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Expansoes Contemporaneas

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EXPANSÕES 
CONTEMPORÂNEAS
Literatura e outras formas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor Clélio Campolina Diniz
Vice-reitora Rocksane de Carvalho Norton
EDITORA UFMG
Diretor Wander Melo Miranda
Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said
CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (presidente)
Ana Maria Caetano de Faria
Danielle Cardoso de Menezes
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Roberto Alexandre do Carmo Said
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Ana Kiffer
Florencia Garramuño
Organizadoras
EXPANSÕES 
CONTEMPORÂNEAS
Literatura e outras formas
Belo Horizonte
Editora UFMG
2014
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 2014, Os autores
 2014, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização 
escrita do Editor.
____________________________________________________________________
E96 Expansões contemporâneas: literatura e outras formas / Ana Paula Kiffer e 
 Florencia Garramuño, organizadoras. – Belo Horizonte : Editora UFMG, 
 2014. 
 155p.: il. – (Babel)
 Inclui bibliografia.
 ISBN: 978-85-423-0043-7
 1. Arte – Coletânea. 2. Literatura – Coletânea. 3. Arte moderna – Séc. 
 XXI – Coletânea. 4. Arte e literatura – Coletânea. 5. Literatura – Estética – 
 Coletânea. I. Kiffer, Ana Paula Veiga. II. Garramuño, Florencia. III. Série. 
 CDD: 700
 CDU: 7
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Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação
Biblioteca Universitária da UFMG
Coordenação editorial Michel Gannam
Assistência editorial Eliane Sousa e Euclídia Macedo
Coordenação de textos Maria do Carmo Leite Ribeiro
Preparação de textos Cláudia Campos
Revisão de provas Camila Figueiredo e Thaís Duarte Silva
Projeto gráfico Cássio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico
Formatação e capa Victoria Arenque
Produção gráfica Warren Marilac
EDITORA UFMG
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 7
HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE
Tráfego de imagens, composições anacrônicas e usos da 
cultura material nas representações do tupi-guarani
 Álvaro Fernández Bravo 17
A ESCRITA E O FORA DE SI
 Ana Kiffer 47
POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO
 Celia Pedrosa 69
FORMAS DA IMPERTINÊNCIA
 Florencia Garramuño 91
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VIDA E MORTE DA IMAGEM
 Karl Erik Schøllhammer 109
FORMAS MUTANTES
 Wander Melo Miranda 135
SOBRE OS AUTORES 153
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7
APRESENTAÇ ÃO
A estética contemporânea está habitada por uma série 
de práticas e intervenções artísticas que evidenciam um 
estendido transbordamento de limites e expansões de cam-
pos e regiões. Segundo a descrição que Jacques Rancière 
faz dessa nova paisagem,
todas as competências artísticas específicas tendem a sair 
do seu próprio domínio e trocar seus lugares e seus poderes. 
Hoje temos teatro sem palavras e dança falada; instalações e 
performances como se fossem obras plásticas; projeções de 
vídeo transformadas em ciclos de afrescos e murais; fotografias 
tratadas como quadros vivos ou pintura histórica, escultura 
metamorfoseada em show multimídia, e outras combinações.1
No campo das artes visuais, essa paisagem vem sendo 
analisada de maneira consistente há alguns anos, numa 
reflexão teórica que foi impulsada pelo impacto poderoso 
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8 As organizadoras
da arte conceitual e das instalações artísticas. Já há algumas 
décadas, com uma marca claramente estruturalista que 
talvez tenha sido a sua limitação mais importante, Rosalind 
Krauss falou da “escultura num campo expandido” para 
situar a aparição de um novo tipo de obras artísticas que 
só poderiam ser consideradas como esculturas se a própria 
categoria de escultura se expandisse de tal maneira que 
deixasse de definir de modo específico algum tipo de obra 
em particular.2 Alguns anos mais tarde, e provavelmente 
em resposta às críticas que tinha recebido pela rigidez desse 
paradigma estruturalista, a própria Krauss será uma das pri-
meiras teóricas a falar da condição post-medial da arte con-
temporânea para se referir à propagação internacional “da 
instalação de mixed media [que] tem se tornado ubíqua”.3
Não por acaso, nesse mesmo ensaio, a reflexão de 
Krauss se sustentava na análise de algumas obras de Marcel 
Broodthaers, entre elas, a entitulada Charles Baudelaire: Je 
hais le mouvement qui déplace les lignes, de 1973. Trata-se 
de uma obra na qual o artista – convém lembrar aqui, tam-
bém poeta – utiliza esse verso de Baudelaire colocando-o 
em cada página em lugares diferentes – às vezes contra a 
margem esquerda, depois no centro da página, posterior-
mente na margem direita –, fazendo o texto figurar, sobre 
a página em branco, como imagem. O livro, pela sua vez, 
converte-se em uma sorte de objeto visual que incorpora o 
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APRESENTAÇÃO 9
verso – e o que o verso tem, sempre, de imagem – como ele-
mento construtivo dessa visualidade. Mas esse dispositivo 
não faz o verso abandonar, nessa disposição, sua condição 
de verso, nem o livro, sua condição de livro. Muito pelo 
contrário, precisamente a repetição e a colocação do verso 
na página são alguns dos procedimentos mais paradigmá-
ticos e representativos – próprios e pertinentes – da poesia 
enquanto forma discursiva. Ao colocar lado a lado literatura 
e visualidade, Broodthaers elabora uma forte crítica à ideia 
de um meio específico e se converte – segundo Krauss – em 
um dos precursores, numa genealogia da condição post-
-medial, da arte contemporânea. É relevante que tenha sido 
Baudelaire quem inspirou essa genealogia, já que foi um 
dos nomes fundacionais em um movimento de expansão 
dos limites da lírica. Com tal expansão da lírica, Baudelaire 
vem consagrar a ideia de uma poesia moderna – e de uma 
arte moderna –, para a qual a saída para fora de si seria o 
seu dispositivo mais contundente.
Neste momento poderíamos assinalar que tal saída perfa-
zia-se, sobretudo, nos mecanismos de passagens, na própria 
relação entre as passagens – do registro crítico ao poético, da 
vida cotidiana ao museu, entre outras – que, por sua vez, não 
deixavam de inscrever nas próprias passagens arquitetônicas 
ícones de um certo modo de “vida moderna” na Paris de 
Baudelaire. Essas passagens, ainda ligações entre interior e 
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10 As organizadoras
exterior, vêm sendo – na arte e na vida contemporânea – 
explodidas em seus contornos arquitetônicos, estéticos e 
subjetivos. Esta, se poderia dizer, é uma interrogação crucial 
deste livro: quais transformações se deixam notar entre a 
expansão dos limites da arte moderna e a radicalidade de 
um não pertencimento contemporâneo? De que modo o 
fora de si, antes marcadamente caracterizado pelos limites 
nacionais, territoriais e subjetivos, que faziam com que a 
sua aparição se fundasse numa verdadeira transgressão, 
passou a caracterizar-se como um operador cotidiano das 
experiências-limite ou mesmo desidentitárias pelas quais 
passamos mais ou menos todos no mundo atual?
E mesmo no âmbito daquiloque por séculos (desde 
praticamente as origens da constituição do que entende-
mos por Ciências Humanas)4 se constituiu como lugar do 
“específico” e do “identitário”, hoje vemos, como aponta o 
texto de Álvaro Fernández Bravo, “os diferentes modos de 
pensar o capital simbólico ameríndio como inespecífico – 
móvel e heterocrônico – e por sua vez passível de evocar 
conotações simbólicas, históricas, etnográficas e filosóficas”. 
Ou seja, a interrogação sobre os diferentes modos do não 
pertencimento, ou mesmo sobre a radicalização das expe-
riências que hoje constituem um “estar fora de si”, não 
deixa de apontar a força paradoxal que age numa partilha 
do sensível no mundo contemporâneo. A própria ideia de 
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APRESENTAÇÃO 11
“formas do não pertencimento” (Garramuño) já é em si um 
operador paradoxal, posto que recorre à forma para falar do 
inespecífico, ou ainda o “fora de si” (Kiffer), que apela para 
uma exterioridade radical, porém ligada à constituição do 
subjetivo. Ou, mais longe ainda, todo o desenvolvimento 
proposto por Schøllhammer da ideia paradoxal de uma 
imagem que é ao mesmo tempo um composto de vida e 
afeto, mesmo que saibamos que uma imagem já não é mais 
a vida senão que a “sobrevivência” do instante de sua morte, 
ali concentrada, congelada ou refluída.
A esse respeito, também a literatura e a poesia contem-
porânea (Pedrosa e Garramuño) participam de uma intensa 
expansão de seu campo ou meio específico há alguns anos. 
No dizer de Pedrosa, ao analisar a poesia de Marcos Siscar: 
“No ir e vir constante em que o dentro e o fora têm sub-
vertidas suas fronteiras e antagonismos, imagens visuais 
se mesclam a fragmentos de memória poética, filosófica, 
geográfica, geológica, biográfica.” Como na poesia de Mar-
cos Siscar, explorações literárias que estabelecem pontos de 
conexão e fuga entre ficção e fotografia, imagens, memórias, 
autobiografias, blogs, chats e correios eletrônicos, assim 
como entre o ensaio e o documentário, como o demostram 
textos tão diversos como os de W. G. Sebald, Bernardo de 
Carvalho, John Berger, João Gilberto Noll, Fernando Vallejo 
ou Ó, de Nuno Ramos, são cada vez mais numerosas, muito 
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12 As organizadoras
embora isso não implique que sejam hegemônicas. Caberia 
assinalar, aliás, que muitos dos textos que se limitam ao que 
poderíamos considerar como o seu próprio “meio” – se de-
cidirmos optar por uma linguagem positivista – evidenciam 
uma série de perfurações nas convenções que têm definido 
a especificidade literária, abrindo, por conseguinte, outras 
possibilidades ou linhas de fuga em relação à ideia da es-
pecificidade do literário.
