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SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO NO BRASIL

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SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO NO BRASIL
REVISITANDO METODOLOGIAS, CLASSIFICAÇÕES E TÉCNICAS DE PESQUISA 
Organização 
Beatriz Muniz de Souza Eliane Hojaij Gouveia José Rubens Lima Jardilino
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 
PUC Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião
Siglas Usadas no Texto
ANPOCS - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
ANPTER-Associação Nacional de Pós-Graduação em Teologia e Ciências da Religião
CEAS - Centro de Estudos e Ação Sociais
CEBRAP - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CEBs-Comunidades Eclesiais de Base
CEHILA - Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina CER - Centro de Estudos da Religião: "Duglas Teixeira Monteiro" CERIS - Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais CESEP - Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação Popular
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CONIC - Conselho Nacional das Igrejas Cristãos CRB - Conferência dos Religiosos do Brasil IBRADES - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento ISER- Instituto de Estudos da Religião
ONGs - Organizações Não-Governamentais REB - Revista Eclesiástica Brasileira
SOTER - Sociedade de Teologia e Ciências da Religião
APRESENTAÇÃO
I PARTE: SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO NO BRASIL - QUESTÕES METODOLÓGICAS
Estudos de religião no Brasil: um dilema entre academia e instituições religiosas - Pedro Ribeiro de Oliveira (UFJF)
Estudos de religião no Brasil: buscando o equilíbrio entre adaptação e criatividade - Luiz Eduardo W. Walderley(PUC/SP)
Estudos de religião no Brasil: academia e instituições religiosas, um diálogo em construção - Pierre Sanchis (UFMG)
Comentários: Estudos de religião no Brasil.- conflito das interpretações - Júlio de Santa Ana (WCC/CM I)
II PARTE: SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO NO BRASIL: O PENTECOSTALISMO, SUAS TERMINOLOGIAS E CLASSIFICAÇÕES
Pentecostalismo e as concepções históricas de sua classificação - Antonio G. Mendonça (UMESP)
A dinâmica das classificações no pentecostalismo brasileiro
Cecília Loreto Mariz (UFF/RJ)	
Do messianismo possível: pentecostalismo e modernização 
José Bittencourt Filho (PUC/SP)
Comentários.- Pentecostalismo: uma religião sem memória?
Dario Paulo Barrera Rivera (UMESP)	
III PARTE: REUGIÃO No BRASIL: MÉTODOS E TÉCNICAS DE PESQUISA
Pesquisa qualitativa nos estudos de religião no Brasil - Maria	 
Helena Villas Boas Concone (PUC/SP)
Técnicas qualitativas na pesquisa da religião - Teresinha	 
Bernardo (PUC/RJ)
Pentecostalismo à brasileira: um debate sobre técnicas de	 
pesquisa - Regina Reyes Novaes (UFRJ)
"Ninguém deve estudar a religião, tendo em conta a sua própria experiência; (...) o crente `joga tudo' no domínio religioso, enquanto que para o incrédulo os interesses vão no sentido contrário..." Roger Bastide
"A primeira condição para falar de poesia e arte com algum discernimento é ter sentido a poesia e a arte, a primeira condição para quem quer compreender o crente e as sociedades dos crentes é ter, em algum momento de sua vida, participado de uma crença" (Renan, apud Roger Bastide)
I PARTE:
SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO NO BRASIL: QUESTÕES METODOLÓGICAS
ESTUDOS DA RELIGIÃO NO BRASIL: UM DILEMA
ENTRE ACADEMIA E INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS
Pedro Ribeiro de Oliveira�
INTRODUÇÃO
Convidado a levantar as questões de abertura deste oportuno seminário, não o faço à maneira do analista externo que reúne dados disponíveis e traça um quadro o quanto possível isento, mas como alguém da área querendo explicitar suas contradições e evidenciar problemas não resolvidos. Daí o estilo coloquial que deve ajudar o leitor e a leitora a relativizar meu jeito peremptório de expor o pen​samento.
Este enfoque é condicionado não só pelo exercício de minha pro​fissão de sociólogo no Departamento de Ciência da Religião da Uni​versidade Federal de Juiz de Fora-MG, como também por minha con dição de leigo na Igreja Católica Romana, onde presto assessoria a or​ganizações religiosas e populares.
Essa posição aguça a sensibilidade para certos traços do nosso campo de trabalho. Um deles é, seguramente, a predominância dos clérigos na área católica e de pastores na protestante. Já estamos dis tantes do tempo em que a religião era sua atribuição exclusiva, mas ainda me acontece ser tratado como "padre", mesmo nunca tendo estudado em seminário nem cursado teologia. Por vezes, preciso explicitar que sou católico praticante para que minhas pesquisas ou pa​lestras sobre assuntos religiosos não despertem desconfiança em interlocutores presos à idéia de que só pessoas consagradas e ordena​das estão aptas a ir além do que ensina o catecismo. Enfim, como todo leigo que se intromete no trato de coisas sagradas, estou submetido a uma sutil desqualificação nos ambientes eclesiásticos.
Por outro lado, minha condição religiosa explícita torna-me suspeito no mundo acadêmico, onde sou visto antes como intelectual da Igreja do que como um pesquisador comprometido com o conhe​cimento científico.
A partir desse lugar ambivalente (mas não ambíguo), quero le​vantar quatro questões metodológicas intervenientes na área da reli​gião. Após fazer uma breve consideração sobre o saber científico, quero apresentar certos problemas que vivi e que outros pesquisado​res talvez conheçam bem: a dimensão política de um levantamento estatístico, a construção de conceitos sociológicos, a classificação das religiões no Brasil e a avaliação da produção científica.
O SABER CIENTÍFICO
Fazer ciência é produzir um certo tipo de conhecimento próprio do Ocidente moderno (onde a ciência experimental se separa da filo​sofia). É uma conquista da Humanidade, mas não é a única nem a melhor forma de conhecimento, pois é sempre parcial: precisa recor​tar/construir o real para torná-lo inteligível. Essa redução científica do real impede que ele seja captado em sua totalidade e, no caso da religião, em sua transcendência. E pior, a ciência se cala sobre aspec​tos essenciais da vida humana: o amor, a felicidade, a saudade, o sofrimento, o êxtase. Apesar disso e de todas as críticas que a ciência merece, insistimos em fazer o estudo científico da religião. Não so​mos obrigados a fazê-lo, mas se a isso nos dispomos, temos que en​frentar as regras do método científico. E aí aparecem os problemas que quero aqui abordar sem a pretensão de resolvê-los.
O problema de fundo, que atravessa todos eles, é a relação entre o discurso científico e o discurso nativo, isto é, a explicação religio​sa da religião. Este é um problema para qualquer disciplina científi ca, pois todo fato humano é conhecido por quem o vive através do saber de senso comum. Desde criança, aprendemos sobre ele, pois a nossa linguagem nos equipa de categorias que, sendo exteriores, ge​rais e obrigatórias a todos os membros da mesma comunidade huma​na, classificam cada fato particular numa categoria geral. Ao intro​duzir outra forma de conhecimento, opera-se uma ruptura episte​mológica que dá outra inteligibilidade (teórica, não pragmática) ao real. No caso das ciências do social, tal problema se apresenta, mais intensamente, porque nosso objeto fala e teoriza sobre o que vive, sendo que, ao produzir um saber religioso, essa teoria pode ser alta​mente elaborada e sistematizada em forma de Teologia.
Reside aí, uma questão crucial (por vezes, é mesmo uma cruz difícil de carregar): para estudar uma religião é indispensável enten​der sua linguagem que, por metáforas e analogias, fala de experiên cias, emoções e sentimentos profundos. Quem pertence a esse campo religioso tem familiaridade com a sua linguagem nativa, enquanto para quem o estuda desde fora, ele é como uma língua estrangeira a ser sempre traduzida para o código científico. Aqui a pergunta: que posição permite lidar da melhor forma com as duas linguagens? A observação externa facilmente descamba para um reducionismoempobrecedor: aquele que transita habitualmente pelos dois mundos lingüísticos, com freqüência, acaba introduzindo categorias religio​sas no discurso científico, pois lhe repugna a redução científica da experiência religiosa. Não é por isso que se deva interditar o estudo científico da religião a seus próprios adeptos, mas há que ser extrema​mente vigilante para evitar as contaminações. Minha experiência diz que estas inevitavelmente ocorrem, mas penso ser preferível correr o risco de contaminação num conhecimento de boa qualidade científica, do que, de tanto precaver-se contra as interferências da religião, não ir além de trabalhos acadêmicos sem qualquer importância prática.
Relatando aqui algumas experiências pessoais, quero ilustrar o problema metodológico acima apontado, no intuito de fazer avançar seu debate e superar certas heranças positivistas que ainda dificul​tam o diálogo entre pesquisadores crentes e não-crentes.
A DIMENSÃO POLÍTICA DA PESQUISA
Embora muito se falasse sobre as CEBs, tudo que podia ser afirmado quanto a seu número eram estimativas díspares, porque os únicos dados seguros a seu respeito provinham de estudos de casos. Uma vez que cada região ou diocese entende a Comunidade Eclesial de Base a seu modo, não havia base suficiente para um estudo com​parativo. Basta dizer que, em certos lugares, chamava-se CEB todo grupo de reflexão bíblica, enquanto noutros, dizia-se não existir CEB, porque as comunidades não demonstravam ter suficiente consciên​cia política. Diante desse quadro, muitos assessores pensavam ser conveniente ter um levantamento estatístico das CEBs no Brasil. Assim, em 1990/91 o Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais - CERIS- e a Equipe de Assessoria ISER elaboraram um pro​jeto de recenseamento das CEBs, cujo êxito dependia da solução de três grandes problemas.
