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JJoosséé ddee MMeessqquuiittaa CCoorráá CCoonnttoo RReeggiioonnaall JOSÉ DE MESQUITA 2 Escrito em 1930, e: 1) Publicado em 1932, na Revista Nova (1931-1932), de São Paulo. Revista literária, de Paulo Prado, Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. Era espaço de publicação de textos “modernistas”. 2) Publicado em 1959 (em 1° edição) e em 1961 (em 2° edição), no volume X, “AS SELVAS E O PANTANAL - Goiás e Mato Grosso”, da coleção Histórias e Paisagens do Brasil, Editora Cultrix (Ernani Silva Bruno e Diaulas Riedel), em São Paulo. 3) Publicado em 2001, na Revista Vôte, Nº 5. Revista publicada com recursos da Lei de Incentivo à Cultura, através da Secretaria de Estado de Cultura, do Governo do Estado de Mato Grosso, em Cuiabá. CORÁ José Barnabé de Mesquita (*10/03/1892 †22/06/1961) Cuiabá - Mato Grosso Biblioteca Virtual José de Mesquita http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm JOSÉ DE MESQUITA 4 3 JOSÉ DE MESQUITA 6 CORÁ Pai Chico estava tirando um trago de fumaça perto do Jirau, quando Manézinho entrou. tomar mulher para toda a vida. Corá é moça andeja, cabecinha de vento. Não dá corte de dona de casa, não sai dali uma mãe de filho... — Papai, abençoa... Eu andava mesmo à sua procura pra mode uma coisa que lhe preciso dizer. — Oh! Meu pai! — exclamou Manézinho, escandalizado com a linguagem rude do velho. — Ela é um pouco sapeca, lá isso é, mas se o pai visse como ela tem mudado aquele gênio... O velho olhou de esguelha para o filho que não via desde três dias e tirou uma baforada do pito, sem dizer uma palavra. — O pai sabe que ando gostando da Corá. Vem desde o ano passado esse namoro. Foi na festa do Espírito Santo... Ela também, pelos modos, gosta de mim. E eu vim dizer ao pai que estou resolvido a pedir a Corá... — Sim. Lábias para enganar bobos. A mim é que não pega. Olhe, assim foi a mãe dela, a Batica, que hoje anda aí por esses mundos de Deus... Aquilo é de raça, é de família e não há pior desgraça para um homem direito, sério, que quer trabalhar, do que topar com uma diaba dessas...Você sabe a história da Batica, não? Em vida do marido, ainda soube fingir, a ponto de ele nunca desconfiar... Depois, foi aquele corre-corre, a quem mais der. Não serve, meu filho... não serve. Desvanece disso, porque Corá vai no mesmo caminho da outra. Veja você o que ela pintou com o Tonico, na Serra. Pai Chico quedou-se uns minutos olhando o rapaz que, de pé, diante dele, torcia entre as mãos o chapéu de carandá, numa visível atitude de constrangimento. A tarde caía, fresca e suave, e no terreiro, em frente, um bando de galinhas, perus e angolas se espojava, perto de um moital de mangaritos. — Manézinho, — disse afinal o velho — Você é um homem para saber o que faz.. Você já tem mais de trinta e há muito não me consulta sobre seus negócios... Isso de casamento é coisa séria, é um passo que a gente depois que dá não pode recuar. Você sabe que eu estimo muito a Corá, que o pai dela, que Deus haja, foi um dos meus melhores amigos... Conheci Corá, posso dizer, desde a hora de nascer. Foi sempre viva, esperta, ladina como quê... Quantas vezes carreguei a pequena no colo e fui com ela, já grandinha, ao mato, apanhar mangaba e marmelada! Mas Corá não lhe serve, meu filho. Para namoro, de passatempo, está muito bom. Para mulher, não. Uma coisa é brincar, distrair com os agrados, conversas e passeios...Muito outra é Depois, com o Zequinha, da siá Eusébia. Ainda há pouco com o filho do major Lalau. E até Deus me perdoe dizem que com o próprio Lalau, que é, você sabe, um maroto daqueles... Larga disso, Manézinho, que ela não lhe serve. Você repare bem uma coisa: aquela criatura tem parte com cobra. Ah! Tem! — Meu