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Página 1 de 40 O PRINCÍPIO ESQUECIDO – a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas Antônio Maria Baggio INTRODUÇÃO: A redescoberta da fraternidade na época do terceiro 1789 A Revolução Francesa proclama o lema “liberdade, igualdade, fraternidade”. Esse lema não era oficial; viria a sê-lo somente na República revolucionária de 1848. Posteriormente, atravessou vicissitudes históricas, ora sendo esquecido, ora tendo momentos de fulgor, até se impor com a vitória dos republicanos em 1879 e, em 1946, encontra lugar definitivo no artigo 2º da Constituição. Por que se ocupar com os acontecimentos de 1789 se o aparecimento da trilogia na época foi passageiro? Porque a revolução constituiu um ponto de referência histó rico de grande relevância e porque, pela primeira vez na Idade Moderna a ideia de fraternidade foi interpretada e praticada politicamente. No ocidente, em virtude da cultura cristã, a linguagem de fraternidade esteve continuamente presente com vasta gama de nuances. Mas em 1789, a novidade é que a fraternidade adquiriu dimensão política pela aproximação e interação com os outros dois princípios que caracterizam as democracias atuais: liberdade e igualdade. A trilogia arranca a fraternidade do âmbito das interpretações da tradição e a insere ao lado da liberdade e da igualdade, compondo três princípios e ideias constitutivos de uma perspectiva política inédita, introduzindo um mundo novo que logo decai pelo desaparecimento da fraternidade da cena pública: permanecem em primeiro plano a liberdade e a igualdade. Estas conheceram evolução que as tornou categorias políticas, manifestando-se tanto como princípios constitucionais quanto como ideias-força de movimentos políticos. Já a fraternidade, com exceção do caso francês, viveu aventura marginal. Com a aproximação do bicentenário da revolução francesa, uma nova atenção passou a ser dada à trilogia e à fraternidade e estudos desta redescoberta salientam trajetória que ajuda a explicar o sentido que a abordagem da fraternidade em chave política assume hoje. J. M. Roberts, em 1976, desenvolve estudo desenvolve estudo sobre a trilogia em si e sua relação com a maçonaria, aceitando as conclusões de Béatrice Hyslop (1951) e de Robert Amadou (1974: historiador e conhecedor da maçonaria, exclui a afirmação de que a invenção da trilogia foi de origem maçônica). A importância do trabalho de Roberts foi chamar a atenção para o tema para além da maçonaria. G. Antoine, com estímulo da Unesco e auxílio do Institut de la Langue Française e o Laboratoire d’Étude des Textes Politiques Français, no final dos anos 70, conduziu pesquisa e indagou em que medida os grandes ideais da Revolução estavam presentes na cultura dos séculos seguintes e se ainda eram vitais na Europa. Por meio de busca em artigos digitalizados, pesquisou o termo fraternidade e termos que são suas variações (solidariedade e participação). Afirma que a fraternidade sempre sofreu com o excesso das suas ambições e com a vaga amplitude que disso decorre e que seu conceito tem poderosas raízes cristãs que a impedem de ser um sinal de reconhecimento geral, afirmando que seria preciso esperar o ano de 1848 para que o Página 2 de 40 conceito de fraternidade encontrasse novos significados e amplo consenso. Antoine apresentou justamente o problema: o laço universal revela-se politicamente ineficaz e uma conotação mais precisa, de origem cristã, é rejeitada ao colidir com a concepçã o republicada de fraternidade. Para ele, é preciso entender a fraternidade como laço universal e dotado de conteúdos fortes, desde que não aqueles conferidos pelo cristianismo. Jacques Derrida, em seminário realizado em 1988, coloca no centro da análise a relação entre fraternidade e democracia: “nunca deixei de me perguntar [...] sobre o que se quer dizer quando se chama alguém de irmão e quando nisso se resume ou se subsume a humanidade do homem de modo idêntico à alteridade do outro [...] qual é a política implícita nessa linguagem?”. Giuseppe Panella, em um ensaio, parece estar convencido do papel não tanto de aplicação política quanto de função relacional da fraternidade: daí a necessidade de sua reconsideração e provavelmente de uma reavaliação de natureza não mais politicológica, mas sim de base antropológica. Alberto Martinelli assinala que a trilogia constituiu o núcleo normativo e critério interpretativo da sociedade moderno (projeto moderno da sociedade desejável). A partir dessas considerações, compreende-se a necessidade de uma pesquisa histórica séria que aprofunde os significados que a fraternidade assumiu com a mudança das culturas e projetos políticos. Atualmente, há um déficit de reflexão polí tica e uma impotência na abordagem dos problemas das democracias, que apesar de darem alguma eficácia aos princípios da liberdade e igualdade, estes estão longe de sua plena realização. A dificuldade em se pôr em prática os princípios leva à desconfiança e ao empobrecimento factual e definitório de seus conteúdos. A atual discussão sobre a fraternidade obriga a se comprovar as possibilidades e limites dos outros dos princípios, ou seja, o caráter utópico ou realista da ideia democrática. Ana Maria de Barros destaca a necessidade de readmissão da fraternidade porquanto somente a trilogia no seu todo, com a relação dinâmica entre os três princí pios, confere fundamento adequado às políticas dos direitos humanos. John Raws (A Theory of Justice) afirma que, no confronto com as ideias de liberdade e igualdade, a ideia de fraternidade sempre teve papel secundário na teoria da democracia. Ela é pensada como conceito menos político que os outros por não definir nenhum direito democrático e incluir certas atitudes mentais e linhas de conduta, sem as quais se perderiam de vista os valores expressos por esses direitos. A fraternidade inclui a estima social, a superação das relações servis, o senso de fraternidade cívica e a solidariedade social. Raws inicia um difícil processo de construç ão e definição dos princípios de justiça: precisamos encontrar um princípio de justiça que expresse fielmente a ideia subjacente. Apesar de abandonar a linguagem tradicional da fraternidade, sua intenção é introduzir uma fraternidade sistêmica como elemento imprescindível do novo contratualismo, fazendo-o mediante o princípio da diferença (capacidade de manter certa igualdade entre os diferentes – princípio de benefício recíproco). A fraternidade não é mais uma concepção impraticável, mas Página 3 de 40 um padrão perfeitamente aceitável desde que seja no seio da concepção democrá tica. HOJE – formulação explícita: a problemática realização da liberdade e da igualdade, inclusive nos países democráticos mais desenvolvidos, não poderia ser devida justamente ao fato de a ideia de fraternidade ter sido quase que totalmente abandonada (ou os três ou nada)? E o que implica e que consequências traz hoje essa questão no âmbito das diversas disciplinas relacionadas à política? Responder a esta pergunta implica esforço aprofundado dos estudiosos, pois a fraternidade foi descartada porque não podia conviver com a dura lei do Terror e acabou perdendo significado na esfera pública (resumindo-se a relações privadas – ex: ligação sectária como a maçonaria para fortalecer a própria rede de poder econômico e político ou sendo usada de forma deturpada: guerra Hungria e Tchecoslováquia – guerra de paí ses irmãos = sempre ideia de excluir os demais grupos humanos = deturpação da fraternidade), razão pela qual não é possível responder a esta pergunta apenas com os estudos já disponíveis. Hoje surge uma nova necessidade que impele a pergunta: a fraternidade pode se tornar a terceira categoria política, ao lado da liberdade e daigualdade, para completar e dar novos significados aos fundamentos e às perspectivas da democracia? Houve deturpações do conceito de fraternidade ao longo da história, tal como ocorreu na primeira guerra mundial (ideologias nacionalistas – um segundo 89) e, depois, com a queda do muro de Berlim (terceiro 89 – primeiro sinal de esperança foi perdido em virtude de novas e poderosas formas ideológicas que continuam a contrapor liberdade e igualdade, prisioneiras de uma dicotomia da qual não conseguem se livrar). Mas também a fraternidade foi adquirindo significado universal, chegando a identificar o sujeito “humanidade” (comunidade das comunidades), único que garante a completa expressão também aos outros dois princípios universais. Os problemas relativos à universalidade dos princípios democráticos, à exigência de serem aplicados a um sujeito igualmente universal, ao “sofrimento” por terem ficado presos a uma dimensão estatal, às formas que poderiam assumir mediante reflorescimento nas culturas, têm estado presentes nos debates do Ocidente. A fraternidade teve ainda certa aplicação política com a ideia de solidariedade: políticas do bem-estar social (tentativa de realização da dimensão social da cidadania). Ocorre que solidariedade permite uma relação vertical que vai do forte ao fraco, ao passo que a fraternidade pressupõe um relacionamento horizontal (ideia de solidariedade horizontal). Conclusão: é possível dizer que a fraternidade assume dimensão política adequada, sendo intrínseca ao próprio processo político, somente se realizadas pelo menos duas condições: (a) a fraternidade passa a fazer parte constitutiva do critério de decisão política, contribuindo para determinar, junto