Buscar

História da Lince Lévi Strauss

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 8 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 8 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

~
2I
V
j
~
~I
to
~,
P
~I
tT
1 >-
-1_
....,
À
:::!
~I
N
~
§
"O.
...
,
tT
1~
tl'j
~'I
;o
~
::j
i
;o
c
t--
<
~~
o
"Q
,
~
tl'
j,
zo
:..r.
.
I
tT
1
..
;:s
3::
I
o
V:
J
(/
)
;d
rn
,
~
(/
)
À
~
~
g
~n..1&!!d!!!ltZ!&$l_!f ',.,L.J..!!i:=,n,--.,m", '" OUUtl 11MI!tNt 7 7 1t ~A.6 •••• 'Ai' ;.••••.••.•••.•AI. , < ,
mais ousada (daí um primeiro filho malsucedido), conta em sua des-
cendência vários pares de gêmeos. *
A outra fórmula, que faz gêmeos do mesmo sexo - masculino
ou feminino -, responde à questão inversa da precedente. A,. dua-
lidade pode ser reabsorvida na imagem aproximada da unidade pe~
Ia qual é representada, ou apresenta um caráter irreversível, a pon-
to de a distância mínima entre seus termos dever fatalmente alargar-
se? Entre essas soluções extremas, os mitos concebem toda uma sé~
rie de intermediários. lrredutível, a dualidade assumirá a forma da
antítese, um gêmeo bom e o outro mau; um associado à vida, o ou-
tro à morte; um ao céu, o outro à terra ou ao mundo subterrâneo.
Seguem sistemas em que a oposição entre os gêmeos perde seu cará-
ter absoluto em benefício de uma desigualdade relativa: esperto ou
tolo, jeitoso ou desajeitado, forte ou fraco etc. Os mitos america-
nos apresentam uma boa amostra dessas soluções gradiadas, desde
o par antitético formado pelo bom e pelo mau demiurgo nos mitos
da Califórnia do Sul I até os gêmeos respectivamente benfazejo e
malfazejo dos Iroqueses, passando pelos ilustrados num mito dos
Coeur-d'Alêne. Esse mito conta que uma mulher surpreendeu os fi-
lhos gêmeos quando estes discutiam às escondidas. Um dizia: "É
melhor estar vivo", e o outro: "É melhor estar morto". Ao notar
a presença da mãe calaram-se e, desde então, de tempos em tempos,
as pessoas morrem. Sempre há uns que nascem e outros que falecem
no mesmo instante. Se, sem ser vista, a mulher tivesse deixado os
filhos terminarem sua discussão, um dos gêmeos teria vencido e não
haveria vida, ou não haveria morte. Um outro mito salish, mas da
costa, trata o tema dos gêmeos numa veia pitoresca: dois irmãos sia-
meses estavam colados pelas costas de modo que um deles tinha de
andar para trás quando o outro andava para a frente; armados de
arcos e flechas, eles sempre atiravam em direções opostas."
Na América do Sul, companheiros, gêmeos ou não, desigual-
mente dotados física ou moralmente, vivem as mesmas aventuras
e cooperam entre si. O mais inteligente ou mais forte conserta os
_,.c..19
A IDEOWGIA BIPAKFIDA
DOS AMERÍNDIOS
A mitologia das duas Américas não é certamente a única em
que a gemelaridade tem papel de destaque. Pode-se dizer o mesmo
dos mitos do mundo inteiro. A Índia védica coloca em cena gera-
ções sucessivas de gêmeos, a religiãõde-toro~jtro baseia-se no par
antitético formado por Ormuz e Arimã, sem mencionar a rica mito-
logia da gemelaridade revelada por Griaule e Dieterlen entre os 120-__
. gon do Mali, em tudo conforme às crenças relativas aos gêmeos ob-
servadas em toda a África.
Entretanto, é preciso distinguir duas fórmulas. Às vezes de
sexos opostos, os gêmeos estão destinados ao incesto, que já prefi-
gurava sua promiscuidade no seio materno. Esse casal em geral
procria filhos meninos e meninas: de sua união, igualmente inces-
tuosa, nascerá a primeira humanidade. Embora seja encontrado
também na América, deixei de lado esse tema mítico porque res-
ponde a uma questão específica: como produzir a dualidade (a
dos sexos e aquela subseqüente, que a aliança matrimonial impli-
ca) a partir da unidade ou, mais exatamente, a partir de uma ima-
gem bastante ambígua da unidade para que se possa conceber que
a diversidade dela emerja? O Rigveda apresenta um primeiro exem-
plo com o hino (x. 10) em que dialogam Yama e Yami, ou seja,
"Gêmeo" e "Gêmea", ele dizendo as estrofes pares, ela as ímpa-
res; ambos nascidos de uma gêmea, esposa do Sol, de quem pro-
cura fugir, em vão, por não suportar-lhe o calor (comparar supra:
139 n.). Contudo, por obra do Sol ela teria gêmeos, os Asvin,
por sua vez progenitores de outros gêmeos. O texto não diz clara-
mente que Yami consegue convencer Yama a unir-se a ela; mas,
na antiga mitologia japonesa, a gêmea primordial, também por de-
(*) Izanagi e Izanarni uniram-se depois de lerem contornado, ele pela esquerda
e ela pela direita, o pilar celeste, encontrando-se do outro lado. Mas a mulher come-
teu o erro de falar primeiro em vec de deixar a iniciativa a seu parceiro masculino.