pai! Isso também é demais! Vancê tem prevenção a toa com a moça! — exclamou Manézinho, revoltado. — E o nome dela está dizendo o que ela é - continuou, sem perturbar-se, Pai Chico. — Cobra corá... Você já botou tento em como ela anda, toda se requebrando, toda num 5 JOSÉ DE MESQUITA 8 CORÁ ziguezague, num remelexo de cobra a se arrastar no chão? E as feições dela, Manézinho? Aquilo é vê cobra corá. Tal e qual.. Os olhinhos dela, a cor da pele, muito corada, a cabeça, muito preta, curta, quase sem pescoço, o jeito de mexer... Os dentes já viu bem os dentes de Corá? os de cima muito saídos, com aquelas presas... Hum... pode ser que me engane, mas ali ela tem, deve ter veneno guardado! todos os luxos e caprichos dela... Manézinho continuava a refletir, macambúzio, casmurro. Não lhe era possível dissimular a impressão que lhe viera das palavras sensatas do velho. E, com pavor, reconhecia exatas suas ponderações, sobretudo no que se referia a semelhança da moça com as serpentes do gênero coral. E até o nome vinha auxiliar aquela associação mental: Corá, corruptela caseira de Escolástica. O sertanejo, em permanente contato com a natureza, tem extraordinário poder de analogia e estabelece verdadeira simbólica entre as pessoas e as coisas que o rodeiam... Manézinho sentia a fundo a realidade daquela comparação. Mais alto, porém, que tudo, gritou no seu espírito conturbado, a voz dominadora do amor que o cegava: — Figa, meu pai! gritou, horrorizado, Manézinho. — Aquele corpo muito roliço, todo dengue, todo a desmanchar em não me toques... aquele modo de falar meio assoviando... Jesus! Aquilo tudo é de cobra, e de cobra corá, fique certo. Queira Deus que eu me engane — concluiu o velho — Mas aquela mulher tem parentesco perto com cobra... Manézinho pôs-se a pensar, metido em si, triste, desapontado. Não esperava tão áspera acolhida. No íntimo, doía-Ihe a repulsa do pai, a quem muito queria, por aquela criatura que era hoje tudo para ele, que conseguira dominá-lo, no império de uma paixão irresistível. — Será tudo que vancê diz, meu pai, mas eu é que já não vivo sem aquela mulher! Sinto ter de o contrariar; apesar do respeito que lhe devo, declaro que, domingo, peço Corá e antes do natal ela será minha mulher... E sem mais dizer, sem sequer tomar a benção do velho, disparou, estrada a fora, rumo da casa da namorada. O velho, vendo o seu enleio, continuou: — Que ela é bonita, lá isso é, mas que vale a beleza que não dá sossego? Moça qude já teve quatro, cinco namorados, quem pode assegurar que, casada, se contente com um homem? Não quero estragar sua vida, meu filho, por isso é que digo e redigo: não serve para você aquela mulher... Depois, lembre do que seu avô dizia sempre: “Não te cases com mulher de condição superior, que te humilhe, nem inferior, que te vexe”. Você é curiboca, procura mulher da sua cor. Deixa Corá, que é branca, para branco, que possa satisfazer Esfriava. Um vento pesado começava a correr, com o cair da noite. Pai Chico levantou-se, para entrar no rancho, mas ainda ergueu os punhos, em sinal de ameaça, na direção para onde partira o filho tresloucado: — Bacorá! Amaldiçoada! Você há de me pagar! Longe, no silêncio da noitinha, ouviu-se,fino, estrídulo, um assovio prolongado, quase como um silvo de serpe a esgueirar-se entre as moitas... Casaram-se pela Conceição e foram morar 7 JOSÉ DE MESQUITA 10 CORÁ num casebre ao lado do de Pai Chico, já no laçante do córrego. Corá foi, nos primeiros tempos, uma pomba sem fel. Manézinho vivia encantado com ela e fazia-lhe todos os gostos. Conseguiu trazer o pai para sua casa, sob pretexto de dar companhia a Corá, quando ele fosse obrigado a sair. A vida entrou-Ihes de correr mansa e tranqüila, como uma água