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EXPANSÕES CONTEMPORÂNEAS Literatura e outras formas EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 1 10/03/14 11:06 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor Clélio Campolina Diniz Vice-reitora Rocksane de Carvalho Norton EDITORA UFMG Diretor Wander Melo Miranda Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Miranda (presidente) Ana Maria Caetano de Faria Danielle Cardoso de Menezes Flavio de Lemos Carsalade Heloisa Maria Murgel Starling Márcio Gomes Soares Maria Helena Damasceno e Silva Megale Roberto Alexandre do Carmo Said EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 2 10/03/14 11:06 Ana Kiffer Florencia Garramuño Organizadoras EXPANSÕES CONTEMPORÂNEAS Literatura e outras formas Belo Horizonte Editora UFMG 2014 EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 3 10/03/14 11:06 2014, Os autores 2014, Editora UFMG Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. ____________________________________________________________________ E96 Expansões contemporâneas: literatura e outras formas / Ana Paula Kiffer e Florencia Garramuño, organizadoras. – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2014. 155p.: il. – (Babel) Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-423-0043-7 1. Arte – Coletânea. 2. Literatura – Coletânea. 3. Arte moderna – Séc. XXI – Coletânea. 4. Arte e literatura – Coletânea. 5. Literatura – Estética – Coletânea. I. Kiffer, Ana Paula Veiga. II. Garramuño, Florencia. III. Série. CDD: 700 CDU: 7 ____________________________________________________________________ Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação Biblioteca Universitária da UFMG Coordenação editorial Michel Gannam Assistência editorial Eliane Sousa e Euclídia Macedo Coordenação de textos Maria do Carmo Leite Ribeiro Preparação de textos Cláudia Campos Revisão de provas Camila Figueiredo e Thaís Duarte Silva Projeto gráfico Cássio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico Formatação e capa Victoria Arenque Produção gráfica Warren Marilac EDITORA UFMG Av. Antônio Carlos, 6.627 | CAD II / BLOCO III Campus Pampulha | 31270-901 | Belo Horizonte/MG Tel: + 55 31 3409-4650 | Fax: + 55 31 3409-4768 www.editoraufmg.com.br | editora@ufmg.br EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 4 10/03/14 11:06 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 7 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE Tráfego de imagens, composições anacrônicas e usos da cultura material nas representações do tupi-guarani Álvaro Fernández Bravo 17 A ESCRITA E O FORA DE SI Ana Kiffer 47 POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO Celia Pedrosa 69 FORMAS DA IMPERTINÊNCIA Florencia Garramuño 91 EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 5 10/03/14 11:06 VIDA E MORTE DA IMAGEM Karl Erik Schøllhammer 109 FORMAS MUTANTES Wander Melo Miranda 135 SOBRE OS AUTORES 153 EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 6 10/03/14 11:06 7 APRESENTAÇ ÃO A estética contemporânea está habitada por uma série de práticas e intervenções artísticas que evidenciam um estendido transbordamento de limites e expansões de cam- pos e regiões. Segundo a descrição que Jacques Rancière faz dessa nova paisagem, todas as competências artísticas específicas tendem a sair do seu próprio domínio e trocar seus lugares e seus poderes. Hoje temos teatro sem palavras e dança falada; instalações e performances como se fossem obras plásticas; projeções de vídeo transformadas em ciclos de afrescos e murais; fotografias tratadas como quadros vivos ou pintura histórica, escultura metamorfoseada em show multimídia, e outras combinações.1 No campo das artes visuais, essa paisagem vem sendo analisada de maneira consistente há alguns anos, numa reflexão teórica que foi impulsada pelo impacto poderoso EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 7 10/03/14 11:06 8 As organizadoras da arte conceitual e das instalações artísticas. Já há algumas décadas, com uma marca claramente estruturalista que talvez tenha sido a sua limitação mais importante, Rosalind Krauss falou da “escultura num campo expandido” para situar a aparição de um novo tipo de obras artísticas que só poderiam ser consideradas como esculturas se a própria categoria de escultura se expandisse de tal maneira que deixasse de definir de modo específico algum tipo de obra em particular.2 Alguns anos mais tarde, e provavelmente em resposta às críticas que tinha recebido pela rigidez desse paradigma estruturalista, a própria Krauss será uma das pri- meiras teóricas a falar da condição post-medial da arte con- temporânea para se referir à propagação internacional “da instalação de mixed media [que] tem se tornado ubíqua”.3 Não por acaso, nesse mesmo ensaio, a reflexão de Krauss se sustentava na análise de algumas obras de Marcel Broodthaers, entre elas, a entitulada Charles Baudelaire: Je hais le mouvement qui déplace les lignes, de 1973. Trata-se de uma obra na qual o artista – convém lembrar aqui, tam- bém poeta – utiliza esse verso de Baudelaire colocando-o em cada página em lugares diferentes – às vezes contra a margem esquerda, depois no centro da página, posterior- mente na margem direita –, fazendo o texto figurar, sobre a página em branco, como imagem. O livro, pela sua vez, converte-se em uma sorte de objeto visual que incorpora o EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 8 10/03/14 11:06 APRESENTAÇÃO 9 verso – e o que o verso tem, sempre, de imagem – como ele- mento construtivo dessa visualidade. Mas esse dispositivo não faz o verso abandonar, nessa disposição, sua condição de verso, nem o livro, sua condição de livro. Muito pelo contrário, precisamente a repetição e a colocação do verso na página são alguns dos procedimentos mais paradigmá- ticos e representativos – próprios e pertinentes – da poesia enquanto forma discursiva. Ao colocar lado a lado literatura e visualidade, Broodthaers elabora uma forte crítica à ideia de um meio específico e se converte – segundo Krauss – em um dos precursores, numa genealogia da condição post- -medial, da arte contemporânea. É relevante que tenha sido Baudelaire quem inspirou essa genealogia, já que foi um dos nomes fundacionais em um movimento de expansão dos limites da lírica. Com tal expansão da lírica, Baudelaire vem consagrar a ideia de uma poesia moderna – e de uma arte moderna –, para a qual a saída para fora de si seria o seu dispositivo mais contundente. Neste momento poderíamos assinalar que tal saída perfa- zia-se, sobretudo, nos mecanismos de passagens, na própria relação entre as passagens – do registro crítico ao poético, da vida cotidiana ao museu, entre outras – que, por sua vez, não deixavam de inscrever nas próprias passagens arquitetônicas ícones de um certo modo de “vida moderna” na Paris de Baudelaire. Essas passagens, ainda ligações entre interior e EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 9 10/03/14 11:06 10 As organizadoras exterior, vêm sendo – na arte e na vida contemporânea – explodidas em seus contornos arquitetônicos, estéticos e subjetivos. Esta, se poderia dizer, é uma interrogação crucial deste livro: quais transformações se deixam notar entre a expansão dos limites da arte moderna e a radicalidade de um não pertencimento contemporâneo? De que modo o fora de si, antes marcadamente caracterizado pelos limites nacionais, territoriais e subjetivos, que faziam com que a sua aparição se fundasse numa verdadeira transgressão, passou a caracterizar-se como um operador cotidiano das experiências-limite ou mesmo desidentitárias pelas quais passamos mais ou menos todos no mundo atual? E mesmo no âmbito daquiloque por séculos (desde praticamente as origens da constituição do que entende- mos por Ciências Humanas)4 se constituiu como lugar do “específico” e do “identitário”, hoje vemos, como aponta o texto de Álvaro Fernández Bravo, “os diferentes modos de pensar o capital simbólico ameríndio como inespecífico – móvel e heterocrônico – e por sua vez passível de evocar conotações simbólicas, históricas, etnográficas e filosóficas”. Ou seja, a interrogação sobre os diferentes modos do não pertencimento, ou mesmo sobre a radicalização das expe- riências que hoje constituem um “estar fora de si”, não deixa de apontar a força paradoxal que age numa partilha do sensível no mundo contemporâneo. A própria ideia de EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 10 10/03/14 11:06 APRESENTAÇÃO 11 “formas do não pertencimento” (Garramuño) já é em si um operador paradoxal, posto que recorre à forma para falar do inespecífico, ou ainda o “fora de si” (Kiffer), que apela para uma exterioridade radical, porém ligada à constituição do subjetivo. Ou, mais longe ainda, todo o desenvolvimento proposto por Schøllhammer da ideia paradoxal de uma imagem que é ao mesmo tempo um composto de vida e afeto, mesmo que saibamos que uma imagem já não é mais a vida senão que a “sobrevivência” do instante de sua morte, ali concentrada, congelada ou refluída. A esse respeito, também a literatura e a poesia contem- porânea (Pedrosa e Garramuño) participam de uma intensa expansão de seu campo ou meio específico há alguns anos. No dizer de Pedrosa, ao analisar a poesia de Marcos Siscar: “No ir e vir constante em que o dentro e o fora têm sub- vertidas suas fronteiras e antagonismos, imagens visuais se mesclam a fragmentos de memória poética, filosófica, geográfica, geológica, biográfica.” Como na poesia de Mar- cos Siscar, explorações literárias que estabelecem pontos de conexão e fuga entre ficção e fotografia, imagens, memórias, autobiografias, blogs, chats e