com a liberdade e igualdade, o mé todo e os conteúdos da própria política; Página 4 de 40 (b) consegue influir no modo como são interpretadas a liberdade e a igualdade garantia de interação dinâmica entre os princípios em todas as esferas públicas: política econômica (decisão sobre investimentos, distribuição dos recursos), legislativo e judiciário (equilíbrio dos direitos entre pessoas, pessoas e comunidades e entre comunidades) e internacional (para responder às exigê ncias entre os Estados e enfrentar os problemas da dimensão continental e planetária); CAPÍTULO 1: A IDEIA DE FRATERNIDADE EM DUAS REVOLUÇÕES: PARIS 1789 E HAITI 1791 1. A divisa republicana francesa na Revolução de 1789: 1.1. O ano de 1789: A Revolução destacou inicialmente só a liberdade. E esta nem era, quando começaram a surgir os lemas, o ponto de referência de todos que queriam mudar a situação vigente. Depois de 1789 os franceses foram aos poucos aprendendo a se sentir livres, mas durante a monarquia não se sentiam iguais. Até o golpe de estado de 1792, que derrubou Luís XVI, vigorava um regime censitário que conferia à metade da população o direito de voto. Os slogans eram lançados durante as manifestações públicas, principalmente nas bandeiras assumidas em 1790 pelos distritos de Paris, que constituíram os princípios que sintetizavam a Revolução. Num conjunto de 60 bandeiras, apenas uma fazia referê ncia à fraternidade – Distrito de Val-de-Grâce: “viver como irmãos, sob o império das leis”. Em 1790, há menção oficial à fraternidade na fórmula de juramento dos deputados eleitos para a federação: “permanecerão unidos a todos os franceses pelos laços indissolúveis da fraternidade”. Com o juramento cívico de agosto/1792, igualdade é oficialmente posta ao lado da liberdade: “juro que serei fiel à nação e manterei a liberdade e igualdade, ou morrerei em sua defesa”. Expressão oficial e mais duradoura da revolução. O termo fraternidade já tinha notável circulação em 1790: fraternidade que vinculava todos os franceses (sentimento patriótico). Camille Desmoulins descreve o primeiro aparecimento da fraternidade ao lado dos demais princípios na Festa da Federação, em 14/07/1790: descreve os soldados-cidadãos que se abraçam prometendo liberdade, igualdade, fraternidade. No depoimento, fica evidente o papel relevante da fraternidade, que assume o fundamento da cidadania, o vínculo extensivo a todos os cidadãos (França como um território unitário). No discurso sobre a organização das Guardas Nacionais (05/12/1790), Robespierre apresentou projeto de decreto que descrevia o emblema dos guardas: “Eles carregarão no peito estas palavras bordadas: o povo francês. E acima: liberdade, Igualdade, Fraternidade. Essas mesmas palavras serão inscritas em suas bandeiras, que trarão as três cores da Naçã o”. (mesma ideia de patriotismo – antiaristocrático). O marquês de Giardin fez discurso ao Clube dos Cordeliers em 29/05/1791 assim mencionando: “o povo francês, que aspira como base de sua Constituição à Igualdade, à Justiça e à Fraternidade universal, declarou que jamais atacará qualquer Página 5 de 40 outro povo”. O clube enviou o discurso a todas as associações patrióticas com pedido de adesão um dos instrumentos de divulgação da trilogia. O clube aceitava cidadãos passivos e mulheres, e seu caráter era muito mais pú blico (orientação política mais democrática que o clube dos Jacobinos que era claramente burguês). Foi o clube quem favoreceu o surgimento das Sociétés Populaires que colhiam homens, mulheres, burgueses e proletários, permitindo a difusã o da ideia do sufrágio universal, que pressupõe o conceito de povo (a fraternidade permite a formulação da própria ideia de povo, realidade mais ampla e múltipla do que a de nação). Nessas sociedades começou-se a usar o tu em lugar de vós, irmão e irmã no lugar de senhor e senhora (equivalência entre cidadão e irmão). Nesse contexto, a fraternidade introduz ideia mais ampla de cidadania, de caráter universal, pois antes se limitava apenas aos cidadãos ativos e surgem as Sociétés Fraternelles. Robespierre, em 1791, manda publicar discurso à Assembleia Nacional apoiando o sufrágio universal e fazendo verdadeiro elogio do polvo, que surgia como o novo sujeito político, bem mais amplo e plural do que a burguesia, que até então identificava a nação. Consolida-se o hábito de elogiar os pobres nas publicações revolucionárias. A ideia de fraternidade, de 1790-1791, sustentou o avanço do processo de democratização, fornecendo a base para a definição de povo e para a superação das divisões censitárias. Por que a trilogia não se impôs definitivamente em toda a França? Porque, no decorrer da revolução, a fraternidade desempenhou 2 papeis sucessivos: unir (deu à nação uma ideia-força em torno da qual esta poderia se constituir = homem novo, consciência pública, unidade entre os cidadãos) e dividir (pelas duas diferentes interpretações: uma voluntária e construída e outra proveniente da igreja – dádiva das origens, originária que precede os outros princípios). A questão foi receber a fraternidade sem pressupor a ideia de paternidade (irmã os sem pais). Com a morte do pai-rei, os revolucionários jacobinos foram obrigados a renunciar a ideia de fraternidade. Divisão dentro da França: “confraternizemos entre nós, patriotas, e não abdiquemos de nosso vigoroso ódio aos aristocratas. A fraternidade deve ser concentrada, durante a revolução, entre os patriotas, unidos por um objetivo comum. Os aristocratas não têm uma pátria, e nossos inimigos não podem ser nossos irmãos”. (discurso de Barère em 1794). Na época do Terror, a fraternidade se distancia do seu verdadeiro significado. “ Seja meu irmão, ou então eu o mato”. 1.2. As Raízes cristãs dos princípios da trilogia É impossível apontar um autor para a criação da trilogia, ela é criação coletiva de uma época, mas é possível indicar alguns autores que lançaram suas premissas. Étienne de la Boétie, 1550: foi republicado diversas vezes sempre que se queriadar um fundamento sólido à crítica antitirânica, tornando-se contemporâneo. “a natureza [...] fez-nos todos da mesma forma e, ao que parece, com o mesmo molde, Página 6 de 40 a fim de que nos reconheçamos companheiros ou, antes, como irmãos”. Se a natureza dotou os homens de características diferentes, não foi para induzi-los ao conflito, “ela queria dar espaço à afeição fraterna, a fim de que esta tivesse onde ser empregada, com uns tendo força de levar ajuda, e outros tendo a necessidade de recebe-la”. A liberdade nasce como consequência: se a natureza mostrou que não queria fazer-nos todos unidos quanto todos um, não devemos duvidar de que somos naturalmente livres, pois somos todos pares e ninguém deve entender que a natureza colocou alguém em situação de servidão, pois colocou todos nós num plano de paridade. a fraternidade, reconhecida e vivida pela razão como laço natural, cria a igualdade (que chamou de compaignie) e permite a liberdade. Trilogia enunciada de forma dinâmica baseada no papel fundamentador da fraternidade (entendida como interpretação correta da igualdade e da diversidade humanas). Obras de autores católicos do século XVII – tradição dos padres da igreja: a Igreja reúne os homens em fraternidade, os religiosos vivem a igualdade por não terem propriedades e os fiéis vivem na caridade, na santidade e na liberdade cristã. François Fénelon, 1699: descrição dos habitantes da mítica Bética: “vivem todos juntos, sem dividir as terras; cada família é governada pelo seu próprio chefe [...] todos os bens são em comum [...] não existem interesses que se oponham uns aos outros, e todos se amam com um amor fraterno que nada ofusca. É a supressão das vãs riquezas e dos falsos prazeres que mantém essa paz, essa união e essa liberdade. Eles são todos livres e todos iguais”. (fórmula que permite entrever a possibilidade de uma ordem social diferente, organizada de baixo para cima). Claude Fleury, 1810: a caridade torna todos os irmãos e os une em uma só família (comunidade cristã de Jerusalém). Abade de Notre-Dame d’Argenteuil: reafirmou os costumes dos israelenses e cristã os, sendo a fraternidade característica destes últimos. 1.3. A ação dos iluministas Os cristãos incluíram no circuito da cultura europeia os princípios da trilogia. Os iluministas arrancaram os princípios do cristianismo e procuraram fundamentá-lo na cultura pagã pré-cristã. Desenvolvia-se uma intensa batalha contra a Igreja e sua autoridade, e a trilogia se volta contra a própria Igreja. Quem mais sofreu foi a fraternidade: origem claramente cristã – não podia ser emendado completamente – perdeu sua centralidade. Rousseau critica o cristianismo porque, ao sublinhar a ideia de fraternidade universal, diminuía a coesão física. A fraternidade deveria ser endereçada apenas aos concidadãos e contribuir para reforçar a união dentro do Estado (ideia nacionalista). 2. A Revolução Negra 2.1. A situação do Haiti no estouro da Revolução Página 7 de 40 Em 1791, os escravos negros do Haiti se rebelaram e, em 1804, houve a proclamação da república independente. A revolução Haitiana pode ser considerada outra face da revolução Francesa. O Haiti teve importância excepcional e valor de modelo ao movimento anticolonialista na América Latina. Peculiaridade: primeira República Negra. Toussaint-Louverture, o principal chefe, junto com outros escravos, fez algo que a cultura europeia não conseguia admitir: 500.000 escravos importados da África rebelaram-se contra os senhores, lutaram por 13 anos, derrotaram 3 potências europeias e decidiram virar um povo, transformando-se num estado independente. Contexto: operários de São domingos, a burguesia francesa e a burguesia inglesa começaram a lutar por rivalidades e tensões, provocando conflitos que fizeram ruir a base do domínio e criar a possibilidade de emancipação. Os escravos se aproveitaram da oportunidade: tendo ouvido da revolução francesa, captaram o espírito da coisa (liberdade, igualdade e fraternidade). Realizam reuniões nas florestas, surgem movimentos isolados. 