quieta de ribeirão, no meio da várzea. Comiam juntos, na varandinha aberta,que dava para o jardim, de que Corá cuidava caprichosamente. Acabado o jantar, ficavam conversando no terreiro até a hora em que os dois casadinhos iam para o quarto de cima, ficando Pai Chico a ronronar, cachimbando, no degrau. sogro por a mesa ao terreiro para almoçarem juntos. Pai Chico, acostumado desde o começo a comer de cócoras, no canto que dava para a cozinha nunca fora convidado para a mesa, a que, de resto, se não ajeitaria recusou. Quis opor-se, em vão, talo insistente pedido a que não havia fugir. — Esta diaba tem jeito de pedir as coisas, que a gente não sabe negar... — disse, consigo mesmo, o preto velho. E, de se para si, Pai Chico se confessava vencido. Nesses três dias de convivência, Corá modificara por inteiro a opinião que antes o sogro fazia a seu respeito, pois, além de não lhe dar motivo de queixa, desautorizava, com seu proceder, as antigas e fundadas suspeitas de leviandade. Jogavam, às vezes, o truco. Raro, saíam. As chuvas, nesse ano muito fortes, compeliam docemente a vida caseira, plácida, de familiar recolhimento. Três meses depois do casamento, pela enchente de São José, Manézinho teve necessidade se ir ao sítio por uns negócios de gado. Era a primeira separação e Corá chorou muito, abraçada ao marido, pedindo-lhe que não fosse. Passou fechada no quarto todo o dia sem descer, recusando até alimento. No outro dia apareceu, já na hora do almoço, com as feições abatidas, um tudo nada de languidez, de abandono de si mesma. Trazia um roupão vermelho, de longas listras pretas, que lhe viera no enxoval, mas que, pela primeira vez, usava. Arrastando os chinelos de couro, numa apatia de quem se desinteressava de tudo, veio, quieta e tristonha, sentar-se no batente da porta, ao lado do velho, que cachimbava, macambúzio. Esperou que saísse um vizinho, que viera falar a Pai Chico de um milho que queria comprar mesmo em espiga, e propôs ao — Quem sabe, bem pode ser mentira, despeito, aquilo que diziam dela, coitadinha! Isso de namoros, tempo de moça, quem é que não tem? Se mesmo a Joana, que Deus tenha, não fui eu o primeiro de quem ela gostou... E, séria como aquela, está por nascer. Assim monologava o velho, enquanto a nora ia e vinha, num afã, preparando a mesa para o almoço. Estalou uns ovos, apanhou no terreiro umas folhas de cebola verde, pimenta para o caruru, que sabia ser um dos pratos preferidos de Pai Chico. Durante o comer, não cessou sua loquacidade. Sentada em frente do velho, ria-se, expansiva e tagarela, a cada esquerdice que ele, no seu desajeitamento, praticava. Quando acabaram convidou-o a passear até o córrego. Ele pretextou uma dor de cabeça, enxaqueca velha, para não ir. — Ora, o dia está fresco, meu pai... Isso faz mal, vancê ficar aí o dia inteiro, na mesma posição, chupando esse pito sarrento... 9 JOSÉ DE MESQUITA 12 CORÁ Saíram. Ele sorria, vencido pelos agrados da moça. O mormação muito quente esbraseava o ar. Ela, para evitá-lo, arrepanhara o roupão, erguendo- o à altura da cabecinha, protegendo-a como uma coberta. No seu desleixo caseiro, não trazia saia branca e deixava ver, sob a camisa de mulher, cura até os joelhos, as pernas roliças, penugentas e o relevo provocante das ancas. Insensivelmente, ela o foi pondo à vontade, com aqueles modos muito dela, desembaraçados e alegres. Deixando a sua habitual casmurrice, Pai Chico contou histórias do seu tempo, anedotas do sertão, episódios de sua vida de moço. Sentaram- se no terreiro, à sombra de uma velha chagueira, e enquanto Corá fazia seu crivo, o velho tagarelava, tirando enormes baforadas no cachimbo de barro. De vez em vez, a moça entreparava no serviço, e, risonha, descansava nele os olhos