correios eletrônicos, assim como entre o ensaio e o documentário, como o demostram textos tão diversos como os de W. G. Sebald, Bernardo de Carvalho, John Berger, João Gilberto Noll, Fernando Vallejo ou Ó, de Nuno Ramos, são cada vez mais numerosas, muito EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 11 10/03/14 11:06 12 As organizadoras embora isso não implique que sejam hegemônicas. Caberia assinalar, aliás, que muitos dos textos que se limitam ao que poderíamos considerar como o seu próprio “meio” – se de- cidirmos optar por uma linguagem positivista – evidenciam uma série de perfurações nas convenções que têm definido a especificidade literária, abrindo, por conseguinte, outras possibilidades ou linhas de fuga em relação à ideia da es- pecificidade do literário. Trata-se não só de uma implosão do meio específico, ainda se entendermos “meio” para além do seu suporte físico, incorporando em sua definição as convenções que o definem num momento histórico determinado.5 Trata-se, mais além – e isto é o mais importante –, de um profundo questionamento do “próprio” enquanto definição estável e circunscrita de uma especificidade. Especificidade tanto do meio como do próprio conceito de arte, como um modo de postular o que em outro artigo temos chamado de “uma arte inespecífica”.6 É ali que se joga uma noção de literatura ou de arte que tem incorporado, dentro de sua linguagem, suportes e funções, uma relação com outros discursos e esferas nos quais o literário, ou o artístico, não é dado nem construído, mas, muito pelo contrário, desconstruído ou, pelo menos, colocado em questão – ou sur rature, como apontou Jacques Derrida. Esse movimento dispõe textos que, no dizer de Wander Melo Miranda, deveriam ser EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 12 10/03/14 11:06 APRESENTAÇÃO 13 pensados como “formas mutantes”, onde o dispositivo da montagem que os constrói “se realiza por meio de cortes e recortes no contínuo do relato, de migrações e sobrevivência das ‘figuras’ em que os eventos narrados se transformam”. É nessas sobrevivências, nessas heterogeneidades7e heteroto- pias, que essa arte inespecífica cifra uma vontade de imbri- car as práticas artísticas na convivência com a experiência contemporânea. Para além mesmo da noção de campo, enquanto espaço circunscrito por limites e fronteiras, a ideia de uma arte que seria autônoma e independente aparece suplantada por uma arte inespecífica que se figura como parte do mundo. Na tentativa de pensar essa nova paisagem da arte con- temporânea, os ensaios deste livro tomam objetos diversos – práticas estéticas, antropológicas, poéticas, literárias – para explorar com eles os modos como a expansividade da arte hoje tem se constituído num fora de si radical. O limite, des- se modo, deixa de se localizar enquanto uma anterioridade já dada, para se perfazer de modo transitório, tênue ou poroso enquanto lugar de experiência da própria obra (Kiffer). Desde os debates em torno da especificidade da obra de arte colocados por antropólogos e historiadores (Fernández Bravo), à expansividade da poesia brasileira contemporânea concebida a partir de um “hibridismo” entre verso e prosa, noções como as de “formas mutantes”, “obra-instalação” EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 13 10/03/14 11:06 14 As organizadoras (Wander Melo Miranda) ou “imagem pensiva” (Rancière8 e Schøllhammer) buscam definir conceitos que permitam compreender esse “fora de si” para pensar “a proliferação escriturária que vai fazer da própria atividade da escrita uma passagem incessante entre regimes heterogêneos, seja no interior das artes, seja entre as diferentes camadas de campos discursivos” (Kiffer). As organizadoras Notas 1 Jacques Rancière, El espectador emancipado, Buenos Aires, Manantial, 2010, p. 27, tradução nossa. 2 Rosalind Krauss, Sculpture in the Expanded Field, October, v. 8, p. 30-44, Spring 1979. Lembremos a indefinição à que pretende dar nome o conceito: “Nos últimos dez anos, coisas bem surpreendentes têm vindo a ser chamadas esculturas: estreitos corredores com monitores de televisão; grandes fotografias documentando o campo; espelhos colocados em ângulos estranhos em quartos comuns; linhas temporárias cortadas no piso do deserto. Nada, pareceria, poderia dar a essa heterogeneidade o direito de reclamar o que poderia ser significado pela categoria de escultura. Só se a categoria for tornada quase infinitamente maleável.” (Ibidem, p. 31.) 3 Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea. Art in the Age of the Post-Medium Condition, London, Thames and Hudson, 1999, p. 20. Hal Foster tem apontado que “durante as últimas três décadas ‘o campo expandido’ tem lentamente im- plodido, já que termos antes tidos em contradição produtiva têm gradualmente colapsado em compostos sem muita tensão, como nas muitas combinações do pictórico e do escultural, ou de arte e arquitetura, em arte instalação hoje – arte que, na sua maioria, cabe bem demais na cultura do desenho-exibição criticada em outra parte neste livro”. (Hal Foster, This Funeral is for the Wrong Corpse, em Design and Crime, and Other Diatribes, New York/London: Verso Books, 2002, p. 127, tradução nossa.) Segundo Jane Rendell, comentando Foster, o EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 14 10/03/14 11:06 APRESENTAÇÃO 15 campo teria explodido “mais do que implodido, e (...) é por essa razão que as categorias já não estão postas em tensão”. (Jane Rendell, Art and Architecture: A Place Between, London, New York, IB Tauris, Sept. 2006, no prelo, tradução nossa.) 4 Michel Foucault, Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines, Paris, Gallimard, 1966. 5 Cf. Jacques Rancière, What a Medium Can Mean, Parrhesia, n. 11, p. 35-43, 2011. 6 Cf. Florencia Garramuño,Especie, pertenencia, especificidad, em e-misférica, v. 10, n. 1, Winter 2013. 7 Ver Ana Kiffer, Sobre limites e corpos extremos, em Karl Erik Schøllhammer e Heidrun Krieger Olinto (org.), Literatura e criatividade, Rio de Janeiro, 7Letras, 2012. 8 Rancière, El espectador emancipado. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 15 10/03/14 11:06 EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 16 10/03/14 11:06 17 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE Tráfego de imagens, composições anacrônicas e usos da cultura material nas representações do tupi-guarani Álvaro Fernández Bravo O problema que gostaria de analisar brevemente neste artigo é a posição intermediária ocupada pelos objetos como evidência material para se teorizar sobre a natureza da cul- tura. Quando falo de objetos, refiro-me a vestígios de uma cultura material que se encontram em um espaço indeciso e em transição: podem ser lidos como restos arqueológicos, obras de arte, relíquias ou artefatos, mas ficam fora de lugar e por isso mesmo podem ser apropriados, descontextualiza- dos ou restituídos no seu entorno (e também num campo disciplinar), possibilitando que se leia neles inúmeros e diferentes tipos de evocações. São objetos que, quando se reconhece seu itinerário, desafiam a autonomia e no seu EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 17 10/03/14 11:06 18 Álvaro Fernández Bravo percurso cruzam fronteiras epistemológicas, conceituais, territoriais e temporais, desenhando assim um mapa de contornos expandidos. Durante os anos de 1920, tanto na Europa quanto na América Latina, consolidou-se um interesse pelo mundo indígena e sua cultura material como suporte para desen- volver teorias estéticas e investigações etnográficas, ou ainda postular hipóteses sobre a natureza das culturas nacionais. As vanguardas apelaram ao referente indígena, às vezes para desafiar a hegemonia dos paradigmas nacionalistas, outras para consolidá-la. O tráfego de coisas aumentou, amparado pelo aparato colonial (desdobrado tanto pelas potências coloniais do Atlântico Norte como pelos Estados nacionais latino-americanos), e com ele o número de depósitos e a infraestrutura para receber objetos e catalogá-los. Nesse processo, os etnógrafos ocuparam um rol chave. Como sabemos, as coisas e os objetos adquirem essa condição pelo uso e pelas camadas de olhares humanos que foram se sobrepondo a eles, colocando-os, muitas vezes, em relação com diferentes campos. Os objetos que ingressaram e se movimentaram entre os diferentes museus vão ser um dos focos de minha atenção aqui, e em particular os debates em torno da especificidade da obra de arte, posto que muitas delas só adquiriram essa condição ao serem exibidas e contempladas como tais. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 18 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 19 Esse problema atraiu o interesse de numerosos pensadores que se perguntaram pela migração da cultura material não europeia, que foi trasladada em grandes quantidades desde seus lugares arqueológicos em todo o mundo até chegarem aos museus europeus, norte-americanos e também latino- -americanos, revelando, pela primeira vez, conotações es- téticas ali onde essa ênfase não se configurava. Assim se pode falar de uma dupla migração da América, Ásia e África para a Europa e os Estados Unidos e também das áreas rurais para as cidades e, uma vez lá, entre os mu- seus que se multiplicaram e foram ganhando especificidade. Nas sucessivas trajetórias, os curadores e colecionadores davam aos objetos novos atributos. É possível encontrar um antecedente dessa preocupação na viagem de Aby Warburg (1866-1929) para o território da tribo dos índios Pueblo, no atual estado de Novo México, Estados Unidos, em 1896. O contato de Warburg com os Pueblo marcou as suas teorias sobre o Nachleben e a sobrevivência de práticas simbólicas arcaicas em manifestações artísticas contemporâneas e heterocrônicas.1 Warburg tinha começado a pensar na questão da sobrevivência em obras do Quattrocento italiano, nas quais o historiador de arte tinha reconhecido restos pagãos arcaicos. Georges Didi-Huberman tem desenvolvido recentemente uma provocativa e erudita releitura da obra de Warburg que, EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 19 10/03/14 11:06 20 Álvaro Fernández Bravo em contraste com as leituras de Ernst Gombrich com as quais polemiza, busca reconhecer o valor do anacronismo. Didi-Huberman procurou recuperar a complexidade do legado warburguiano e elaborar alguns conceitos sobre os quais voltarei no meu trabalho, em particular o da heterocronia das coisas e das imagens.2 O caminho de Warburg foi precursor, se comparado a outros etnógrafos, artistas e pensadores que percorreram a América do Sul poucos anos depois e se detiveram na cultura material ameríndia para interrogá-la e recuperar as perguntas do seu trabalho de campo para questionar sua própria prática e, com ela, os contornos disciplinares e os efeitos do tráfego de coisas e de conceitos. Gostaria de pôr em diálogo essas perspectivas para ana- lisar o problema do tempo heterogêneo, o tráfego de ima- gens e os usos da cultura material tupi-guarani como meio, isto é, os diferentes modos de pensar o capital simbólico ameríndio como inespecífico – móvel e heterocrônico – e também passível de evocar conotações simbólicas, histó- ricas, etnográficas e filosóficas distintas. Para tal, vou levar em consideração os debates que circundaram a publicação da revista Documents, dirigida por Georges Bataille, e seu efeito no modo de olhar para a cultura material guarani. O diálogo e a tensão entre etnografia e vanguarda atravessou a especulação estética e teórica durante esses anos e pode ser reconhecido nas pesquisas sobre o mundo guarani. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 20 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 21 A figura de Alfred Métraux (1902-1963) e seus escritos iniciais sobre as culturas tupi-guarani e tupinambá são um ponto de partida para analisar o lugar do objeto de arte como conglomerado de relações. Interessa-me examinar a construção de um discurso sobre o mundo guarani a partir dos restos e dos vestígios da cultura material con- servados em museus do norte da Europa e consultados por Métraux para escrever seus primeiros livros. A pesquisa de Métraux tem apoio em fontes escritas (relatos de viagem, crônicas coloniais e estudos etnográficos contemporâneos ao momento de escritura), mas sobretudo em sua leitura de “documentos” e nos cruzamentos interdisciplinares em que convergem a etnografia, a arqueologia, a filologia e a arte, o passado e o presente, a civilização e o primitivo. Publicado em 1928, o mesmo ano em que Métraux fez a curadoria, com Georges Henri Rivière, da exposição Les Arts Anciens de l’Amerique, no Museu do Louvre, e em que se começa a publicar em São Paulo a Revista de Antro- pofagia, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani oferece um repertório de objetos a partir dos quais se desdobra uma teoria cultural. Porém, a assepsia metodo- lógica do antropólogo nunca perde de vista o objeto que ele usa para apoiar sua investigação.3 Especula sobre sua antiguidade, sonda conotações onde se reconhecem os debates do momento, elabora mapas e propõe itinerários EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 21 10/03/14 11:06 22 Álvaro Fernández Bravo para as coisas. Não segue o mesmo caminho do seu ami- go Georges Bataille, mas mantém algumas preocupações comuns. É por isso, talvez, que André Breton o chamou de “o homem antipoético do século XX”.4 Sua intervenção pode ser lida como uma resposta (mas também como um diálogo) com a revista Documents, dirigida por Bataille, que começou a ser publicadaem 1929, no ano seguinte ao do seu livro e da exposição de arte americana de 1.200 objetos exibida no Louvre, “a pri- meira grande exibição de arte pré-colombiana na Europa ocidental”,5 e da mudança de Métraux para a Argentina, onde já então dirigia o recém-fundado Instituto de Et- nologia da Universidade Nacional de Tucumán. Nesse mesmo ano de 1928, Métraux, com Jean Babelon e Georges Bataille tinham editado um número da revista Cahiers de la Republique des Lettres, des Sciences et des Arts intitulado L’art précolombien. Ali se incluiu “L’Amérique disparue”, um dos primeiros artigos de Bataille. Essa revista permite reconhecer uma precoce manifestação do campo expan- dido no qual se cruzam a história da arte, a ciência e a literatura. É dentro dessas águas que quero ler a obra de Métraux. Os objetos ameríndios ocupavam uma posição desconcertante e aberta na exposição. Veremos os efeitos dessa posição mais adiante. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 22 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 23 Cahiers de la République des Lettres, des Sciences et des Arts, 1928. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 23 10/03/14 11:06 24 Álvaro Fernández Bravo Métraux, filho de um médico suíço que tinha se estabelecido na província de Mendoza, Argentina, passou sua infância na América do Sul, viajou para realizar estudos no liceu da sua cidade natal, Lausane, Suíça, e logo continuou seus estudos universitários em Paris e em Gotemburgo, Suécia. Defendeu sua tese de doutorado na Sorbonne no mesmo ano de 1928, e a publicou em duas partes: La civilisation materielle des tribus Tupi-Guarani e La religión des Tupinamba et ces rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani.6 Escreveu os dois livros sem ter realizado trabalho de campo, baseando-se nas coleções de cultura material recolhidas por seu maestro Erland Nordenskiöld na América do Sul, entre 1901 e 1902, e alojadas no Museu de Gotemburgo, e visitando os museus de Copenhague e Berlim. Durante sua permanência em Paris, estudou com Marcel Mauss e estabeleceu uma longa relação com o grupo de intelectuais surrealistas que pouco depois iria se nuclear na revista Documents. Dado meu interesse pelos objetos, vou me concentrar no primeiro de seus livros. Documentos da barbárie Antes de ingressar no problema da heterocronia da civili- zação material tupi-guarani, quero me deter brevemente no debate que teve lugar na revista Documents, e que tem um eco no trabalho do etnógrafo suíço que analisaremos aqui. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 24 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 25 Muitos dos membros da revista (1929-1930, 15 números) estavam plenamente imersos na discussão sobre a posição da cultura material de origem não europeia (primitiva) nos museus europeus. O subtítulo da revista, Doctrines, Archéologie, Beaux-Arts, Ethnographie, permite reconhecer a convivência de categorias heterogêneas dentro da publica- ção, que rechaçava a ideia do valor estético como autônomo, desligado dos usos atribuídos às coisas. Essa posição pode ser lida como um antecedente da perspectiva de Métraux de ler os objetos num campo expandido. A relação entre as vanguardas e a arte primitiva, já para fins dos anos de 1920, mostrava seus impactos sobre o mercado de arte e consagrava a profanação desses objetos ao incorporá-los decisivamente ao mercado, elevando sua cotização e con- firmando os efeitos irreversíveis do museu sobre as coisas que caíam nas suas garras. Como assinala Denis Hollier no prefácio à edição de 1991, Documents “terá por plataforma uma oposição ao ponto de vista estético”.7 Gonzalo Aguilar destaca que um andamento seme- lhante ocorre no Movimento Antropofágico em 1928. A estética que tinha ocupado um lugar central no Manifesto Pau-Brasil, de 1924, perde agora importância e resulta substituída por uma afiliação política ao negócio indígena.8 Trata-se, é claro, de uma afiliação retórica, afastada de todo conhecimento etnográfico ou contato com o mundo ame- ríndio, com o qual os membros da vanguarda antropófaga EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 25 10/03/14 11:06 26 Álvaro Fernández Bravo nunca tiveram uma aproximação efetiva, diferentemente de Mário de Andrade, que manteve uma relação ativa com o conhecimento científico, tanto nas suas viagens como na sua leitura da obra de Koch-Grunberg, citado várias vezes por Métraux no livro La civilisation matérielle. Se as coisas podiam ter um valor como documentos a partir dos quais se lia rastros de culturas primitivas, quer dizer, arcaicas e remotas, é nesse valor de “meio” de acesso que residia uma de suas maiores riquezas, porque em tal valor já se preparava, naturalmente, uma reflexão sobre o contemporâneo. Sem dúvida que a defesa do valor de uso em face do valor de câmbio que o mercado impunha aos objetos radicava em preservar o resto material que essas coisas ti- nham tido antes de ingressar na economia da coleção. Muito embora se tratasse de objetos primitivos, se privilegiava seu valor de uso e se denunciava os “arqueólogos e os estetas” pelo seu formalismo, interessados na “forma de uma asa [de uma peça de olaria]”, mais incapazes de “estudar a posição do homem que bebe”.9 Também significava conservar o lugar do intermédio e aberto que tanto as imagens como os objetos possuem. A condição de “externalidade” das coisas,10 muito embora fosse fantasmagórica e opaca, as preservava do fetichismo da mercadoria que sua cotização na bolsa de valores da arte já começava a lhes imputar. O debate suscitado em Documents EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 26 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 27 teve vários participantes ligados a Métraux, como o próprio Georges Henri Rivière, coeditor de Documents com Bataille. Rivière tinha sido colaborador, com Métraux, não só na- quela primeira exposição no Louvre, mas também como benfeitor, desde a subdireção do Musée de Ethnographie du Trocadéro, dos envios de cultura material realizados desde o Chaco até Paris pelo etnógrafo suíço. O Musée du Trocadéro foi mudando de nome no decorrer dos anos, primeiro para Musée de l’Homme e depois para o atual Musée du Quai Brainly, e os objetos remitidos por Métraux ainda permanecem lá e podem ser observados na página web do museu. Foi no Musée du Trocadéro onde Picasso teria se inspirado para pintar Les demoiselles d’Avignon, logo após observar objetos de procedência africana expostos nas vitrines.11 Carl Einstein, teórico da arte primitiva e colaborador da publicação, também se interessou pela questão da cultura material no campo expandido.12 Einstein tinha proclamado alguns anos antes que “a era das ficções formalistas sobre a arte tinha acabado”,13 e atacou a mediação europeia capita- lista – da qual a vanguarda se revelava, em última instância, cúmplice –, por considerá-la cultora duma arte burguesa, elitista, individualista e afastada de um propósito coletivista que incluía situar os objetos longe da intermediação dos colecionistas. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 27 10/03/14 11:06 28 Álvaro Fernández Bravo O termo “documento”, que dá título à revista, também contrasta com a categoria de “monumento”. Monumento alude à ideia da cultura como troféu e sublimação, que os membros da revista rechaçavam, como fez Métraux, em suas leituras etnográficas de objetos da arte a partir de sua inserção no mundo social de onde tinham sido extraídos. Não se tratava de sustentar a transparência da coisa, mas de usá-la como disparador para desenvolver hipóteses sobre o universo de onde provinham e no qual interatuavam. As coisas adquiriam, assim, um valor post-medial, pela sua condição inespecífica: a categoriade “belas artes”, em- bora aparecesse no nome da revista, estava compreendida no documento, que rechaçava toda hierarquia (um sapato tinha o mesmo valor que uma diadema de origem viking ou uma obra de Giacometti). Recuperava-se, assim, intensamente, o valor de uso – como ia fazer Métraux na sua reconstrução da cultura guarani a partir dos objetos reunidos na coleção de seu maestro Erland Nordenskiöld no Museu de Gotembur- go – e se afastava, também, de toda noção de pureza e cultura alta. É por isso que a categoria de “civilização” poderá ser usada por Métraux para se referir ao mundo guarani que até então dificilmente poderia ter sido considerado como tal. Na mesma linha, Paul Rivet, que tinha recomendado a Juan B. Terán, Reitor da Universidade de Tucumán, para contratar Métraux, assinalava que EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 28 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 29 é capital o etnógrafo, como o arqueólogo, como o historiador da pré-história, estudar tudo o que constitui uma civilização, sem deslegitimar nenhum elemento, por insignificante ou banal que pareça (…) os colecionistas têm incorrido no erro de um homem que for julgar a civilização francesa atual pelos objetos de luxo que podem ser encontrados junto a um grupo muito reduzido da população.14 A afinidade da vanguarda com o “baixo”, a barbárie, os detritos, o anacronismo e seu ataque furioso às hierar- quias consagradas no museu não impediram nem em sua manifestação parisiense, nem nas suas expressões latino- -americanas, incluindo o Movimento Antropofágico bra- sileiro, as alianças estratégicas e o colaboracionismo com as instituições de acumulação simbólica primitiva localizadas nos centros urbanos de poder político, tanto europeus como latino-americanos, para onde o tráfego dos vestígios da cultura material continuou sem pausa.15 No entanto, os objetos, ainda que descontextualizados, albergam uma resistência e uma carga histórica inapagável. Esse resíduo temporal e simbólico vai ser o foco de interesse de Alfred Métraux a respeito da cultura guarani. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 29 10/03/14 11:06 30 Álvaro Fernández Bravo A civilização material tupi-guarani O livro de Métraux parte de dois conceitos raramen- te justapostos. Civilização material apresenta um par conceitual que não é idêntico: nem à “cultura material” nem à “civilização” isoladamente. A expressão pode se explicar, conforme observam Bossert e Villar, em relação ao alinhamento do antropólogo suíço com o enfoque cauteloso e ainda disposto a conviver com a incerteza da escola escandinava de americanistas na qual o seu maestro Erland Nordenskiöld o tinha treinado. Nordenskiöld – cujas obras Aby Warburg conheceu e consultou16 – con- tribuiu ainda com a revista Documents com um artigo sobre a cultura material indígena americana, cujas ideias têm semelhança com o método de Métraux no seu livro La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani.17 No entanto, o artigo tinha noções difusionistas que procu- ravam “indagar na difusão de elementos culturais para reconstruir o mapa étnico da América do Sul”. Tratava- -se de uma posição moderada, disposta a reconhecer invenções independentes e próximas a certo relativismo cultural afastado dos extremos dogmáticos dos teóricos da Kulturkreise do “difusionismo” alemão ortodoxo.18 Assim, Métraux propunha estudar a “civilização mate- rial”, um conceito que não estava associado com os grupos indígenas Tupi-Guarani, particularmente na Argentina, EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 30 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 31 onde o mundo indígena estava desprestigiado e tinha acesso somente a museus etnográficos sob os parâmetros racistas da antropologia física. Apesar de algumas tentativas de ingressar relíquias indígenas em espaços associados com a arte, como o Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, elas tinham sido cortês, mas firmemente derivadas para o campo da ciência, como no caso da urna Quiroga, uma peça de olaria calchaqui descoberta e doada pelo arqueólogo Adán Quiroga, eventualmente invisibilizada no Museu Etnográfico da Universidade de Buenos Aires.19 Em contraste com esse antecedente, o guarani se en- contra solidamente integrado no mundo paraguaio, onde é, junto com o espanhol, uma das duas línguas oficiais do Estado, e instituições como o Museu do Barro consagram a cultura material guarani como emblema da cultura na- cional.20 O guarani ocupa, no entanto, um lugar menos nítido tanto na Argentina como no Brasil e na Bolívia, onde também habitam falantes de línguas guaranis. O Chaco é uma zona de limites imprecisos que compre- ende regiões da Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil. Seu território tem sido habitado e atravessado pelas migrações guaranis e tupis durante vários séculos. Vou tomar os es- critos sobre esse grupo étnico como um campo expandido e em movimento que, a partir de objetos de arte de natureza híbrida, por momentos carregados de um valor religioso, EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 31 10/03/14 11:06 32 Álvaro Fernández Bravo mas também dotados de conotações estéticas – tal como os considerou Aby Warburg no seu ensaio sobre os índios Pueblo do Novo México, elaborado em torno de 1927, mas só publicado 50 anos mais tarde –,21 evidenciam um conglomerado de relações a partir do objeto de arte que compreende crenças, mitologia, práticas comunitárias e religiosas e patrimônio linguístico. Como assinalou recentemente Eduardo Viveiros de Castro, aplicar categorias como “território” ou “comunidade” ao mundo indígena entranha problemas difíceis de serem resolvidos, ligados à migração, ao movimento e à flutuação contínua da mesma composição desses grupos humanos.22 Como toda comunidade, os indígenas Tupi-Guarani não permanecem imóveis, mas mudam, se deslocam, incorporam novos componentes, se fragmentam e alteram continuamente seu capital simbólico. Não permanecem idênticos a si mesmos. Não obstante, esse fenômeno foi reconhecido muito cedo pelos etnógrafos, particularmente por Métraux (mas também por Nordenskiöld); foi ele quem dirigiu as pesquisas de objetos realizadas durante sua permanência em Gotemburgo. Métraux procurava reconstruir o itinerário da suposta irradiação a partir de um núcleo primigênio no Amazonas para diversas regiões da América do Sul, incluindo a fronteira com o mundo andino, onde ele estudou os então denominados indígenas chiriguanos, como é possível observar nos mapas de clara inspiração difusionista incluídos em La civilisation EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 32 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 33 matérielle des tribus Tupi-Guarani. Ali se reconhece um êxodo de leste a oeste, desde as costas atlânticas até o interior do continente através dos rios amazônicos ou das selvas do Chaco, que culmina nos grupos Chiriguano (hoje denominados Avá-Guarani) da Bolívia e do norte da Argentina.23 O efêmero dos gentilícios, incluindo o próprio gentilício tupi-guarani, indica não só uma condição atravessada por saberes contemporâneos à produção de conhecimento sobre esses grupos, mas também a maneira como o discurso para nomeá-los se torna rapidamente anacrônico. Assim, categorias como “tribo” – no título da obra de Métraux –, “nação” e “raça”, para se referir aos tupi, revelam o anacronismo do discurso científico, atravessado por uma forte ancoragem temporal. A língua se encontra urdida pelo tempo em que foi usada e funciona, tal como a filologia tem sugerido, não só como meio de comunicação, mas como arquivo e depositório arqueológico do tempo em que operou. A