Belo paralelo num mito chilcotin: "Eles viajaram e chegaram ao pé de uma
montanha alta. O irmão disse à irmã que eles deviam se separar e contornar a mon-
tanha, ele por um lado e ela pelo outro; e que se dessem um com o outro iriam casar-
se, senão não poderiam fazê-lo" (Farrand 2: 22).
204 205
erros ou imperícias do outro, e até o ressuscita, se ele morrer vítima
de sua própria incapacidade: assim, Pud e Pudleré dos Krahô, Kéri
e Kamé dos Bakairi, Méri e Ari dos Bororo, Dyoi e Epi dos Tuku-
na, Makunaíma e Pia dos Carib etc.' Mas, em geral, os mitos ame-
ricanos param por aí, como se renunciassem a tornar os gêmeos
homogêneos à maneira de Cástor e Pólux, famosos por sua amiza-
de fraterna e até, como diz Plutarco, "união indivisível que havia
entre eles"; "par altamente igualitário", sublinha Marcel Detien-
ne," ainda que gerado por pais diferentes, um humano e o outro di-
vino. Os Dióscuros anularam essa disparidade inicial compartilhando
a mortalidade-de um e a imortalidade do outro. No início, sua si-
tuação era, portanto, semelhante à dos "gêmeos" americanos, nas-
cidos de casais, ou no mínimo de pais, diferentes (supra: 53). Na
América, contudo, a desigualdade se mantém e ganha progressiva-
mente todos os domínios: a cosmologia e a sociologia indígenas lhe
devem sua mola mestra.
Em resposta ao problema da gemelaridade, o Velho Mundo fa-
voreceu soluções extremas: seus gêmeos ou são antitéticos ou são.
idênticos. O Novo Mundo prefere formas intermediárias, que os aIl-
tigos certamente não ignoraram; nos termos em que Platão o narra
(Protágoras, 321), o mito de Prometeu e Epimeteu poderia ser bra-
sileiro ... Parece contudo que, na mitologia do Velho Mundo, tenha
permaneddü-bâIX-oü-'ireildimento", por assim dizer, dessaf6r-mu---
Ia que consiituiao contrário, uma espécie d~céhiTagerminarn_~~L
tologia do Novo Mundo. *
Dumézil insistiu longamente na igualdade, quando não indistin-
ção, entre os gêmeos na tradição indo-européia. "Os hinos--védic~;
tratam os Asvin ou Nãsatya como uma entidade; o Mãhãbharata
faz de seus filhos gêmeos Nakula e Sahadeva personagens modestas
que desempenham um papel apagado. Os autores dos hinos, nota
Dumézil, interessavam-se pouco na teologia diferencial; tudo se passa
em seguida como se uma tendência constante tivesse levado o pensa-
mento indo-europeu a apagar a diferença entre os gêmeos, pois vá-
rios indícios sugerem que teria sido mais marcada na origem. O caso
de Rômulo e Remo atestaria a persistência de concepções antigas,
igualmente testemunhadas, sob uma forma bastante enfraquecida,
pelos talentos diversos atribuídos a Cástor e Pólux (um especialista
em equitação e o outro em luta) e, num outro registro, pelos atributos
-respectivamente sabedoria e beleza - dos dois filhos dos Asvin.'
Tratando de uma conjuntura idêntica - um gêmeo mortal re-
cebe sua sepultura; o outro, imortal, reside no céu sob a forma de
um astro _,6 o mito grego rejeita essa disparidade e iguala as duas
condições, ao passo que o mito americ.:ano se adapta a ela sem achar
que deva mudá-Ia. Em toda a Europa, as idéias populares relativas
aos gêmeos bordam sobre o tema de sua completa identidade: fisi-
camente indistinguíveis um do outro a não ser recorrendo a artifí-
cios cosméticos ou de vestuário, com os mesmos gostos, mesmos pen-
samentos, mesmo caráter, apaixonadospela mesma mulher, ou tão
idênticos que a mulher de um o confunde com o irmão, doentes ao
mesmo tempo, incapazes de sobreviver um ao outro etc. Dessas cren-
ças, La Petite Fadette oferece uma espécie de epítome.