miudinhos, vivos, úmidos, sempre como se andasse constantemente a chorar, de tristeza ou de alegria. E Pai Chico sentia que aquele olhar, repousado, parado quase, coando-se num espasmo, por baixo das pestanas veladas, exercia um fascínio poderoso sobre ele. Bulia-lhe com todo ser, corpo e alma, parecia atraí-lo para ela, para perto dela... E, sem querer, fitava-a, de esguelha, atentando-lhe nas feições,que achava mais bonitas do que antes, nos lábios grossos que ela, volta e meia, como num cacoete, umedecia, passando-Ihes a lingüinha fina e rubra... Foi-se toda a tarde naquela descuidada palestra e o sol já se punha. E a sombra entrava de crescer, envolvendo o terreiro silencioso, onde a criação se empoleirava, quando ela, num gritinho de susto, exclamou: Ria, falava sem cessar, como quando junto de Manézinho. — Está fresco, está!... — disse Pai Chico, para dizer alguma coisa. Corá, suando em bicas, riu-se da observação irônica do velho, com que buscava contradizer a afirmação dela à saída e replicou: — É verdade... Não pensei que estivesse tão quente assim! O sol não está de fora, mas o mormaço é pior que o próprio sol... De volta do ribeirão, donde Corá trouxe uns pés de samambaia que lhe havia encomendado a Tuda, do Zé Nanico, Pai Chico, que propositadamente se atrasara, a vinha observando. O andar coleante, a cabecinha irrequieta, a volver- se a cada momento para todos os lados, o falar estridente, num tom de silvo, mostrando os incisivos salientes, lhe haviam reavivado a semelhança da nora com as corais, semelhança que naquela hora, mais se acentuava pelo traje que ela trazia, uma verdadeira pele de cobra, vermelhaça com rajas pretas. E, de novo, começava no espírito conturbado do negro, a luta entre os sentimentos antagônicos, um que o levava a temer e evitar a intimidade daquela mulher perigosa e outro que, sem o querer, o envolvia, lento, lento, nas enfeitiçadoras e enliçantes carícias da nora. — Jesus! Pai, não é que já é noite, e nós aqui nesta mamparreação? Pai Chico, quase sem acordo do tempo, só então viu que.se esquecera de tudo, a prosear com a moça. Nem h.avia pensado em recolher as vacas no curral, nem em ralar seu guaraná ou picar o fumo para.a noite... Corá correra à cozinha para ver o.jantar, já frio, pois o fogo se apagara e até o borralho se fizera pura cinza. Jantaram já de noite 11 JOSÉ DE MESQUITA 14 CORÁ fechada. à luz da lamparina, frouxa e morrente. E quando Corá, depois.de haver ajuntado a louça, na gamela, para lavar no dia seguinte, subiu para seu quarto, Pai Chico foi-lhe preciso ter força sobre si para não a acompanhar, tal a:atração irresistível que sentia exercer no seu sentimento aquela criatura. Ela, já em liberdade, ainda voltou até o meio da escada, para pedir-lhe os fósforos que havia esquecido. Trôpego, quase cambaleando, Pai Chico conseguiu chegar perto da nora, que. A sorrir, com mal fingida malícia, lhe disse: suas chinelas, no soalho, e, no silêncio enorme, até seu respirar harmônico e sereno, que uma ou vez, um suspiro longo entrecortava. Por que deixara ela a porta apenas encostada, quando era costume fechá-la com o trinco, estando Manézinho? Um impulso irresistível o arrastava até junto dela... nem ele sabia por que ou para quê... mas a idéia de que ela ali estava a alguns passos apenas, o torturava horrivelmente, como se fosse a consciência do perigo ou o medo da própria covardia... Muito tarde, ouviu uma serenata, longe, já depois da sair, ao doce amiudar dos galos. Apenas lhe chegavam os bordões do violão e a lenta, Iangue toada do verso, que ele reconheceu como sendo uma canção de que Corá muito gostava: — Boa noite, pai... Foi tão bom o nosso dia. Que pena não possa ser assim a noite... E, cerrando a porta, ainda