palavra tinha um valor equivalente ao de um fóssil para os padrões epistemológicos dos anosde 1920, em que a antropologia se consolidava como disciplina,24 mas os discursos etnográficos, como a literatura de viagem, tinham perdido tanto a sua ênfase assertiva como a precisão cien- tífica, e revelavam antes atributos estéticos e ideológicos com valor para uma Kulturwissenschaft, a ciência da cultura pela qual advogava Warburg. Ainda que a composição do tupi-guarani apele a fontes escritas, objetos e imagens de EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 33 10/03/14 11:06 34 Álvaro Fernández Bravo um extenso repertório e através de um amplo arco tempo- ral, todo esse fluxo de informação, bibliografia, citações e referências conduz a uma teoria sobre o presente: a deca- dência e a ameaça de extinção que se cerne sobre a cultura guarani, e que o etnógrafo procura resgatar antes que seja tarde demais. As duas imagens que vemos à continuação, incluídas no Capítulo “Sepultura” de La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani,25 permitem reconhecer o modo de trabalho de Métraux, que combina as ilustrações incluídas no livro de Hans Staden com fotografias contemporâneas de objetos pertencentes à coleção do Museu de Gotembur- go para elaborar uma teoria que culmina no presente. A bibliografia sobre sepultura inclui obras de Hans Staden, Jean de Léry, Yves D’Évreux, Claude D’Abbeville, Gabriel Soares de Souza, André Thévet e Martin Dobrizhoffer, todos autores de obras dos séculos XVI ao XVIII e que cobrem uma extensa superfície e variedade de grupos étni- cos. Mas, junto com eles, também cita Nordenskiöld, Karl von Steinen, Juan Bautista Ambrosetti, Antonio Tocantins e Carl von Martius, autores mais modernos, alguns deles ainda contemporâneos do próprio Métraux e também es- tudiosos de culturas muito diversas. Os objetos convocam assim um repertório heterogêneo e impuro de saberes e escritos que combinam momentos históricos desiguais, de filiações com escassas probabilidades de interseção. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 34 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 35 Imagens tomadas de A. Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani, 1928. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 35 10/03/14 11:06 36 Álvaro Fernández Bravo O que é que Métraux propõe ler na superfície das coisas? Seu método recupera as múltiplas capas de tempo alojadas nos objetos e procura desenvolvê-las para entender uma trajetória que cruza diversos períodos e regiões através dos quais os Guarani se deslocaram. Por se tratar de uma pes- quisa que confia em reconstruir uma trajetória, tem neces- sariamente que apelar a uma mobilidade conceitual capaz de registrar a sobrevivência e, por isso mesmo, a heterocronia das práticas simbólicas através de extensos períodos históri- cos. Na sua análise, o antropólogo reconhece componentes estéticos, rituais, religiosos, crenças, superstições e práticas coletivas. Sua teoria culmina nos Chiriguano e nos Omagua, grupos sobreviventes, contemporâneos e portadores de práticas nas quais o etnógrafo procurava reconhecer rastros do passado. Suas hipóteses convivem com especulações sobre as práticas funerárias dos Tupinambá e dos Guarani originários, às vezes superpostas ou formando parte de um mesmo núcleo inicial a partir do qual começou a difusão dos ritos simbólicos ainda visíveis. Isto é, o passado arcaico e o presente contíguo se tocam para postular uma imagem do contemporâneo. O contemporâneo precisa do arcaico para recortar seu território. Nos ritos funerários se reconhece um rastro dos inte- resses de Bataille que sobrevivem, ainda que muito mais contidos, na prosa materialista de Métraux. A festa, o EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 36 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 37 gasto improdutivo e a produção simbólica associados à morte permitem identificar algumas das obsessões do diretor de Documents na escritura muito mais mesurada de Métraux. Contudo, a espessura da coisa conserva sua complexidade e também sua opacidade. Mesmo que a busca por escrutar filiações entre distintos grupos se man- tenha, só permanece como uma hipótese que, em última instância, sugere a indistinção e inespecificidade de cada comunidade. Ainda que os indígenas sejam classificados em quadros de inspiração etnográfica difusionista, tanto nos seus nomes como nos seus atributos há um status contingente e hipotético. A espécie só serve para demostrar afinidades, e não diferenças essenciais entre grupos étnicos como os Chiriguano: ainda que mantenham uma filiação linguística com o mundo guarani, têm sido influídos por outras culturas, principalmente as andinas. A língua exibe sua própria limitação como segurança de pertencimento simbólico. Se pusermos em relação essa noção com a heterocronia warburguiana, é possível pensar nos “fósseis viventes”, seres perfeitamente anacrônicos da sobrevivência, semelhantes aos “elos perdidos” definidos como formas intermediárias localizadas entre estágios antigos e estágios recentes de variação.26 Por essa condição inclassificável, o Nachleben EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 37 10/03/14 11:06 38 Álvaro Fernández Bravo desafia as taxonomias evolucionistas e permite interpor-se como instrumento conceitual no campo expandido. O olhar de Métraux sobre os grupos indígenas do Chaco não é um olhar entusiasmado nem otimista. Seu trabalho de campo foi difícil, numa área árdua e para a qual carecia de algumas ferramentas, assim como um conhecimento linguístico adequado.27 Encontrou comunidades em de- cadência, submetidas a uma rápida erosão do seu capital cultural e tratadas com indiferença pelos Estados nacionais que agora as incluíam, mas que não tinham interesse em preservar ou em estudar culturas com as quais, aliás, guar- davam fortes relações de parentesco, como tem observado Raul Antelo nos escritos de Métraux. Porém, a comprovação da sobrevivência, como observa Didi-Huberman sobre os vaga-lumes, encerra o reconhecimento de uma forma de resistência cultural que conserva ao menos alguns vestígios do passado ainda vivos.28 Os indígenas mantêm, ainda com grande perigo de extinção, rastros que os vinculam com seus ancestres e sua cultura primordial, primitiva, e por isso mesmo dotada de um valor intrínseco post e pre-media, já que não têm sido ainda integrados ao dispositivo do mercado da arte que tinha começado a deglutir e mercantilizar [commodify] na Europa a cultura material primitiva não europeia. Na imagem que vemos a seguir, uma fotografia tomada por Métraux durante seu trabalho de campo nos anos de 1930 EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 38 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 39 no Chaco, observamos a produção de vasilhas semelhantes às que incluiu no seu capítulo sobre a sepultura na cultura tupi-guarani.29 Fotografia de Alfred Métraux, c. 1930, Museu Etnográfico de Genebra, Suíça. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 39 10/03/14 11:06 40 Álvaro Fernández Bravo Conclusão É possível assinalar, como já observou Raul Antelo, que os anos de Métraux na Argentina lhe permitiram desenvol- ver uma teoria que não só compreendia os grupos indígenas, mas também as sociedades crioulas locais. “El problema de la civilización”, artigo publicado na revista Sur, de Buenos Aires, em 1937,30 pode ser lido também como uma teoria do campo expandido, um manifesto contra “a multiplicação artificial das diferenças culturais” e um reconhecimento da língua como um patrimônio comum, uma forma de comunidade que revela abertura, intercâmbio, interco- nexão, impureza e comparação, antes que segmentação, especialização e espacialização. Tanto nas pesquisas sobre o mundo tupi-guarani como no seu trabalho de campo comindígenas da região do Chaco durante sua permanência na Argentina, Métraux, interessado como muitos dos seus colegas no problema da perda e no impacto da aculturação sobre comunidades vulneráveis, refletiu, com efeito, sobre um problema mais amplo: a decadência das sociedades modernas, o avanço do nazismo na Europa, a desatenção das elites latino-americanas para com o patrimônio cul- tural indígena e os padrões de imitação e importação do capital simbólico europeu entre as burguesias locais, que em muito pouco contribuíam para reparar o déficit cultu- ral crônico dessas sociedades, subvencionando a imitação EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 40 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 41 ou comprando arte europeia para abastecer seus museus. Essa indiferença pelo mundo ameríndio era reveladora de uma civilização, a crioula, dependente, atrasada e um pouco grotesca; se trata da mesma acusação que articulou o Movimento Antropofágico e que emerge em numerosas vozes latino-americanas do período. É preciso assinalar, para finalizar, que, além da recu- peração do trabalho de Métraux a favor das “sociedades primordiais”, realizada por Antelo, a tarefa do etnógrafo nunca abandonou um compromisso ao menos equívoco com o tráfego da cultura material aos centros de acumula- ção cultural europeus, avaliados pelo aparato colonial: os museus que as vanguardas tinham denunciado durante sua fase heroica, mas dos quais se converteram em cúmplices muito pouco tempo depois. Também os museus latino- -americanos se abasteciam de mecanismos semelhantes, a partir de estruturas políticas onde os Estados exerciam a ação colonial sobre seus próprios povos originários. As mesmas imagens que abasteceram arquivos e depo- sitórios fotográficos são resultado de uma intermediação, não só do etnógrafo