2.2. A França revolucionária e a ajuda econômica das colônias Ideia dos Haitianos – fazer valer a ideia de que “todos os homens nascem livres e iguais perante a lei”. Os franceses negaram reconhecer esse direito por motivos econômicos (tráfico de escravos movimentava a economia, a colônia representava 2/3 dos lucros comerciais e o tráfico era incentivado). Mesmo depois da revolução francesa, não havia qualquer interesse em acabar com a escravidão, mas tão somente em dar direitos políticos aos mulatos livres proprietários de terras, que muitas vezes também tinham escravos negros. A Assembleia Nacional decidiu que jamais deliberaria sobre o estado político das pessoas de cor que não nasceram de pai e mãe livres sem o voto preliminar, livre e espontâneo das colônias. Com a chegada dos espanhóis ao Haiti, os escravos propuseram lutar pelos franceses contra os espanhóis em troca da liberdade, o que foi aceito, acarretando o decreto de libertação geral de Sonthonax em 29/08/1793. 2.3. Os motivos culturais Os franceses também negaram o direito à liberdade por motivos culturais: a crença na inferioridade natural dos povos africanos. A Revolução francesa considerava a humanidade com base no modelo específico do homem, o europeu. Não houve efetivamente universalidade da trilogia. Iluministas chamavam de pré-conceito a cultura de matriz cristã (reflexão neo- escolástica), que fala na impossibilidade dogmática, canônica, de integrar ao esquema a escravidão de qualquer grupo de homens. Os iluministas criam uma antropologia nova, baseada no empirismo, para dizer que a humanidade na África era imperfeita e incompleta. Página 8 de 40 Poucos, como o padre Grégoire, interpretavam de modo efetivamente universal os princípios da revolução francesa, igualando brancos e negros, pois na bíblia está o fundamento da fraternidade universal baseada no fato de todos serem filhos do pai celeste. Foi recuperando a fraternidade em base bíblica que o padre superou os limites que a revolução impôs aos seus próprios princípios. Todavia, entendia que a liberdade no Haiti dependia da aquisição da cultura do iluminismo, da substituição das convicções religiosas africanas pelo catolicismo, da difusão da língua francesa. Mérito: apontar a fraternidade como o caminho a ser percorrido. Haitianos: querem que se reconheça o igual na diferença. Testemunho vivo de que a liberdade e a igualdade sem a fraternidade podem se voltar numa situação contrária; só a fraternidade permite que se alcance o humano. Universalismo em seu pleno sentido. O caso do Haiti mostra o papel que a fraternidade exerceu no nascimento dos Estados, quando a liberdade e a igualdade ainda não existiam e os combatentes lutavam sem medir sacrifícios, estando dispostos a dar a própria vida, e sua causa dependia inteiramente da fraternidade entre eles. A fraternidade funda os Estados. Experiência ausente nos livros do Ocidente. O Haiti abre o tema da fraternidade, que é capaz de dar fundamento à ideia de uma comunidade universal, de uma unidade de diferentes, na qual os povos vivam em paz entre si, no respeito das pró prias identidades. E justamente por isso a fraternidade é perigosa. Talvez seja por isso que não se aceita considera-la uma categoria política. Descobrimos que somos livres e iguais porque somos irmãos (fraternidade como alicerce dos demais princípios – princípio regulador: se vivida fraternalmente, a liberdade não se torna arbítrio do mais forte, e a igualdade não degenera em igualitarismo opressor). A fraternidade precisa ser vivida: ela é uma condição humana, ao mesmo tempo dada mas também a ser conquistada. É precisoreler a história para construir uma nova visão da política, baseada numa visão mais completa do homem. CAPÍTULO 2: Fraternidade: o porquê de um eclipse Por que, após a revolução francesa, a fraternidade desapareceu? Isto é um tema pouco discutido. O autor procura dar uma resposta a partir de considerações particulares feitas por alguns estudiosos. Os três eleitos falam do fenômeno revolucioná rio refletindo sobre o conceito de revolução em geral, pois a revolução francesa veio após a inglesa e a americana. Alguns disseram que ela foi arremate das antecedentes, e há quem diga que são completamente diferentes (como Edmund Burke). 1. A perspectiva liberal-democrática de Alexis de Tocqueville Conhecido pelo estudo “A democracia na América”, escreveu sobre a revolução francesa na obra L’ancien régime e la Révolution, talvez propositalmente esquecida, Página 9 de 40 que só veio a ser estudada recentemente. Tocqueville pergunta a si mesmo porque a França não conseguiu fazer o que os EUA fizeram após a revolução, país que era uma conquista democrática de vanguarda, ao passo que a França, depois da revolução, deixou de lado as melhores conclusões realizadas. Para ele, a razão é simples: enquanto a revolução americana se baseou em pressupostos de natureza religiosa, a francesa deixou a religião de lado, e o princípio mais prejudicado foi o da fraternidade por ser o mais claramente ligado a motivações religiosas. Para ele e outros pensadores (como lorde Acton), a revolução americana é o triunfo da liberdade de consciência; os americanos fizeram algo que os europeus jamais conseguiram fazer porque olhavam para os americanos com sentimento de superioridade, como se fossem a história madura do mundo. Todavia, é a América que constitui a plena realização da história europeia, pois não só conquistadores foram para lá; ideias gloriosas também. Tocqueville acredita que os norte-americanos encontraram um antidoto para a degeneração da democracia, fornecido pelo sentimento de liberdade que se fundamenta em princípios religiosos, os únicos capazes de deter derivas perigosas e imprevisíveis. Para ele, o espírito puritano e de outros movimentos reformadores, em nã o encontrando espaço na Inglaterra, emigraram para os EUA. O triunfo do cristianismo nos EUA é o triunfo de todas as correntes cristãs da Europa. Houve fundamental papel dos imigrantes irlandeses, tanto que a primeira constituição moderna de 1665, é irlandesa. O que de mais importante Tocqueville afirma é que o espírito de religião encontra sua razão de ser nos princípios do Evangelho, e que é justamente esse cristianismo, com seus valores básicos, que é aceito por todos os norte-americanos. No preâmbulo de Filadélfia há uma evocação explícita desses princípios religiosos, que foram pressupostos fundamentais da história norte-americana. A religião desempenhou papel importantíssimo na civilização dos EUA. O espírito religioso conseguiu moderar a agressividade, a rudeza, o espírito de pilhagem, por isso é impossível falar de democracia prescindindo da religião. É preciso enxergar os EUA nã o como o passado dos europeus, mas como o futuro deles, por constituir o único país que realizou uma democracia, ainda que liberal. O que deu errado na França: quando a revolução estourou, havia três categorias sociais não homogêneas na França. As maiores diferenças estavam no clero (parte defendia privilégios, parte se orientava pela doutrina cristã). Triunfou na França um tipo específico de filósofo que ignorava a vida concreta; interessado em pensamentos abstratos, inventa utopias perigosas e impossíveis de serem atuadas. A revolução, ao atacar personalidades do baixo clero, em contato com o povo, permitiu o triunfo da heresia e incredulidade e, sem o pressuposto religioso, propósitos como liberdade, igualdade e fraternidade se transformaram em abstrações. Conclusão: no lugar de religião, abriu-se espaço para ideologia. Enquanto a revolução americana desejou referir-se a princípios religiosos para implementar a democracia na medida do povo norte-americano, os franceses perseguiram sonhos quiméricos de perfeição, entusiasmando-se com ideias gerais e Página 10 de 40 abstratas ao perderem a capacidade de se ocuparem hodiernamente da administração e fatos concretos. 