sussurrou. Em tom para ser ouvida por ele: — Quando virá meu Manézinho? Que falta faz à gente um marido! mulher é como cobra, vem quando menos se quer... Pai Chico passou em claro a noite. Fazia um calor terrível e o velho virou e revirouna rede até o amanhecer. O luar veio já de madrugada encontrá- lo com os olhos da véspera, pisados e secos. No brejo, atrás da casa, uma rã cantou toda noite, em coro com o lirismo vagabundo dos grilos. Pai Chico sentia dentro de si, a um só tempo, todas as delícias do céu e todos os horrores do inferno. Quem não tem corpo fechado Ai! Cuidado! Não se chegue com mulher... Pai Chico estremeceu, ao recordar a letra expressiva e simples da cantiga. Era bem aquilo! Corá ali estava para despertá-lo à realidade doce e pungente, Corá, a boicorá perigosa, que, a despeito de toda sua prevenção, já começava a instilar-Ihe suavemente seu veneno pérfido... Ele, velho, mais de seus setenta, quase um trapo de homem, ainda não tinha o corpo fechado para esses amavios de mulher... E, por outro lado, impressionava-o a idéia de que Corá desejasse conquistá-lo, a ele, quase uma múmia, sombra de gente, tapera humana, já morta em vida... Tão perigosa era, assim, aquela criatura ou exercia ela, sem o sentir, o seu poder maléfico, como as serpentes que matam sem consciência, talvez, do que fazem? E revia-a, o seu Fechava os olhos, para não ver, e via; tapava os ouvidos, para não escutar, e escutava. Viu Corá, tentadora e meiga, a sorrir-lhe; ouviu-a, na sua parolice gárrula, em que havia tanto ingenuidade como malícia, entremescladas... Sentia que era feliz por causa dela e que ela o poderia fazer muito desgraçado. E, entretanto, onde encontrar em si forças apara fugir-lhe, para evitar a fascinação indominável que dela toda se desprendia? Cuidava ouvir, lá em cima, o ronron da rede, o barulho de 13 JOSÉ DE MESQUITA 16 CORÁ olhar, diante do qual se sentia como um passarinho atraído pelo filtro letal que projetam as cobras... o seu rir, só dela, com aquele passar e repassar da língua úmida sobre os lábios, da língua que, para ser viperina, só lhe faltava a bifidez... Pai Chico, horrorizado do rumo a que iam se enveredando as suas idéias, ergueu-se, num pulo, da rede cearense e, atando a cinteira de couro sobre a calça de mescla, saiu para o terreiro, exclamando: E nesse tom, a colubrina criatura, exasperava de momento a momento os nervos amolentados do pobre velho. A libido, adormecida há muito, acordava nele, como o rugido de uma fera de seus desertos africanos, ao látego vibrante daquela cruel domadora. E Corá ria, ria, ria. E o seu riso satânico tinha o estrídulo som dos silvos das serpes, suas irmãs... Já Pai Chico lhe não era mister andar se escondendo pelos sarãs e ferindo- se nos cansasões da margem, para vê-Ia, à hora matinal do banho no ribeirão. Via-a o dia todo, numa dádiva lânguida e aliciante do seu corpo admirável de morena clara, a ofertar-Ihe, sob a camiseta, leve e decotada, que lhe punha à mostra, sob os cabeções de crivo ou crochê, os amplos seios, opulentos e firmes na sua magnífica e ereta apojadura de sangue; via-lhe, atarracados pela ombreira, os braços roliços e grossos, pubescentes como folha de malva-maçã e, sob a cova macia que faziam, ela lhe entremostrava, a cada passo, com o pretexto de endireitar o cabelo, a maranha negríssima das axilas... De toda ela se desprendia um fluido perverso de sedução, de sensualidade moça e sadia. Pai Chico sentia-se vencido, mas custava-lhe confessá-lo. Não se animava a repreender a nora por aquilo que fazia, não só porque lhe parecia natural e sem estudo, da parte dela, como ainda porque seria, talvez, um motivo de ela agastar-se e esfriar no trato com ele... E, no seu egoísmo, aquilo lhe