com as instituições metropolitanas e urbanas do saber, para as quais trabalhou, negociou e re- meteu coisas e imagens, mas também dentro do universo crioulo latino-americano, onde o contato com os indígenas, e mesmo a possibilidade das tomadas fotográficas eram EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 41 10/03/14 11:06 42 Álvaro Fernández Bravo difíceis de se obter. As portas da comunidade chiriguana tinham sido abertas aos cientistas por terras-tenentes açucareiros. O etnógrafo se hospedou, acompanhado pelo poeta argentino Oliverio Girondo e pelo escritor francês Drieu la Rochelle, enquanto realizava trabalho de campo, na confortável fazenda de um engenho saltenho. Numa carta de 1932, em plena Guerra do Chaco, entre a Bolívia e o Paraguai, uma contenda afetou gravemente os indígenas que atravessavam continuamente fronteiras nacionais re- centemente estabelecidas, e sobre a qual Métraux guardou um sugestivo silêncio: “No Chaco voltamos a nos encontrar [Drieu la Rochelle e Métraux] com Girondo e seu irmão, e em um dos grandes engenhos da fronteira, hospedados por Bercetche, um dos reis do açúcar e do trigo, tivemos momentos très parisiennes.”31 Os engenhos de açúcar atraíram uma grande quantida- de de indígenas guaranis até as ladeiras da cordilheira dos Andes, na província de Salta, Argentina, tanto do Chaco argentino como da Bolívia e do Paraguai, desde fins do século XIX. Ofereciam trabalho e empregaram milhões de operários. Como resultado dessa migração, suas formas de vida sofreram uma severa aculturação, e muitos indígenas morreram, vítimas de doenças e das difíceis condições de trabalho que imperavam no engenho.32 Essas foram as condições de possibilidade para os etnógrafos urbanos EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 42 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 43 europeus e latino-americanos fotografá-los, entrevistá-los e tomar contato inicial com esses indígenas e seus objetos. Eles iniciaram, assim, os mapas, inventários, descrições e a coleção de cultura material tupi-guarani ainda conservada, mesmo que com escassa informação sobre sua origem e o modo como as coisas foram obtidas e arquivadas nos acervos dos museus onde ainda permanecem. Bibliografia Pierre Lauret, Le silence des masques: le Musée du Quai Brainly comme tombeau des peubles authochtones, Situations: Cahiers Philosophiques, n. 108, p. 105-125, dec. 2006. Alfred Métraux, Antropofagia y cultura, em La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011. Notas 1 Aby Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America, tradução e ensaio de interpretação Michael Steinberg, Ithaca, University of Cornell Press, 1995 (1. ed. alemã baseada em conferência de 1927). 2 Georges Didi-Huberman, La imagen superviviente. Historia del arte y tiempo de los fantasmas según Aby Warburg, traducción Juan Calatrava, Madrid, Abada, 2009; José Emilio Burucúa, Historia, arte, cultura. De Aby Warburg a Carlo Ginzburg, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2003; Serge Gruzinski, La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999. 3 Alfred Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani, Paris, Librarie Orientaliste Paul Geuthner, 1928. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 43 10/03/14 11:06 44 Álvaro Fernández Bravo 4 Edgardo Krebs, El escritor argentino y la tradición etnográfica, Oliverio Girondo. Exposición homenaje, 1967-2007, Buenos Aires, Museo Xul Solar, 2007, p. 34-44, Catálogo de exposição. 5 Ibidem, p. 36. 6 Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani; Idem, La religión des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, Paris, Leroux, 1928; Federico Bossert e Diego Villar, La etnología chiriguano de Alfred Métraux, Journal de la Société des Américanistes, v. 93, n. 1, p. 127-166, 2007. 7 Denis Hollier, Le valeur d’usage de l’impossible, prefácio a Documents, Paris, Jean Michel Place, 1991, p. VII-XXXIV. Cf., também, James Clifford, The Predicament of Culture. Twentieth Century Ethnography, Literature and Art, Cambridge, Harvard UP, 1988; e Hal Foster, Prosthetic Gods, Boston, October Books, 2004. 8 Gonzalo Aguilar, Por una ciencia del vestigio errático. Ensayos sobre la antropo- fagia de Oswald de Andrade, seguido de La única ley del mundo, de Alexandre Nodari, Buenos Aires, Editora Grumo, 2010, p. 10. 9 Marcel Griaule, Poterie, Documents, n. 4, p. 236, 1930; Hollier, Le valeur d’usage de l’impossible, p. x. 10 Bill Brown, Thing Theory, Critical Inquiry, v. 28, n. 1 (Things), p. 1-22, Autumn 2001. 11 Sobre o Musée du Quai Brainly, veja-se Krebs, El escritor argentino y la tradi- ción etnográfica, e Néstor García Canclini, La sociedad sin relato. Antropología y estética de la inminencia, Buenos Aires, Katz, 2010. O último realiza uma crítica demolidora da instituição fundada em 2006 e tributária do espetáculo e do formato de parque temático (que inclui plantas tropicais ad hoc e motivos terceiro-mundistas). A coleção, agora despojada de toda referência histórica à origem dos objetos exibidos, muitos obtidos pelas expedições nas que participa- ram membros de Documents, como Michel Leiris na expedição Dakar-Djibouti, através do saqueio e a obtenção em condições pouco claras de objetos rituais transformados em “arte” (Michel Leiris, L’Afrique fantôme, Paris, Gallimard, 1988). Sobre Picasso e a arte africana, ver Foster, Prosthetic Gods. 12 Raul Antelo, Apostilla a Alfred Métraux. Antropofagia y cultura, em Alfred Métraux, La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 44 10/03/14 11:06 HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 45 13 Carl Einstein [1919], On Primitive Art, trad. Charles W. Haxthausen, October, v.105, p. 124, Summer 2003. 14 Paul Rivet, L’Étude des civilisations matérielles: ethnographie, archeologie, préhistoire, Documents, n. 3, p. 133, juin 1929. 15 Eduardo Jardim, A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, Rio de Janeiro, Graal, 1978; Leiris, L’Afrique fantôme. 16 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America, p. 62. 17 Erland Nordenskiöld, Le balancier a fardeaux et la balance en Amérique, Documents, n. 4, p. 177-182, 1929. 18 Bossert e Villar, La etnología chiriguano de Alfred Métraux, p. 129; Gastón Gordillo, Lugares de diablos. Tensiones del espacio y la memoria, Buenos Aires, Prometeo, 2010. 19 Andrea Roca, La vida social de una urna, em La vecindad de los objetos: lo pro- pio y lo ajeno en el estudio de los sistemas clasificatorios del Museo Histórico Nacional y el Museo Etnográfico, Tese (Licenciatura), Universidad de Buenos Aires, 2003. 20 Ticio Escobar, La belleza de los otros: arte indígena del Paraguay, Asunción, Centro de Documentación e Investigaciones de Arte Popular e Indígena del Centro de Artes Visuales, 1993. 21 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America. 22 Eduardo Viveiros de Castro, A indianidade é um projeto do futuro, não uma memória do passado, Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 2, p. 257-268, jul.-dez. 2011, disponível em <http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/ view/3311/2143>. 23 Gordillo, Lugares de diablos. 24 Roberto Esposito, Tercera persona. Política de la vida y filosofía de lo impersonal, trad. Carlo Molinari Marotto, Buenos Aires, Amorrortu, 2009. 25 Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani, p. 272-273. 26 Didi-Huberman, La imagen superviviente, p. 60. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 45 10/03/14 11:06 46 Álvaro Fernández Bravo 27 Silvia Hirsch, De la autoridad etnográfica a la pasión etnográfica: una relectura de Alfred Métraux, Cuadernos del INAPL, n. 18, Buenos Aires, Secretaría de Cultura de la Nación, 1998-1999, p. 223-232; Krebs, El escritor argentino y la tradición etnográfica. 28 Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex, revisão de Consuelo Salomé, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011. 29 Carlos Darío Albornoz, La colección Métraux, Separata do Catálogo da mos- tra itinerante De Suiza a Sudamérica – Etnologías de Alfred Métraux, Museu Etnográfico de Genebra, Genebra/Suíça, 1998. 30 Alfred Métraux, El problema de la civilización. La noción del cambio en el dominio moral e intelectual de las sociedades, Sur, n. 30, p. 7-27, marzo 1937. 31 Carta de 26 de setembro de 1932 a Yvonne Oddon apud Krebs, El escritor argentino y la tradición etnográfica, p. 37. 32 Gordillo, Lugares de diablos. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 46 10/03/14 11:06 47 A ESCRITA E O FORA DE SI Ana Kiffer Un aveugle ne mettra pas l’âme dans la glande pinéale. L’âme se trouve où il sent, où le vivant se mobilise au contact de monde réel. Descartes considérait comme centre ce qui vient de la tête et en cela privilégie la vue. Mais le rôle du centre ne peut supprimer que la sen- sibilité est à l’oeuvre dans les organes périphériques. L’espace n’est pas que visuel. Bernard Andrieu Este texto, nascido de uma série de impossíveis, buscará ser um sistema móvel e provisório de notações em torno da noção de escrita e suas relações com um modo discursivo formulado sob a égide de um “fora de si”. Tentaremos es- boçar fragmentos de leituras, sem perder de vista o contexto EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 47 10/03/14 11:06 48 Ana Kiffer em que estes se inserem, e pensar, sobretudo, nas transfor- mações sofridas por essa noção no contexto do pensamento dos últimos 50 anos. Roland Barthes, em texto de 1973, retoma, repensando sua própria trajetória, a noção de escrita: O primeiro objeto com que me deparei em um trabalho passado foi a escrita: mas entendia então essa palavra em sentido metafórico: para mim, era uma variedade do estilo literário, sua versão (…) coletiva, o conjunto dos traços da linguagem por meio dos quais um escritor assume a responsabilidade histórica de sua forma e se vincula, com seu trabalho verbal, a certa ideologia da linguagem.1 Ninguém melhor do que o próprio autor resumiria a empreitada histórica do Grau zero da escrita, livro de um jovem Roland Barthes que fez com que o debate intelectual francês à época, centrado na figura de Jean-Paul Sartre e sua noção de engajamento literário, rodasse, rodopiasse. A meu ver, Barthes não abandonará essa visão metafórica da escrita (e seria possível fazê-lo?), no entanto, e esse texto de 1973 o demonstra, o autor vira os olhos, não por acaso num contexto em que a corporalidade assume importantes estratos discursivos na sociedade, para uma visão da escrita que ele mesmo diz (cito) “volta-se para o sentido ‘manual’ EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 48 10/03/14 11:06 A ESCRITA E O FORA DE SI 49 da palavra”.2 Tal sentido, seria importante notar, apesar de reinscrever a noção de escrita no interior das conhecidas dicotomias entre o intelectual e o manual, o metafórico e o literal, o espiritual e o corporal, deixa entrever, ao menos para esses nossos olhos já cansados de hoje, saídas interes- santes e não negligenciáveis. A primeira delas será aquela que implicará escrita e gesto: Para o padre Jacques van Ginneken, jesuíta, a primeira lin- guagem da humanidade foi uma linguagem gestual; (…) [para ele], a promoção da vogal na linguagem e o aparecimento da escrita estariam situados entre a era dos gestos e a dos cliques; em outras palavras (proposição exorbitante), a escrita seria anterior à linguagem oral.3 Aqui, estamos menos interessados no conteúdo histórico do discurso de Barthes e mais interessados nisso que desse conteúdo se libera enquanto potencialidade em torno da noção de escrita. Do gesto, por conseguinte, interessa-nos não sua anterioridade ou posteridade, mas a possibilidade que abre para romper a dicotomia entre o oral e o escrito. Dito de outro modo: a potencialidade de uma escrita que já não mais se oponha à oralidade é o que a escrita enquanto gesto pode liberar para nós. Rancière, 20 anos depois de Barthes, desenvolve esse mesmo tema, no já famoso livro EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 49 10/03/14 11:06 50 Ana Kiffer Políticas da escrita.4 Mas o próprio Barthes não deixa de tirar algumas conclusões dessa nova potencialidade: (…) não é necessário fazer a escrita descender da fala (se- gundo o mito científico da “transcrição”) para nela distinguir as duas coordenadas da linguagem: o paradigma e o sintagma. A clivagem está alhures: (…) onde se pode opor sintagmas lineares (escritas e falas) e sintagmas radiantes [eu diria rizomáticos] (nas figurações murais, nas da pintura e nas dos quadrinhos).5 [Eu acrescentaria: em algumas escritas contemporâneas, como veremos mais adiante.] Vejam que Barthes já aqui busca observar – mesmo que através do caráter manual da escrita – novas formas de sua própria realização que escapariam ao funcionamento dico- tômico do pensamento estruturalista que ainda regia sua reflexão sobre a linguagem em 1973. Sintagmas radiantes, ou rizomáticos, notados por Barthes na produção da escrita de quadrinhos, nos murais ou mesmo na pintura, deixam en- trever essa proliferação escriturária que vai fazer da própria atividade da escrita uma passagem incessante entre regimes heterogêneos, seja no interior das artes – imagem, desenho, máquina, mão, letra, palavra, traço, poesia etc. – seja entre distintas camadas de campos discursivos. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 50 10/03/14 11:06 A ESCRITA E O FORA DE SI 51 Uma segundae última instância a destacar, no escopo do que por ora nos interessa discutir com o texto de Barthes parte da seguinte reflexão: (…) em estranghelo (antiga escrita siriática), o escriba vai de cima para baixo, mas para ler é preciso girar o manuscrito 90˚ para a direita e ler horizontalmente: o corpo do ledor não é o corpo do escrevedor: um vira o outro; talvez aí esteja a regra secreta de todas as escritas: a “comunicação” [entre aspas no texto] passa por um avesso.6 Notemos a riqueza dessa indicação: primeiro, aquilo que a atividade da escrita exigiria do escriba em termos corpóreos, mais ainda além, na alteração mesma da lógica linear que caracterizaria o próprio da atividade escriturária e leitora. Segundo, a hiância que se estabelece entre o corpo que escreve e o corpo que lê. Terceiro, a metamorfose que tal hiância vem exigir para sair de um corpo escriturário e adentrar um corpo ledor. Por último, a intervenção propriamente barthesiana sobre o conteúdo histórico da escrita siriática, qual seja: a desconstrução em torno do mito “comunicacional” de toda e qualquer escrita. Interessa-nos diretamente essa metamorfose dos corpos através das escritas. Sobre isso vimos trabalhando há muito. A própria noção de “fora de si”, título deste trabalho e, ain- da mais, título da pesquisa que vimos desenvolvendo nos EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 51 10/03/14 11:06 52 Ana Kiffer últimos dez anos, está atravessada por esse “avesso”, para usar as palavras de Barthes. Se por um lado estar “fora de si” exprime uma exacerbação das intensidades afetivas e, por conseguinte, corpóreas, por outro, essa mesma noção vem evocar um certo deslocamento, mais além, uma profunda dissociação entre um “eu mesmo” e algo fora dele. Poder-se-ia dizer, assumindo até certo ponto a hipótese levantada por Evelyne Grossman em L’angoisse de penser: É possível que com Blanchot, assim como com muitos outros escritores modernos, ler requer menos de uma captação imagi- nária e mais da nossa capacidade de suportar os efeitos dos afetos mais ou menos violentos, desestruturantes, que o texto exerce sobre nós. Em outros termos, trata-se para o leitor de ser capaz de não resistir aos efeitos transferenciais reais que exerce sobre ele a escrita, ainda melhor, de ser capaz de certa atitude dissociativa – qualidade requisitada, como se sabe, de todo analista como de todo analisado.7 Evelyne Grossman vem ressaltar que a relação com a es- crita é uma relação dissociativa. Se somarmos essa assertiva à contribuição de Barthes, deveríamos notar que tanto autor quanto leitor atravessam essa mutação corporal através do processo de escrita/leitura. A paradoxal noção de “fora de si” encontra aqui sua própria condição de possibilidade, EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 52 10/03/14 11:06 A ESCRITA E O FORA DE SI 53 deixando de ser um julgamento moral ou imaginário sobre aquele que perde a razão em estado de fúria, o “fora de si” ganha através da escrita essa liberação – estar habitado pelo fora, ou escrever como processo de uma experiência do desabrigo subjetivo é o que vem nos propor muitas das experiências artísticas modernas e contemporâneas. Não longe dessa experiência se situa Marguerite Duras quando descreve a invenção de seus personagens: “Então elas me vêm de alhures (…) A pretensão é de se crer só diante da folha enquanto tudo vos acontece de todos os lados. (…) isso vos acontece do exterior.” Ou ainda: É sem dúvida o estado que tento encontrar quando escrevo; um estado de escuta extremamente intensa, mas veja, do exterior. Quando as pessoas que escrevem dizem: quando se escreve se está na concentração, eu diria: não, quando escrevo tenho o sentimento de estar numa extrema desconcentração, não me possuo mais, (…) tenho a cabeça esburacada.8 A cabeça esburacada, furada, transpassada, de Duras não deixa de remeter para essa experiência de disjunção do corpo, para esse estado de despossessão que faz entre- ver uma experiência corporal distante daquela que funda e une corpo e identidade numa só e mesma série, numa só e mesma figura humana.9 Outras corporalidades, portanto, EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 53 10/03/14 11:06 54 Ana Kiffer é o que vem reivindicar a escrita enquanto prática ou cena de um estar “fora de si”. Mas, muito antes de Duras, a escrita dos Cadernos, de Antonin Artaud, já inventava outro comportamento para as palavras, exigindo através de um novo modo de dizer a criação, segundo o autor, de “novos corpos de sensibilidade”.10 Em outros trabalhos já buscamos desen- volver a relação plástica do traço a sua figuração poética das palavras.11 Assim como não pudemos deixar de observar a produção incessante das figuras pontiagudas e das caixas e cubos como mutações desse corpo que, ao se fazer em cor- pos escritos, vem transformar-se em máquinas perfurantes e máquinas de sopro capazes de inscrever, rasgar, cortar o abscesso da e na linguagem. Máquinas de sopro que bus- cavam essa sensação vibrátil na experiência da escrita e da leitura. Procedimentos que, por conseguinte, encetavam a criar, segundo o autor, a experiência de uma “linguagem raio”.12 Agenciamento ou não de corpos sem órgãos, como quis Artaud e, posteriormente, Deleuze e Guattari,13 o mais importante nos parece ser a notação sonora, vibrátil, tátil, que essa escrita quer assumir. Novos corpos de sensibili- dade exigem, certamente, uma alteração na organização dos sentidos, como vimos também insistindo. Evelyne Grossman ressalta: EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 54 10/03/14 11:06 A ESCRITA E O FORA DE SI 55 (…) para o escritor não se trata mais de anotar seus pensamen- tos para fixá-los num caderno, mas sim de inventar um suporte suficientemente móvel e plástico, um sutil subjétil, como ele disse, para que as frases inscritas possam ser a todo momento retoma- das, recolocadas em movimento, entrando