2. A perspectiva conservadora de Augustin Cochin (século XX – l’Éspirit du Jacobinisme) Esboça como ninguém o verdadeiro sentido da ideologia que constitui o autê ntico espírito do jacobinismo. A revolução francesa significou, para a França, um divórcio consigo mesma: no início, havia uma situação paradoxal na medida em que era o Estado mais democrá tico (a burguesia = terceiro estado, fazia tudo no lugar dos nobres e alto clero) e, ao mesmo tempo, o mais antiliberal. Assim, a revolução foi consequência de uma cultura, que poderia ser a Iluminista. O jacobinismo era uma máquina de experimentações, uma tentativa de fazer uma sociedade perfeita, capaz de resolver todos os problemas do homem. Os jacobinos não consideram o que fazem um estudo, mas, quando chegam ao poder, pretendem expor os resultados de suas experimentações como se fossem um projeto político efetivo (os jacobinos se sentem porta-vozes de uma verdade que querem impor aos outros). Angústia de Cochin: não se convence que os jacobinos não tivessem consciência de suas contradições (ex: hipercríticos e, quando no poder, não aceitam críticas). Nesse contexto, a fraternidade é prejudicada porque os jacobinos não se reconhecem semelhantes aos demais, pois são superiores. Por isso, o jacobinismo tende a instaurar um projeto político e pedagógico a fim de instruir as massas. O jacobinismo gera um novo tipo de ator político: o homo ideologicus. É um ator individual e social que pretende ser ator político e que nasce de uma espécie de cultura de “salão”, na qual era moda discutir a respeito de tudo e de todos (salões de superficialidade em que se fala de liberdade sem referência a conteúdos precisos; fala-se de um homem abstrato). A cultura dos salões baseia-se na retórica vazia: saber baseado em opiniões e não em estudos. Jamais se fala em análise séria, pois as opiniõ es são mais simples de elaborar e mais fáceis de serem digeridas e assumidas como próprias. Fica evidente um novo espírito maniqueísta (o homem ideológico procura o consenso no aplauso; ninguém se admira; o que interessa é o sucesso imediato, que permite conquistar o poder e exercê-lo). Real é aquilo que os outros veem, verdadeiro é o que dizem, bom o que a provam. Assim, a ordem natural é invertida, a opinião é causa e não, como na vida real, efeito. Gera-se o triunfo da passividade e da ignorâ ncia. O intelectual fala de tudo porque sempre tem algo a dizer a respeito de tudo. Mais uma vez, no fracasso dos sonhos renovadores, quem sofreu a maior consequência foi a fraternidade. Os jacobinos, na esperança de sucesso, constituem- se juízes dos outros e, na esperança de justificar o fracasso, procuram bodes expiató rios (a culpa é posta em fantasmas). Quem fim leva o sistema ideológico? Ele cai em si mesmo ou sobre si mesmo, pois se corrompe. Página 11 de 40 Comportamento de todos os jacobinos: “a humanidade que mata é irmã da liberdade que aprisiona, da fraternidade que espiona, da razão que excomunga, e todas juntas compõem o estranho fenômeno social que chamamos de jacobinismo”. 3. A perspectiva de esquerda de Antonio Gramsci (século XX) Análise do conceito de revolução e de sua possibilidade de se consolidar no poder depois de tê-lo conquistado. Para ele, a revolução não ocorreu por motivos econômicos, mas sim em virtude da cultura por intermédio da intelligentsia (intelectuais). Também há influência religiosa: para França,Itália e Espanha, fazer revolução mudando apenas estrutura econômica não é mudar profundamente. A mentalidade desses povos está de tal forma embebida de cristianismo e catolicismo que é preciso criar nova cultura hegemônica que se contraponha à tradicional. E essa nova visão de mundo só pode ser criada por intelectuais, que são uma espécie de sacerdotes da revolução. “Não se pode tirar a religião do homem sem substituí-la imediatamente por algo que satisfaça as mesmas exigências que fizeram a religião nascer e permanecer” (esse ALGO é mais que um problema religioso, é político, pois tudo se reduz a um conflito dialético entre forças políticas contrapostas: “se a oposição é entre Estado e Igreja, trata-se de oposição entre duas políticas; mas exige uma oposição eterna entre Estado e Igreja em sentido especulativo, ou seja, entre moral e política”). Nessa perspectiva dialética, a visão religiosa tradicional está destinada a ser superada e os intelectuais são cruciais para o sucesso de uma fé sobre outra: o valor de uma posição é medido, em termos maquiavélicos, pela sua capacidade de se afirmar. A igreja conseguiu se firmar por saber dar resposta a todos os problemas do homem, do nascimento à morte (comer, nascer, morrer, trabalhar, tudo em nome de cristo). O Partido [comunista] deve fazer a mesma coisa por meio dos intelectuais (tudo em nome do ideal comunista). Querer renovar a sociedade significa renovar estruturas e quadros que a fazem funcionar: é preciso criar novos intelectuais. Para ele, o verdadeiro intelectual é aquele que está diariamente em contato com as massas (pároco, delegado, farmacêutico), pois por meio deles passa, de modo contínuo e duradouro, determinado tipo de ideologia. O papel dele é compreender e depois fazer os outros compreenderem a inteira vida do homem. Retomada da fraternidade distribuída a partir de cima: os intelectuais estão acima do povo nessa estrutura piramidal; são espécie de sacerdotes do saber comunista e de sua ideologia, que devem transmitir aos outros (a massa é o sujeito privilegiado ao qual se devem dedicar toso os cuidados. O intelectual é um membro do Partido porque, seja na cultura ou na política, o fim último é a organização de uma nova vida civil, e o Partido é o instrumento primordial para isso. O intelectual deve sempre se tornar um homem de partido, um político militante, pois, para eliminar essa separação entre ele e a massa, deve pôr a cultura a serviço dos outros (a massa é o ponto de partida e de chagada para todo o verdadeiro intelectual). Página 12 de 40 A história da humanidade só mudou quando os intelectuais souberam desenvolver ação construtiva no meio do povo, ajudando-o nas atividades cotidianas, e não quando se contentam com teorizações abstratas. 4. Conclusão Maior herança de revolução francesa: por que imitar ingleses como se os franceses não fossem capazes de inventar algo novo? Houve notável anseio pela liberdade alimentando a revolução francesa, mas o aspecto ideológico eliminou sua alma religiosa e distorceu principalmente a fraternidade. A ideologia revolucionária parte de conceito abstrato, mas a história ensinou que não podemos basear democracias, igualdades e fraternidades em ilusõ es. Por isso precisamos reconstruir o problema da fraternidade (temos de reconhecer no outro uma pessoa que deve ter a nossa mesma dignidade, no pleno sentido da palavra). Tocqueville entende que, depois da fraternidade, a liberdade é que pode entrar em crise, pois os homens, quando confrontados com a necessidade de escolher entre liberdade e igualdade, preferem esta. Só a religião reconhece ao ser humano a característica de unicidade sobre a qual a pessoa se constrói. Nenhuma ideologia ou força política é capaz de fazer o mesmo, pois só a religião recorda que o outro, no instante da criação, é chamado pelo nome e reconhecido com sua identidade precisa. Com a perda do espírito religioso, perdemos o sentido do caráter único de nossa consciência e da consciência alheia, e nos uniformizamos. Por isso devemos ser otimistas quanto à recuperação da fraternidade, sob pena de correr o risco de perder o verdadeiro sentido da liberdade e da igualdade. CAPÍTULO 3: Por uma fundamentação teológica da categoria política da fraternidade A fraternidade é uma categoria essencialmente cristã. Os discípulos de cristo se denominam adelphói (irmãos). No novo testamento, o substantivo adelphótes (fraternidade) não significa um ideal a ser cumprido, mas uma realidade a ser alcanç ada. 1. Da tradição de Israel à especificidade cristã da categoria de fraternidade Gênese da sociedade humana a partir da narração de Caim e Abel. O fratricídio demonstra tragicamente a rejeição da vocação de ser irmão. Mensagem de Jesus: “como um só é o vosso Pai, que é Deus, então sois todos irmãos”. Ideia de paternidade geradora e eficaz de fraternidade (amor de Deus a cada um). A prática de Jesus supera toda barreira de discriminação e a carga revolucionária intrínseca da ordem estabelecida é percebida pelo establishement religioso e político. Página 13 de 40 2. A cruz: causa de instituição da fraternidade A rejeição e condenação de Jesus pela autoridade judaica, ratificada pela autoridade romana, expulsa Jesus da convivência civil e do espaço da aliança de Deus com seu povo. Como consequência (da morte de Jesus), há a superação da barreira que se tinha instaurado pelo fato de Deus, ao constituir o povo da aliança, separou-o dos demais povos, pois essa separação não tem mais razão de ser e a fraternidade não deve mais ser vivida somente dentro de uma aliança, e sim com todos. Carta de Efésios apresenta Jesus como reconciliador, que de ambos os povos fez um só, derrubando o muro de separação e suprimindo a inimizade a fim de criar em si mesmo um só homem: em Cristo, a relação de fraternidade é regra básica da relação humana em toda sua extensão universal. Nesse contexto as categorias tipicamente cristãs de fraternidade e cidadania adquirem pleno significado: a fraternidade, experimentada e vivida na comunidade cristã, é uma realidade em andamento por ser dádiva de Cristo que instaura um novo estado das coisas que deve ser vivida pelo exercício concreto do amor fraterno (Philadelphia). Essa realidade restabelece a fraternidade universal e dá início a uma nova politeia. 