O pensamento ameríndio, por sua 'fez, recusa essa noção de gê-
meos entre os quais reinaria urna perfeita identidade. Pais dos mes-
mos gêmeos (como Zeus e Tíndaro dos Dióscuros), * Lince e Coiote
foram originária ou temporariamente idênticos segundo um mito já
citado (supra: 54). Convém acrescentar que povos tão diversos pela
língua e a cultura como os Kutenai, os Wichita e os Sia contam esse
mito nos mesmos termos, não obstante a distância que separa o Mon-
tana tanto do Novo México como de Oklahoma e do Texas:? mas
encontram-se, no intervalo, numerosas versões aparentadas. Lince,
que tinha diferenças com Coiote, esticou o focinho, as orelhas e as
patas do inimigo. Em represália, Coiote afundou o focinho, as ore-
lhas e o rabo de Lince, razão pela qual esse canídeo e esse felino
se parecem tão pouco hoje em dia. ** Talvez fossem eles iguais ou-
(*) Segundo Cl. Voisena; (L 'homme, XXVIII, I), a mitologia grega associava a
gerneiaridade à sujeira e ao excesso, conferindo-lhe, portanto, uma acepção negati-
va. Mas deduz-se de seu artigo que tais conotações se evidenciam principalmente a
partir de uma leitura da história "quente": efeitos retroativos da política sobre a
mitologia, e não o inverso. O caso de Esparta parece ser significativo. Pois é evidente
que a prática de uma realeza duallá originou, de forma retroativa, o mito de origem
("Latria e Anaxandra [... ] eram gêmeas e, conseqüentemente, os filhos de Aristoderno
[Procles e Eurfstenes, troncos das duas dinastias de Esparta], também gêmeos,
desposaram-nas", Pausânias, I1I, I, 7; I1I, XVI, 6). Certamente não é o mito que, em
Esparta em particular, se prolonga numa forma de organização política da qual são
conhecidos vários exemplos na própria Grécia (Michell, pp. 101-4) e em outras re-
giões do mundo.
(*) Sem esquecer que em outras tradições eles são filhos apenas de Zeus, ou
de um pai de dupla natureza, ao mesmo tempo divina e humana.
(00) Num estilo um pouco diferente, os Kaska, pequeno povo athapaskan do
Norte da Colúmbia Britânica, contam que Lince amassou o próprio nariz numa pa-
rede de gelo (Teit 8: 455). Habitantes de um vasto território em torno do lago Supe-
rior, a meio caminho entre o Atlântico e o Pacífico (bem a leste, portanto, da região
206 207
trora, ou o tenham sido durante esse curto momento em que, so-
frendo transformações em sentidos inversos, seus respectivos físi-
cos coincidiram. Em ambas as hipóteses, a identidade constitui um
estado revogável ou provisório; não pode durar.
O pensamento ameríndio dá assim à simetria um valor negati-
vo, maléfico até. Discuti em L 'homme nu a conotação sinistra dos
parélios, que os mitos relacionam a histórias de gêmeos, muitas ve-
zes saídos de uma personagem cortada ao meio no sentido vertical,
e que se tornam incestuosos. * Quando um ser sobrenatural é deca-
pitado, dizem os Haida, a cabeça e o corpo voltam a se unir; mas,
se for fendido verticalmente e se colocar uma mó entre as metades,
o ser sobrenatural mói a si mesmo e se reduz a pó. Esse é o único
procedimento capaz de destruir um ser sobrenatural."
Finalmente, é digno de nota que, na América, um dos gêmeos
quase sempre ocupe o posto de deceptor: o princípio do desequilí-
brio está situado no interior do par. Na Grécia antiga, que faz rei-
nar a harmonia entre os Dióscuros, o princípio do desequilíbrio só
pode se encontrar no exterior. O papel de deceptor cabe a uma ter-
ceira personagem, Eurimas ou Eurimnos, qualificada por Ferecides
como diábolos (que traduz bastante bem deceptor), acerca da qual
não SI.! sabe infelizmente quase nada, a não ser que Pólux matou-a
com um soco porque ela tentava jogá-lo contra o lrmão.l?
Por conseguinte, ainda que os indo-europeus tenham tido uma
concepção arcaica da gernelaridade, próxima da dos ameríndios,
afastaram-na progressivamente. k diferença dos índios e como di-
ria Dumézil, dela "não tiraram uma explicação do mundo";'! Pa-
ra os indo-europeus, o ideal de uma gemelaridade perfeita podia
realizar-se, a despeito de condições iniciais desfavoráveis. ** No. pen-
samento dos ameríndios, parece indispensável uma espécie de clinâ-,
men filosófico para que em todo e qualquer setor C:ocosmos ou da
sociedade as coisas não permaneçam em seu estado iniciaie g,u:,
de um dualismo instável em qualquer nível que se o apreenda, ~em-
pre resulte um outro dualísmo instável. Essa filosofia acompanhou-
nos em todo o percurso das duas vias paralelas que seguimos neste
livro, e que desembocaram no tema da impossível gemelaridade: a
dos índios e brancos de um lado, do nevoeiro e do vento do outro.
Convergência de dois itinerários cuja prova seria fornecida pelas
construções formalmente heterogêneas de um mito sobre a origem
do nevoeiro, que reflete como um microcosmo o universo da mito-
logia ameríndia, e de mitos sobre o regime dos ventos que conden-
sam tudo o que os índios conheciam do folclore europeu (supra: 183).