Trata-se não só de uma implosão do meio específico, 
ainda se entendermos “meio” para além do seu suporte 
físico, incorporando em sua definição as convenções que o 
definem num momento histórico determinado.5 Trata-se, 
mais além – e isto é o mais importante –, de um profundo 
questionamento do “próprio” enquanto definição estável 
e circunscrita de uma especificidade. Especificidade tanto 
do meio como do próprio conceito de arte, como um modo 
de postular o que em outro artigo temos chamado de “uma 
arte inespecífica”.6 É ali que se joga uma noção de literatura 
ou de arte que tem incorporado, dentro de sua linguagem, 
suportes e funções, uma relação com outros discursos e 
esferas nos quais o literário, ou o artístico, não é dado nem 
construído, mas, muito pelo contrário, desconstruído ou, 
pelo menos, colocado em questão – ou sur rature, como 
apontou Jacques Derrida. Esse movimento dispõe textos 
que, no dizer de Wander Melo Miranda, deveriam ser 
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APRESENTAÇÃO 13
pensados como “formas mutantes”, onde o dispositivo da 
montagem que os constrói “se realiza por meio de cortes e 
recortes no contínuo do relato, de migrações e sobrevivência 
das ‘figuras’ em que os eventos narrados se transformam”. É 
nessas sobrevivências, nessas heterogeneidades7e heteroto-
pias, que essa arte inespecífica cifra uma vontade de imbri-
car as práticas artísticas na convivência com a experiência 
contemporânea. Para além mesmo da noção de campo, 
enquanto espaço circunscrito por limites e fronteiras, a ideia 
de uma arte que seria autônoma e independente aparece 
suplantada por uma arte inespecífica que se figura como 
parte do mundo.
Na tentativa de pensar essa nova paisagem da arte con-
temporânea, os ensaios deste livro tomam objetos diversos 
– práticas estéticas, antropológicas, poéticas, literárias – para 
explorar com eles os modos como a expansividade da arte 
hoje tem se constituído num fora de si radical. O limite, des-
se modo, deixa de se localizar enquanto uma anterioridade já 
dada, para se perfazer de modo transitório, tênue ou poroso 
enquanto lugar de experiência da própria obra (Kiffer). 
Desde os debates em torno da especificidade da obra de 
arte colocados por antropólogos e historiadores (Fernández 
Bravo), à expansividade da poesia brasileira contemporânea 
concebida a partir de um “hibridismo” entre verso e prosa, 
noções como as de “formas mutantes”, “obra-instalação” 
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14 As organizadoras
(Wander Melo Miranda) ou “imagem pensiva” (Rancière8 
e Schøllhammer) buscam definir conceitos que permitam 
compreender esse “fora de si” para pensar “a proliferação 
escriturária que vai fazer da própria atividade da escrita 
uma passagem incessante entre regimes heterogêneos, seja 
no interior das artes, seja entre as diferentes camadas de 
campos discursivos” (Kiffer).
As organizadoras
Notas
1 Jacques Rancière, El espectador emancipado, Buenos Aires, Manantial, 2010, 
p. 27, tradução nossa.
2 Rosalind Krauss, Sculpture in the Expanded Field, October, v. 8, p. 30-44, 
Spring 1979. Lembremos a indefinição à que pretende dar nome o conceito: 
“Nos últimos dez anos, coisas bem surpreendentes têm vindo a ser chamadas 
esculturas: estreitos corredores com monitores de televisão; grandes fotografias 
documentando o campo; espelhos colocados em ângulos estranhos em quartos 
comuns; linhas temporárias cortadas no piso do deserto. Nada, pareceria, 
poderia dar a essa heterogeneidade o direito de reclamar o que poderia ser 
significado pela categoria de escultura. Só se a categoria for tornada quase 
infinitamente maleável.” (Ibidem, p. 31.)
3 Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea. Art in the Age of the Post-Medium 
Condition, London, Thames and Hudson, 1999, p. 20. Hal Foster tem apontado 
que “durante as últimas três décadas ‘o campo expandido’ tem lentamente im-
plodido, já que termos antes tidos em contradição produtiva têm gradualmente 
colapsado em compostos sem muita tensão, como nas muitas combinações do 
pictórico e do escultural, ou de arte e arquitetura, em arte instalação hoje – arte 
que, na sua maioria, cabe bem demais na cultura do desenho-exibição criticada 
em outra parte neste livro”. (Hal Foster, This Funeral is for the Wrong Corpse, 
em Design and Crime, and Other Diatribes, New York/London: Verso Books, 
2002, p. 127, tradução nossa.) Segundo Jane Rendell, comentando Foster, o 
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APRESENTAÇÃO 15
campo teria explodido “mais do que implodido, e (...) é por essa razão que as 
categorias já não estão postas em tensão”. (Jane Rendell, Art and Architecture: 
A Place Between, London, New York, IB Tauris, Sept. 2006, no prelo, tradução 
nossa.)
4 Michel Foucault, Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines, 
Paris, Gallimard, 1966.
5 Cf. Jacques Rancière, What a Medium Can Mean, Parrhesia, n. 11, p. 35-43, 
2011.
6 Cf. Florencia Garramuño,Especie, pertenencia, especificidad, em e-misférica, 
v. 10, n. 1, Winter 2013.
7 Ver Ana Kiffer, Sobre limites e corpos extremos, em Karl Erik Schøllhammer e 
Heidrun Krieger Olinto (org.), Literatura e criatividade, Rio de Janeiro, 7Letras, 
2012.
8 Rancière, El espectador emancipado.
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17
HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 
Tráfego de imagens, composições anacrônicas 
e usos da cultura material nas representações 
do tupi-guarani
Álvaro Fernández Bravo
O problema que gostaria de analisar brevemente neste 
artigo é a posição intermediária ocupada pelos objetos como 
evidência material para se teorizar sobre a natureza da cul-
tura. Quando falo de objetos, refiro-me a vestígios de uma 
cultura material que se encontram em um espaço indeciso 
e em transição: podem ser lidos como restos arqueológicos, 
obras de arte, relíquias ou artefatos, mas ficam fora de lugar 
e por isso mesmo podem ser apropriados, descontextualiza-
dos ou restituídos no seu entorno (e também num campo 
disciplinar), possibilitando que se leia neles inúmeros e 
diferentes tipos de evocações. São objetos que, quando se 
reconhece seu itinerário, desafiam a autonomia e no seu 
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18 Álvaro Fernández Bravo
percurso cruzam fronteiras epistemológicas, conceituais, 
territoriais e temporais, desenhando assim um mapa de 
contornos expandidos.
Durante os anos de 1920, tanto na Europa quanto na 
América Latina, consolidou-se um interesse pelo mundo 
indígena e sua cultura material como suporte para desen-
volver teorias estéticas e investigações etnográficas, ou ainda 
postular hipóteses sobre a natureza das culturas nacionais. 
As vanguardas apelaram ao referente indígena, às vezes para 
desafiar a hegemonia dos paradigmas nacionalistas, outras 
para consolidá-la. O tráfego de coisas aumentou, amparado 
pelo aparato colonial (desdobrado tanto pelas potências 
coloniais do Atlântico Norte como pelos Estados nacionais 
latino-americanos), e com ele o número de depósitos e a 
infraestrutura para receber objetos e catalogá-los. Nesse 
processo, os etnógrafos ocuparam um rol chave. Como 
sabemos, as coisas e os objetos adquirem essa condição 
pelo uso e pelas camadas de olhares humanos que foram se 
sobrepondo a eles, colocando-os, muitas vezes, em relação 
com diferentes campos.
Os objetos que ingressaram e se movimentaram entre os 
diferentes museus vão ser um dos focos de minha atenção 
aqui, e em particular os debates em torno da especificidade 
da obra de arte, posto que muitas delas só adquiriram essa 
condição ao serem exibidas e contempladas como tais. 
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 19
Esse problema atraiu o interesse de numerosos pensadores 
que se perguntaram pela migração da cultura material não 
europeia, que foi trasladada em grandes quantidades desde 
seus lugares arqueológicos em todo o mundo até chegarem 
aos museus europeus, norte-americanos e também latino-
-americanos, revelando, pela primeira vez, conotações es-
téticas ali onde essa ênfase não se configurava.
Assim se pode falar de uma dupla migração da América, 
Ásia e África para a Europa e os Estados Unidos e também 
das áreas rurais para as cidades e, uma vez lá, entre os mu-
seus que se multiplicaram e foram ganhando especificidade. 
Nas sucessivas trajetórias, os curadores e colecionadores 
davam aos objetos novos atributos.
É possível encontrar um antecedente dessa preocupação 
na viagem de Aby Warburg (1866-1929) para o território 
da tribo dos índios Pueblo, no atual estado de Novo 
México, Estados Unidos, em 1896. O contato de Warburg 
com os Pueblo marcou as suas teorias sobre o Nachleben 
e a sobrevivência de práticas simbólicas arcaicas em 
manifestações artísticas contemporâneas e heterocrônicas.1 
Warburg tinha começado a pensar na questão da 
sobrevivência em obras do Quattrocento italiano, nas quais o 
historiador de arte tinha reconhecido restos pagãos arcaicos. 
Georges Didi-Huberman tem desenvolvido recentemente 
uma provocativa e erudita releitura da obra de Warburg que, 
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20 Álvaro Fernández Bravo
em contraste com as leituras de Ernst Gombrich com as 
quais polemiza, busca reconhecer o valor do anacronismo. 