O primeiro era de ordem teórico-metodológica: tratava-se de definir o próprio objeto da pesquisa. O que é CEB? A definição cor​rente (do senso comum) é mais do que ambígua. Não sendo o fruto de um projeto unificado, quase tudo se pode chamar CEB: pequenos grupos de reflexão e celebração, grupos de militantes, capelas rurais, mas também grandes comunidades renovadas e até centros paroqui​ais. Para os mais exigentes, as CEBs não existem, são frutos da ima​ginação de teólogos e sonhadores. Para os mais tolerantes, tudo é CEB, cada qual com seu rosto próprio. Mas um levantamento esta​tístico de âmbito nacional requer uma definição operacionalizável. A solução foi esconder essa definição do informante, solicitando-lhe que nos fornecesse apenas os dados correspondentes aos indicadores
por nós escolhidos. Tendo em mãos os dados referentes a todas as comunidades católicas, selecionaríamos as que considerássemos CEBs.
O segundo problema era de ordem técnica: quem seria o infor​mante? Sendo um levantamento pioneiro, nacional e de caráter censitário, não poderíamos recorrer aos próprios animadores e ani madoras de comunidades. A Comissão ampliada, que prepara o En​contro Intereclesial de CEBs, tendo uma ampla rede de contatos nas bases, gostaria de fazer o levantamento, mas este não cobriria todo o país, pois só possuiria gente capacitada nas regiões onde as CEBs estão bem consolidadas. Por isso, optamos pelo pároco como informante, mesmo sabendo que nem sempre ele é simpático às CEBs. Assim, conforme o procedimento habitual de coleta de dados do CERIS, enviamos uma ficha bastante simplificada às quase 7.500 paróquias do Brasil e foi iniciado o levantamento.
O terceiro problema, mais grave, era de ordem pastoral ou política: a quem interessava saber quantas são as CEBs, como são e onde estão? As autoridades eclesiásticas (CNBB, CRB) logo deram seu acordo, mas os representantes das próprias CEBs mostraram-se muito reticentes. A razão talvez residisse no fato de haver se criado em torno das CEBs uma certa aura, um mito que lhes era favorável. Por que então substituí-lo pela realidade? Por que desmistificar um quadro que pode ser politicamente importante? O problema agravava-se por serem informantes os párocos, e haver risco, senão de repressão eclesiástica, certamente de discriminação, só entrando no levantamento as CEBs que estivessem nas boas graças do padre.
Apesar de tudo, foi feito o levantamento, com resultados acima da expectativa (retorno de 40% das fichas enviadas). Os próprios representantes de CEBs os consideraram muito bons e os reproduzi​ram no jornal do Intereclesial.�
O PROBLEMA DA CONCEITUAÇÃO SOCIOLÓGICA
A CLASSIFICAÇÃO DAS RELIGIÕES NO BRASIL
Qual é nosso objeto de pesquisa? As definições dadas pelos próprios praticantes são auto-definições que, embora devamos con​siderar, não podemos nelas nos deixar enredar. Sabemos, por exem plo, que o Espiritismo kardecista define-se como ciência dos espíri​tos e não como religião. Afinal, o que é religião? E. Durkheim já teria resolvido todos os problemas no capítulo I das Formas Elemen​tares da Vida Religiosa?
O problema se torna mais candente quando estudamos religiões cristãs, porque estas têm uma tradição de pensamento muito mais antiga do que o pensamento sociológico. Suas categorias teológicas, elaboradas para sua auto-compreensão (p.ex. mago, sacerdote, pro​feta, carisma, igreja e seita, mito, doutrina, rito), fascinam o cientis​ta, que pode transferi-Ias para a sociologia (M. Weber) sem submeter essa apropriação a uma revisão crítica que as depure de todo viés teológico. Vejamos, bem concretamente, o problema do conceito de Igreja Católica.
Todo mundo sabe o que é a Igreja Católica, menos o sociólogo. Igreja são os padres? É o conjunto de todas as pessoas que foram batizadas? É a organização que se auto-entitula Igreja? Não podemos recorrer ao teólogo, porque este vai dizer que a Igreja é antes o Cor​po Místico/Povo de Deus do que sua instituição visível. Ainda que estudemos apenas a instituição visível, não podemos deixar de nos perguntar o que ela visibiliza. Podemos contornar o problema, definindo-a por suas funções (p.ex., como aparelho de hegemonia), mas isso não nos dispensa de ir mais fundo ao problema. Penso que devemos retornar ao conceito original de comunidade religiosa (Durkheim), para então reconstruir teoricamente suas possíveis visibilizações ou mediações institucionais. Assim, podemos relacio​nar cada comunidade religiosa às suas representações institucionais. Tenho pesquisado por este caminho, mas até aqui não encontrei com quem dialogar sobre os problemas enfrentados e os resultados obtidos.
O diálogo inter-religioso não tem sido o forte da Igreja Católica no Brasil, mas em 1985/86, o responsável pelo setor de ecumenismo da CNBB procurou o ISER, propondo refazer a classificação das religiões no Brasil. A CNBB vinha da publicação, em 1984, da 2ª edição do Guia Ecumênico (Estudos n° 21) e estava preparando uma publicação mais abrangente; queria uma classificação não-católica das religiões do Brasil. Tarefa hercúlea e politicamente muito mais difícil do que o levantamento das CEBs, ainda mais sendo o ISER um instituto ecumênico em espírito e na prática.
O primeiro passo foi obter a aprovação do projeto pelo Conselho Nacional das Igrejas Cristãs - CONIC. Depois, constituiu-se uma pe​quena comissão de trabalho com pessoas (não-representantes) de di ferentes confissões cristãs, mais cientistas sociais próximos a diferen​tes áreas (inclusive não-cristãs). O problema apareceu ao se estabe​lecer os critérios classificatórios: auto ou hetero-classificações? Vale o que as igrejas dizem delas mesmas (p. ex. dissidências ortodoxas da Igreja Católica Brasileira ficam junto com as igrejas ortodoxas ligadas ao Patriarcado de Constantinopla), ou o que dizem os peritos (p.ex. a Igreja Católica Romana na categoria de igreja estrangeira)?
Evidentemente, era preciso levar em consideração o que as igre​jas dizem delas mesmas, mas a decisão final seria dada pelos peritos. Aí apareciam os problemas: Espiritismo entre as religiões cristãs? Candomblé entre as mediúnicas? Igrejas Católicas Romanae Brasi​leira em pé de igualdade? Benzeção como variante popular do cato​licismo? Os peritos (inclusive aqueles que não tinham filiação religi​osa) não eram isentos, pois dificilmente alguém no Brasil tem ajusta​das todas as suas contas com a comunidade religiosa onde foi criado.
Resultado: depois de quase dois anos, a comissão dissolveu-se com um almoço muito cordial; o ISER publicou três cadernos sobre as religiões no Brasil com o significativo título de Sinais dos Tem -pos; e a CNBB publicou, por sua própria conta, o Guia para o Diálo go Inter-Religioso (Estudos n° 52). Quanto à classificação das religi​ões, continua valendo aquela publicada em 1984... Seria melhor fa​zer, apesar de tudo, uma tentativa de classificação "de fora" ou dei​xar as coisas como estão, com cada igreja mapeando o campo a partir de sua própria ótica?
OS ESPAÇOS DE VALIDAÇÃO DA PESQUISA DA RELIGIÃO NO BRASIL
Desde os anos 50, as igrejas cristãs (no Brasil, a Católica desde os 60) têm buscado nas Ciências Humanas, particularmente nas Ci​ências Sociais, uma chave de compreensão do mundo e de si mes mas. Tornaram-se sujeito e objeto de estudo. Num primeiro momen​to, essa abertura às Ciências Humanas se deu sob forma controlada pela própria igreja, com seus centros de pesquisa e institutos univer​sitários produzindo uma sociologia "religiosa", quando não explici​tamente "pastoral", normalmente praticada por clérigos devidamen​te formados em teologia: o CERIS e o Instituto Brasileiro de Desen​volvimento - IBRADES - são os mais evidentes produtos daquela época. Outras ONGs (mais ou menos associadas às igrejas cristãs) também vieram a dedicar-se à pesquisa sócio-religiosa, e disso resul​tou uma produção científica importante.
Mas persiste, até hoje, um estatuto ambíguo para as Ciências da Religião no âmbito do campo católico. Embora usem metodologia própria e, sob este aspecto, têm sua autonomia assegurada, devem também estar a serviço da igreja e, portanto, submetidas aos critérios das autoridades eclesiásticas. Essa ambigüidade manifesta-se, por exemplo, no esforço de formação de quadros científicos que tornem a Igreja auto-suficiente nas diversas áreas das Ciências Humanas e não precise confrontar-se com um pensamento crítico vindo de fora. O campo do pensamento católico é, portanto, atravessado por duas tendências: uma que, em defesa de sua identidade, desconfia de in​fluências estranhas como possíveis fontes de contaminação; e outra que busca a contribuição advinda da modernidade nos planos filosó​fico e científico e quer com ela travar um diálogo aberto às críticas mútuas. Nesta última me situo, encontrando não poucos obstáculos. Não vou referir-me aqui às questões internas ao campo católico, mas sim às dificuldades de interlocução com os pesquisadores do campo acadêmico.
Persiste em nosso país, uma mentalidade de corte positivista, desfavorável a qualquer estudo da religião, mesmo num enfoque não​religioso. Para essa mentalidade, até há pouco tempo embutida tam bém no marxismo corrente, lugar da religião é no âmbito privado e nas igrejas, nunca num centro de pesquisa ou numa instituição uni​versitária que se preze. Só em tempos recentes, esta mentalidade co​meçou a perder terreno nos meios acadêmicos, devido à contribuição de pesquisas que, abordando a religião, desvelaram dimensões im​portantes das realidades humanas. Por outro lado, a produção cientí​fica, oriunda de organismos ligados a instituições religiosas (inclusi​ve a Teologia da Libertação), extrapolou o âmbito eclesial e chegou ao conhecimento de um público capaz de apreciá-la, mesmo não par​tilhando a fé crista. Talvez seja a CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina) o melhor exemplo desse fato, explorando competentemente uma temática quase ignorada pelos historiadores do campo acadêmico.