~
c
Sem dúvida, a importância que os pc vos dessa região da.Amé-
rica atribuem ao nevoeiro e ao vento se explica por razões objeti-
vas. Na zona marítima, cortada por estreitos, golfos e fiordes que
penetram no coração das montanhas, dotada de um clima ameno
e de chuvas abundantes, o nevoeiro se impõe como um dado da ex-
periência. O que também se aplica, ainda que em menor medida,
ao planalto interior, onde a barreira formada pela cadeia costeira
impede o ar marítimo de penetrar. Reina ali um clima semidesértico
(a média anual de precipitações é de 25 em r.o vale do rio Thompson
contra 275 em na costa ocidental da ilha Vancouver), com grandes
variações de temperatura entre o verão e o inverno. Indo do inte-
rior para a costa, a média anual dos dias de nevoeiro denso eleva-se
de uma vintena para mais de 45, cora dois períodos máximos em
março e outubro." Esses nevoeiros não são todos do mesmo tipo.
Os meteorologistas distinguem vários, de irradiação, de advecção,
frios, quentes etc. Se Lince suscita um nevoeiro ínvernal que impos-
sibilita a caça e causa fome (supra: 19), segundo outros mitos ape-
nas os irmãos Cães, dentre todos os animais, tiveram o poder mági-
co de pôr termo aos rigores do inverno e à falta de alimento: "Se
conseguirmos", dizem, "quando vier a aurora cortinas de bruma
subirão para os picos; a neve e o gelo derreterão, a terra se aquecerá,
a que este livro se circunscreveu), os Ojibwa explicam por uma queimadura sofrida
por Lince o fato de ele ter a cara feia, achatada e enrugada; e por que seus testículos,
que ele mesmo enfiou para dentro do corpo, são hoje em dia pouco visíveis como
os do gato (W. Jones: 11, 125,705; Radin: 37; Speck: 67-8). Por esse fíSICOintrover-
tido, Lince se opõe a Coiote, que possui um físico extrovertido.
Uma última observação quanto à morfologia do Lince: se o Velho Mundo lhe
atribui visão aguçada, na América do Norte os Ojibwa dizem-no estrábico desde que
tentou abarcar com o olhar um panorama extenso demais (W. Jones: 11, 131).
(0) Um mito chinês segue o caminho inverso. Fala de irmãos incestuosos que
morrer aru e ressuscitaram na forma de uma personagem única dotada de duas cabe-
ças, quatro mãos e quatro pés.8
(00, Os Dióscuros gregos tiveram ao mesmo tempo como dublês e adversários
um par de irmãos, seus primos patrilai erais, chamados Idas e Linceu ... O fato de, na
América, uma personagem chamada Lince nos ter levado a gêmeos e de, na Grécia,
os gêmeos levarem a uma personagem cujo 1I0me deriva da palavra lince constitui
um desses acasos de que a mitologia comparada fornece outros exemplos sem que
se possa, no mais das vezes, extrair disso nada além de satisfação poética.
208 209
a chuva cairá e os cervídeos descerão para os vales. Teremos muito
o que comer, ninguémmais terá fome, será a primavera".'! A mu-
dança de estação, do tempo ameno ao frio ou do frio para o tempo
ameno, diz respeito, pois, a personagens - Lince de um lado, Cães
do outro -, protagonistas de mitos cujas respectivas estruturas tam-
bém são, como vimos, correlatas e opostas (supra: capo 14).
Quanto aos ventos, sua importância no pensamento indígena
se mede pelo fato de os Twana de Puget Sound, por exemplo, defini-
rem as direções do espaço em termos da rosa-das-ventos: "Num uso
extensivo, esses termos designam os pontos cardeais; mas é evidente
que se referem inicialmente aos ventos" .14 Povos dessa região con-
tam vários mitos acerca da guerra dos ventos, principalmente entre
o do Nordeste e o do Sudoeste, um frio e o outro quente (cf. L 'hom-
me nu, M754'M7W M780'M78J' M78J OS índios do cabo Flattery,
"admiráveis meteorologistas que prevêem a tempestade 011 acalmaria
com a precisão de um barômetro ou quase", distinguem seis ven-
tos: do Norte, do Sul, do Leste, do Sudeste, do Oeste, do Noroes-
te." Nos relatos míticos os ventos constituem uma família. A dama
Vento-da-Oeste e o senhor Vento-da-Leste têm dois filhos, Venta-
do-Norte e Vento-da-Sul (supra: 124); ou ainda, Vento-de-Chuva
(o do Sudoeste) casa-se com a filha de Vento-Frio (Norte), que mata
o genro. Vento-de- Tempestade, filho do morto, irá vingá-Io.P
O vento do Sudoeste, chamado chinook (do nome de um povo
do estuário do rio Colúmbia), provém, como sugere seu nome, do
oceano. Tempestuoso e carregado de chuva "quando chega em
janeiro-fevereiro à costa, perde sua umidade ao ultrapassar as bar-
reiras montanhosas formadas pela cadeia costeira e pelas Cascades,
depois pelas Rochosas. Transformado num vento quente e seco, so-
pra violentamente nas Planícies e provoca altas de temperatura es-
petaculares, que já se fazem notar entre as Cascades e as Rochosas.