Didi-Huberman procurou recuperar a complexidade do 
legado warburguiano e elaborar alguns conceitos sobre 
os quais voltarei no meu trabalho, em particular o da 
heterocronia das coisas e das imagens.2 O caminho de 
Warburg foi precursor, se comparado a outros etnógrafos, 
artistas e pensadores que percorreram a América do Sul 
poucos anos depois e se detiveram na cultura material 
ameríndia para interrogá-la e recuperar as perguntas do seu 
trabalho de campo para questionar sua própria prática e, 
com ela, os contornos disciplinares e os efeitos do tráfego 
de coisas e de conceitos.
Gostaria de pôr em diálogo essas perspectivas para ana-
lisar o problema do tempo heterogêneo, o tráfego de ima-
gens e os usos da cultura material tupi-guarani como meio, 
isto é, os diferentes modos de pensar o capital simbólico 
ameríndio como inespecífico – móvel e heterocrônico – e 
também passível de evocar conotações simbólicas, histó-
ricas, etnográficas e filosóficas distintas. Para tal, vou levar 
em consideração os debates que circundaram a publicação 
da revista Documents, dirigida por Georges Bataille, e seu 
efeito no modo de olhar para a cultura material guarani. O 
diálogo e a tensão entre etnografia e vanguarda atravessou 
a especulação estética e teórica durante esses anos e pode ser 
reconhecido nas pesquisas sobre o mundo guarani.
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 21
A figura de Alfred Métraux (1902-1963) e seus escritos 
iniciais sobre as culturas tupi-guarani e tupinambá são um 
ponto de partida para analisar o lugar do objeto de arte 
como conglomerado de relações. Interessa-me examinar 
a construção de um discurso sobre o mundo guarani a 
partir dos restos e dos vestígios da cultura material con-
servados em museus do norte da Europa e consultados por 
Métraux para escrever seus primeiros livros. A pesquisa de 
Métraux tem apoio em fontes escritas (relatos de viagem, 
crônicas coloniais e estudos etnográficos contemporâneos 
ao momento de escritura), mas sobretudo em sua leitura 
de “documentos” e nos cruzamentos interdisciplinares em 
que convergem a etnografia, a arqueologia, a filologia e a 
arte, o passado e o presente, a civilização e o primitivo. 
Publicado em 1928, o mesmo ano em que Métraux fez a 
curadoria, com Georges Henri Rivière, da exposição Les 
Arts Anciens de l’Amerique, no Museu do Louvre, e em 
que se começa a publicar em São Paulo a Revista de Antro-
pofagia, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani 
oferece um repertório de objetos a partir dos quais se 
desdobra uma teoria cultural. Porém, a assepsia metodo-
lógica do antropólogo nunca perde de vista o objeto que 
ele usa para apoiar sua investigação.3 Especula sobre sua 
antiguidade, sonda conotações onde se reconhecem os 
debates do momento, elabora mapas e propõe itinerários 
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22 Álvaro Fernández Bravo
para as coisas. Não segue o mesmo caminho do seu ami-
go Georges Bataille, mas mantém algumas preocupações 
comuns. É por isso, talvez, que André Breton o chamou 
de “o homem antipoético do século XX”.4
Sua intervenção pode ser lida como uma resposta (mas 
também como um diálogo) com a revista Documents, 
dirigida por Bataille, que começou a ser publicadaem 
1929, no ano seguinte ao do seu livro e da exposição de 
arte americana de 1.200 objetos exibida no Louvre, “a pri-
meira grande exibição de arte pré-colombiana na Europa 
ocidental”,5 e da mudança de Métraux para a Argentina, 
onde já então dirigia o recém-fundado Instituto de Et-
nologia da Universidade Nacional de Tucumán. Nesse 
mesmo ano de 1928, Métraux, com Jean Babelon e Georges 
Bataille tinham editado um número da revista Cahiers de 
la Republique des Lettres, des Sciences et des Arts intitulado 
L’art précolombien. Ali se incluiu “L’Amérique disparue”, 
um dos primeiros artigos de Bataille. Essa revista permite 
reconhecer uma precoce manifestação do campo expan-
dido no qual se cruzam a história da arte, a ciência e a 
literatura. É dentro dessas águas que quero ler a obra de 
Métraux. Os objetos ameríndios ocupavam uma posição 
desconcertante e aberta na exposição. Veremos os efeitos 
dessa posição mais adiante.
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 23
Cahiers de la République des Lettres, des Sciences et des Arts, 1928.
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24 Álvaro Fernández Bravo
Métraux, filho de um médico suíço que tinha se 
estabelecido na província de Mendoza, Argentina, passou 
sua infância na América do Sul, viajou para realizar estudos 
no liceu da sua cidade natal, Lausane, Suíça, e logo continuou 
seus estudos universitários em Paris e em Gotemburgo, 
Suécia. Defendeu sua tese de doutorado na Sorbonne 
no mesmo ano de 1928, e a publicou em duas partes: La 
civilisation materielle des tribus Tupi-Guarani e La religión 
des Tupinamba et ces rapports avec celle des autres tribus 
Tupi-Guarani.6 Escreveu os dois livros sem ter realizado 
trabalho de campo, baseando-se nas coleções de cultura 
material recolhidas por seu maestro Erland Nordenskiöld 
na América do Sul, entre 1901 e 1902, e alojadas no Museu 
de Gotemburgo, e visitando os museus de Copenhague e 
Berlim. Durante sua permanência em Paris, estudou com 
Marcel Mauss e estabeleceu uma longa relação com o grupo 
de intelectuais surrealistas que pouco depois iria se nuclear 
na revista Documents. Dado meu interesse pelos objetos, 
vou me concentrar no primeiro de seus livros.
Documentos da barbárie
Antes de ingressar no problema da heterocronia da civili-
zação material tupi-guarani, quero me deter brevemente no 
debate que teve lugar na revista Documents, e que tem um 
eco no trabalho do etnógrafo suíço que analisaremos aqui. 
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 25
Muitos dos membros da revista (1929-1930, 15 números) 
estavam plenamente imersos na discussão sobre a posição 
da cultura material de origem não europeia (primitiva) 
nos museus europeus. O subtítulo da revista, Doctrines, 
Archéologie, Beaux-Arts, Ethnographie, permite reconhecer 
a convivência de categorias heterogêneas dentro da publica-
ção, que rechaçava a ideia do valor estético como autônomo, 
desligado dos usos atribuídos às coisas. Essa posição pode 
ser lida como um antecedente da perspectiva de Métraux 
de ler os objetos num campo expandido. A relação entre 
as vanguardas e a arte primitiva, já para fins dos anos de 
1920, mostrava seus impactos sobre o mercado de arte e 
consagrava a profanação desses objetos ao incorporá-los 
decisivamente ao mercado, elevando sua cotização e con-
firmando os efeitos irreversíveis do museu sobre as coisas 
que caíam nas suas garras. Como assinala Denis Hollier no 
prefácio à edição de 1991, Documents “terá por plataforma 
uma oposição ao ponto de vista estético”.7
Gonzalo Aguilar destaca que um andamento seme-
lhante ocorre no Movimento Antropofágico em 1928. A 
estética que tinha ocupado um lugar central no Manifesto 
Pau-Brasil, de 1924, perde agora importância e resulta 
substituída por uma afiliação política ao negócio indígena.8 
Trata-se, é claro, de uma afiliação retórica, afastada de todo 
conhecimento etnográfico ou contato com o mundo ame-
ríndio, com o qual os membros da vanguarda antropófaga 
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26 Álvaro Fernández Bravo
nunca tiveram uma aproximação efetiva, diferentemente 
de Mário de Andrade, que manteve uma relação ativa com 
o conhecimento científico, tanto nas suas viagens como na 
sua leitura da obra de Koch-Grunberg, citado várias vezes 
por Métraux no livro La civilisation matérielle.
Se as coisas podiam ter um valor como documentos a 
partir dos quais se lia rastros de culturas primitivas, quer 
dizer, arcaicas e remotas, é nesse valor de “meio” de acesso 
que residia uma de suas maiores riquezas, porque em tal 
valor já se preparava, naturalmente, uma reflexão sobre o 
contemporâneo. Sem dúvida que a defesa do valor de uso em 
face do valor de câmbio que o mercado impunha aos objetos 
radicava em preservar o resto material que essas coisas ti-
nham tido antes de ingressar na economia da coleção. Muito 
embora se tratasse de objetos primitivos, se privilegiava seu 
valor de uso e se denunciava os “arqueólogos e os estetas” 
pelo seu formalismo, interessados na “forma de uma asa [de 
uma peça de olaria]”, mais incapazes de “estudar a posição 
do homem que bebe”.9
Também significava conservar o lugar do intermédio 
e aberto que tanto as imagens como os objetos possuem. 
A condição de “externalidade” das coisas,10 muito embora 
fosse fantasmagórica e opaca, as preservava do fetichismo da 
mercadoria que sua cotização na bolsa de valores da arte já 
começava a lhes imputar. O debate suscitado em Documents 
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 27
teve vários participantes ligados a Métraux, como o próprio 
Georges Henri Rivière, coeditor de Documents com Bataille. 