Neste contexto desfavorável pelos dois lados, vem se consti​tuindo a área das Ciências da Religião, área esta que seria o espaço mais adequado ao diálogo entre pesquisadores crentes e não-crentes. No modelo de Thomas Kuhn, essa área seria normalmente ocupada por uma comunidade científica, reunindo pessoas que, tendo produ​zido alguma pesquisa ou estudo teórico, submetem seus resultados à apreciação das demais, por meio de eventos acadêmicos como con​gressos, encontros, bancas examinadoras, debates ou artigos e rese​nhas em revistas especializadas. Ocorre, porém, que em nossa área, formaram-se duas comunidades científicas com pouco contato entre si. Uma oriunda dos programas de pós-graduação em Ciências Soci ais e que se expressa através de associações acadêmicas como o GT "Religião e Sociedade" da ANPOCS e de revistas como Religião e Sociedade, Revista Brasileira de Ciências Sociais ou Novos Estudos do CEBRAP, e aquela que goza de uma certa oficialidade por sua presença junto às agencias públicas de financiamento. A outra tem por eixo as ONGs ligadas à Igreja Católica, e visibiliza-se principal​mente na SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião) e em revistas como a REB, Perspectivas Teológicas, Cadernos do CEAS, congregando preferencialmente pesquisadores das igrejas cris​tãs. Há poucos pontos institucionais de contato entre essas duas co​munidades, embora muitas pessoas estejam ligadas a ambas. O ISER tem procurado fazer a ponte entre elas, mas só quem dele participa sabe em quantas tensões isso implica.
O diálogo entre os membros dessas duas comunidades é raro. Em geral, pesquisadores ligados à comunidade "religiosa" são trata​dos como bons informantes, mas não como interlocutores da comu nidade "oficial". Basta pensar quão raro é ver a REB citada como revista científica, embora artigos de Ciências Sociais ali publicados nada fiquem a dever em qualidade aos que se veiculam em periódi​cos acadêmicos. Por outro lado, as igrejas pouco fazem uso do saber produzido nos programas de pós-graduação, como se o caráter aca​dêmico de um estudo o desqualificasse como fonte de inspiração para a prática. É claro que, reportando-se a espaços distintos, ambas as comunidades devem ter sua identidade e seus limites respeitados, mas certamente poderiam existir mais e melhores pontes entre elas.
Na construção dessas pontes de diálogo, muitos passos ainda devem ser dados. De um lado, é fundamental o fortalecimento da comunidade de Teologia e Ciências da Religião, ainda bastante difusa no seu conjunto. A SOTER foi, sem dúvida, o primeiro passo de importância nesse processo, enquanto a ANPTER ensaia seus pri​meiros passos no sentido de ganhar o reconhecimento público dessa comunidade, representando os programas de pós-graduação da área junto às agencias governamentais de fomento à pesquisa e ensino
pós-graduado. A consolidação dessas associações como espaço au​tônomo e não-eclesial de validação da produção científica já consti​tui um fato novo, capaz de engendrar uma proveitosa relação com as associações congêneres.
Da parte da comunidade acadêmica, um sério obstáculo ao diá​logo parece-me residir no domínio do discurso nativo. Quando se estuda uma religião, o primeiro cuidado é o de entendê-la em sua especificidade e captar sua auto-compreensão. Contudo, no caso de pesquisas sobre o catolicismo, freqüentemente ocorrem erros de in​terpretação quando o pesquisador aplica o código que aprendeu no catecismo para entender, por exemplo, a Teologia da Libertação. O mau uso dos códigos religiosos gera, por vezes, incompreensões que dificultam o diálogo, podendo até mesmo indispor pessoas cujas pes​quisas só teriam a ganhar com sua cooperação.
E assim, nesta área de estudos tão vasta e que reclama o melhor aproveitamento dos recursos disponíveis para a pesquisa, encontra​mos ainda poucos espaços de diálogo e cooperação entre as duas comunidades, a meu ver, mais por causa de antigos preconceitos do que por obstáculos reais ao seu entendimento. Por conseguinte, quem não se contenta em produzir um saber científico útil à sua igreja, mas busca também sua validação pela comunidade "oficial", por vezes acaba falando sozinho. Por outro lado,o pesquisador da área acadê​mica dificilmente consegue dar à igreja que estuda um efetivo retor​no do seu saber. E é com uma reflexão sobre os resultados práticos de nossas pesquisas que desejo concluir este depoimento.
CONCLUSÃO
Fazer ciência é vocação; pesquisa é paixão, e no caso da reli​gião, principalmente, tem muito a ver com ajuste de contas. Mas é também disciplina e método, e este só pode ser devidamente apreci ado e validado por colegas pesquisadores. Não nos basta encontrar uma resposta satisfatória para nossa pergunta, nem formular uma teorla que tome o real inteligível para nós, se os colegas não tomam conhecimento desses resultados. Vaidade? Claro que sim, mas tam​bém porque faz parte do nosso ofício compartilhar o saber. O saber científico, pelo menos no que concerne às ciências do social, não é para levar vantagem, mesmo porque não dá patentes nem royalties. O meio de transação em nosso campo é antes o prestígio do que o sucesso econômico (se bem que as verbas públicas e bolsas, ainda que pequenas, são sempre bem-vindas). Por isso, todos buscamos a legitimação acadêmica de nossa produção científica como um bem valioso.
Mas para muitos de nós a busca do prestígio acadêmico está longe de ser o principal motivador do trabalho de pesquisa. Reco​nhecendo a importância da religião na vida social, pesquisamos esse campo não somente para satisfazermos uma paixão intelectual, mas porque esta é uma forma importante de contribuir na construção de um mundo realmente humano. Penso de modo especial na questão da Paz. As religiões têm promovido guerras, mas constituem-se tam​bém em instrumentos de paz e de harmonia com a natureza. Estou convencido de que a paz entre as religiões é um dos degraus indis​pensáveis para a Humanidade alcançar um dia a paz social e a har​monia ecológica. Mais que isso, alimento a antiga utopia que preten​de fazer das igrejas cristãs instituições voltadas para o serviço da Paz e da reconciliação da Humanidade consigo mesma e com a natureza. Essa motivação impulsiona crentes e não-crentes, e é certamente um fator de nosso interesse pelo diálogo que favoreça a melhoria de nos​sa produção científica. Nesse sentido, a consolidação da comunida​de científica no campo das Ciências Sociais e das Ciências da Reli​gião só pode ser saudada com entusiasmo, e é isso que me fez vir, com muito gosto, participar deste seminário de estudos.
ESTUDOS DA RELIGIÃO NO BRASIL: BUSCANDO O
EQUILÍBRIO ENTRE ADAPTAÇÃO E CRIATIVIDADE
Luiz Eduardo W. Wanderley�
Refletir sobre metodologia envolve, necessariamente, tratar de questões teóricas e conceituais interligadas com os seus conteúdos e formas. No campo religioso, isto implica no estudo de aspectos refe rentes a sua inserção na vida social, ao relacionamento com as de​mais esferas societárias, a sua própria definição, como ela é repre​sentada pela ciência, etc. Parece ser importante, hoje em dia, estudar as profundas mudanças que vêm acontecendo no modo de organizar a vida religiosa e de ser religioso e construir novos modelos teóricos, estudando o que está se passando na vida social.
Uma primeira afirmação é a de que toda a religião está sempre em mudança, mesmo reconhecendo, nas suas mais variadas manifes​tações, o peso da tradição e da memória. Ultimamente, há autores sustentando que talvez o que haja de mais estável na religião seja a experiência religiosa. O nosso Seminário reforçou esta proposição.
1. CIÊNCIA, SENSO COMUM E RELIGIÃO
Na comunicação apresentada pelo professor Pedro Ribeiro, en​contramos a afirmação de que fazemos estudo científico da religião e comentários sobre o saber religioso, que é uma forma de saber do senso comum fundado na experiência e no saber teológico, sistema​tizado, além da indicação do problema da militância e do academicismo. Estas colocações suscitam uma série ampla de ques​tões, dentre as quais situo algumas para o nosso diálogo.
Talvez seja válido partir das idéias propostas por Boaventura, nas quais ele analisa elementos da Epistemologia e da Hermenêuiica, para conceber um possível reencontro entre a ciência e o senso co mum. Com base numa perspectiva histórica, o autor mostra a ruptura epistemológica que a ciência moderna fez com relação ao senso co​mum, defendendo a tese de que deve haver uma outra ruptura com a ruptura epistemológica feita, não como regressão a um estágio ante​rior, mas para proceder "um trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência... Com essa dupla transformação pretende-se um senso comum esclarecido e urna ciência prudente... A dupla rup​tura epistemológica tem por objeto criar uma forma de conhecimen​to, ou melhor, uma configuração de conhecimentos que, sendo práti​ca, não deixe de ser esclarecida e, sendo sábia, não deixe de estar democraticamente distribuída... Desconstrói a ciência, inserindo-a numa totalidade que a transcende"�, e sugere como medidas práti​cas: que os discursos se falem e se tornem comensuráveis, que se supere a dicotomia contemplação/ação, e que se encontre um novo equilíbrio entre adaptação e criatividade, numa praxis globalmente entendida.