Um observador do início do século descreveu-as em termos líricos
na região antigamente chamada de território do Oregon (que com-
preende os atuais estados de Oregon, Washington, ldaho e parte de
Montana), de onde provêm vários dos mitos que utilizamos:
É difícil imaginar em toda a natureza um espetáculo de um pitoresco
mais arrebatador do que o devido ao chinook. O termômetro pode
ter caído a quase zero [Fahrenheit], a terra pode estar sepultada sob
um pé de neve, sufocada pelo abraço mortal de um nevoeiro denso;
repentinamente, como que sob o efeito de uma poderosa aspiração,
o nevoeiro se desagrega, revelando os cumes já em parte livres de ne-
ve. Então, surdo e sibilante, o quente vento do Sul investe c0Il!0 um
exército. A neve começa a derreter como uma esponja serrada, o ter-
mômetro pula para sessenta, e em menos de duas horas é o clima da
Califórnia do Sul. Não é de espantar que os índios personifiquem esse
vento. Nós mesmos o personificamos. I?
Para os povos pescadores da costa, o vento do Sul era, no en-
tanto, amedrontador. Contam que os animais lhe moveram guerra
e o venceram. Mas não o mataram, por isso ele sopra apenas du-
rante alguns dias seguidos, depois se acalma. 18 Segundo um outro
mito, o demiurgo teve de intervir para que cessasse a guerra entre
os irmãos Ventos-da-Nordeste e os irmãos Chinook. Moderou uns
e outros, mas deixou em vantagem os Chinook.
E assim, hoje em dia, no perpétuo fluxo e refluxo dos oceanos celes-
tes, quando o vento do Norte se desencadeia, varrendo tudo em seu
caminho desde o Canadá setentrional até a bacia do Colúmbia, seu
domínio é apenas transitório. Pois, transcorridas algumas horas ou
no máximo alguns dias, uma linha azul-escura aparece no horizonte
pelo sul. Rapidamente os picos se desnudam da neve que os cobria.
e é a libertação: na manhã seguinte, poderoso e ruidoso, o chinook
abençoado chega do Sul e o domínio gelado do Norte funde como que
sob o sopro de uma fornalha. A luta é breve e a vitória do chinook,
certa. 19
A guerra do vento quente contra o vento frio corresponde ri-
gorosamente, num outro registro, à dos terráqueos contra ° povo
celeste pela conquista do fogo (cf', '''L 'homme nu, 7 ~ parte, II): com
efeito, se o vento quente do Sudoeste vem do mar, ou seja, de bai-
xo, o vento frio do Nordeste mora no céu.2o O paralelismo fica evi-
dente numa versão shuswap. Outrora, os animais sofriam de frio
[em vez de falta de fogo]. Lebre e Raposa partiram em expedição
para o Sul, onde viviam os senhores do vento chinook e do tempo
quente. Lá chegando, furaram o saco que continha o vento. O po-
vo do Sul tentou barrar-lhes a fuga provocando um calor abrasador
que se espalhou por todo o país, mas os dois heróis correrarn mais
depressa. "Doravante os ventos quentes soprarão até o Norte, fa-
zendo derreter a neve e secando a terra. O povo do frio não mais
mandará sozinho no tempo e seus rigores atenuados não farão os
humanos sofrerem demais. "21
Contudo, à diferença do outro ciclo, de onde resulta uma conse-
qüência irreversível, a ruptura da comunicação entre os dois mundos,
aqui o combate termina num acordo. Nenhum dos lados obtém uma
vitória decisiva, o vento frio e o vente quente irão alternar-se. Os
210 211
Coeur-d' Alêne podem descrever a chegada do bom tempo em ter-
mos categóricos: "Assistimos ao assassinato do Frio por seu ir-
mão ... "; limitam em seguida a fórmula esclarecendo" ... a cada
primavera't.ê-
Do mesmo modo, quando Maybury Lewis escreve que "a hie-
rarquia não é incompatível nem lógica nem sociologicamente com
uma organização dualista sólida e duradoura (thoroughgoing and
persistent)" ,25 concordo ainda mais com ele na medida em que
num texto (ausente de sua bibliografia, assim como, aliás, o de J.
Christopher Crocker, escrito, como precisa seu autor, em prolon-
gamento do meu) eu havia colocado o problema da relação entre
reciprocidade e híerarquía.ê'' Mostrava então que, se entre os Bo~
roro a.::metades estão ligadas por toda uma rede de direitos e de
obrigações recíprocas, encontram-se, no entanto, em desequilíbrio
dinâmico uma em relação à outra. * Eu sublinhava também que as
metades sul-americanas não são "em nada comparáve's aos siste-
mas australianos, já que no primeiro caso jamais um par de meta-
des desempenha o papel de classes matrimoniais" (p. 268). Final-
mente, eu avançava as reflexões de Maybury Lewis ao escrever, ain-
da no mesmo texto:
Essa noção fundamental de um dualismo em perpétuo desequi-
líbrio não transparece apenas na ideologia. Seja na América do Norte
(onde a evidenciei entre os Winnebagoj-' ou na América do Sul,
reflete-se também na organização social de vastos grupos de popu-
lações. As tribos da família lingüística lê e outras, suas vizinhas no
Brasil Central e oriental, ilustram-no.