Rivière tinha sido colaborador, com Métraux, não só na-
quela primeira exposição no Louvre, mas também como 
benfeitor, desde a subdireção do Musée de Ethnographie 
du Trocadéro, dos envios de cultura material realizados 
desde o Chaco até Paris pelo etnógrafo suíço. O Musée du 
Trocadéro foi mudando de nome no decorrer dos anos, 
primeiro para Musée de l’Homme e depois para o atual 
Musée du Quai Brainly, e os objetos remitidos por Métraux 
ainda permanecem lá e podem ser observados na página 
web do museu. Foi no Musée du Trocadéro onde Picasso 
teria se inspirado para pintar Les demoiselles d’Avignon, 
logo após observar objetos de procedência africana expostos 
nas vitrines.11
Carl Einstein, teórico da arte primitiva e colaborador da 
publicação, também se interessou pela questão da cultura 
material no campo expandido.12 Einstein tinha proclamado 
alguns anos antes que “a era das ficções formalistas sobre a 
arte tinha acabado”,13 e atacou a mediação europeia capita-
lista – da qual a vanguarda se revelava, em última instância, 
cúmplice –, por considerá-la cultora duma arte burguesa, 
elitista, individualista e afastada de um propósito coletivista 
que incluía situar os objetos longe da intermediação dos 
colecionistas.
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28 Álvaro Fernández Bravo
O termo “documento”, que dá título à revista, também 
contrasta com a categoria de “monumento”. Monumento 
alude à ideia da cultura como troféu e sublimação, que os 
membros da revista rechaçavam, como fez Métraux, em 
suas leituras etnográficas de objetos da arte a partir de sua 
inserção no mundo social de onde tinham sido extraídos. 
Não se tratava de sustentar a transparência da coisa, mas de 
usá-la como disparador para desenvolver hipóteses sobre o 
universo de onde provinham e no qual interatuavam.
As coisas adquiriam, assim, um valor post-medial, pela 
sua condição inespecífica: a categoriade “belas artes”, em-
bora aparecesse no nome da revista, estava compreendida no 
documento, que rechaçava toda hierarquia (um sapato tinha 
o mesmo valor que uma diadema de origem viking ou uma 
obra de Giacometti). Recuperava-se, assim, intensamente, o 
valor de uso – como ia fazer Métraux na sua reconstrução da 
cultura guarani a partir dos objetos reunidos na coleção de 
seu maestro Erland Nordenskiöld no Museu de Gotembur-
go – e se afastava, também, de toda noção de pureza e cultura 
alta. É por isso que a categoria de “civilização” poderá ser 
usada por Métraux para se referir ao mundo guarani que 
até então dificilmente poderia ter sido considerado como 
tal. Na mesma linha, Paul Rivet, que tinha recomendado a 
Juan B. Terán, Reitor da Universidade de Tucumán, para 
contratar Métraux, assinalava que 
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é capital o etnógrafo, como o arqueólogo, como o historiador 
da pré-história, estudar tudo o que constitui uma civilização, sem 
deslegitimar nenhum elemento, por insignificante ou banal que 
pareça (…) os colecionistas têm incorrido no erro de um homem 
que for julgar a civilização francesa atual pelos objetos de luxo 
que podem ser encontrados junto a um grupo muito reduzido 
da população.14
A afinidade da vanguarda com o “baixo”, a barbárie, 
os detritos, o anacronismo e seu ataque furioso às hierar-
quias consagradas no museu não impediram nem em sua 
manifestação parisiense, nem nas suas expressões latino-
-americanas, incluindo o Movimento Antropofágico bra-
sileiro, as alianças estratégicas e o colaboracionismo com as 
instituições de acumulação simbólica primitiva localizadas 
nos centros urbanos de poder político, tanto europeus 
como latino-americanos, para onde o tráfego dos vestígios 
da cultura material continuou sem pausa.15 No entanto, 
os objetos, ainda que descontextualizados, albergam uma 
resistência e uma carga histórica inapagável. Esse resíduo 
temporal e simbólico vai ser o foco de interesse de Alfred 
Métraux a respeito da cultura guarani.
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30 Álvaro Fernández Bravo
A civilização material tupi-guarani
O livro de Métraux parte de dois conceitos raramen-
te justapostos. Civilização material apresenta um par 
conceitual que não é idêntico: nem à “cultura material” 
nem à “civilização” isoladamente. A expressão pode se 
explicar, conforme observam Bossert e Villar, em relação 
ao alinhamento do antropólogo suíço com o enfoque 
cauteloso e ainda disposto a conviver com a incerteza da 
escola escandinava de americanistas na qual o seu maestro 
Erland Nordenskiöld o tinha treinado. Nordenskiöld – 
cujas obras Aby Warburg conheceu e consultou16 – con-
tribuiu ainda com a revista Documents com um artigo 
sobre a cultura material indígena americana, cujas ideias 
têm semelhança com o método de Métraux no seu livro 
La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani.17 No 
entanto, o artigo tinha noções difusionistas que procu-
ravam “indagar na difusão de elementos culturais para 
reconstruir o mapa étnico da América do Sul”. Tratava-
-se de uma posição moderada, disposta a reconhecer 
invenções independentes e próximas a certo relativismo 
cultural afastado dos extremos dogmáticos dos teóricos 
da Kulturkreise do “difusionismo” alemão ortodoxo.18 
Assim, Métraux propunha estudar a “civilização mate-
rial”, um conceito que não estava associado com os grupos 
indígenas Tupi-Guarani, particularmente na Argentina, 
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onde o mundo indígena estava desprestigiado e tinha acesso 
somente a museus etnográficos sob os parâmetros racistas 
da antropologia física. Apesar de algumas tentativas de 
ingressar relíquias indígenas em espaços associados com 
a arte, como o Museu Nacional de Belas Artes de Buenos 
Aires, elas tinham sido cortês, mas firmemente derivadas 
para o campo da ciência, como no caso da urna Quiroga, 
uma peça de olaria calchaqui descoberta e doada pelo 
arqueólogo Adán Quiroga, eventualmente invisibilizada 
no Museu Etnográfico da Universidade de Buenos Aires.19
Em contraste com esse antecedente, o guarani se en-
contra solidamente integrado no mundo paraguaio, onde 
é, junto com o espanhol, uma das duas línguas oficiais do 
Estado, e instituições como o Museu do Barro consagram 
a cultura material guarani como emblema da cultura na-
cional.20 O guarani ocupa, no entanto, um lugar menos 
nítido tanto na Argentina como no Brasil e na Bolívia, onde 
também habitam falantes de línguas guaranis.
O Chaco é uma zona de limites imprecisos que compre-
ende regiões da Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil. Seu 
território tem sido habitado e atravessado pelas migrações 
guaranis e tupis durante vários séculos. Vou tomar os es-
critos sobre esse grupo étnico como um campo expandido 
e em movimento que, a partir de objetos de arte de natureza 
híbrida, por momentos carregados de um valor religioso, 
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32 Álvaro Fernández Bravo
mas também dotados de conotações estéticas – tal como 
os considerou Aby Warburg no seu ensaio sobre os índios 
Pueblo do Novo México, elaborado em torno de 1927, 
mas só publicado 50 anos mais tarde –,21 evidenciam um 
conglomerado de relações a partir do objeto de arte que 
compreende crenças, mitologia, práticas comunitárias e 
religiosas e patrimônio linguístico.
Como assinalou recentemente Eduardo Viveiros de 
Castro, aplicar categorias como “território” ou “comunidade” 
ao mundo indígena entranha problemas difíceis de serem 
resolvidos, ligados à migração, ao movimento e à flutuação 
contínua da mesma composição desses grupos humanos.22 
Como toda comunidade, os indígenas Tupi-Guarani 
não permanecem imóveis, mas mudam, se deslocam, 
incorporam novos componentes, se fragmentam e alteram 
continuamente seu capital simbólico. Não permanecem 
idênticos a si mesmos. Não obstante, esse fenômeno foi 
reconhecido muito cedo pelos etnógrafos, particularmente 
por Métraux (mas também por Nordenskiöld); foi ele 
quem dirigiu as pesquisas de objetos realizadas durante 
sua permanência em Gotemburgo. Métraux procurava 
reconstruir o itinerário da suposta irradiação a partir de 
um núcleo primigênio no Amazonas para diversas regiões 
da América do Sul, incluindo a fronteira com o mundo 
andino, onde ele estudou os então denominados indígenas 
chiriguanos, como é possível observar nos mapas de 
clara inspiração difusionista incluídos em La civilisation 
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matérielle des tribus Tupi-Guarani. Ali se reconhece um 
êxodo de leste a oeste, desde as costas atlânticas até o 
interior do continente através dos rios amazônicos ou 
das selvas do Chaco, que culmina nos grupos Chiriguano 
(hoje denominados Avá-Guarani) da Bolívia e do norte 
da Argentina.23 O efêmero dos gentilícios, incluindo o 
próprio gentilício tupi-guarani, indica não só uma condição 
atravessada por saberes contemporâneos à produção de 
conhecimento sobre esses grupos, mas também a maneira 
como o discurso para nomeá-los se torna rapidamente 
anacrônico. Assim, categorias como “tribo” – no título da 
obra de Métraux –, “nação” e “raça”, para se referir aos tupi, 
revelam o anacronismo do discurso científico, atravessado 
por uma forte ancoragem temporal. A língua se encontra 
urdida pelo tempo em que foi usada e funciona, tal como a 
filologia tem sugerido, não só como meio de comunicação, 
mas como arquivo e depositório arqueológico do tempo 
em que operou.
A palavra tinha um valor equivalente ao de um fóssil 
para os padrões epistemológicos dos anosde 1920, em que 
a antropologia se consolidava como disciplina,24 mas os 
discursos etnográficos, como a literatura de viagem, tinham 
perdido tanto a sua ênfase assertiva como a precisão cien-
tífica, e revelavam antes atributos estéticos e ideológicos 
com valor para uma Kulturwissenschaft, a ciência da cultura 
pela qual advogava Warburg. Ainda que a composição do 
tupi-guarani apele a fontes escritas, objetos e imagens de 
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34 Álvaro Fernández Bravo
um extenso repertório e através de um amplo arco tempo-
ral, todo esse fluxo de informação, bibliografia, citações e 
referências conduz a uma teoria sobre o presente: a deca-
dência e a ameaça de extinção que se cerne sobre a cultura 
guarani, e que o etnógrafo procura resgatar antes que seja 
tarde demais.