Se interpreto bem, o professor Pedro Ribeiro destaca que "nos​sos objetos falam, e falam sobre si mesmos (de modo erudito: fazem teoria da religião). Falar a língua nativa, mas não se deixar enredar nela ". E mais à frente, oferece sugestões para o diálogo entre as duas comunidades científicas, que apresentam poucos pontos de contato, para frisar que "da parte da comunidade acadêmica me parece fun​damental o aprofundamento do discurso `nativo', de modo a interpretá-lo corretamente sem traduzi-lo a partir de um código de pré-concepções (freqüentemente infantis, no caso do catolicismo). Sem esse manejo de linguagem, não há diálogo possível". Neste sen​tido, constata-se que apesar do empenho de pessoas e grupos ligados a igrejas para romper a dicotomia entre contemplação e ação, por meio de teorizações e práticas concretas e do esforço continuado de pesquisadores do campo religioso para um diálogo profícuo entre o discurso teológico e os discursos das Ciências Humanas, tornando-os comensuráveis, o estranhamento ainda é grande. Talvez a medida prática mais em evidência tem sido a do equilíbrio entre adaptação e criatividade.
Um avanço expressivo pode ser encontrado na trajetória de mui​tos estudiosos, com destaque para os filiados à corrente da chamada "Teologia da Libertação", em que se concretizou a proposição de uma transformação do conhecimento teológico e do conhecimento do saber popular mediado pelo conhecimento das Ciências Sociais. Houve tentativas fecundas de uma revalorização da cultura popular, com ênfase na religião popular, mesmo que, em certos casos, tenha havido uma sobrevalorização de aspectos dessa cultura e religião em detrimento do saber científico e da religião oficial. De certo modo, essa abordagem fez eco ao pensamento de Boaventura, na perspecti​va de uma caracterização alternativa do senso comum: o senso co​mum contém traços de acomodação, mas também de resistência, que pode se desenvolver em instrumento de luta; o viés conservador pervaga o senso comum e está presente em muitas teorias científicas; o senso comum não é fixista e seu caráter ilusório, superficial ou preconceituoso depende e varia segundo o conjunto das relações so​ciais; os preconceitos também fazem parte da ciência.
Neste ponto, seria recomendável a continuidade de estudos sis​temáticos sobre cultura popular e a dimensão religiosa dentro dela; sobre as relações entre a cultura erudita e a cultura popular; sobre a influência da mídia (principalmente a TV, na formação do imaginá rio social e religioso), com os pesquisadores acadêmicos despindo-se das presunções e preconceitos e procurando um diálogo comensurável de discursos, bem como o encontro respeitoso das diferenças com as pessoas dos meios populares, valorizando o seu conhecimento deri​vado do senso comum.
2. COMUNIDADES DE PESQUISA DA RELIGIÃO
Em outra parte do texto, Pedro Ribeiro destaca a existência de umamentalidade de corte positivista desfavorável a qualquer estudo da religião, e que, se poderia acrescentar, não raro contém ademais um cunho anti-clerical que tem raízes em um certo marxismo. Eu diria, também no próprio liberalismo. Há uma dose de verdade exis​tente nessa mentalidade, calcada num substrato histórico das posi​ções assumidas, predominantemente, pela Igreja Católica, mas que se espelha, do mesmo modo, nas igrejas protestantes e nas pentecostais atuais, contra a modernidade ou contra certas características dela e em tentativas, sempre presentes, de novas cristandades, de restaurar o domínio global da religião, da reconquista institucional. Se é certo que essa mentalidade "começa a perder terreno nos meios acadêmi​cos", como diz o expositor, ela permanece vigorando pelo menos em duas situações.
Uma se refere à não prioridade que as temáticas religiosas rece​bem nos programas das agências de financiamento de pesquisas. Neste caso, faz-se necessária uma presença nesses círculos, com esclareci mentos sobre a importância do elemento religioso na sociedade em geral e projetos efetivamente bem elaborados. Sem esquecer o papel que podem assumir diversas instituições e grupos neste sentido, cabe aos programas de pós-graduação do país, por sua própria natureza, um lugar destacado.
Outra situação refere-se ao que alguns pesquisadores e assesso​res de projetos definem como "análises militantes" de caráter ideo​lógico e político (por exemplo, publicações do CESEP- (Centro
QUESTÕES METODOLÓGICAS
29 Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação Pastoral), do CEHILA (Comisión de Estudos de História de Ia Iglesia en América Latina) e mesmo algumas do ISER (Instituto de Estudos da Religião) e CER- Centro de Estudos da Religião "Duglas Teixeira Monteiro"). Se há veracidade nessa assertiva, já que determinados trabalhos apre​sentam um conteúdo político exarcebado, seria conveniente explicitar quais são os critérios de avaliação considerados científicos para jul​gar os trabalhos de temática religiosa (diferentes das outras temáticas?), numa época em que o mito da neutralidade científica parece cair por terra. E ainda, aclarar se as investigações e estudos realizados em universidades e institutos não vinculados a igrejas não seriam do mesmo modo politizados e ideologizados.
3. MODERNIDADE, SECULARIZAÇÃO E LAICIDADE
A Modernidade ocidental caracterizou-se, basicamente, pelo pro​cesso de racionalização crescente, no qual os critérios do pensamen​to científico passam a dominar todas as esferas da sociedade. Há um enorme debate sobre o papel que essas dimensões trouxeram para a humanidade e a constatação de que foi se acentuando o predomínio da racionalidade instrumental, antecipado por certos estudiosos e que acabou se concretizando, bem como da persistência de zonas de irracionalidade. Outro elemento central da modernidade foi a auto​nomia do sujeito, entendida como liberdade de pensar o mundo, de regê-lo e de traçar os rumos da sociedade, o que entra em contradi​ção com a verdade revelada.
Na configuração da modernidade, para o tema em foco, um as​pecto essencial foi o de como se implantou e foi pensado o processo de secularização. Com a irrupção, nas últimas décadas, do fenômeno religioso em todo o mundo, aparentemente paradoxal, vale registrar aqui, brevemente, algumas implicações nas metodologias de pesquisa, sem poder, é claro, me aprofundar no âmbito deste comentário.
3.1 Secularização
De maneira mais geral, o termo indica um deslocamento de bens e pessoas que se encontravam sob a dependência da instituição ecle​siástica e que escapam, daí para a frente, à sua jurisdição e controle. Por extensão, a palavra designa todos os aspectos relacionados à per​da da influência da religião na sociedade e, de modo exponencial, à substituição progressiva do pensamento mítico pelo pensamento ci​entífico e positivo, uma substituição correlativa do processo de de​senvolvimento histórico e cultural do ocidente. As instituições reli​giosas são levadas a reconhecer, até certo ponto, a autonomia do mundo profano e, em particular, da ciência.
Essa conceituação não deve ser confundida com o secularismo, que indica uma verdadeira ideologia com finalidade explícita de li​bertar a sociedade de qualquer influência religiosa, podendo, em al​guns casos, estar ligada a modalidades de ateísmo estatal.
O primeiro ponto que quero assinalar diz respeito à gestação e continuidade do que se poderia denominar uma secularização truncada - no caso latino-americano, tendo em vista as circunstâncias históricas conhecidas do modo como se deu a integração do religioso nas estrutu​ras e processos sociais desde a colonização -, aquilo que alguns cha​mam de secularização desigual e combinada: esferas não seculariza​das, esferas secularizadas e esferas mistas (religião e o secular interli​gados), ou seja, determinados segmentos das elites e das classes mé​dias buscando a secularização da sociedade e mantendo uma posição ambígua com as instituições religiosas, e as maiorias experimentando diversas formas de pertencimento religioso. Mesmo na Europa, são dignos de lembrança o papel atualmente desempenhado por movimen​tos religiosos, os conflitos religiosos no interior de diversas nações e a estratégia do catolicismo de recuperar um passado perdido, numa espécie de "alma da Europa", para a Comunidade Européia em cons​trução.
A inferência que cabe aqui é a de que os estudos sociais sobre a realidade da América Latina, que esqueçam ou minimizem a di​rnensão religiosa, ficarão viesados. Outra é a da pouca atenção dada ao estudo da religião civil, embora possua relevância teórica e práti​ca. Basta atentar para o fato das últimas eleições, recorrente nos plei​tos anteriores, de perguntas sobre as crenças dos candidatos e das táticas utilizadas pelos candidatos de procurarem as igrejas para apoios e conquista de votos, unindo, por um lado e com raríssimas exce​ções, o mero oportunismo mais o reconhecimento da força da reli​gião na esfera social, e, por outro lado, os interesses dos representan​tes eclesiásticos dessas igrejas para obterem favores e privilégios. As dificuldades metodológicas se inscrevem em como coletar dados consistentes que possam distingüir o que é efetivamente um dado referente à religião civil ou à religiosidade em geral e à religiosidade de determinadas religiões. Em termos amplos, que técnicas utilizar para explicitar a presença ou não de elementos secularizantes.
Laicidade
Ainda que apareça, às vezes, como sinônimo de secularização, quero destacar o processo de laicização como sendo o do direito à liberdade de consciência. A hierarquia católica aceita a laicidade es tatal sob condições, e presumo que as hierarquias das outras religi​ões assumem a mesma orientação. Ela valoriza positivamente a liber​dade religiosa (de culto, etc.), mas negativamente a liberdade de não crer e de se comportar em conseqüência, como se afere pela recusa das autoridades de legitimarem certas implicações essenciais na le​gislação relativa aos costumes (casamento civil e religioso, divórcio, aborto etc.). Aceita-se a liberdade das consciências, mas resiste-se à liberdade de consciência (independência soberana da consciência). E as autoridades eclesiásticas hesitam, e mesmo reprimem, quando se trata dos direitos e liberdades no seio das igrejas institucionais. Historicamente, a Igreja Católica recusa o movimento de laicização (não confundir com laicismo), por querer encantonar a religião na esfera privada, na intimidade das consciências, fora do social.
A importância deste tema se expressa diretamente no velho conflito, sempre renovado, do ensino religioso nas escolas, dos re​cursos públicos para as escolas privadas, a exigir constantes adapta ções de conceito e método nas relações com os poderes públicos e a opinião pública e, conseqüentemente, na investigação sobre estes assuntos.