doía, Assim corria a semana, ao fim da qual deveria regressar Manézinho. Pai Chico, na incoerência da paixão, agravada pela senilidade, ansiava pela volta do filho e desejava, ao mesmo tempo, que um imprevisto o retardasse. O imprevisto veio. Manézinho mandou dizer a Corá — Tomara que Manézinho não demore e que acerte logo este negócio de gado! Dentro dele, porém, um "outro" ciciou, no seu cérebro esgotado pela insônia, entre uma zoada infernal que lhe enchia os ouvidos de um longo escachôo de corredeiras: — Manézinho... Manézinho pode vir.. você é que nunca mais terá sossego. A Corá já picou seu coração... Quis Pai Chico reagir contra o veneno, que, sutil, se lhe instilara nas veias, mas foi debalde. Corá o dominava inteiramente e, o que é pior, parecia divertir-se à sua custa, gozar do seu completo esmagamento. Era um inimigo que ela conseguira inutilizar... Brincava com ele, dizia-lhe liberdades, ria-se muito ao ver-lhe a atrapalhação e a esquivança com que procurava fugir ao seu influxo empolgante e vencedor. Já não tinha cerimônias com ele. E fazia tudo aquilo sem ar de maldade, como se fosse a mais ingênua menina. Para vestir-se ou despir-se perto dele, ela costumava dizer, rindo-se, convulsivamente: — Pai Chico, olhe do outro lado... Também, pai não está mais para ver certas coisas... A vista já encurtou... e, depois, já deve ter visto tanto... 15 JOSÉ DE MESQUITA 18 CORÁ que, tendo de esperar o boiadeiro que não havia chegado, era-lhe forçoso passar mais uma semana no "sítio". Ela contou a notícia a Pai Chico, sorrindo, como se não lhe fizesse mossa. que não fugia dali, sob qualquer desculpa?... Ficar, era cada hora se chafurdar mais naquele pântano, em que se ia afogando deliciosamente... Oh! Aquilo era, talvez, um castigo, por haver caluniado, desprezado a moça, antes de ser sua nora. Uma tarde, já na segunda semana da ausência do filho, Pai Chico esteve a pique de naufragar com todos os seus escrúpulos. Corá, entrando na cozinha, levou uma escorregadela de mau jeito e machucou-se. Veio coxeando até junto do sogro a quem pediu que lhe fosse buscar, em cima, o vidro de cachaça canforada. E apoiando a perna sobre o tamborete de couro, a gemer, sofraldou a roupa até o ponto contundido, bem acima do joelho direito. Pai Chico teve um choque formidável à vista daquela perna que se lhe exibia, impudica, na inconsciência da dor. Todo sangue lhe afluiu ao rosto, e, a dois passos dela, tremia, como uma criança que vê um perigo iminente. — Manézinho esquece que tem mulher... Deixa a gente sozinha tanto tempo e isso não é bom, não acha, pai? O velho viu naquele fato trivial na vida dos sertanejos o adiamento de um negócio, de uma viagem o dedo misterioso do destino que o entregava àquela mulher. Fatalista como todo caipira, em quem a religião transforma numa passividade diante da sorte, Pai Chico deixava-se, levar no arrastão da corrente. Corá tê-Io ia a um aceno, à hora que quisesse. Ele não acenderia o rastilho, mas, aceso, não seria ele quem recuasse. Ia para ela como para a morte: porque era preciso. De repente, porém, a lembrança do filho se superpunha àquelas idéias, se entremetia no seu espírito, como um avejão escuro, a voar sinistramente, apartando-o de Corá. E um horror de si mesmo, de haver consentido naquelas coisas, lhe vinha, como a nítida consciência do remorso na alma do criminoso. Não, aquilo não poderia ser. Era monstruoso. Aquela menina, cuja idade era cinco vezes inferior a dele, além de tudo era sua nora, estava no lugar de sua filha. Manézinho lhe confiara, dizendo, ao sair: Corá, a quem a dor magoava muito, não dera pelo estado do velho e pediu-lhe, súplice: — Faz uma fricção ai, pai. Olhe... arnica ainda é melhor. Ali, no armarinho tem um vidro. Pai Chico, entretanto, se revelara de vez. Inútil qualquer simulação: os olhos esbugalhados, o seio a arfar, todo ele um hircino acordar de animalidade, começou a andar de costas, como querendo fugir à envolvente tentação que o prendia. — Papai, tome tento na Corá... Ela vai sentir tanto a minha falta, tadinha! — Não... não...Corá — dizia, desarticuladamente — Não... Isso não... - e, como tomado da loucura momentânea.