As duas imagens que vemos à continuação, incluídas 
no Capítulo “Sepultura” de La civilisation matérielle des 
tribus Tupi-Guarani,25 permitem reconhecer o modo de 
trabalho de Métraux, que combina as ilustrações incluídas 
no livro de Hans Staden com fotografias contemporâneas 
de objetos pertencentes à coleção do Museu de Gotembur-
go para elaborar uma teoria que culmina no presente. A 
bibliografia sobre sepultura inclui obras de Hans Staden, 
Jean de Léry, Yves D’Évreux, Claude D’Abbeville, Gabriel 
Soares de Souza, André Thévet e Martin Dobrizhoffer, 
todos autores de obras dos séculos XVI ao XVIII e que 
cobrem uma extensa superfície e variedade de grupos étni-
cos. Mas, junto com eles, também cita Nordenskiöld, Karl 
von Steinen, Juan Bautista Ambrosetti, Antonio Tocantins 
e Carl von Martius, autores mais modernos, alguns deles 
ainda contemporâneos do próprio Métraux e também es-
tudiosos de culturas muito diversas. Os objetos convocam 
assim um repertório heterogêneo e impuro de saberes e 
escritos que combinam momentos históricos desiguais, 
de filiações com escassas probabilidades de interseção.
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Imagens tomadas de A. Métraux, La civilisation matérielle des tribus 
Tupi-Guarani, 1928.
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36 Álvaro Fernández Bravo
O que é que Métraux propõe ler na superfície das coisas? 
Seu método recupera as múltiplas capas de tempo alojadas 
nos objetos e procura desenvolvê-las para entender uma 
trajetória que cruza diversos períodos e regiões através dos 
quais os Guarani se deslocaram. Por se tratar de uma pes-
quisa que confia em reconstruir uma trajetória, tem neces-
sariamente que apelar a uma mobilidade conceitual capaz de 
registrar a sobrevivência e, por isso mesmo, a heterocronia 
das práticas simbólicas através de extensos períodos históri-
cos. Na sua análise, o antropólogo reconhece componentes 
estéticos, rituais, religiosos, crenças, superstições e práticas 
coletivas. Sua teoria culmina nos Chiriguano e nos Omagua, 
grupos sobreviventes, contemporâneos e portadores de 
práticas nas quais o etnógrafo procurava reconhecer rastros 
do passado. Suas hipóteses convivem com especulações 
sobre as práticas funerárias dos Tupinambá e dos Guarani 
originários, às vezes superpostas ou formando parte de um 
mesmo núcleo inicial a partir do qual começou a difusão 
dos ritos simbólicos ainda visíveis. Isto é, o passado arcaico 
e o presente contíguo se tocam para postular uma imagem 
do contemporâneo. O contemporâneo precisa do arcaico 
para recortar seu território.
Nos ritos funerários se reconhece um rastro dos inte-
resses de Bataille que sobrevivem, ainda que muito mais 
contidos, na prosa materialista de Métraux. A festa, o 
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gasto improdutivo e a produção simbólica associados à 
morte permitem identificar algumas das obsessões do 
diretor de Documents na escritura muito mais mesurada 
de Métraux. Contudo, a espessura da coisa conserva sua 
complexidade e também sua opacidade. Mesmo que a 
busca por escrutar filiações entre distintos grupos se man-
tenha, só permanece como uma hipótese que, em última 
instância, sugere a indistinção e inespecificidade de cada 
comunidade. Ainda que os indígenas sejam classificados 
em quadros de inspiração etnográfica difusionista, tanto 
nos seus nomes como nos seus atributos há um status 
contingente e hipotético. A espécie só serve para demostrar 
afinidades, e não diferenças essenciais entre grupos étnicos 
como os Chiriguano: ainda que mantenham uma filiação 
linguística com o mundo guarani, têm sido influídos por 
outras culturas, principalmente as andinas. A língua exibe 
sua própria limitação como segurança de pertencimento 
simbólico.
Se pusermos em relação essa noção com a heterocronia 
warburguiana, é possível pensar nos “fósseis viventes”, seres 
perfeitamente anacrônicos da sobrevivência, semelhantes 
aos “elos perdidos” definidos como formas intermediárias 
localizadas entre estágios antigos e estágios recentes de 
variação.26 Por essa condição inclassificável, o Nachleben 
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desafia as taxonomias evolucionistas e permite interpor-se 
como instrumento conceitual no campo expandido.
O olhar de Métraux sobre os grupos indígenas do Chaco 
não é um olhar entusiasmado nem otimista. Seu trabalho 
de campo foi difícil, numa área árdua e para a qual carecia 
de algumas ferramentas, assim como um conhecimento 
linguístico adequado.27 Encontrou comunidades em de-
cadência, submetidas a uma rápida erosão do seu capital 
cultural e tratadas com indiferença pelos Estados nacionais 
que agora as incluíam, mas que não tinham interesse em 
preservar ou em estudar culturas com as quais, aliás, guar-
davam fortes relações de parentesco, como tem observado 
Raul Antelo nos escritos de Métraux. Porém, a comprovação 
da sobrevivência, como observa Didi-Huberman sobre os 
vaga-lumes, encerra o reconhecimento de uma forma de 
resistência cultural que conserva ao menos alguns vestígios 
do passado ainda vivos.28
Os indígenas mantêm, ainda com grande perigo de 
extinção, rastros que os vinculam com seus ancestres e sua 
cultura primordial, primitiva, e por isso mesmo dotada de 
um valor intrínseco post e pre-media, já que não têm sido 
ainda integrados ao dispositivo do mercado da arte que 
tinha começado a deglutir e mercantilizar [commodify] 
na Europa a cultura material primitiva não europeia. Na 
imagem que vemos a seguir, uma fotografia tomada por 
Métraux durante seu trabalho de campo nos anos de 1930 
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no Chaco, observamos a produção de vasilhas semelhantes 
às que incluiu no seu capítulo sobre a sepultura na cultura 
tupi-guarani.29
Fotografia de Alfred Métraux, c. 1930, Museu Etnográfico 
de Genebra, Suíça.
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Conclusão
É possível assinalar, como já observou Raul Antelo, que 
os anos de Métraux na Argentina lhe permitiram desenvol-
ver uma teoria que não só compreendia os grupos indígenas, 
mas também as sociedades crioulas locais. “El problema de 
la civilización”, artigo publicado na revista Sur, de Buenos 
Aires, em 1937,30 pode ser lido também como uma teoria 
do campo expandido, um manifesto contra “a multiplicação 
artificial das diferenças culturais” e um reconhecimento 
da língua como um patrimônio comum, uma forma de 
comunidade que revela abertura, intercâmbio, interco-
nexão, impureza e comparação, antes que segmentação, 
especialização e espacialização. Tanto nas pesquisas sobre 
o mundo tupi-guarani como no seu trabalho de campo comindígenas da região do Chaco durante sua permanência 
na Argentina, Métraux, interessado como muitos dos seus 
colegas no problema da perda e no impacto da aculturação 
sobre comunidades vulneráveis, refletiu, com efeito, sobre 
um problema mais amplo: a decadência das sociedades 
modernas, o avanço do nazismo na Europa, a desatenção 
das elites latino-americanas para com o patrimônio cul-
tural indígena e os padrões de imitação e importação do 
capital simbólico europeu entre as burguesias locais, que 
em muito pouco contribuíam para reparar o déficit cultu-
ral crônico dessas sociedades, subvencionando a imitação 
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 41
ou comprando arte europeia para abastecer seus museus. 
Essa indiferença pelo mundo ameríndio era reveladora 
de uma civilização, a crioula, dependente, atrasada e um 
pouco grotesca; se trata da mesma acusação que articulou 
o Movimento Antropofágico e que emerge em numerosas 
vozes latino-americanas do período.
É preciso assinalar, para finalizar, que, além da recu-
peração do trabalho de Métraux a favor das “sociedades 
primordiais”, realizada por Antelo, a tarefa do etnógrafo 
nunca abandonou um compromisso ao menos equívoco 
com o tráfego da cultura material aos centros de acumula-
ção cultural europeus, avaliados pelo aparato colonial: os 
museus que as vanguardas tinham denunciado durante sua 
fase heroica, mas dos quais se converteram em cúmplices 
muito pouco tempo depois. Também os museus latino-
-americanos se abasteciam de mecanismos semelhantes, 
a partir de estruturas políticas onde os Estados exerciam a 
ação colonial sobre seus próprios povos originários.
As mesmas imagens que abasteceram arquivos e depo-
sitórios fotográficos são resultado de uma intermediação, 
não só do etnógrafo com as instituições metropolitanas e 
urbanas do saber, para as quais trabalhou, negociou e re-
meteu coisas e imagens, mas também dentro do universo 
crioulo latino-americano, onde o contato com os indígenas, 
e mesmo a possibilidade das tomadas fotográficas eram 
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42 Álvaro Fernández Bravo
difíceis de se obter. As portas da comunidade chiriguana 
tinham sido abertas aos cientistas por terras-tenentes 
açucareiros. O etnógrafo se hospedou, acompanhado pelo 
poeta argentino Oliverio Girondo e pelo escritor francês 
Drieu la Rochelle, enquanto realizava trabalho de campo, 
na confortável fazenda de um engenho saltenho. Numa 
carta de 1932, em plena Guerra do Chaco, entre a Bolívia e 
o Paraguai, uma contenda afetou gravemente os indígenas 
que atravessavam continuamente fronteiras nacionais re-
centemente estabelecidas, e sobre a qual Métraux guardou 
um sugestivo silêncio: “No Chaco voltamos a nos encontrar 
[Drieu la Rochelle e Métraux] com Girondo e seu irmão, 
e em um dos grandes engenhos da fronteira, hospedados 
por Bercetche, um dos reis do açúcar e do trigo, tivemos 
momentos très parisiennes.”31
Os engenhos de açúcar atraíram uma grande quantida-
de de indígenas guaranis até as ladeiras da cordilheira dos 
Andes, na província de Salta, Argentina, tanto do Chaco 
argentino como da Bolívia e do Paraguai, desde fins do 
século XIX. Ofereciam trabalho e empregaram milhões de 
operários. Como resultado dessa migração, suas formas de 
vida sofreram uma severa aculturação, e muitos indígenas 
morreram, vítimas de doenças e das difíceis condições 
de trabalho que imperavam no engenho.32 Essas foram 
as condições de possibilidade para os etnógrafos urbanos 
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 43
europeus e latino-americanos fotografá-los, entrevistá-los 
e tomar contato inicial com esses indígenas e seus objetos. 