Uma obra coletiva recente, cujos autores tiveram o generoso
pensamento de me dedicar (assim como à memória de W. H. R. Ri-
vers, o que constitui uma honra ainda mais opressiva), traz vários
fatos novos e análises penetrantes acerca do dualismo. Um dos res-
ponsáveis pelo volume ao lado de Uri Almagor, David Maybury Le-
wis, desenvolve, acerca da organização social dos Jê,visões que só
posso considerar judiciosas:
As organizações dualistas do Brasil Central [... ) constituem teorias so-
ciais globais (comprehensive social theories) unindo o cosmos e a socie-
dade [... ) que não são particularmente dependentes de nenhuma institui-
ção. Elas são capazes de gerar novas formas institucionais (new insti-
tutional arrangements) quando e onde isso se revela necessário.ê"
O estranho é que o autor dessas linhas acredita afastar-se de mim
quando, há mais de quarenta anos, acerca das organizações dualis-
tas em geral e do Brasil Central em particular, não tenho dito ou
escrito senão exatamente isso.
Já nas Structures élementaires de Ia parenté eu refutava a tese
(a qual me foi atribuída) de que as sociedades dualistas seriam re-
dutíveis aos sistemas de metades, e estes a um meio de garantir o
equilíbrio das trocas matrimoniais:
A organização dualistanão é, pois, primeiramente uma instituição [... ).
É, antes de mais nada, um ~riI!<:ípjo de organização,capaz de receber
aplicações muito diversas e sobretudo mais ou menos avançadas. Em
certos casos, o princípio aplica-se somente às competições esportivas;
em outros estende-se à vida política [... ); em outros casos ainda aplica-se
à vida religiosa e cerimonial. É possível enfim estendê-I o aos sistemas
de casamento. [P. 114 da edição brasileira, trad. Mariano Ferreira,
Petrópolis-São Paulo, Vozes-Edusp, 1976)
Uma análise talvez unilateral da organização dualista muitas vezes
avançou o princípio da reciprocidade como sua causa e seu principal
resultado [... ) Contudo, não se deve esquecer que um sistema de me-
tades pode expressar não apenas mecanismos de reciprocidade, mas
também relações de subordinação." Mesmo nessas relações de su-
bordinação, contudo, o princípio de reciprocidade está operando; pois
a subordinação é ela mesma recíproca: a metade que ganha a prima-
zia num plano a concede à metade oposta num outro.
(.) Fui acusado (Maybury Lewis, pp. 110-3) de ter dito que o dualisrno diame-
tral era por essência estático, Mas é justamente por tê-Io demonstrado com base em
argumentos de ordem formal (Anthropologie structurale, p. 168; Anthropologie struc-
turale deux, p. 91) que pude concluir, contrariamente às visões de meus predecesso-
res, que o dualismo diametral não constituía por si só um modelo adequado para
compreender o funcionamento das organizações dualistas, cujo dinamismo exige que
se recorra a outros princípios. Todo o meu texto de 1944 já demonstrava que, em
meu pensamento, uma sociedade como a dos Bororo tira seu dinamismo do jogo
entre a reciprocidade e a hierarquia,
(•• ) Seria, contudo, ingênuo restringir ao Brasil Central I) alcance de tais con-
siderações. Estando em 1983 em ilhotas do arquipélago das Ryúl.yü, observei os mes-
mos desequilfbrios alternados entre as metades, uma associada ao Leste, aos homens,
ao mundo profano, e a outra ao Oeste, às mulheres, ao sagrado, Na ordem política
e social, a superioridade cabe ao princípio masculino; cace ao princípio feminino
na ordem religiosa, Nas aldeias que visitei, o rito de luta da corda, no qual as duas
metades se opõem, inspirava sentimentos ambíguos, A superioridade do time do Leste
era reconhecida, mas a vitória do time do Oeste era considerada benéfica para a fe-
cundidade humana e para a prosperidade das plantações (LS 15: 25-6; cf. Yoshida:
212 213
Eu concluía: "É possível que os sistemas com múltiplos pares de
metades que se entrecortam, típicos da organização dualista na Amé-
rica do Sul, se expliquem como uma tentativa de superar tais con-
tradições" (p. 268).
Por conseguinte, num vasto conjunto de povos sul-americanos,
uma organização social "em estreita correspondência com as idéias
metafísicas" (ibidem) parece ser ela também concebida nos moldes
de um desequilíbrio dinâmico entre termos - seres, elementos, gru-
pos sociais .- que seria tentador repartir em pares, pois que, à pri-
meira vista, e considerados dois a dois, parecem equivalentes, iguais,
às vezes até mesmo idênticos. Reencontramos assim o tema desen-
volvido ao longo de todo este livro.
É fato que, entre as culturas chamadas "baixas" da América
do Sul, esse tipo de organização social parece ser próprio apenas
dos lê. Seeger notou com humor:
A primeira reação de vários etnógrafos que trabalham nas terras bai-
xas da América do Sul é dizer que o dualismo tal como foi descrito
entre os Jê não se aplica ao grupo estudado pelo próprio etnógrafo:
"Isso não é tupi", objeta ele. Assim que alguém propõe um quadro
geral para analisar um grupo de sociedades, um outro antropólogo salta
e proclama que nada de semelhante existe em algum outro lugar (no
Brasil, esse grupo inclui as famílias lingüísticas Tupi, Arawak e Carib).