num outro conjunto de fragmentos moventes.14 A crítica nos alerta para uma importante transformação – o caderno do autor começa a se aproximar mais das ex- periências dos cadernos dos artistas, sem, no entanto, nisso se transformar. Estamos ainda num regime de produção de discurso da e através da escrita. Mas a escrita saiu de si mesma, deixou sua identidade fixadora para transformar- -se num procedimento algo móvel, vibrátil e, sobretudo, no contexto de Artaud, algo que pudesse refazer seu próprio corpo, ele mesmo também doente, desalojado e despossuído de “si mesmo”. Evelyne vem insistindo no poder de rasgo, na violência disruptiva dessas experiências de escrita/lei- tura. Ou, como já havia dito Maurice Blanchot, “[o] jogo da etimologia corrente [que] faz da escrita um movimento de corte, um rasgo, uma crise (…) [é] simplesmente a lem- brança da ferramenta própria para escrever que era também própria para fazer incisões: o estilete”.15 Gostaríamos, aqui, não de discordar dessa hipótese, mas de sobre ela inserir um deslocamento, um passo ao EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 55 10/03/14 11:06 56 Ana Kiffer lado. Tal passo poderia indicar que muitas dessas escritas “desestruturadas” e “desestruturantes”, como quer Evelyne Grossman, buscavam modos de se relacionar criticamente com os projetos de reconstrução da humanidade a partir do pós-guerra. Seria preciso dizer ainda que esse passo ao lado só é possível porque tanto os grandes blocos teóricos quanto os grandes movimentos estéticos sumiram da cena contemporânea deixando não um vazio, mas a possibili- dade mesma de um exercício crítico que se atrele menos às grandes durações que buscavam encetar esses autores anteriores, até agora aqui citados. Por grandes durações es- tamos sugerindo não exatamente o seu caráter cronológicoe histórico (mesmo que também por aí se possa dizer algo sobre isso), mas, e sobretudo, as categorias universalistas que sustentaram o arcabouço desses discursos. Muitos “sempre” e muitos “nunca” em torno de noções tais como as de “linguagem”, de “escrita”, de “sujeito”, abundaram nas teorias estruturalistas, assim como em determinadas corren- tes psicanalíticas, e por que não dizer, no investimento ora heroico ora suicida que os próprios artistas viveram com suas obras, dentre eles Artaud, mas também Blanchot ou mesmo Marguerite Duras. É por isso mesmo que podemos dizer hoje que essa relação “intrínseca” entre a escrita e o móvel, vibrátil, tátil não se dará “sempre” através de um vínculo “desestruturante”, violento, dilacerante, como EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 56 10/03/14 11:06 A ESCRITA E O FORA DE SI 57 sugere Evelyne Grossman na esteira de Artaud e Blanchot. A própria noção de estrutura – mesmo que ainda apareça de modo viciado em nossas visões de mundo – já não dá mais conta do que nos acontece hoje. Se os Cadernos de Artaud, em seu próprio caráter asilar, atuaram como testemunho e efeito da barbárie da Segunda Guerra, e, nesse sentido, não poderiam deixar de inscrever a escrita enquanto lembrança etimológica daquele ato/palavra cruel – e rasgar e cortar a própria carne –, hoje dificilmente encontraremos, digamos, esse corpo heroico e glorioso que se ofereça enquanto testemunha de sua própria palavra. De modo distinto, porém ainda num deslocamento em continuidade com essa escrita enquanto crise e rasgo, é que também vem se inscrever muitas das imagens gritadas do cinema de Glauber Rocha. Sua crítica delirante não deixou de observar com muita lucidez esse desabrigo que sustém, ao mesmo tempo em que põe em suspensão, a subjetividade do próprio artista, agora no caso o artista latino-americano e sua submissão à outra barbárie, a dos regimes totalitários que assolaram a década de 1960 e 1970 do lado de cá. Seu fim profético em Lisboa,16 dizendo realizar na própria carne a estética da fome, pobre, doente e miserável na Europa, faz entrever de modo contundente essa escrita mais que escrita de que falava Rancière,17 e que vimos aqui bordejando, qual seja: um corpo se entrega para confirmar a escritura. EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 57 10/03/14 11:06 58 Ana Kiffer Quando vemos as experiências performáticas do corpo em movimento em algumas obras de Hélio Oiticica,18 sobre- tudo seus Parangolés, ou na performance Corpo coletivo, de Lygia Clark,19 revemos, quase que de modo paradigmático, a pregnância em torno desse corpo glorioso, a que ao fim e ao cabo se oferecem, seja enquanto dor seja enquanto êxtase, muitas dessas manifestações dilacerantes ou “desestrutu- rantes” da arte do pós-guerra até mais ou menos os anos de 1960 e 1970. Aliás, dor e êxtase são pares fundamentais a uma estética do “fora de si”. Não por acaso muitos desses autores aqui citados flertaram com a mística medieval. Ou dela buscaram um entendimento muito particular. É bem verdade que esse corpo extático não é o mesmo em Artaud, Glauber, Oiticica ou Clark. E, por favor, entendam: não é a isso que nos referimos. No entanto, uma série os liga sem excluir a multiplicidade de suas diferenças. Essa série, e isso é o que vimos tentando dizer, se liberou por um lado a escrita de seu caráter fixador, imóvel, de suas tendências imaginárias, por outro não a liberou de sua aposta numa “eternidade”. Em Artaud, tal manifestação é flagrante, e a leitura de Grossman só vem confirmar esse caráter: “O texto não tem nem começo nem fim. Dito de outro modo: nem nascimento nem morte. ‘Eu jamais nasci’, repete ele desde Rodez, e em consequência não pode morrer”, conclui Evelyne Grossman.20 EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 58 10/03/14 11:06 A ESCRITA E O FORA DE SI 59 Gostaríamos de sugerir, a partir dessa genealogia frag- mentada e fragmentária que fizemos até aqui, que uma estética do “fora de si” não se caracterizaria exclusivamente por essa exacerbação dos afetos, que faz crer que um corpo – seja do autor, seja do leitor – se entregará como confir- mação da letra morta ou da escrita órfã. Não esqueçamos que o “fora de si” é antes de tudo um desalojar da alma, um passo ao lado, um despossuir-se que reaparecerá na cena contemporânea através de, como disse Ricardo Basbaum, “uma falência das vozes interiores”.21 É interessante pensar como a literatura se sustém e se suspende a partir daquilo que foi durante séculos o seu próprio cerne e questão: a constituição de vozes interiores. Mas ao dizer isso não podemos negar ou esquecer que a construção artística desses corpos gloriosos ou extáticos abriu um lastro possível de experimentação para que no- vos corpos sensíveis fossem criados no seio da arte e da literatura. A primeira, sem ter mais a obrigação com a tela, com o enquadre, com a moldura fez saltar para a vida um sem-número de experiências. A segunda, até certo ponto liberta das estruturas dicotômicas, assim como da lineari- dade narrativa, fez com que tudo aquilo que parecia não se poder ali dizer fosse percorrendo o campo de sua experi- ência. Ainda se deveria notar que o entrelaçamento, efeito do próprio deslocamento ou expulsão de suas identidades EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 59 10/03/14 11:06 60 Ana Kiffer anteriores, fez com que esses dois campos – literatura e arte – investissem em novos modos de diálogo entre si. Um deles será através da escrita. De que maneira saltará de um para outro lado essa prática, e qual transformação sofrerá a escrita em cada uma dessas passagens, são perguntas necessárias àquele que se aproxima de experiências-limite entre esses dois campos hoje. Sob esse aspecto gostaríamos ainda de acrescentar dois fragmentos ou hipóteses de leitura, a partir de um projeto de uma artista contemporânea, Tatiana Grinberg, de quem vimos também falando e aproximando nossa pesquisa, sobretudo no último ano e meio. O projeto, intitulado Placebo01,22 foi exposto de abril a junho de 2011 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com curadoria de Luis Camillo Osório. Depois de muitas conversas, encontros e visitas ao MAM, hoje temos em mãos o catálogo recém-lançado e composto de fotos e desenhos do projeto, texto-plaqueta da exposição, escrito por Camillo Osório, assim como uma longa conversa entre a artista, Ricardo Basbaum e Cecília Cotrim. O objeto, fruto do projeto, é um chip envolto numa capa plástica moldada pela forma da cavidade bucal.23 Tal chip é na verdade um captador; ele recebe o som por FM e vibra.24 Ou, como disse Grinberg, “ele é um receptor, que transforma aquelas ondas FM em vibração”.25 Introduzido no interior da boca, EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 60 10/03/14 11:06 A ESCRITA E O FORA DE SI 61 em contato com os ossos dos dentes deverá captar e vibrar as ondas sonoras, fazendo com que o experimentador ouça fragmentos de entrevistas realizadas pela artista com pessoas que tenham passado por alguma situação de dor extrema, cirurgia ou parto, por exemplo. Desse projeto e da conversa da artista com Cotrim e Basbaum, recém-lançada no catálogo da exposição, relevo dois pontos para concluir essa outra conversa, que este texto quis encetar. O primeiro deles diz respeito à forma como Grinberg (entre outros, é claro) deslocará justamente esse corpo extático ou glorioso que herdamos mais ou menos todos das experiências artísticas da segunda metade do sé- culo XX, a partir da relação entre a experiência do corpo e a constituição de mundos ou “vozes interiores”. Tomemos a instalação Entre quatro paredes,26 originalmente feita numa ocupação/performance em um hotel do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro (o LoveStory),
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