4. CRISE E MUDANÇA
Em períodos de crise acirrada, como os de algumas conjunturas na América Latina, a religião é interpretadacomo uma resposta à crise, no sentido de "escape, refúgio, busca de compaixão". Levine afirma que muitos pensam que o surgimento dos grupos evangélicos na América Central se deve ao fato de que o mundo vai acabar ama​nhã. Ele critica o significado de crise como sendo apenas busca de refúgio e as formas religiosas como escape. "( ...) crise não é só mo​tivo de escape, mas também oportunidade para mudar e motivar-se. Qualquer estudo empírico que se leve a cabo indicará que muita gente busca melhorar sempre; às vezes, não há possibilidades, po​rém é o que se busca".� Na seqüência, este autor vai defender que os modelos sociológicos que apontam a secularização e a privatização da religião pouco ajudam a entender o que sucede. "Em resumo, a meu juizo, um enfoque que parta de pressupostos derivados do con​ceito de secularização é pouco útil. Ademais, agora se pode dizer com confiança que é um conceito superado. Quase não se ouve mui​to falar de secularização fora de alguns textos teóricos. O problema básico do conceito é que confunde uma reestruturação - a qual é normal - com. uma mudança evolutiva. Além disso, em termos metodológicos, esta perspectiva ignora o potencial que tem a reli​gião para dar energia à mudança (o que tem muito a ver com sua capacidade de síntese no pensamento e na ação) ".
Dentre outros motivos pelos quais Levine sugere que a noção de secularização não tem grande valor, um se fixa na idéia de que as instituições religiosas (todas: católicas, protestantes, judias, budis tas, etc.) têm uma capacidade impressionante de unificar níveis de experiência, já que elas possibilitam ocasiões e lugares de reunião, repetidamente, nos quais se unem as experiências pessoal e coletiva. "Essa é a chave: porque, segundo entendo a teoria da seculariza​ção, a religião tenderia a ser cada vez mais privada, personalizada, como uma reação ao aborrecimento das gentes, ao sentido de alie​nação. Porém. não é o que se observa. O que se pode perceber- é uma série de encontros onde há uma for-te mescla do pessoal com o cole​tivo, tanto nos atos, quanto nas palavras, orações, procissões, etc. Todos são, ao mesmo tempo, processos pessoais e coletivos " .
Idéias, certamente polêmicas. que lanço à discussão, sem poder analisá-las em profundidade. Lendo ainda nesta semana, um texto sobre o impacto das "novas religiões", chamou-me a atenção um tre cho que liga religião, política, modernidade nas igrejas pentecostais e que pode contribuir para a nossa reflexão:
"Herdeiras de urra eclesiologia protestante, as igrejas ditas pentecostais combinaram, no plano sócio-político, essa recusa dos valores da modernidade com a herança do individualismo protestante num contexto de autoritarismo estrutural próprio da sociedade tradicional brasileira. Preocupados em encontrar respostas imediatas para seus males cotidianos, como falta de emprego, ausência de serviços médicos, aposentadoria con​dizente, educação básica, etc., entraram-se ao universo fan-ástico-maravilhoso, encontrado na Bíblia e condizente com o mundo simbólico da matriz cultural brasileira. Ali a preocu​pação pelo social e pelo político não tem lugar ou se tem é na base do clientelismo peculiar da estrutura sócio-política na​cional”.�
5. SOCIOLOGIA DE TEMÁTICAS RELIGIOSAS
Para terminar, trago a contribuição de Acquaviva, dissertando sobre as novas temáticas trazidas pelas profundas mudanças sociais e os efeitos mútuos com as mudanças religiosas, centrada na experi ência religiosa. Um texto de um livro recente explicita bem o trata​mento do tema:
"À medida em que as superestruturas das diversas religiões se esfumam, uma espécie de religião natural emerge, focali​zada sobre a experiência religiosa imediata. Uma tal experi​ência se verifica ser claramente influenciada, entre outros, fa​tores, pelo desejo de imortalidade, reflete o medo (biologica​mente fundado) da morte, do desejo de arear- e ser amado, deconhecer o mundo e suas origens, numa palavra, de explicar o universo (Acquaviva, Stella, 1989; Acquaviva, 1990, 1991). Como se viu, essas necessidades não são satisfèitas, elas são sublimadas e dão nascimento, conjugadas a outros fatores, á experiência religiosa. Sumariamente, se de um lado a experi​ência religiosa é o produto das estratégias que o indivíduo recorre face às necessidades insatisfèitas e aos limites de sua própria existência, de outro lado, ela é certamente influencia​da pelas instituições religiosas e pelos cosmos sagrado à qual ela fez referência�".
O autor quer provar que as mudanças sociais em curso estão afetando profundamente também a experiência religiosa. Citando diversas pesquisas (norte-americana, inglesa, italiana), em resposta
à pergunta se a pessoa tem sentido, na sua profundeza, a presença de uma força acima dela, de um poder que a transcende, chame-se Deus ou não, o número de respostas positivas vai de 33% (ou menos) a 88% (ou mais). Entre as pessoas que responderam positivamente, de 2 a 5% declararam que se trata de uma experiência mística.
Pela expressividade do quadro, transcrevo a pergunta: "Hoit​ve ou há hoje circunstancias particulares em que é mais provável que a experiência intervenha? ":
	Só ou em silêncio
	35
	Momentos de angústia ou de decisão
	34
	Proximidade da natureza
	26
	Com amigos próximos ou verdadeiros
	21
	Momentos de grande alegria ou de paz
	15
	Durante a oração ou de atos de devoção
	13
	Na escuridão ou com luz fraca
	12
	No momento de um serviço eclesiástico
	12
	Diante de uma obra de arte, numa velha igreja
	10
	Nenhuma circunstância particular
	08
Fonte: Hay, 1979, p. 164-182
Concluindo o capítulo, Acquaviva faz considerações para su​gerir um modo novo para as temáticas da sociologia das religiões: a) o estudo da sociologia da religião requer uma análise psicos​Social;
b) baseado em certos dados de pesquisas citadas, se a presen​ça da experiência religiosa é mais importante para os praticantes que para os não-praticantes, para os não-praticantes que para os agnósticos e para os agnósticos que para os ateus, sendo dado que o número de praticantes diminui e que aumenta o dos agnósticos, a diminuição da experiência religiosa, quer dizer da que alguns chamam a religião invisível, é evidente; 
c) deve-se sublinhar a importância das relações entre expen ência religiosa, organizações religiosas, instituições, cosmos sagra- do e nova civilização, com base nestas observações acima.
ESTUDOS DE RELIGIÃO: ACADEMIA E INSTITUIÇÕES
RELIGIOSAS UM DIÁLOGO EM CONSTRUÇÃO
Pierre Sanchis�
Com a comunicação de Pedro Ribeiro de Oliveira, estamos di​ante de um texto denso e leve, experiencial e objetivo, que dá teste​munho, sem deixar de colocar sérios problemas teórico metodológicos. Problemas que ultrapassam o contexto pessoal e, di​ria, institucional, de onde brotaram. Os exemplos citados - bem como boa parte daqueles que serei chamado a citar em comentário - dizem empiricamente respeito ao universo religioso católico. Mas não es​capará ao leitor o seu valor mais universal, seja porque exemplos homólogos poderiam surgir de outras experiências religiosas institucionais, seja porque o nível de enraizamento onde se situam lhes confere um alcance significativamente universal no interior do campo religioso.
Não comentarei o texto por inteiro. Escolhi alguns pontos e deixei, em relação a eles, surgir poucas idéias que poderão, quem sabe, enriquecer o debate posterior.
I - UMA DUPLA IDENTIDADE DO PESQUISADOR?
Tal me parece, com efeito, o problema fundamental que permeia o texto. "Dualidade" tem várias facetas e não só aquela que Pedro Ribeiro delineia de início: a da ambivalência entre o pesquisadorcientífico e o militante. A "duplicidade" - que, aliás, parece-me jus​tificar o uso da categoria de "ambigüidade" e não só d: "ambivalência", pois não deixa de colocar sérios problema epistemológicos não resolvidos - impera muito além, como ele mes​mo implicitamente o evidencia, do caso particular de sua experiên​cia e de experiênciasafins. Tal duplicidade, com efeito, reside, antes de tudo, na própria natureza deste campo específico, preso entre o valor - com o agravante deste valor, enquanto religioso, ser ali reves​tido de uma conotação de "absoluto" - e a exigência crítica dita "ci​entífica". Mas ela é também particularmente visível no estado atual deste campo, confundido, no senso comum e ainda em muitas análi​ses, com um espaço marcadamente institucional, quando o momento é de exacerbação - social e epistemológica - do individualismo. Po​demos encontrá-la também, na articulação interna deste mesmo campo que, por definição, abrange, ao lado de "sujeitos da experiência reli​giosa" (os fiéis), que seriam "objetos naturais" do olhar "científico", especialistas do pensamento sistematizado e de um pensamento (a Teologia), que por sua vez se quer científico, sendo cada vez mais reconhecido como tal numa parte do establishment acadêmico. Isto acaba fazendo dos cultores deste pensamento ao mesmo tempo obje​tos e sujeitos da vertente de ciência que eles próprios cultivam. En​fim, nossa reunião aponta para uma última faceta da mesma dualidade (duplicidade?), como que cristalizada na sua composição institucional. já que, como começa a ser comum em várias instituições acadêmi​cas, associa, "ambivalentemente", ciência "profana" e ciência "sa-grada", teologia e Ciências das Religiões, entre elas, as Ciência Sociais. Por todos estes motivos, é compreensível que este campo seja julgado "ambíguo", quando olhado através das janelas de boa parte dos seus vizinhos.
A situação é esta mesmo. O professor Pedro, em primeiro plano e brilhantemente, e cada um de nós, em alguma medida e de alguma maneira, sobrevivemos epistemologicamente nela. No fundo, tal como ela é, conseguimos tirar dela bom proveito heurístico e. satisfações cognitivas... Por isso, gostaria de matizar o quadro, suavizando-o, ao mesmo tempo em que marco, com mais força, alguns de seus traços problemáticos.