Sem dúvida, prossegue Seeger,
o argumento "isso não é tupi" está perfeitamente correto. Em vez de
acentuar as distinções, os Tupi tendem a negá-Ias e unir os contrários.
Não se encontram, entre os Tupi da floresta, formações sociais com-
plexas e que se entrecortarn, como se observam entre os Jê; em vez
disso, espíritos (centenas deles) que não estão necessariamente orde-
nados de um modo binário.27
65,6). Na ilha mais meridional das Ryükyü, C. Ouwehand (pp. 26, 34, 137) notou
contradições análogas, inerentes ao sistema. Teriam inclusive desistido da luta da
corda porque não conseguiam chegar a um acordo quanto à prioridade de uma das
duas equipes, talvez porque a equipe do Leste tinha por símbolo o sol, e a do Oeste,
a lua, sendo que o primeiro astro era considerado superior ao segundo.
Um artigo de T. Yoshida e A. Duff-Cooper (Cosmos, 5, 1989) evidencia bem,
tanto em Okinawa como em vali, as relações dialéjicas entre sistemasde op~siç~~s-
Norte/Sul, Oeste/Leste. ieminino/masculino, mar/montanha, externo/interno etc.
- em que os valores relativos atribuídos aos termos de cada par se invertem quando
se passa da esfera do sagrado à do profano, do mundo dos vivos ao mundo dos mar,
tos etc. Ali, como alhures, o dualismo se traduz por um movimento pendular entre
a reciprocidade e a hierarquia.
214
Tudo isso é verdade. Mas se os Tupi não deram lugar ao dualis-
mo ne-fi'em sua organização social, nem em seu panteão, é o dua-
Iisrno que ordena sua mitologia. Demonstrei-o no capítulo 4 e no
final do capítulo 5. Quanto a isso, os Arawak tOS Carib, que tam-
bém possuem o ciclo dos gêmeos, em nada diferem dos Tupi; e vi-
mos (cap. 5) que é possível passar por transformação da mitologia
dos Tupi para a dos lê. Finalmente, a organização social das civili-
zações andinas apresentava, na época da descoberta, analogias no-
táveis com a que ainda não desapareceu entre os Bororo e os lê.28
Contrariamente ao que Seeger irnagina.ê? não vejo na organi-
zação dualista um fenômeno universal resultante da natureza binária
do pensamento humano. Apenas constato que povos que ocupam
uma área geográfica certamente imensa, mas circunscrita, escolhe-
ram explicar o mundo pelo modelo de um dualismo em perpétuo
desequilíbrio, cujos estados sucessivos se embutem uns nos outros:
li dualismo que se expressa de modo coerente, ora na mitologia, ora
!. na organização social, ora em ambas.
Uma ilustração esquemática dessa forma particular de dualis-
mo me foca fornecida pelo-contraste entre os Dióscuros da tradição
greco-rornana e os gêmeos ameríndios. Desiguais pelo nascimento
nos dois casos, os primeiros conseguiram tornar-se e permanecer
iguais; os outros, durante toda a sua vida terrestre e além, dedicam-
se a aumentar a distância que havia entre eles. Inferir-se-a daí que,
no tocante à gemelaridade, sociedades quentes podem se contentar
com uma filosofia fria e que sociedades frias - talvez por serem-no
- sentem necessidade de uma filosofia quente? Eu não iria tão longe,
mesmo porque há muitas razões para crer que, em outros aspectos,
os mitos iriam contradizer a hipótese. Nesse domínio ininterrupto
que constitui idealmente a mitologia geral, formando uma rede co-
nexa demais para que significações dela se desprendam, às vezes
acontece de um cruzamento brilhar com uma fosforescência fugi-
dia. Ela surpreende, paramos, lançamos um olhar curioso, tudo se
extingue e passamos. A mitologia dos gêmeos oferece um terreno
propício a esse tipo de ilusão.
Entre os seus atributos sagrados, os Dióscuros possulam.uma
planta, o Silphion." à qual os antigos atribuíam virtudes extraor-
dinárias. Da Líbia, onde crescia em estado selvagem, importavam-
se carregamentos dela para consumo alimentar e para diversos usos
medicinais, Era considerada tão preciosa que, quando César se apo-
derou do tesouro público de Roma, foram encontradas enormes
215
quantidades de Silphion em conserva. Desde pelo menos o século
• VI antes de nossa era a colheita do Silphion., no território em que
crescia espontaneamente (nunca se conseguiu cultivá-Ia),foi subme-
tida a regras severas. Quando, por volta do final do século I a.C.,
os administradores locais relaxaram o controle por negligência ou
interesse, a espécie, sobreexplorada, desapareceu em cinqüenta
anos.!' No inicio da era cristã os romanos só a conheciam de nome
e de reputação.F
O Silphion não era o peucédano oficinal, conhecido e utilizado
na Europa desde a Antiguidade (supra: 108 n.), mas, segundo L.