3. Perspectivas sociopolíticas da fraternidade cristã Consequência social 1: explicitada por Paulo na Carta aos Gálatas: percepção da eficácia da fraternidade cristã é expressa com veemência em relação às três separações que marcavam a realidade da época: religiosa (judeus e gregos), social (escravos e livres) e antropológica (homens e mulheres). “todos vós sois um só em cristo jesus”. Consequência social 2: Jesus crucificado e abandonado mostra o único lugar a partir do qual pode nascer e se articular uma autêntica prática de fraternidade: a partilha com quem é marginalizado e excluído. A fraternidade nasce somente a partir de baixo, do identificar-se, fazer-se um (semblante de quem sofre). Consequência social 3: no abandono, Jesus supera a categoria do inimigo; ele rompe com a tradição judaica precedente e introduz uma prática alternativa e eficaz: amar sem esperar nada em troca. O amor pregado não é sentimento, mas sim determinação da liberdade, que decide querer o bem do outro, inclusive de um inimigo, custe o que custar (estratégia de não-violência ativa que visa transformar em positiva a posição do adversário). A fraternidade fermentou a cultura do Ocidente em vários aspectos, mas como ideal de transformação global das relações sociais se mostrou presente nas correntes reformadoras que apareceram na história da cristandade, propagando-se para a vidacivil (ex: fraternidade franciscana). Questão prática: Jesus salvou só o indivíduo ou também a relação social entre pessoas? Na história da Igreja, assistimos à alternância das duas possibilidades de interpretação. Página 14 de 40 A forma perfeita da relação interpessoal é a fraternidade como reciprocidade do ágape em Cristo, que pressupõe e expressa a liberdade do indivíduo e que, como tal, construtivamente se abre à dedicação e ao diálogo com todo aquele que está comprometido na busca da verdade/justiça. Deixo Cristo viver em mim e reconheço Cristo no outro: “onde dois ou mais, eu estou no meio dele”. A qualidade da relação de fraternidade vivida em Cristo não consegue ter analogia real inferior àquelas que o filho vive com o pai no espírito e vice-versa. CAPÍTULO 4: Notas sobre participação e fraternidade O atual momento de transição social e política impõe novas questões à teoria democrática. A extensão dos processos de democratização às mais variadas áreas geopolíticas do planeta foi considerado o fenômeno mais relevante do século XX. Meados do século XX: a derrocada do totalitarismo nazista e a descolonização assinalam primeiro divisor de águas: há 22 democracias que satisfazem os principais requisitos de uma situação democrática (31% da população mundial). Final do século XX: predomínio das democracias após a terceira onda de democratização no mundo pós-comunista. Em 2000, há 120 democracias eleitorais (622,5% da população mundial). Podemos afirmar que a política democrática do século XX adquire definitivamente um elemento que daí em diante a definirá em termos gerais: a dimensão horizontal da participação da massa (conquista do sufrágio universal). Ex: ampla taxa de participação da sociedade civil no debate sobre a guerra no Iraque testemunha uma nova fase de consolidação da ideia democrática. A partir dessas premissas, a perspectiva científica se foca no estudo de elementos qualitativos que definem as atuais estruturas das democracias e o interesse se volta cada vez mais para a tentativa de refinar progressivamente a definição de democracia e aproximar-se do conceito de “democracia de qualidade” por meio de um rigoroso aprofundamento de sua estrutura, seus procedimentos e seu projeto como um todo. Objetivo de promover práticas de justiça e de equidade territorial, desenvolvimento sustentável e responsabilidade social. Método utilizado pelo autor para refletir sobre oportunidades e lógicas participativas: exame da participação a partir de seus “fatores de risco”. Sua reflexão parte dos problemas que a participação impõe à política e tenta comparar a participação à ideia política de fraternidade universal. O objetivo do trabalho é fazer dialogarem as tensões características do exercício político de participação no contexto das democracias contemporâneas e a ideia política de fraternidade universal (conjugação de relações de pertencimento mútuo e de responsabilidade = princípio de reconhecimento da identidade e do caráter unitário do corpo social, respeitando as diferentes multiplicidades). 1. Democracia e participação Página 15 de 40 A participação dos cidadãos representa um dos conteúdos constitutivos da definição de democracia, sendo um de seus indicadores mais relevantes, já que a definição de democracia é composta por 4 aspectos que contemplam a participaçã o como elemento central: (a) sufrágio universal; (b) eleições livres, competitivas, perió dicas e corretas; (c) sistema político pluripartidário; (d) fontes de informação variadas e alternativas. Tese divergente: “excesso de democracia” formulada nos EUA pela Trilateral Commission na década de 1970 aumentar as oportunidades de participação levaria a estrutura democrática a uma crise porquanto a sobrecarga de pedidos de participação acabaria bloqueando seu funcionamento. Consequentemente, em nome da estabilidade do sistema, seria necessário impor limites à participação dos cidadãos. A questão que se põe: multiplicar as oportunidades de inclusão e de responsabilidade dos sujeitos sociais nos processos políticos é sempre um motor de desenvolvimento da coletividade? Pesquisas destacam que as pessoas que se envolvem são essencialmente as que ocupam as posições centrais da estratificação social, os círculos mais internos e estáveis (homens de meia-idade dotados de elevado grau de instrução, da classe média) que possuem recursos econômicos e culturais. Disso se extrai que há um círculo fechado: a posse de recursos políticos (possibilidade de influenciar nos processos de decisão) se traduz em recursos socioeconômicos (bens materiais e imateriais) e vice-versa quem possui maiores recursos, conhece caminhos mais curtos para influenciar as decisões coletivas. A participação se mostra um processo seletivo. O princípio da democracia participativa tornou-se um dos pilares de funcionamento da UE e a abertura das instituições da comunidade europeia à sociedade civil é um princípio que cada vez mais vem se afirmando. 2. Participação e democracia representativa Os mecanismos elitistas que aprisionam o exercício da participação devem ser entendidos no contexto institucional em que vivemos, que é o da democracia representativa. Embora responda a uma demanda de igualdade, não consegue deixar de ter efeitos seletivos e corre o risco de ser um instrumento de desigualdade social. É preciso questionar o funcionamento atual do sistema de representação democrática. Não basta o voto eleitoral. O primeiro significado de participação deveria ser a possibilidade dos cidadãos em dialogar com seus representantes eleitos, pois o que qualifica o sistema representativo é o eixo vertical de baixo pra cima estabelecido entre eleito e eleitor. Por isso, é preciso: (a) abrir novas formas de participação à sociedade civil; (b) dar maior atenção à representatividade dos sujeitos que tendem a ser marginalizados do ponto de vista econômico ou cultural; (c) favorecer o espaço do princípio da subsidiariedade horizontal nas legislações (ex: Constituição italiana permite, através de uma emenda, o incentivo das instituições a iniciativas dos cidadãos que procuram Página 16 de 40 desenvolver atividades de interesse geral – cidadãos com poder específico de iniciativa = subsidiariedade horizontal permite que as instituições busquem lado a lado com os cidadãos o interesse geral). Problema: essa subsidiariedade pode ser substituí da por um tipo de “convite a sobreviver”: união, estado, município, ninguém age, entã o os cidadãos que se virem como puderem. 3. Os processos de decisão das administrações públicas Podemos analisar as relações participativas tanto a partir da base (destacando a iniciativa e a ação desenvolvida pelos cidadãos) quanto a partir das estruturas de governo (ações específicas voltadas a promover e sustentar o interesse e o envolvimento da sociedade civil). A perspectiva a partir das estruturas de governo vem conhecendo mudanças significativas: uma série de experimentações tende a incluir cada vez mais diferentes sujeitos portadores de um interesse específico quanto ao objeto de deliberação (stakeholders), pois, no planejamento das políticas sociais, profissionais da ação social têm consciência de problemas diferente da dos habitantes do território, razão pela qual cada vez mais aumenta a participação dos cidadãos na formulação das mesmas (“inteligência da democracia”: profissionais + cidadãos = elaboração de soluções eficazes). O problema é que às vezes os processos participativos de decisão são muito complicados ou lentos (ex: participar de uma assembleia pública sem entender o que estão falando). Outro aspecto que merece atenção é a ruptura que se evidencia quando a delegação administrativadiz respeito ao funcionamento de bens ou serviços de grande impacto ambiental (ex: instalação de um lixão). Os cidadãos organizam oposições em forma de reação popular que muitas vezes assume um caráter descontrolado. O assunto chega a ser tratado como uma síndrome chamada de NIMBY (not in my back Yard). Novamente fica evidente a tendência seletiva e excludente: quando a agregaç ão e a representação dos interesses se limitam a reforçar grupos circunscritos de stakeholders, ainda que o processo possa consolidar a identidade deles e valorizar suas competências, a busca de vantagens particulares enfraquece a coesão social e aumenta a fragmentação. 