Eles iniciaram, assim, os mapas, inventários, descrições e a 
coleção de cultura material tupi-guarani ainda conservada, 
mesmo que com escassa informação sobre sua origem e o 
modo como as coisas foram obtidas e arquivadas nos acervos 
dos museus onde ainda permanecem.
Bibliografia
Pierre Lauret, Le silence des masques: le Musée du Quai Brainly comme 
tombeau des peubles authochtones, Situations: Cahiers Philosophiques, 
n. 108, p. 105-125, dec. 2006.
Alfred Métraux, Antropofagia y cultura, em La religion des Tupinamba et 
ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni, 
Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.
Notas
1 Aby Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America, 
tradução e ensaio de interpretação Michael Steinberg, Ithaca, University of 
Cornell Press, 1995 (1. ed. alemã baseada em conferência de 1927).
2 Georges Didi-Huberman, La imagen superviviente. Historia del arte y tiempo de 
los fantasmas según Aby Warburg, traducción Juan Calatrava, Madrid, Abada, 
2009; José Emilio Burucúa, Historia, arte, cultura. De Aby Warburg a Carlo 
Ginzburg, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2003; Serge Gruzinski, 
La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999.
3 Alfred Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani, Paris, Librarie 
Orientaliste Paul Geuthner, 1928.
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44 Álvaro Fernández Bravo
4 Edgardo Krebs, El escritor argentino y la tradición etnográfica, Oliverio 
Girondo. Exposición homenaje, 1967-2007, Buenos Aires, Museo Xul Solar, 
2007, p. 34-44, Catálogo de exposição.
5 Ibidem, p. 36.
6 Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani; Idem, La religión 
des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, Paris, 
Leroux, 1928; Federico Bossert e Diego Villar, La etnología chiriguano de Alfred 
Métraux, Journal de la Société des Américanistes, v. 93, n. 1, p. 127-166, 2007.
7 Denis Hollier, Le valeur d’usage de l’impossible, prefácio a Documents, Paris, 
Jean Michel Place, 1991, p. VII-XXXIV. Cf., também, James Clifford, The 
Predicament of Culture. Twentieth Century Ethnography, Literature and Art, 
Cambridge, Harvard UP, 1988; e Hal Foster, Prosthetic Gods, Boston, October 
Books, 2004.
8 Gonzalo Aguilar, Por una ciencia del vestigio errático. Ensayos sobre la antropo-
fagia de Oswald de Andrade, seguido de La única ley del mundo, de Alexandre 
Nodari, Buenos Aires, Editora Grumo, 2010, p. 10.
9 Marcel Griaule, Poterie, Documents, n. 4, p. 236, 1930; Hollier, Le valeur d’usage 
de l’impossible, p. x.
10 Bill Brown, Thing Theory, Critical Inquiry, v. 28, n. 1 (Things), p. 1-22, Autumn 
2001.
11 Sobre o Musée du Quai Brainly, veja-se Krebs, El escritor argentino y la tradi-
ción etnográfica, e Néstor García Canclini, La sociedad sin relato. Antropología 
y estética de la inminencia, Buenos Aires, Katz, 2010. O último realiza uma 
crítica demolidora da instituição fundada em 2006 e tributária do espetáculo 
e do formato de parque temático (que inclui plantas tropicais ad hoc e motivos 
terceiro-mundistas). A coleção, agora despojada de toda referência histórica à 
origem dos objetos exibidos, muitos obtidos pelas expedições nas que participa-
ram membros de Documents, como Michel Leiris na expedição Dakar-Djibouti, 
através do saqueio e a obtenção em condições pouco claras de objetos rituais 
transformados em “arte” (Michel Leiris, L’Afrique fantôme, Paris, Gallimard, 
1988). Sobre Picasso e a arte africana, ver Foster, Prosthetic Gods.
12 Raul Antelo, Apostilla a Alfred Métraux. Antropofagia y cultura, em Alfred 
Métraux, La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus 
Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 45
13 Carl Einstein [1919], On Primitive Art, trad. Charles W. Haxthausen, October, 
v.105, p. 124, Summer 2003. 
14 Paul Rivet, L’Étude des civilisations matérielles: ethnographie, archeologie, 
préhistoire, Documents, n. 3, p. 133, juin 1929.
15 Eduardo Jardim, A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, Rio de 
Janeiro, Graal, 1978; Leiris, L’Afrique fantôme.
16 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America, p. 62.
17 Erland Nordenskiöld, Le balancier a fardeaux et la balance en Amérique, 
Documents, n. 4, p. 177-182, 1929.
18 Bossert e Villar, La etnología chiriguano de Alfred Métraux, p. 129; Gastón 
Gordillo, Lugares de diablos. Tensiones del espacio y la memoria, Buenos Aires, 
Prometeo, 2010.
19 Andrea Roca, La vida social de una urna, em La vecindad de los objetos: lo pro-
pio y lo ajeno en el estudio de los sistemas clasificatorios del Museo Histórico 
Nacional y el Museo Etnográfico, Tese (Licenciatura), Universidad de Buenos 
Aires, 2003.
20 Ticio Escobar, La belleza de los otros: arte indígena del Paraguay, Asunción, 
Centro de Documentación e Investigaciones de Arte Popular e Indígena del 
Centro de Artes Visuales, 1993.
21 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America.
22 Eduardo Viveiros de Castro, A indianidade é um projeto do futuro, não uma 
memória do passado, Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 2, p. 257-268, jul.-dez. 
2011, disponível em <http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/
view/3311/2143>.
23 Gordillo, Lugares de diablos.
24 Roberto Esposito, Tercera persona. Política de la vida y filosofía de lo impersonal, 
trad. Carlo Molinari Marotto, Buenos Aires, Amorrortu, 2009.
25 Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani, p. 272-273.
26 Didi-Huberman, La imagen superviviente, p. 60.
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46 Álvaro Fernández Bravo
27 Silvia Hirsch, De la autoridad etnográfica a la pasión etnográfica: una relectura 
de Alfred Métraux, Cuadernos del INAPL, n. 18, Buenos Aires, Secretaría de 
Cultura de la Nación, 1998-1999, p. 223-232; Krebs, El escritor argentino y la 
tradición etnográfica.
28 Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, trad. Vera Casa Nova 
e Márcia Arbex, revisão de Consuelo Salomé, Belo Horizonte, Editora UFMG, 
2011.
29 Carlos Darío Albornoz, La colección Métraux, Separata do Catálogo da mos-
tra itinerante De Suiza a Sudamérica – Etnologías de Alfred Métraux, Museu 
Etnográfico de Genebra, Genebra/Suíça, 1998.
30 Alfred Métraux, El problema de la civilización. La noción del cambio en el 
dominio moral e intelectual de las sociedades, Sur, n. 30, p. 7-27, marzo 1937.
31 Carta de 26 de setembro de 1932 a Yvonne Oddon apud Krebs, El escritor 
argentino y la tradición etnográfica, p. 37.
32 Gordillo, Lugares de diablos.
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 47
A ESCRITA E O FORA DE SI
Ana Kiffer
Un aveugle ne mettra pas l’âme dans la glande pinéale. 
L’âme se trouve où il sent, où le vivant se mobilise au 
contact de monde réel. Descartes considérait comme 
centre ce qui vient de la tête et en cela privilégie la vue. 
Mais le rôle du centre ne peut supprimer que la sen-
sibilité est à l’oeuvre dans les organes périphériques. 
L’espace n’est pas que visuel.
Bernard Andrieu
Este texto, nascido de uma série de impossíveis, buscará 
ser um sistema móvel e provisório de notações em torno da 
noção de escrita e suas relações com um modo discursivo 
formulado sob a égide de um “fora de si”. Tentaremos es-
boçar fragmentos de leituras, sem perder de vista o contexto 
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48 Ana Kiffer
em que estes se inserem, e pensar, sobretudo, nas transfor-
mações sofridas por essa noção no contexto do pensamento 
dos últimos 50 anos.