Matizar, seria dizer, por exemplo, que, na medida em que o ob​jeto de estudo dos cientistas sociais - e não só do antropólogo, apesar do problema ser para ele mais candente - está sendo cada vez mais (e também) constituído pelos grupos que, na sua própria sociedade, es​tão em certa afinidade com eles - afinidade de situação social, de orientação ideológica, de companheirismo militante, de problemáti​ca civilizacional, etc. Nossos contatos são cada vez mais "compar​tilhantes" da experiência de grupos amigos, com quem criamos laços e em quem suscitamos expectativas. Cada vez mais falamos deles como de nossos "interlocutores". Eles nos consideram, rapidamente, cúmplices, esperando de nós -já que depois da pesquisa não saímos tão facilmente de seu horizonte como antigamente - o tal "retorno", tão falado e tradicionalmente tão pouco praticado. Tudo isto ameaça, por razões legítimas, "constranger" e "preformar", em parte, o pro​duto de nossas pesquisas. Neste sentido, aquela ambigüidade (am​bivalência) detectada na situação do cientista social "crente" ou "mili​tante", tem cada vez mais um análogo na presença no campo - pelo menos, no campo brasileiro, tão denso em redes e, por isso, tão es​treito, apesar de sua vastidão - de qualquer cientista social, pelo menos daqueles que trabalham com "movimentos" e "militâncias".
Um segundo matiz, também útil para fazer convergir os proble​mas do cientista "ambivalentemente religioso" com os de qualquer antropólogo, é a emergência, neste momento de revisão de fronteiras
epistemológicas, de uma dupla inquietação. Por um lado, como sus​tentar, sem ambigüidade e honestamente, a relação de um cientista, Por definição relativizador e "des-crente", com o regime de verdade dominado pelo absoluto da convicção que está sendo vivido por aque​les com quem conversa, convive, troca figurinhas, num discurso que - no campo empírico e no interior da comunicação que lhe é própria, constrói-se necessariamente em termos de: "É" (do ser, e não de "re​presentações"). Por outro lado, perguntam-se outros observadores. que fizemos nós, modernos cientistas sociais, da dimensão iniciática que tendeu a acompanhar a "experiência" do antropólogo em mo​mentos fecundos da trajetória de nossa "ciência"? Tradicionalmente. a "participação" integra o nosso método. Em que consistiria, hoje, a "participação" nas experiências religiosas contemporâneas, pregnantes de emoção, de efervescência induzida, de experimenta​ção polivalente? Esta pergunta também é vivida por qualquer cien​tista social estudioso da religião e contribui para liberar o cientista crente da exclusividade de sua impressão de ambivalência.
Terceira relativização, esta numa perspectiva diacrônica e que. aliás, está presente no texto que estamos comentando. Sem dúvida, subsiste o caráter "ambíguo" (desta vez é citação) do estatuto das ciências das religiões, por um lado, "no âmbito do campo católico​e, simetricamente e não sem relação com este primeiro aspecto, em meio à persistência em alguns cantos da academia, de "uma mentali​dade de corte positivista". Mas, de um lado e de outro, esta situação não estará em rápida mudança? Na academia, provavelmente sob a influência de nossos "objetos-sujeitos" mais próximos, os alunos - alguns alunos; e na igreja, neste período de "estação da seca"? Tal​vez tenhamos aqui um exemplo de como qualquer movimento de "restauração" e 'tradicionalismo" tem necessidade de programar, nas suas muralhas, brechas por onde anáguas da - bem ou mal chamada - modernidade possam penetrar.
Relativizando esta relativização, aliás, seria preciso dizer como outras instituições religiosas operam no caminho inverso, mostrando-se especialmente resistentes a qualquer observação dis​tanciada e suspeitando-a de intromissão espiã.
Estas reflexões apontam para matizes de positividade. Mas que​ria também piorar o quadro apresentado pelo professor Pedro. Esco​lherei um ponto só. Tratamos hoje de pesquisa, de problemas e expe riências metodológicas. Ousaria trazer uni problema, baseado, é ver​
dade, em pouca experiência - mas não só minha - e a propósito do qual gostaria de ouvir os colegas empenhados nos grupos de novo tipo, esses grupos de que fala a última parte do texto e que reúnem, institucional e programaticamente, teólogos e cientistas sociais.
A relação do cientista social com as "autoridades eclesiásticas" é dita aqui difícil ou ambígua. É precisamente neste ponto que, em algumas instituições pelo menos, acredito se tenha operado um pro gresso. Mas nossos interlocutores mais próximos são aqueles "padres" e "pastores" por quem começa o texto. Neste particular, a minha im​pressão é a de que o nosso diálogo flui, atualmente, bastante livre com militantes, pastores (não no sentido confessional desta vez) e autoridades quando dominadas por preocupações pastorais. Estas pessoas sabem, em geral, valorizar as nossas análises como instrumen​tal eventualmente útil, relativizando-as também em função de seu próprio engajamento. Nosso problema ali poderia até ser, ao contrário, aquele da cumplicidade que eu evocava mais acima. Mas temo que não tenhamos encontrado ainda - nem eles nem nós - o regime ideal para o diálogo com os teólogos. Identidades muito próximas que tal​vez não souberam ainda organizar o campo de seu intercâmbio, pre​cisamente porque o consideram, com demasiada facilidade, como uma simples tertúlia a partir do mesmo lugar e de um ponto de vista semelhante. Ora, "cientistas" uns e outros, estamos em observatórios diferentes, e nossas lentes não têm motivos para nos entregar a mesma imagem. O fato parece-me muitas vezes encoberto. Informadores mú​stuos, sim. Mas depois vem a faixa do silêncio. Parece difícil entrar na fase do verdadeiro diálogo, que marque diferenças, para tomá-las criativas. Quem sabe, aliás, não teria ainda chegado a hora para isso?
Com efeito, de um lado e cada vez mais imprescindível integrar nas nossas análises, a auto-consciência do grupo estudado: a repre​sentação que o grupo faz dele mesmo e como pretende vivenciá-la. Mas qual será nossa fontepara auferir esta representação e o relato desta experiência? O pensamento dos teólogos? Aí o processo torna-se complicado.
Uma representação religiosa ("visão" e "vivência" do mundo) é elaborada de modo prático por uma "comunidade", no sentida durkheimiano do termo. Mas quem expressa e verbaliza sistematica mente esta vivência? O teólogo? Ele próprio tem tendência a pensá-lo. Para ele, o normal seria que a sua elaboração se tornasse a nossa referência, sendo ele, neste sentido, o nosso informante privilegiado. E pode ser-lhe difícil aceitar que tenhamos de "situá-lo" dentro de um conjunto, um universo de representações. Isto é, relativizá-lo.
Para o sociólogo, tal igreja ou instituição religiosa, ou ainda tal tradição e família "espirituais" não são necessariamente, nem fenomenologicamente nem na sua auto-representação histórica (pois uma tradição também se reinventa), o que determinada teologia diz que elas são. Ainda temos que distinguir aqui dois níveis: o de um possível fluxo coletivo do pensamento teológico e o do pensamento de tal ou tal teólogo em particular. É sobretudo neste caso, que deve​mos lembrar a afirmação de Durkheim, a propósito da Religião da Humanidade de Augusto Comte: uma religião nasce (e existe, faz-se e refaz-se, transforma-se) a partir da vida e não de uma elaboração especulativa individual. Ora, a tendência, perfeitamente natural, do teólogo será a de ler a vida de sua comunidade através dos quadros de sua própria elaboração.
Assim, ele pode ser problema para nós, bem como podemos sê-lo para ele, se conceder, com excessiva facilidade, um definitivo labéu "científico" às teorias que circulam no nosso meio. Afinal, ele
é nosso "colega" no plano da reflexão científica, muitas vezes nosso amigo ou companheiro de ação, mesmo se não se tratar propriamente de "militância". Por isso, a sua elaboração intelectual pode informar (nos dois sentidos da palavra) o nosso olhar e dificultar o nosso acesso à real "visão" e "vivência" do mundo de determinada comunidade.
Os exemplos seriam vários: "Estava certo de que a Igreja no Brasil era `isto'... Agora descubro que me encanei"... Quer se trate de uma "religião", de uma "igreja", de grupos mais miúdos, de movi mentos, de comunidades, de um lado e de outro podemos ser, mutu​
amente e ao mesmo tempo, cúmplices e obstáculos para aceder à "objetividade". Estas duas dimensões têm que ser levadas em conta, sem que por causa disso, se introduza um novo tipo de rivalidade ou de incompreensão.
Lembro agora de Alceu Amoroso Lima, que me dizia não acre​ditar, em certas circunstâncias pelo menos, no direto "diálogo", mas sim na troca de monólogos. A relação produtiva, hoje possível entre teólogos e cientistas sociais, envolta na amizade e na colaboração, não seria a de uma troca, informativa e reflexiva, de uma atenção mútua que não espera, por enquanto, muito de "leitura em comum" ou de "respostas" articuladas?
Desta vez, que nos digam os colegas ao mesmo tempo teólogos e cientistas sociais - vários estão aqui -, se este diálogo, na ausência de diálogo, não corresponderia precisamente à sua experiência inte​rior mais pessoal, já que os dois tipos de "ciência" os habitam?
II - PROBLEMAS DA CONCEITUAÇÃO SOCIOLÓGICA
Há muitos anos, quinze talvez, Pedro dizia-me sonhar com um grupo, no ISER, que estudasse estes problemas de conceitos e já fa​lava em definição da religião...
Em homenagem a ele e para debater com ele, tentei dizer alguma coisa sobre este tema. Dizer pouco não serve, dizer muito não vale. O texto está aí, para ele e para outros que porventura se interessarem.
Algumas achegas para conceitualiwr o problema da religião...
1 - "Religião"?