4. Participação e governança Na busca por novas formas de administração em rede capazes de governar arenas políticas cada vez mais descentralizadas, insere-se o debate sobe a governanç a, cuja tradução é difícil. O que caracteriza a ideia de governança é o fato dela substituir o princípio hierá rquico de distribuição de recursos por um princípio de cooperação entre Estado e entidades locais, num papel de colaboração não mais estritamente hierárquico (ló gica das redes). Ex: planos estratégicos para o desenvolvimento das áreas urbanas e metropolitanas, pactos territoriais, processos inclusivos da Agenda 21 para desenvolvimento sustentável. Página 17 de 40 Ainda há o mesmo problema: a comunidade que toma as decisões pode acabar por reproduzir um circuito selecionado de interesses, excluindo sujeitos mais fracos (reforço da lógica do gripo fechado). Ademais, em vez de promover a transparência, pode conservar certa opacidade e esconder acordos paralelos de interesses comerciais nos bastidores. Também o papel das instituições políticas se enfraquece porque não pode ser um ator qualquer, ele deve exercer papel mediador entre indiví duos e coletividade em nome do interesse de todos. A maioria das ambiguidades decorre do funcionamento imposto pelas técnicas de deliberação empregadas nessas arenas de decisão. Não se pode menosprezar o perigo de transformar uma negociação seguida de deliberação numa forma vazia, na qual o reconhecimento das exigências das partes é só simbólico. De fato, quanto mais os interesses em jogo são fortes, mais os sujeitos se tornam pouco confiáveis por serem capazes de exercer sua influência fora desse processo de negociações. É preciso reconhecer que o crescimento dos espaços de mediação entre sujeitos não-institucionais também se deve ao enfraquecimento dos recursos de autoridade do Estado e dos órgãos públicos em geral. É verdade que a crescente complexidade dos problemas objeto de deliberação política exige apelo à competência de sujeitos econômicos, técnicos e árbitros que trabalham fora das instituições públicas, mas essa evolução deve ser considerada com cautela, pois tirar responsabilidades das instituiçõ es públicas pode abrir caminho para mecanismos de auto-regulação que tendem a limitar a ação governamental das instituições, levando à introdução de elementos danosos de distorção das dinâmicas do mercado político. Ademais, pode favorecer sujeitos econômicos e financeiros possuidores de maiores recursos. 5. Entre inclusão e exclusão Tem sentido participar quando quem decide é quem tem maiores recursos? Quem de fato governa? Debater demandas políticas predefinidas não é pouco? É suficiente inserir nos processos de decisão uma medida genérica de consulta passiva? Essas perguntas assinalam problemas importantes e afastam uma visão soft da participação. Liberdade e igualdade, fundamentos do projeto democrático moderno, sobre os quais se edificou o modelo da liberal-democracia ocidental, mostram-se cada vez mais insuficientes para orientar as relações e instituições políticas de acordo com diretrizes de equidade e paz estável. Se a referência à liberdade é causa e justificação de um espaço político criativo e aberto no qual cada participante pode ordenar autonomamente suas expressões de vida individual e social, e a referência à igualdade implica o reconhecimento do direito de cada participante de representar com igual dignidade e oportunidade sua posição na comunidade política, a aplicaçã o de ambos não parece ser capaz de sozinha apontar respostas satisfatórias aos problemas da democracia. Então, até que ponto e de que maneira a fraternidade universal pode contribuir? É importante identificar o conflito que enfraquece o significado da participação e a Página 18 de 40 torna ambivalente: a tensão entre um aspecto inclusivo (participar é empregar recursos contribuindo na determinação da estrutura e dos valores do sistema social) e outro excludente (sujeitos são excluídos). O processo de inclusão, no qual se concentra todo e qualquer procedimento participativo, implica o exercício de uma ló gica de exclusão de outro espaço externo. Por isso, a fraternidade universal é capaz de interromper e sanar os efeitos perversos da lógica que transforma inclusão em exclusão. Do ponto de vista político, fraternidade é princípio de construção social no qual o outro é outro eu mesmo. Ela visa buscar reconhecer mutuamente as fisionomias semelhantes entre os diversos sujeitos, grupos sociais e políticos. Se a participação é uma questão de identidade, o que a fraternidade oferece é uma redefinição do laço social a partir do reconhecimento da existência de uma relação constitutiva fundamental entre os sujeitos das relações políticas. Dadas essas premissas, a fraternidade parece ser uma categoria não menos vá lida que a liberdade e a igualdade para uma análise aprofundada dos fatos políticos. 6. Experienciar a fraternidade. O Pacto Político-Participativo A opção de assumir a fraternidade universal como categoria da política vem indicando que isto não parece sem significado. O Pacto Político-Participativo (Itália, 1980) é um dos indicadores, uma experiência que reinterpreta, à luz da fraternidade, a relação política fundamental: cidadãos, saindo dos limites de sua necessidade individual, decidem colaborar na construção da agenda política com a qual o representante eleito se compromete. Nesse constante diálogo, enriquecem-se os conteúdos do debate político e as propostas de regulação que dele derivam, e participam cidadãos diferentes entre si (diferentes culturas, profissões, status econô mico e social). Aspecto relevante 1 – aspecto individual: opção anti-elitista, reconhecendo-se a cada cidadão, enquanto tal, a capacidade e responsabilidade de participar do mandato eletivo. A fraternidade aparece como relação de pertencimento recíproco, baseada na igual dignidade dos sujeitos, decorrente da referência a um quadro unitá rio. Aspecto relevante 2 – aspecto interpessoal: espaço de diálogo transversal entre as diversas filiações ideológicas e partidárias. O eleito é chamado a representar interesses gerais, reconhece que não tem como fazê-lo de maneira abstrata e aceita o envolvimento concreto dos cidadãos, suas sugestões e críticas. A fraternidade aparece como princípio de construção social que aceita o dinamismo da composiçã o dos interesses, garante as identidades pessoais que fundamenta uma identidade coletiva comum. Aspecto relevante 3 – aspecto coletivo: ampliação do espaço da ação social. O grupo se identifica como sujeito político; o vínculo entre eleito e eleitores é voluntarista, mas tem caráter de reciprocidade (comprometimento do eleito e dos eleitores). A fraternidade aparece como princípio de responsabilidade compartilhada sobre a Página 19 de 40 produção de bens públicos, em que a função política de mediação reforça a relação de reciprocidade entre os bens legítimos. 7. Participação e qualidade democrática As pesquisas hoje se dedicam ao funcionamento e características próprias deuma democracia de qualidade. Razões para os diversos estudos: (a) o aprofundamento da democracia pode ser considerado um bem moral; (b) uma operação de reforma para melhorar a qualidade democrática é essencial para legitimar o processo de consolidação democrática no mundo; (c) mesmo as democracias mais estáveis precisam considerar reforma se pretendem enfrentar as dificuldades provenientes da insatisfação da sociedade em relação às atuais estruturas institucionais. O que é democracia de qualidade: capacidade constante do governo responder às preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais. Considera 3 aspectos: - Conteúdo da ação política: cidadãos gozam da tradução concreta dos princí pios da liberdade e igualdade em medida superior ao mínimo. - Resultado da ação política: cidadãos satisfeitos com os resultados alcançados com as escolhas feitas - Procedimento da ação política: cidadãos são capazes de controlar e avaliar se e como igualdade e liberdade são realizados. (aspecto central: responsabilização – accountability: permite controle das instituições políticas pelos cidadãos). Essa definição de democracia não consegue evitar alguns problemas e levanta questões. Apesar de tudo, optar por apoiar-se num quadro teórico forte, fundamentado numa concepção unitária da cidadania democrática parece ser vá lido e estimulante. Também a metodologia como do Pacto Político-participativo pode ser avaliado por ele: - qualidade do conteúdo: os cidadãos envolvidos na experiência participativa tê m a oportunidade de exprimir sua contribuição no debate político e de influenciar mais diretamente a função de decisium making numa situação de oportunidades iguais (anti-elitista); - qualidade do resultado: a ampliação das oportunidades de articulação faz crescer a responsiveness em virtude do modo transversal de interesses orientados ao bem comum e a satisfação pelas políticas adotadas; - qualidade de processo: maior espaço participativo amplia a relevância da funç ão de accountability do quadro institucional, aumentando os espaços de ação social. “creio poder afirmar que a fraternidade é capaz de expressar realmente o coraç ão inteligente da democracia, ou seja, ampliar sua capacidade de harmonizar o que é autenticamente humano dentro das formas normativas necessárias à organização Página 20 de 40 da convivência dos homens e dos povos”. CAPÍTULO 5: A fraternidade no ordenamento jurídico italiano O termo fraternidade não está expresso na constituição italiana. Consta no artigo 2º o princípio da solidariedade. Em um texto jurídico como a constituição, o que interessa é saber se um princípio é dotado de dispositivos que possam ser úteis para influir nas relações sociais, e isso pode se dar por caminhos alternativos ao da referê ncia nominal. O termo possui enraizamento maior no ordenamento francês: célebre trilogia revolucionária. Porém, também enfrentou dificuldades para se traduzir em dispositivo jurídico. Mesmo assim, é empregado às vezes para embasar tendências nacionalistas, outras vezes classistas: percebido a partir de diferenças e exclusões, não se valorizando o alcance universal intrínseco. Segundo estudos, é muitas vezes confundido com solidariedade, cujo instrumento essencial e insubstituível é o Estado: missão de eliminar desigualdades. 