Roland Barthes, em texto de 1973, retoma, repensando 
sua própria trajetória, a noção de escrita:
O primeiro objeto com que me deparei em um trabalho 
passado foi a escrita: mas entendia então essa palavra em sentido 
metafórico: para mim, era uma variedade do estilo literário, sua 
versão (…) coletiva, o conjunto dos traços da linguagem por meio 
dos quais um escritor assume a responsabilidade histórica de sua 
forma e se vincula, com seu trabalho verbal, a certa ideologia da 
linguagem.1
Ninguém melhor do que o próprio autor resumiria a 
empreitada histórica do Grau zero da escrita, livro de um 
jovem Roland Barthes que fez com que o debate intelectual 
francês à época, centrado na figura de Jean-Paul Sartre e 
sua noção de engajamento literário, rodasse, rodopiasse. A 
meu ver, Barthes não abandonará essa visão metafórica da 
escrita (e seria possível fazê-lo?), no entanto, e esse texto 
de 1973 o demonstra, o autor vira os olhos, não por acaso 
num contexto em que a corporalidade assume importantes 
estratos discursivos na sociedade, para uma visão da escrita 
que ele mesmo diz (cito) “volta-se para o sentido ‘manual’ 
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A ESCRITA E O FORA DE SI 49
da palavra”.2 Tal sentido, seria importante notar, apesar de 
reinscrever a noção de escrita no interior das conhecidas 
dicotomias entre o intelectual e o manual, o metafórico e 
o literal, o espiritual e o corporal, deixa entrever, ao menos 
para esses nossos olhos já cansados de hoje, saídas interes-
santes e não negligenciáveis. A primeira delas será aquela 
que implicará escrita e gesto:
Para o padre Jacques van Ginneken, jesuíta, a primeira lin-
guagem da humanidade foi uma linguagem gestual; (…) [para 
ele], a promoção da vogal na linguagem e o aparecimento da 
escrita estariam situados entre a era dos gestos e a dos cliques; em 
outras palavras (proposição exorbitante), a escrita seria anterior 
à linguagem oral.3
Aqui, estamos menos interessados no conteúdo histórico 
do discurso de Barthes e mais interessados nisso que desse 
conteúdo se libera enquanto potencialidade em torno da 
noção de escrita. Do gesto, por conseguinte, interessa-nos 
não sua anterioridade ou posteridade, mas a possibilidade 
que abre para romper a dicotomia entre o oral e o escrito. 
Dito de outro modo: a potencialidade de uma escrita que já 
não mais se oponha à oralidade é o que a escrita enquanto 
gesto pode liberar para nós. Rancière, 20 anos depois de 
Barthes, desenvolve esse mesmo tema, no já famoso livro 
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50 Ana Kiffer
Políticas da escrita.4 Mas o próprio Barthes não deixa de tirar 
algumas conclusões dessa nova potencialidade:
(…) não é necessário fazer a escrita descender da fala (se-
gundo o mito científico da “transcrição”) para nela distinguir as 
duas coordenadas da linguagem: o paradigma e o sintagma. A 
clivagem está alhures: (…) onde se pode opor sintagmas lineares 
(escritas e falas) e sintagmas radiantes [eu diria rizomáticos] 
(nas figurações murais, nas da pintura e nas dos quadrinhos).5 
[Eu acrescentaria: em algumas escritas contemporâneas, como 
veremos mais adiante.]
Vejam que Barthes já aqui busca observar – mesmo que 
através do caráter manual da escrita – novas formas de sua 
própria realização que escapariam ao funcionamento dico-
tômico do pensamento estruturalista que ainda regia sua 
reflexão sobre a linguagem em 1973. Sintagmas radiantes, ou 
rizomáticos, notados por Barthes na produção da escrita de 
quadrinhos, nos murais ou mesmo na pintura, deixam en-
trever essa proliferação escriturária que vai fazer da própria 
atividade da escrita uma passagem incessante entre regimes 
heterogêneos, seja no interior das artes – imagem, desenho, 
máquina, mão, letra, palavra, traço, poesia etc. – seja entre 
distintas camadas de campos discursivos.
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A ESCRITA E O FORA DE SI 51
Uma segundae última instância a destacar, no escopo 
do que por ora nos interessa discutir com o texto de Barthes 
parte da seguinte reflexão: 
(…) em estranghelo (antiga escrita siriática), o escriba vai de 
cima para baixo, mas para ler é preciso girar o manuscrito 90˚ para 
a direita e ler horizontalmente: o corpo do ledor não é o corpo 
do escrevedor: um vira o outro; talvez aí esteja a regra secreta de 
todas as escritas: a “comunicação” [entre aspas no texto] passa 
por um avesso.6 
Notemos a riqueza dessa indicação: primeiro, aquilo 
que a atividade da escrita exigiria do escriba em termos 
corpóreos, mais ainda além, na alteração mesma da lógica 
linear que caracterizaria o próprio da atividade escriturária 
e leitora. Segundo, a hiância que se estabelece entre o corpo 
que escreve e o corpo que lê. Terceiro, a metamorfose que 
tal hiância vem exigir para sair de um corpo escriturário 
e adentrar um corpo ledor. Por último, a intervenção 
propriamente barthesiana sobre o conteúdo histórico da 
escrita siriática, qual seja: a desconstrução em torno do mito 
“comunicacional” de toda e qualquer escrita.
Interessa-nos diretamente essa metamorfose dos corpos 
através das escritas. Sobre isso vimos trabalhando há muito. 
A própria noção de “fora de si”, título deste trabalho e, ain-
da mais, título da pesquisa que vimos desenvolvendo nos 
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52 Ana Kiffer
últimos dez anos, está atravessada por esse “avesso”, para 
usar as palavras de Barthes. Se por um lado estar “fora de si” 
exprime uma exacerbação das intensidades afetivas e, por 
conseguinte, corpóreas, por outro, essa mesma noção vem 
evocar um certo deslocamento, mais além, uma profunda 
dissociação entre um “eu mesmo” e algo fora dele.
Poder-se-ia dizer, assumindo até certo ponto a hipótese 
levantada por Evelyne Grossman em L’angoisse de penser:
É possível que com Blanchot, assim como com muitos outros 
escritores modernos, ler requer menos de uma captação imagi-
nária e mais da nossa capacidade de suportar os efeitos dos afetos 
mais ou menos violentos, desestruturantes, que o texto exerce 
sobre nós. Em outros termos, trata-se para o leitor de ser capaz 
de não resistir aos efeitos transferenciais reais que exerce sobre ele 
a escrita, ainda melhor, de ser capaz de certa atitude dissociativa 
– qualidade requisitada, como se sabe, de todo analista como de 
todo analisado.7 
Evelyne Grossman vem ressaltar que a relação com a es-
crita é uma relação dissociativa. Se somarmos essa assertiva 
à contribuição de Barthes, deveríamos notar que tanto autor 
quanto leitor atravessam essa mutação corporal através do 
processo de escrita/leitura. A paradoxal noção de “fora de 
si” encontra aqui sua própria condição de possibilidade, 
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A ESCRITA E O FORA DE SI 53
deixando de ser um julgamento moral ou imaginário sobre 
aquele que perde a razão em estado de fúria, o “fora de si” 
ganha através da escrita essa liberação – estar habitado 
pelo fora, ou escrever como processo de uma experiência 
do desabrigo subjetivo é o que vem nos propor muitas das 
experiências artísticas modernas e contemporâneas. Não 
longe dessa experiência se situa Marguerite Duras quando 
descreve a invenção de seus personagens: “Então elas me 
vêm de alhures (…) A pretensão é de se crer só diante da 
folha enquanto tudo vos acontece de todos os lados. (…) 
isso vos acontece do exterior.” Ou ainda:
É sem dúvida o estado que tento encontrar quando escrevo; 
um estado de escuta extremamente intensa, mas veja, do exterior. 
Quando as pessoas que escrevem dizem: quando se escreve se está 
na concentração, eu diria: não, quando escrevo tenho o sentimento 
de estar numa extrema desconcentração, não me possuo mais, 
(…) tenho a cabeça esburacada.8
A cabeça esburacada, furada, transpassada, de Duras 
não deixa de remeter para essa experiência de disjunção 
do corpo, para esse estado de despossessão que faz entre-
ver uma experiência corporal distante daquela que funda e 
une corpo e identidade numa só e mesma série, numa só e 
mesma figura humana.9 Outras corporalidades, portanto, 
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54 Ana Kiffer
é o que vem reivindicar a escrita enquanto prática ou cena 
de um estar “fora de si”.