Existem fundamentalmente dois níveis possíveis para penetrar no estudo da religião:
- a achega através da "razão prática": para que serve... como se organiza... quais outros fatores sociais lhe são correlativos e/ou determinantes; sob que modalidades e em que medida. É o estudo dos "fatores não religiosos da religião", a religião como um produto social, um setor da vida social entre outros, carregado do peso das causalida-des oriundas dos outros setores: a economia, a política. Os "interesses" dos atores sociais situam-se, primordialmente, nesta perspectiva, em setores relativos à produção dos bens materiais ou à organização das relações sociais. E esses interesses repercutem num domínio derivado, dependente, que chamamos de "religião", toda uma tradição da "So​ciologia da Religião" e até da "sociologia religiosa", elaborada den​tro de determinadas instituições religiosas em que os próprios agentes religiosos tencionam saber como é que as coisas estão "realmente'' (isto é, em função de determinações "reais", além de qualquer véu ideológico) se passando... Uma perspectiva que, enquanto parcial, se impõe, e que perderia a sua validade só se se pretendesse exclusiva:
- a achega através da "razão simbólica". O interesse fundamentai do homem, aquele que embasa todos os outros e entra na composição de todos eles: o saber de sua trajetória (individual e coletiva - começan do pela coletiva grupal e ampliando-se até à universal). Na representa​ção que o faz viver, dando sentido à sua ação, quem é ele, o homem'' Em que tipo de Universo pensa estar? Qual a sua relação com esta totalidade e com os elementos desta totalidade? Para onde vão ele e seu suporte vivo e cósmico? Que significam para ele: ele próprio, os outros, o universo? Finalmente: o sensível, o "vital" - e o seu apagar: a morte -, além de sua realidade parcelada e prosaicamente quotidiana, sinalizam para uma plenitude imanente e/ou remetem ainda a outra dimensão? Estará esta plenitude e/ou esta dimensão cristalizada nas representações coletivas de um filão histórico, de uma "tradição"?
O conjunto destas perguntas delineia um campo onde eventual​mente se elabora a "religião": o campo do sentido, em que haverá: - "Religião", se se responder sim à última pergunta. Com as mil I modalidades possíveis da relação entre a vida concreta (individual e social) e esta operação de atribuição de sentido: modalidades que vão desde uma operação universalmente latente, difusa em todo o
corpo social e identificada com a totalidade das relações e das ações (é o caso, em geral, das sociedades tradicionais), até à delimitação de um "departamento" especial da sociedade, instituição especializada na atribuição de sentido aos comportamentos - ou a certa categoria de comportamentos (as "instituições religiosas" para a sociedade ,,moderna");
- "Problemática religiosa", se estas perguntas se tornarem candentes, mas ficarem sem resposta institucionalizada. Provavel​mente, poder-se-á falar então em "religiosidade", ou até em maior densidade "religiosa", na medida em que existir referência, apesar de longínqua, a um filão histórico;
- "Secularização das perspectivas", quando esta pergunta não chega a emergir das relações quotidianas, esgotando as suas potencialidades no varejo de realizações miúdas e racionalmente téc nicas. Caso que pode, enfim, articular-se com o surgimento de "reli​giões de substituição", que fazem de um dos campos relacionais "prá​ticos" (política, ciência e técnica, etc) o lugar de elaboração do sen​tido fundamental.
É este o quadro mais geral que na articulação de suas duas abordagens e de seus quatro níveis, o mais das vezes presentes concomitantemente - ainda que com dominâncias diferenciadas - parece-me ser a moldura do estudo - sociológico ou antropológico - da religião.
Uma aproximação estratégica
No campo empírico, uma redistribuição destas perspectivas Poderia se traduzir na abordagem de quatro universos. Cada um deles mais propenso a determinadas revelações, mas nenhum deles exclusi vo de um único nível (falo dos níveis acima): os domínios clássicos do mito, do rito, da organização institucional, enfim, da relação com o "resto", aquilo que Weber chama de as modalidades da "rejeição religiosa do mundo". 
Pelo estudo do Mito, por exemplo, é certo que penetramos direta​mente na "visãodo Mundo" e no "sentido" a ele atribuído, mas tam​bém - pois o Mito é "programa" para a vida - na concatenação das razões "lógicas" que justificam e sustentam as relações sociais e a praxis.
Quanto ao Rito - religião "viva" ou religião "enlatada" -, encena​ção do universo sagrado tal como se auto-concebe, constitui-se para o observador, ao mesmo tempo, um indicador das modalidades e um termômetro da intensidade com que este universo está presente e atuante em determinado grupo social. Na sociedade contemporânea, a sua realidade fenomenológica diversifica-se num leque que vai da efervescência emocional exaltada até à discreta quase diluição no quotidiano.
A organização institucional, por sua vez, diz respeito à "institui​ção", mas, mais fundamental e liminarmente, ao estatuto do "nível institucional" enquanto tal numa determinada sociedade, num deter minado grupo social, numa determinada civilização, estatuto que não é dado de antemão. Todo o problema da relação ""individuo/institui-ção", por exemplo, está aqui contido, e este problema pode ser - é. hoje - fundamental.
Enfim, a "rejeição religiosa do mundo" - seu grau, suas modalida​des, a distribuição destas modalidades entre os grupos sociais, suas transformações, etc. -, que diz respeito diretamente à relação entre a dimensão religiosa da vida e o manejo do mundo, a "administração das coisas", a "razão prática", não permite, evidentemente, ignorar nem as determinações sobre a religião dos interesses, necessidades e meios disponíveis, nem as da religião sobre o delineamento cultural e a existência efetivamente social destes interesses, destas necessi​dades, destes recursos técnicos.
Um programa possível
Na continuidade destas perspectivas e nos aproximando ainda mais do que seria o modelo de um "programa", pergunto-me se não
seria possível propor o seguinte conjunto - concomitante e ordenado - de indagações, para orientar a abordagem de qualquer instituição ou manifestação de natureza "religiosa". Quem sabe estas perguntas recapitulem as lições essenciais de Durkheim e de Weber; a condi​ção de considerá-las na continuidade dos níveis precedentes de con​siderações, constantemente nutridas por eles.
- A quais indagações existenciais a respeito do sofrimento e do destino - de vida e de morte - esta instituição (ou manifestação, em​bora pouco institucionalizada) vem responder? Estas indagações são de quem? Com efeito, trata-se de um grupo social em situação, com todas as determinações relativas que isto implica?
- Qual é o processo de elaboração, implementação, difusão (e, eventualmente, transformação, desaparecimento e substituição) das representações de tipo racional que fazem parte desta estratégia de resposta?
- Paralelamente (e articuladamente), quais símbolos expressi-vos são usados pelo grupo? Qual o processo - concreto e empirica​mente apreensível, no nível ritual ou banalmente quotidiano - de emergência, troca e manipulação destes símbolos?
- Em que medida e de que maneira (por exemplo, por um con​junto de ritos) estes símbolos, tanto cognitivos quanto expressivos, contribuíram (ou estão contribuindo) para criar um universo signifi​cativo?
- Em que consiste a experiencia deste universo (suas formas, sua intensidade, suas relações com o resto da existência, individual e social) que os membros concernidos realizam em sua vida?
- De que maneira este universo, informado por injunções de ordem ética (guias para a ação), proporciona a coesão a um grupo social? Quais a dimensão, o nível, o alcance e a natureza deste gru Po? Quais as suas formas de organização? Quais relações mantém com outros grupos, de natureza religiosa ou não?
- Quais efeitos duráveis sobre a conduta individual dos mem​bros (formação de "hábitos" novos) e qual a repercussão social des tes efeitos? Para esta avaliação, distinguir as causalidades propria​mente "lógicas" (cujo concatenamento racional se pode reconstitui! -) e as de ordem "simbólico-emocional-expressiva". Neste sentido, fa​zer dos dois tipos de "causalidade social" weberiano e durkheimiam), dois "tipos-ideais".
- Quais, enfim, as conseqüências previsíveis sobre a orientação geral da História?... Pelo menos, e mais modestamente, da história do grupo social, o segmentário e o global, em cujos quadros a insti​tuição (ou o fenômeno) em questão está inscrita?
Quem sabe haveria aqui bases para um início de conversa? Ba​ses confusas? Sim - e propositalmente. Cada um dos níveis aborda​dos vem complexificar - mas também nutrir - o outro. Talvez seja precisamente esta complexidade que assegure o mínimo necessário de flexibilidade na abordagem de um fenômeno que bem sabemos não ser simples...
ria, portadora sacramental, estritamente enquanto instituição, da gra​ça redentora que é o Cristo. Talvez ali esteja a raiz de todas as difi​culdades citadas no texto ("Quem é a Igreja?" ...) e da tentação analí​tica de tudo nela interpretar em termos "institucionais", com uma carga exclusivamente política.
O problema atual é que bom número de fiéis, junto com deter​minadas correntes teológicas, questionam hoje a interpretação tradi​cional deste Mito. O que torna esta abordagem menos tranqüila, mas também mais rica, fluente e dinâmica.
Crise de identidade, transição, evolução irrepreensível? Neste sentido, o momentum da Igreja Católica parece particularmente deli​cado do ponto de vista sócio-antropológico. Quem sabe uma aborda gem através do destino atual desta dimensão do Mito Fundador - já que falamos hoje de metodologia - introduziria algum eixo analítico esclarecedor num campo onde se vê muito caos?