1. Solidariedade vertical e horizontal Na Itália, é possível definir fraternidade como forma intensa de solidariedade que une pessoas que, por se identificarem por algo profundo, sentem-se “irmãs”: forma de solidariedade que se realiza entre iguais (sujeitos num mesmo plano) e que interpela diretamente o comportamento individual e o responsabiliza pela sorte dos irmãos. Seria uma espécie de solidariedade horizontal, pois surge do socorro mútuo prestado entre as pessoas pelas próprias pessoas, seja espontaneamente ou por fora de lei (a vertical pressupõe vínculo de subsidiariedade e é feita pelo Estado social – mas o fato de o socorro poder decorrer de lei, torna confusa a divisão entre vertical e horizontal). Como na Constituição italiana se fundamenta a fraternidade entendida como solidariedade horizontal? É preciso interpretar o artigo 2º. A justificativa antropológica do princípio da solidariedade na Constituição induz precisamente e até obriga a descobrir nela a presença realmente viva do princípio da fraternidade. 2. Personalismo constitucional Analisando trabalhos preparatórios da Assembleia Constituinte, vê-se que o personalismo se torna o Grundwert (valor fundamental) constitucional, o ponto de mediação antropológica no qual toda a arquitetura constitucional se sustenta. Oposiç ão às concepções próprias do estado totalitário (fascismo: o indivíduo só encontra valor e dignidade por ser parte de um organismo que o transcende, a cuja prosperidade deve indicar sua existência individual) e do estado liberal individualista (revoluções americana e francesa). Foi uma surpresa refutar o estado liberal individualista, que valoriza a dignidade de cada indivíduo. Para caracterizar o personalismo constitucional, não basta dizer que já não devia ser o homem para o Estado, mas o Estado para o homem. Só que isso só explica a recusa ao passado totalitarista recente. Página 21 de 40 Os constituintes contestam é o direito natural iluminista: indivíduo é entidade originária, titular de um feixe de direitos naturais cuja consistência procede a sociedade, fruto posterior e eventual de um livre ato de vontade (contrato) estipulado entre indivíduos, todos livres, independentes e iguais. Os direitos naturais gozam de uma fundamentação autônoma, racionalista e abstrata, anterior ao fenômeno jurí dico que é social e voluntarista (os direitos naturais vêm antes da sociedade, assumindo vocação absolutista com pequena tolerância a limitações inevitáveis das relações sociais). Não se chega ao personalismo apenas por diferença aos modelos repudiados; ele tem estatuto filosófico e antropológico definidos que se enraíza na tradição que parte de Aristóteles, passa pro Santo Tomas e chega ao personalismo (comunitário) de Mounier e Maritain. Evidencia-se o caráter naturalmente social e político da pessoa, cuja identidade só se constrói na relação social com o diferente entre si, no pertencimento histórico e no enraizamento cultural. A identidade humana é situada (inserida no sistema estruturado e solidário das relações sociais), interage com um ethos que precede o indivíduo e socializa-o (costumes sociais, cultura). Segundo a ló gica antropológica personalista, o homem é um ser estruturalmente carente aberto à relação com o diferente de si (dependência e interdependência estrutural). O processo de constituição da personalidade se desenvolve e se aperfeiçoa por intermédio das estruturas da sociedade. Coerentemente com essa convicção, o artigo 2º da constituição reconhece e promove as “formações sociais” em que a personalidade humana se desenvolve. Pertencer a uma comunidade é constitutivo e estrutural da identidade humana, não um dado acessório ou opção voluntarista. Nesse contexto, o fraco/carente não é homem menor, e sim o ícone do homem em si. E nem o indivíduo mais independente pode deixar de reconhecer uma divida para com a comunidade, na qual pôde desenvolver sua personalidade. Podemos pensar numa espécie de dívida antropológica do indivíduo para com a comunidade que se reflete nas formas de reconhecimento e de garantia da liberdade individual. Antes do indivíduo há uma comunidade (rede de relacionamentos, quadro de solidariedade que sustenta o indivíduo e permite seu desenvolvimento). 3. Personalismo e princípio de fraternidade Por ser a fraqueza aquilo que identifica os homens entre si, não existe para a solidariedadeo caminho do paternalismo, mas tão-somente o da fraternidade. Existe uma interdependência na qual todo cidadão tem dever de desenvolver uma atividade ou função que concorra para o progresso material ou espiritual da sociedade. Há um esforço de promoção do fraco e necessidade de participação desse dos processos de construção social. O artigo 3º fala ser dever de todos remover os obstá culos de ordem econômica e social que impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos na organização política, econô mica e social do país (responsabilidade social). Uma liberdade não-comunitária é Página 22 de 40 suicida, pois destrói o mecanismo reprodutivo do humano (ideia do bem comum). Direitos e deveres são aspectos complementares de uma liberdade que assume a solidariedade como seu horizonte. É justamente por intermédio do princípio da solidariedade que o princípio personalista introduz a ideia de fraternidade. É em nome de uma interdependência estrutural que a solidariedade se transforma em fraternidade. É nessa fraqueza constitutiva do homem que se fundamenta a fraternidade, abrindo para a relacionalidade solidária. É uma dimensão horizontal da solidariedade. Não se resume a “não prejudicar o outro”, mas sim “faça bem ao outro porque é também o seu bem”. Exemplo disso é a função social da propriedade. A orientação social das liberdades é o mesmo imperativo que deriva do princípio da subsidiariedade. Solidariedade e subsidiariedade estão entrelaçadas porque ambas atribuem às articulações sociais intermediárias responsabilidades diretas na busca da finalidade solidária, reservando-se ao Estado um papel subsidiário, que respeita a missão intermediária de cada nível de agrupamento social, complementa-a e só em caso de necessidade a substitui. O caminho da aplicação constitucional da subsidiariedade horizontal é também o caminho de uma aplicação constitucional possível da fraternidade. A solidariedade confiada apenas à autoridade fica burocratizada (estado), mas a solidariedade também não pode ser entregue apenas à espontaneidade (cidadãos), pois precisa ser institucionalizada para existir continuidade e estabilidade. Na busca desse equilí brio, não há ainda termo satisfatório. Exemplo é a valorização das formas estruturadas da sociedade (voluntariado e organizações sem fins lucrativos) pela lei 28/2000: “ promoção da solidariedade social, com a valorização das iniciativas das pessoas, nú cleos familiares, formas de auto-ajuda e reciprocidade e da solidariedade organizada”. Só que o poder público não pode interpretar que não é também responsável: deve coordenar e promover a construção de uma rede de sujeitos. Nessa e em outras leis delineia-se o papel do Estado fiador que promove as condições para o reconhecimento mútuo entre as esferas da liberdade e da interdependência entre sujeitos autônomos, favorecendo a incorporação da solidariedade à liberdade. Parecer do Conselho de Estado confirme que a interpretação do princípio da subsidiariedade horizontal como a mais coerente: adotando a concepção de cidadania societária, vincula o princípio da subsidiariedade horizontal às atividades que sujeitos comunitários realizam em seu contexto social em razão da vontade de cada comunidade de regular dentro dela mesma as decisões de interesse geral. 4. Princípio de fraternidade e balanceamento dos direitos A fraternidade penetra no ordenamento jurídico por outras vias. Pela lei, os direitos devem ser exercidos em harmonia com o bem comum. Esse entrelaçamento é um espaço de composição fraternal dos direitos: solidariedade que nasce da ponderação entre as esferas de liberdade confiada à ação do Estado enquanto ordenamento jurídico. Os mecanismos de balanceamento (legislativos e judiciários) Página 23 de 40 visam evidenciar as direções de desenvolvimento das liberdades individuais que salvaguardem as razões dos mais fracos. O princípio da fraternidade, na França, nasce e se desenvolve em clima revolucionário (clima iluminista), sendo instrumento de apoio do Estado aos cidadãos indigentes. Difere da ideia de solidariedade confiada à estruturação social tal qual ocorre na Itália. O princípio da fraternidade conjugado em sentido personalista passa pelo reconhecimento e valorização institucional de um tecido social rico e solidário de um sistema de relações estruturado em formações sociais, no qual seja continuamente recriada a interdependência entre sujeitos, base mais duradoura da solidariedade. A promoção desse tecido social interdependente permite ao estado buscar o desenvolvimento da pessoa humana sem substituir as formações sociais intermediárias. É uma fraternidade que segue o modelo comunicaria não baseada em convergê ncias de interesses individuais nem na transferência integral ao Estado das tarefas de socorro às fraquezas. CAPÍTULO 