Hahn, provavelmente uma peucedânea.P de qualquer modo, uma
umbelífera de um gênero vizinho, produtora de um suco resinoso.
Por detrás da crença que associa o Silphion aos Dióscuros, talvez
não haja senão uma alusão à passagem dos dois heróis por Cirene,
cidade de onde se exportava o Silphion (a menos que essa visita tenha
sido inventada para dar mais corpo à própria crença). E dedicaremos
um interesse sobretudo anedótico à reutilização do termo Silphium,
que ficara disponível (já que não se sabe qual a planta que designa-
va outrora), para nomear em linguagem científica uma composácea
americana que secreta uma goma (nomes populares: Rosinweed,
Compass Plant).34 Sem saber, Lineu reproduzia nessa escolha, res-
trita à nomenclatura, * a escolha, feita pelos índios, de uma compo-
sácea de um gênero vizinho, dotada da mesma propriedade, para
substituir no ritual uma peucedânea ausente de seu território (su-
pra: 109). Coincidência picante na qual seria possível perceber um
sinal de que o espectro do Silphion ronda pelas paragens ...
Finalmente, se retivermos o valor tanto alimentar como mágico
e religioso atribuído no Noroeste da América do Norte a peucedâneas
(também diferentes de Peucedanum officinale L.), o uso obrigatório
(*) "[ ... ] o verdadeiro silphium, cujo nome Lineu talvez tenha se equivocado
10 atribuir a um gênero da família das corimbíferas, originário da Louisiana, por
ambérn apresentar folhas aproximadas e até unidas por baixo" (Dictionnaire des
ciences naturelles [... ] par plusieurs professeurs des jardins du roi etc., t. XLIX, art.
'Silphium ", Paris-Estrasburgo, Levrault, 1827). Mas não havia uma certa arnbigüi-
lade terminológica no espírito dos índios entre umbelíferas do gênero Peucedanum
= Lomatium e uma composácea, vizinha do gênero Si/phium (cf. supra: 109 n.)?
Uma espécie (Silphium lacinatum L.) era reverenciada pelos Omaha e pelos Pon-
a, índios de língua siouan habitantes da região do Missouri. Eles evitavam acampar
nde a planta crescia, pois, segundo eles, ali caíam raios freqüentemente. Por outro
Ido, acreditavam poder afastá-Ios com a fumaça de um fogo feito com as raízes
.cas. Os Winnebago da região dos Grandes Lagos empregavam Silphium perfotia-
tm como ernético para fins de purificação ritual (Gilmore: 80).
de uma tal umbelífera, ou da composácea supracitada, para o pre-
paro ritual do primeiro salmão e principalmente a assimilação, fei-
ta pelo pensamento indígena, entre gêmeos e salmões, é difícil evi-
tar uma certa perturbação. Tanto mais que, segundo os Kwakiutl,
os grãos de Peucedanum mascados e cuspidos afugentavam os mons-
tros marinhos e, segundo os Thompson, dissipavam o vento e a tem-
pestade; ou seja, as mesmas virtudes que os antigos atribuíam aos
Dióscuros. Na América do Norte, o emprego de plantas resinosas
na culinária ritual se explica provavelmente por referência implícita
ao fogo primordial (supra: 111). Os antigos também relacionavam
os Dióscuros ao fogo " e, como se sabe, a meteoros luminosos.
A aparente coerência de todos esses fatos levaria a crer c,ue,
por razões que nos escapam, tanto no Velho quanto no Novo Mun-
do fazia-se uma associação entre certas umbelíferas e gêmeos. Cer-
tamente isso não passa de uma ilusão de ótica. Mas as ilusões têm
seu charme e é perdoável que não se permaneça insensível a elas,
contanto que se saiba onde parar.
Seria possível que, em raras ocasiões, esse poderoso instrumento
que é a análise estrutural consiga romper os limites de nosso mundo
próximo, e discernir na parte mais longínqua do céu da mitologia
algo que, emprestando do vocabulário dos astro físicos, chamaríamos
de singularidades? Estas não teriam mais relação com as semelhanças
superficiais com que se satisfazia a antiga mitologia comparada do
que a que existe entre os objetos misteriosos revelados pelos radio-
telescópios e os corpos celestes que os primeiros astrônomos obser-
vavam a olho nu.
Diante dos fatos do gênero desses que evoquei, as categorias
habituais do pensamento vacilam. Já não se sabe o que se busca.
Uma comunidade de origem, indemonstrável já que tão tênues são
os vestígios que poderiam atestá-Ia? Ou uma estrutura, reduzida por
generalizações sucessivas a contornos tão evanescentes que perde-
mos as esperanças de apreendê-Ia? A menos que a mudança de es-
cala permita entrever um aspecto do mundo moral no qual, como
dizem ClS físicos acerca do infinitamente grande e do infinitamente
pequeno, o espaço, o tempo e a estrutura se confundem: mundo do
qual deveríamos nos limitar a conceber a existência de muito longe,
abandonando a ambição de penetrá-Io.
1%9-90
216 217

Outros materiais