III - A IGREJA CATÓLICA
"Todo o mundo sabe o que é a Igreja Católica, menos o sociólo​go"... diz o nosso texto. Talvez precisamente porque se recusa a sim​plificar o problema. Pois ele sabe que o caso é um bocado complica do, como diriam os portugueses. É que, dentro do campo ocidental das religiões, a Igreja Católica bem poderia representar um tipo soci​ológico à parte... Lembremos de Yinger, que, tentando cotejar a Ca​tólica com os tipos clássicos de Weber e Troeltch, sentiu-se obriga​do, só por causa dela, a criar mais um, que chamou de Eclesia. Uma pista para entender esta relativa especificidade talvez esteja na autoconsciência que tem de si a Igreja. Seria o caso de citar Durkheim: "Uma sociedade se define antes de tudo pela idéia que ela se faz cio si-mesma". Talvez, precisamente para a Igreja Católica, este "discur​so nativo" (como o chama Pedro) que lhe dá identidade, seja repre​sentado pelo seu Mito de Fundação, através do qual ela se pensa - e única no Ocidente a fazê-lo - como a instituição co-presente à Histó​
IV - ENFIM, O PROBLEMA DA EMOÇÃO
Experiência, emoção, não sei mais se o tema está no texto de Pedro ou se o meu desejo imaginou que estivesse.
Um tema muito atual e que é metodologicamente difícil abor​dar. Tanto a sua importância, nas perspectivas humanistas da modernidade contemporânea, quanto às observações empíricas, cada vez mais freqüentes no campo religioso brasileiro, obrigam o pes​quisador a abrir-lhe um amplo espaço de observação e análise. Em termos comparativos, pois o "gerenciamento" da emoção, em toda Parte atuante, o é diferencialmente no seio das várias tradições pre​sentes hoje no Brasil: pentecostalismo, sem dúvida, mas também catolicismo popular, universo religioso afro-brasileiro, Nova Era, etc.
Não poderia se tratar. numa tarde como esta, polivalente, de propor e discutir um "método". Quero, pois, simplesmente indicar, Para possível aprofundamento ulterior, uma pista metodológica, que poderia permitir aproximar a emoção sem cair nas armadilhas ela participação de que falei acima.
Em outras palavras: trata-se de uma tentativa de articular a tendência objetivante do survey, seus números e quantidades, com um esforço de interpretação qualitativa, por observação participante, Transmutar a quantidade em qualidade. O processo operacional gira em torno de duas (ou três) perguntas fundamentais, que mobilizem imaginação, desejo, emoção.Se tudo funcionar, obtêm-se, no final, quatro (ou mais) tipos-ideais de mentalidades, comandadas por qua​tro "lógicas" que atravessam o grupo social pesquisado e contribuem para orientar sua experiência e sua ação�.
Através deste ou de outro método, tenho a impressão de que seja urgente que os pesquisadores tentem penetrar fundo, comparati​vamente, os tipos de experiência vivenciados hoje no Brasil pelos fiéis das várias "familias" lias" espirituais, mesmo se estas famílias não se confundem estritamente com "instituições religiosas".
Aliás, a entrada pela experiência e a emoção bem poderia ser um caminho eficaz para guiar o pesquisador até à efetiva realidade "religiosa" contemporânea, mais feita de redes que de instituições. de "bricolagens" individuais que de sínteses globalizantes, mas que sabe também organizar trajetórias individuais e referências fluidas aos grandes filões tradicionais da história religiosa precisamente pelo cultivo sistemático - e diversificado - de experiências emocionais coletivas.
ESTUDOS DE RELIGIÃO: CONFLITO DAS
INTERPRETAÇÕES 
Júlio de Santa Ana �
Em primeiro lugar, agradeço a oportunidade que me foi ofereci​da de comentar as contribuições de três trabalhos sobre questões re​lativas à metodologia utilizada na investigação de problemas concernentes ao estudo da religião. As abordagens de Pedro de Oli​veira, Luiz Eduardo Wanderley e Pierre Sanchis são valiosas e desafiantes e abrem caminhos para o desenvolvimento das investiga​ções sobre as relações entre religião e sociedade.
Neste trabalho, quero desenvolver, em conexão com estas abor​dagens, duas linhas de reflexão. A primeira, sobre alguns aspectos que me parecem fundamentais; são questões de "princípio", ou sejam, assuntos que devem ser levados em conta antes de se iniciar qualquer tipo de pesquisa. A segunda linha tratará mais concretamente dos pas​sos metodológicos "na pesquisa da religião". A primeira linha enfoca algumas indagações que devem ser respondidas antes de se iniciar a pesquisa. A segunda linha questiona o modo da investigação.
QUATRO QUESTÕES PRÉVIAS
Em primeiro lugar, deve-se levar em conta a imprecisão que existe em torno do que se entende por "pesquisa da religião". A es​cola francesa, seguindo a orientação dada por Durkheim, afirma que é possível construir um conjunto de "ciências da religião". trata-se ,~ de estudos de caráter multidisciplinar que se situam no campo Ciências Humanas. Na França, as faculdades de Teologia e as gradu- ações em "Ciências da Religião" pertencem à área de "Ciências Hu​manas", em que o saber que se constrói e se transmite está relaciona​do à vida dos seres humanos, tanto em nível pessoal, como em comu​nitário ou social. A religião é um aspecto importante da realidade humana e parece ser indissociável do processo social, pois permite o desenvolvimento de convicções e valores, contribuindo de maneira decisiva para a formação de diversos tipos de comunidades.
O enfoque interdisciplinar da escola francesa não é total​mente claro: há alguns investigadores que seguem, predominantemen​te, a linha sociológica (a orientação foi indicada por Durkheim) ao passo que outros vão por caminhos cuja maior influência provém da antropologia (Roger Bastide é um exemplo clássico neste sentido, e dão maior importância a aspectos psico-sociais (Danièle Hervieu​Leger pode ser mencionado neste caso), ou ainda, levam a cabo seu trabalho demostrando um respeitoso cuidado ao considerar definicóc~ teológicas que emanam de centros de autoridade religiosa, mas que são fortemente questionadas por algumas instituições científicas. Com isso quero assinalar, simplesmente, que o terreno das "Ciências da Religião", nem mesmo na França, está bem definido.
A escola que se desenvolveu na Inglaterra e, sobretudo. nos EUA, se distingue da francesa desde o seu início, pois se auto-define como um saber que se constitui a partir de "estudos religioso," (religious studies). Ou seja, expressa uma consciência de dúvida de que possa chegar a ser uma "ciência". A variedade dos "estudos reli giosos" é muito grande: inclui a sociologia comparada das religiões estudos antropológicos, teologia, história das religiões (geral, parti-cular e comparada), psicologia das experiências religiosas, estudo dos textos eclesiásticos, etc. Apesar da tendência predominante ser a de afirmar a necessidade de trabalhos interdisciplinares, deve-se re-
conhecer, ao mesmo tempo, a multiplicação de trabalhos específicos que enfocam questões pontuais das expressões religiosas. Nesta ver​tente dos estudos religiosos, percebe-se também a tensão entre aque​les que desenvolvem uma pesquisa livre e outros que orientam sua investigação a partir de uma autoridade extracientífica (por exemplo, o caso dos estudos no campo da missiologia, tão ricos e sugestivos em virtude de sua multidisciplinaridade, mas que estão fundamental​mente orientados por necessidades apologéticas e/ou pastorais).
A vertente alemã, por sua vez, demonstra urna grande diversifi​cação e pouca integração. É verdade que existem alguns casos nos quais a Sociologia das Religiões se integra, de maneira fecunda, com as exegeses e a hermenêutica bíblicas, mas isso não ocorre na maio​ria das vezes. Ademais, o peso das instituições religiosas, especial​mente, as igrejas cristãs, é muito forte, chegando ao ponto de levar Thomas Luckmann a criticar duramente essa tendência da Kirchen​soziologie, que ele francamente considerava insuficiente e pouco cien​tífica�. Apesar da grande tradição da sociologia alemã, é importante reconhecer os limites da pesquisa da religião nesta corrente, limites esses principalmente impostos pelas autoridades religiosas.
Parece-me claro que no Brasil prevalece a influência francesa, não só porque no âmbito acadêmico os estudos sobre a religião são desenvolvidos como "Ciências da Religião", mas sobretudo, porque todas as fontes a que se refere a maioria dos pesqisadores são de origem francesa ou de acadêmicos que trabalham na órbita da escola francesa. Isso não é sinônimo de coerência intelectual, pois, como vimos previamente, no marco das "sciences de la religion", existem vertentes diversas. A influência francesa no Brasil foi introduzida pelos professores enviados diretamente da França para contribuir com os primeiros passos da Universidade de São Paulo (Bastide, Lévi​Strauss, Léonnard, etc.).
Com esta reflexão sobre uma "questão prévia", quero colocar em destaque a fluidez do campo a que se aplicam as pesquisas sobre a religião. Não é simplesmente algo que caracteriza o "campo religio so" (para empregar a expressão de Bourdieu, um dos mais influentes intelectuais franceses contemporâneos), já que ela também se encontra entre as orientações teóricas dos que fazem pesquisas no campo da religião. Não se deve estranhar, portanto, que existam várias versões de interpretações diferentes sobre o mesmo fenômeno. Diga-se de passagem, tal coisa me parece saudável. Em compensação, é questionável que não haja diálogo entre as diversas interpretações. Neste sentido, estou totalmente de acordo com Pedro de Oliveira, quando este assinala a necessidade de dialogar, compartilhar resultados de diversas pesquisas e discutir intensamente sobre os mesmos.
Em segundo lugar, e é uma coisa que está implícita no desen​volvimento do ponto anterior, é importante reconhecer a grande varie​dade de matérias e disciplinas envolvidas nas "Ciências da Religião", nos "estudos religiosos" e incluídos nas "sociologias religiosas". Diante dessa variedade, cada setor entende que seu campo específico é o mais importante. Por exemplo, os que pesquisam sobre os textos sagrados, ainda que se voltem para o passado, têm em mente a influên​cia desses textos sobre a vida dos crentes e das comunidades contem​porâneas. A partir de uma certa "normatividade" pretérita (que em alguns casos é quase absoluta, mas matizada e equilibrada em ou​tros), os estudos de texto buscam dar a orientação mais forte à vida religiosa contemporânea. Neste sentido, não é estranho que

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