6: Fraternidade e direitos humanos Se não fossem as duas guerras e as aberrações nazistas será que teríamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos? É provável que se tendesse a definir de qualquer forma princípios comuns inerentes à dignidade da pessoa humana, mas os eventos históricos deram impulso decisivo ao texto aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 10/12/1948. Em 1945, já havia sido escrita uma carta, que estabelecia no artigo 1º ser uma das finalidades das Nações Unidas promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. A falta de uma declaração na carta sobre os direitos do homem levou o presidente dos EUA, Harry Truman, a prometer que em curto prazo se redigiria um International Bill of Human Rights. Uma das primeiras questões era qual seria a forma da Declaração. Prevaleceu a ideia de conjugar uma declaração-manifesto coletivo de princípios e uma ou mais convenções multilaterais ou medidas internacionais que definiriam a natureza e conteúdo dos direitos e liberdades fundamentais que deveriam ser garantidos. Diferentemente da carta de direitos do século XVIII, ela possui 3 aspectos fundamentais: (a) Universalidade: de declaração internacional passa para declaração universal, deixa de ser um simples acordo entre Estados e vai além do papel desempenhado pelos Estados, pois o papel central passa a ser ocupado pela dignidade humana; (b) Amplia a ideia de a carta ser um instrumento de defesa da autonomia do indivíduo perante a autoridade: o artigo 28 destaca a necessidade de uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades possam ser plenamente realizados (a responsabilidade pela aplicação dos direitos humanos Página 24 de 40 é também dos sujeitos políticos e sociais intermediários) e o artigo 29 evidencia que todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade é possível (responsabilidade individual pela aplicação dos direitos humanos); (c) Definição dos direitos econômicos e sociais, considerados um dos pilares da declaração. Podem ser entendidos como fruto do esforço dos movimentos cristã os e socialistas; a enunciação deles representa uma parte consistente do texto e ocupa espaço pouco menor que aquele dos direitos civis e políticos. 1. O princípio da fraternidade na Declaração Universal Artigo 1: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. O artigo sofreu diversas alterações até chegar na versão final (ex: seres humanos em vez de “homens”; “espírito de fraternidade” em vez de “irmãos”. Alguns delegados da comissão de direitos humanos da ONU queriam colocar no preâmbulo ao invés dedeixar no artigo. A proposta final foi aprovada com 26 votos a favor, 6 contra e 10 abstenções, passando para a assembleia geral. 2. Fraternidade e deveres para com a comunidade O primeiro artigo é uma transposição para a esfera universal dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. Segundo o francês René Cassin, que redigiu a primeira versão do artigo, a declaração deveria incorporar os seguintes princípios: unidade da raça/família humana + ideia de que todo o ser humano tem o direito de ser tratado como qualquer outro + conceito de solidariedade/fraternidade entre os homens (a fraternidade aparece como princípio motor de todo o comportamento, com conotação essencialmente moral, ligada também ao preâmbulo). A evocação expressa de deveres numa declaração de direitos tem diversas implicações de caráter histórico e metodológico (as cartas do século XVIII queriam defender os indivíduos contra arbitrariedades – preocupação em definir os direitos relativos à liberdade individual). Isso evidencia a contribuição prestada por todo ser humano na construção da sociedade. Anos depois João XXIII enfatiza que a relação entre direitos e deveres na pessoa é indissolúvel, havendo reciprocidade deles na convivência humana. Gandhi menciona que existe o dever de cidadania, com a comunidade. Artigo 29° 1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade. 2. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista Página 25 de 40 exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigê ncias da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática. 3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente e aos fins e aos princípios das Nações Unidas. Dever com a comunidade traduz afastamento da identificação de deveres apenas perante o Estado – mais amplo – internacional. Ao falar no desenvolvimento da personalidade dentro da comunidade, a declaração abre diálogo com as culturas que valorizam em sua tradição o papel do contexto social no qual cada um está inserido sem condescender com visões massificadoras que anulam a personalidade individual. Não há menção expressa sobre deveres individuais para com outras pessoas fí sicas, mas isso não deve ser considerado como um desejo de não considerar esse aspecto, pois decorre da falta de debate sobre o pinto à época. Tanto que o preâ mbulo deixa evidente, assim como o artigo 1º, os deveres para com os outros indiví duos. Que indicações podemos extrair, para compreender a fraternidade na Declaraçã o Universal, a partir desse exame coordenado entre os artigos 1º e 29, levando em conta a referência à família humana contida no preâmbulo? A fraternidade é considerada um princípio que está na origem de um comportamento que deve ser instaurado com outros seres humanos, o que implica a dimensão de reciprocidade. A fraternidade, então, mais do que princípio ao lado da liberdade e da igualdade, é aquele capaz de tornar esses princípios efetivos: a fraternidade pressupõe que minha liberdade não se possa realizar sem a liberdade do outro, e que nesse sentido eu sou responsável por ela. Ao mesmo tempo, não pode ser reduzida ao conceito de solidariedade, pois esse não significa efetiva paridade dos sujeitos que se relacionam e não considera a reciprocidade (uma coisa é ser solidário com o outro, associando-me à sua causa. Outra é ser irmão – relação pessoal não com a causa do outro, mas com o outro enquanto pessoa, membro da mesma família humana),. A responsabilidade fraternal enunciada no artigo 1º encontra aplicação no que prescreve o artigo 29 acerca dos deveres para com a comunidade. Amplia-se o leque de sujeitos sobre os quais recai a responsabilidade de pôr em prática os direitos humanos. Tanto a visão liberal quanto a socialista fazem recair essa responsabilidade principalmente sobre o Estado, enquanto a fraternidade responsabiliza cada indivíduo pelo outro e, consequentemente, pelo bem da comunidade. A consequência disso é uma valorização das entidades voltadas à busca da ampliação das liberdades civis e políticas e à melhoria das condições econômicas e sociais. O fato de a fraternidade ampliar os sujeitos responsáveis não elimina ou diminui a responsabilidade do Estado e autoridades públicas. 3. Fraternidade e direito ao desenvolvimento Página 26 de 40 No contexto da globalização, a fraternidade permite enfrentar problemas de ponto de vista global, considerando que todo problema e solução têm ligação de interdependência fraternal com outros povos e pessoas. A reflexão sobre direitos humanos também se depara com novos temas e sofre alterações. Uma delas foi o direito ao desenvolvimento, contemplado na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, aprovado pela assembleia geral em dezembro/1986, cuja origem emana das exigências dos países subdesenvolvidos. E a ONU busca o desenvolvimento de todos os Estados membros. O preâmbulo evoca: “o direito ao desenvolvimento constitui um direito inalienável do homem, e o ser humano é o sujeito central do processo de desenvolvimento”. O fundamento da declaração está nos artigos 1º e 2º, que se baseia no direito da pessoa ao desenvolvimento por ser a protagonista (universalidade e indivisibilidade). Artigo 1º §1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e polí tico, para ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. §2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos à autodeterminação que inclui, sujeito às disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exercício de seu direito inalienável à soberania plena sobre todas as sua riquezas e recursos naturais. Artigo 2º §1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. §2. Todos os seres humanos têm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno respeito aos seus direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como seus deveres para com a comunidade, que sozinhos podem assegurar a realização livre e completa do ser humano e deveriam por isso promover e proteger uma ordem política, social e econômica apropriada para o desenvolvimento. §3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e Página 27 de 40 significativa, e no desenvolvimento e na distribuição eqüitativa dos benefícios daí resultantes. Artigos 3º a 8º: responsabilidade dos Estados pela aplicação do direito ao desenvolvimento (mútua colaboração, não apenas dos desenvolvidos para com os emergentes, e sim de todos). Artigos 5º ao 7º: necessidade de adoção de medidas para a eliminação das flagrantes violações dos direitos humanos (evitar racismo, promover o desarmamento). Artigo 8º: fala do princípio da participação popular, muito importante para um autêntico processo de desenvolvimento, ligado ao da centralidade da pessoa (artigos 1 e 2). Artigo 9º: norma interpretativa de caráter geral de todos os aspectos do direito ao desenvolvimento.
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