Mas, muito antes de Duras, a escrita dos Cadernos, 
de Antonin Artaud, já inventava outro comportamento 
para as palavras, exigindo através de um novo modo de 
dizer a criação, segundo o autor, de “novos corpos de 
sensibilidade”.10 Em outros trabalhos já buscamos desen-
volver a relação plástica do traço a sua figuração poética das 
palavras.11 Assim como não pudemos deixar de observar a 
produção incessante das figuras pontiagudas e das caixas e 
cubos como mutações desse corpo que, ao se fazer em cor-
pos escritos, vem transformar-se em máquinas perfurantes 
e máquinas de sopro capazes de inscrever, rasgar, cortar o 
abscesso da e na linguagem. Máquinas de sopro que bus-
cavam essa sensação vibrátil na experiência da escrita e da 
leitura. Procedimentos que, por conseguinte, encetavam a 
criar, segundo o autor, a experiência de uma “linguagem 
raio”.12 Agenciamento ou não de corpos sem órgãos, como 
quis Artaud e, posteriormente, Deleuze e Guattari,13 o mais 
importante nos parece ser a notação sonora, vibrátil, tátil, 
que essa escrita quer assumir. Novos corpos de sensibili-
dade exigem, certamente, uma alteração na organização 
dos sentidos, como vimos também insistindo. Evelyne 
Grossman ressalta: 
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A ESCRITA E O FORA DE SI 55
(…) para o escritor não se trata mais de anotar seus pensamen-
tos para fixá-los num caderno, mas sim de inventar um suporte 
suficientemente móvel e plástico, um sutil subjétil, como ele disse, 
para que as frases inscritas possam ser a todo momento retoma-
das, recolocadas em movimento, entrando num outro conjunto 
de fragmentos moventes.14
A crítica nos alerta para uma importante transformação 
– o caderno do autor começa a se aproximar mais das ex-
periências dos cadernos dos artistas, sem, no entanto, nisso 
se transformar. Estamos ainda num regime de produção 
de discurso da e através da escrita. Mas a escrita saiu de si 
mesma, deixou sua identidade fixadora para transformar-
-se num procedimento algo móvel, vibrátil e, sobretudo, no 
contexto de Artaud, algo que pudesse refazer seu próprio 
corpo, ele mesmo também doente, desalojado e despossuído 
de “si mesmo”. Evelyne vem insistindo no poder de rasgo, 
na violência disruptiva dessas experiências de escrita/lei-
tura. Ou, como já havia dito Maurice Blanchot, “[o] jogo 
da etimologia corrente [que] faz da escrita um movimento 
de corte, um rasgo, uma crise (…) [é] simplesmente a lem-
brança da ferramenta própria para escrever que era também 
própria para fazer incisões: o estilete”.15
Gostaríamos, aqui, não de discordar dessa hipótese, 
mas de sobre ela inserir um deslocamento, um passo ao 
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56 Ana Kiffer
lado. Tal passo poderia indicar que muitas dessas escritas 
“desestruturadas” e “desestruturantes”, como quer Evelyne 
Grossman, buscavam modos de se relacionar criticamente 
com os projetos de reconstrução da humanidade a partir 
do pós-guerra. Seria preciso dizer ainda que esse passo ao 
lado só é possível porque tanto os grandes blocos teóricos 
quanto os grandes movimentos estéticos sumiram da cena 
contemporânea deixando não um vazio, mas a possibili-
dade mesma de um exercício crítico que se atrele menos 
às grandes durações que buscavam encetar esses autores 
anteriores, até agora aqui citados. Por grandes durações es-
tamos sugerindo não exatamente o seu caráter cronológicoe histórico (mesmo que também por aí se possa dizer algo 
sobre isso), mas, e sobretudo, as categorias universalistas 
que sustentaram o arcabouço desses discursos. Muitos 
“sempre” e muitos “nunca” em torno de noções tais como 
as de “linguagem”, de “escrita”, de “sujeito”, abundaram nas 
teorias estruturalistas, assim como em determinadas corren-
tes psicanalíticas, e por que não dizer, no investimento ora 
heroico ora suicida que os próprios artistas viveram com 
suas obras, dentre eles Artaud, mas também Blanchot ou 
mesmo Marguerite Duras. É por isso mesmo que podemos 
dizer hoje que essa relação “intrínseca” entre a escrita e o 
móvel, vibrátil, tátil não se dará “sempre” através de um 
vínculo “desestruturante”, violento, dilacerante, como 
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A ESCRITA E O FORA DE SI 57
sugere Evelyne Grossman na esteira de Artaud e Blanchot. 
A própria noção de estrutura – mesmo que ainda apareça 
de modo viciado em nossas visões de mundo – já não dá 
mais conta do que nos acontece hoje.
Se os Cadernos de Artaud, em seu próprio caráter asilar, 
atuaram como testemunho e efeito da barbárie da Segunda 
Guerra, e, nesse sentido, não poderiam deixar de inscrever a 
escrita enquanto lembrança etimológica daquele ato/palavra 
cruel – e rasgar e cortar a própria carne –, hoje dificilmente 
encontraremos, digamos, esse corpo heroico e glorioso que 
se ofereça enquanto testemunha de sua própria palavra.
De modo distinto, porém ainda num deslocamento em 
continuidade com essa escrita enquanto crise e rasgo, é que 
também vem se inscrever muitas das imagens gritadas do 
cinema de Glauber Rocha. Sua crítica delirante não deixou 
de observar com muita lucidez esse desabrigo que sustém, 
ao mesmo tempo em que põe em suspensão, a subjetividade 
do próprio artista, agora no caso o artista latino-americano 
e sua submissão à outra barbárie, a dos regimes totalitários 
que assolaram a década de 1960 e 1970 do lado de cá. Seu 
fim profético em Lisboa,16 dizendo realizar na própria carne 
a estética da fome, pobre, doente e miserável na Europa, faz 
entrever de modo contundente essa escrita mais que escrita 
de que falava Rancière,17 e que vimos aqui bordejando, qual 
seja: um corpo se entrega para confirmar a escritura.
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58 Ana Kiffer
Quando vemos as experiências performáticas do corpo 
em movimento em algumas obras de Hélio Oiticica,18 sobre-
tudo seus Parangolés, ou na performance Corpo coletivo, de 
Lygia Clark,19 revemos, quase que de modo paradigmático, 
a pregnância em torno desse corpo glorioso, a que ao fim e 
ao cabo se oferecem, seja enquanto dor seja enquanto êxtase, 
muitas dessas manifestações dilacerantes ou “desestrutu-
rantes” da arte do pós-guerra até mais ou menos os anos 
de 1960 e 1970. Aliás, dor e êxtase são pares fundamentais 
a uma estética do “fora de si”. Não por acaso muitos desses 
autores aqui citados flertaram com a mística medieval. Ou 
dela buscaram um entendimento muito particular.
É bem verdade que esse corpo extático não é o mesmo em 
Artaud, Glauber, Oiticica ou Clark. E, por favor, entendam: 
não é a isso que nos referimos. No entanto, uma série os liga 
sem excluir a multiplicidade de suas diferenças. Essa série, 
e isso é o que vimos tentando dizer, se liberou por um lado 
a escrita de seu caráter fixador, imóvel, de suas tendências 
imaginárias, por outro não a liberou de sua aposta numa 
“eternidade”. Em Artaud, tal manifestação é flagrante, e 
a leitura de Grossman só vem confirmar esse caráter: “O 
texto não tem nem começo nem fim. Dito de outro modo: 
nem nascimento nem morte. ‘Eu jamais nasci’, repete ele 
desde Rodez, e em consequência não pode morrer”, conclui 
Evelyne Grossman.20
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A ESCRITA E O FORA DE SI 59
Gostaríamos de sugerir, a partir dessa genealogia frag-
mentada e fragmentária que fizemos até aqui, que uma 
estética do “fora de si” não se caracterizaria exclusivamente 
por essa exacerbação dos afetos, que faz crer que um corpo 
– seja do autor, seja do leitor – se entregará como confir-
mação da letra morta ou da escrita órfã. Não esqueçamos 
que o “fora de si” é antes de tudo um desalojar da alma, um 
passo ao lado, um despossuir-se que reaparecerá na cena 
contemporânea através de, como disse Ricardo Basbaum, 
“uma falência das vozes interiores”.21 É interessante pensar 
como a literatura se sustém e se suspende a partir daquilo 
que foi durante séculos o seu próprio cerne e questão: a 
constituição de vozes interiores.
Mas ao dizer isso não podemos negar ou esquecer que 
a construção artística desses corpos gloriosos ou extáticos 
abriu um lastro possível de experimentação para que no-
vos corpos sensíveis fossem criados no seio da arte e da 
literatura. A primeira, sem ter mais a obrigação com a tela, 
com o enquadre, com a moldura fez saltar para a vida um 
sem-número de experiências. A segunda, até certo ponto 
liberta das estruturas dicotômicas, assim como da lineari-
dade narrativa, fez com que tudo aquilo que parecia não se 
poder ali dizer fosse percorrendo o campo de sua experi-
ência. Ainda se deveria notar que o entrelaçamento, efeito 
do próprio deslocamento ou expulsão de suas identidades 
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60 Ana Kiffer
anteriores, fez com que esses dois campos – literatura e 
arte – investissem em novos modos de diálogo entre si. Um 
deles será através da escrita. De que maneira saltará de um 
para outro lado essa prática, e qual transformação sofrerá 
a escrita em cada uma dessas passagens, são perguntas 
necessárias àquele que se aproxima de experiências-limite 
entre esses dois campos hoje.
Sob esse aspecto gostaríamos ainda de acrescentar dois 
fragmentos ou hipóteses de leitura, a partir de um projeto 
de uma artista contemporânea, Tatiana Grinberg, de quem 
vimos também falando e aproximando nossa pesquisa, 
sobretudo no último ano e meio.
O projeto, intitulado Placebo01,22 foi exposto de abril 
a junho de 2011 no Museu de Arte Moderna do Rio de 
Janeiro, com curadoria de Luis Camillo Osório. Depois de 
muitas conversas, encontros e visitas ao MAM, hoje temos 
em mãos o catálogo recém-lançado e composto de fotos e 
desenhos do projeto, texto-plaqueta da exposição, escrito 
por Camillo Osório, assim como uma longa conversa entre 
a artista, Ricardo Basbaum e Cecília Cotrim. O objeto, fruto 
do projeto, é um chip envolto numa capa plástica moldada 
pela forma da cavidade bucal.23 Tal chip é na verdade um 
captador; ele recebe o som por FM e vibra.24 Ou, como 
disse Grinberg, “ele é um receptor, que transforma aquelas 
ondas FM em vibração”.25 Introduzido no interior da boca, 
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A ESCRITA E O FORA DE SI 61
em contato com os ossos dos dentes deverá captar e vibrar 
as ondas sonoras, fazendo com que o experimentador ouça 
fragmentos de entrevistas realizadas pela artista com pessoas 
que tenham passado por alguma situação de dor extrema, 
cirurgia ou parto, por exemplo.
Desse projeto e da conversa da artista com Cotrim e 
Basbaum, recém-lançada no catálogo da exposição, relevo 
dois pontos para concluir essa outra conversa, que este texto 
quis encetar. O primeiro deles diz respeito à forma como 
Grinberg (entre outros, é claro) deslocará justamente esse 
corpo extático ou glorioso que herdamos mais ou menos 
todos das experiências artísticas da segunda metade do sé-
culo XX, a partir da relação entre a experiência do corpo e a 
constituição de mundos ou “vozes interiores”. Tomemos a 
instalação Entre quatro paredes,26 originalmente feita numa 
ocupação/performance em um hotel do bairro da Lapa, no 
Rio de Janeiro (o LoveStory),

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