ficcional. 
São ilustrativos os exemplos de enunciados extraídos dos contos de Primeiras 
estórias.
"Tanto chove, que me gela!" ("Partida do audaz navegante", p. 469)"... E o 
cajueiro ainda faz flores..." (“Partida do audaz navegante”, p. 469)
"Ah, e você vai conosco ou sem-nosco?" (“Partida do audaz navegante”, p. 
471)
 "Você já viu jacaré lá?" – caçoava Pele. – "Não. Mas você também nunca viu 
o jacaré-não-estar lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não 
estar..." (“Partida do audaz navegante”, p. 472)
Este último trecho revela como o pensamento da criança pode mostrar-se 
insólito, só podendo ser expresso se for por meio de uma desacomodação linguística, 
ou, no caso, pela transformação de um sintagma verbal em um substantivo composto. 
No trecho abaixo, a poesia encontra-se justamente onde o desvio gramatical se instala, 
quando a palavra nos detém e nos faz voltar a ela.
Agora, eu sei. O Audaz Navegante não foi sozinho; pronto! (ROSA, 1994, p. 474) 
Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E 
pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que 
ficando cada vez mais bonito, mais bonito, o navio ... pronto: e virou vagalumes. 
(Ibidem, p. 474) 
 
O que é desvio consciente em Guimarães Rosa pode ser associado com o que é 
desvio inconsciente no falar da criança. Certamente que no texto acima as expressõesem destaque têm uma explicação gramatical sobre a qual não nos deteremos, pois não 
queremos nos prender a uma análise formal, já que o que nos importa é a apreciação 
desta presença coesa e harmoniosa entre o universo-discurso infantil e a linguagem do 
escritor, repleta de desvios, de expressões despropositadas, inesperadas, como é a 
criança. 
“G S : V". Xilogravura de Arlindo Daibert, 1984. Imagens do Grande Sertão, Editora UFJF, 1998.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O diálogo com as personagens rosianas está intimamente ligado ao diálogo 
com a linguagem, ou seja, ambos constituem os dois lados do tecido deste texto repleto 
de alinhaves imprevisíveis. Para tal propósito, um léxico comum não seria suficiente, 
como não o seria uma sintaxe ordenada pelos padrões gramaticais. Esta não cumpriria a 
tarefa de revelar as intrincadas relações humanas, - o impossível que é o homem. Se, 
como afirmamos no início deste artigo, o olhar está ligado ao perguntar, ao desejo de 
entender, o texto de Guimarães Rosa concentra a potencialidade deste questionamento. 
Sertão fechado, difícil e perigoso, sua escritura oferece-nos também veredas e campos 
gerais; atravessá-lo é um exercício, uma educação do olhar.
A radicalização da linguagem, a singularidade dos personagens, as artimanhas 
dos discursos, os encaixes narrativos, a abrupta inversão da sintaxe, o novo 
posicionamento do narrador são apenas alguns pre-textos para a realização de um 
projeto humano/literário cuja travessia só faz sentido se desencadear esse processo 
contínuo que é o da construção e desconstrução do olhar.
No entanto, por mais sertão que seja o texto rosiano, existe sempre a esperança 
da vereda. Ao leitor, caberá fazer a travessia literária. Sem dúvida precisará de um olhar 
incansável, que permeie mais descaminhos que caminhos certos, que não seja turvo para 
ver as linhas ocultas, invisíveis por trás daquelas outras, visíveis e estereotipadas. O 
desafio é um aprendizado, e para o leitor significa também aprender a olhar. Olhar, 
sobretudo, as belíssimas e singulares imagens poéticas que brotam ininterruptamente do 
seu texto, dos textos que elas fazem extrair de nós, e da promessa de novos olhares que 
elas nos despertam. 
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