— Manézinho vem aí e pode ver. Àquela confiança, seria ele tão miserável de retribuir roubando-lhe a mulher! E logo ele, ele que abrira as vistas do filho, julgando conhecê-la, para depois vilmente o trair, seduzido pelos mimalhos daquela serpente! Nunca! Nunca... mas então, por A moça, num relance, apanhou tudo. Senhora da situação, viu que tinha nas mãos o seu velho adversário. Não era ainda o momento, 17 JOSÉ DE MESQUITA 20 CORÁ pensou. E, estralejando uma risada gostosa, demoníaca: E, num suspiro: — Pobre Manézinho! — Irra, pai! Isto é paixa, sim senhor! E da boa! Livra que seu filho venha a saber desse rabicho! — Por quê? fez Pai Chico, sobressaltado. — Porque vai tomar chuva pelo caminho... Pai já esqueceu que ele está chega não chega? Desde esse dia Pai Chico percebeu que estava nas mãos de Corá. Esta. Logo que se convencera da completa rendição do velho, passara a fazer dele um joguete infantil, tentando-o por todas as maneiras, para depois, ao vê-lo enfuriado, desfechar-lhe de chofre uma gargalhada de zombaria, que era como uma ducha gelada na paixão decrépita, mais ainda fervida, do negro. Via Pai Chico que tal paixão não podia prolongar-se. — Ora — respondeu o velho num muxoxo — Ele está acostumado. É homem viajado e vaqueano. Corá sentara-se na rede, e com um sorriso de maldade, perguntou: — Pai, aposto que o senhor não tem muita pressa que ele volte? Compreendendo aonde ela queria chegar, preferiu o velho mostrar-se ingênuo e ignorante. Como efeito, nas guerras do amor, é impossível manter por muito a beligerância: ou há, fatal e rápida, a rendição ou o próprio tempo traz o desfecho, pelo recuo ou pele frieza. Já ia quase no fim de semana e aproximava-se o Sábado, para o qual se anunciara Manézinho o seu regresso. Uma tarde, Pai Chico que voltava da lenha, deu com a Nora deitada na rede, que, devido ao calor, armara na varanda aberta, ao lado do terreiro. Estava-se em fins de março, as chuvas iam acabando, mas fazia um calor inaudido. O ar abafava; uma torreira parecia comburir o mundo. Corá, trazendo sobre o corpo apenas o roupão vermelho, que parecia preferir nesses dias tórridos, embalava-se, indolente, com uma perna fora da rede, fazendo de remo daquela leve embarcação. Pai Chico quedara- se de pé à porta da cozinha, onde atirava o feixe de lenha que havia trazido do mato. — Eu? Por que não? Acho até que ele está demorando muito... — Sério, pai? — insistiu Corá, quase desfechando uma de suas risadas, diante da constrangida situação em que via o sogro. E, de repente, fazendo-se de séria, e parando o balanço da rede: — Diga, Pai Chico, mas diga com franqueza, o senhor gosta mesmo de mim? O negro sentiu faltar-lhe o solo. Trêmulo, gaguejante, replicou com outra pergunta: — Mas por que não hei de gostar? Corá sorriu de leve, gozando o embaraço cada vez maior do velho e, após alguns segundos de hesitação, sussurrou, quase num silvo, entre os dentes fechados: — Pois, olhe, eu também, gosto muito, muito do meu velho... Pai Chico sentiu que era chegada a hora decisiva. Corá levantara-se, e, pondo-lhe a mão no ombro, flexuosa e coleante perguntou: — Vamos ter chuva esta noite, meu velho disse ela, provocando a conversa. Este calor abafado é sinal de água... — E quando duas pessoas se gostam... e 19 JOSÉ DE MESQUITA 22 CORÁ nada atrapalha o que é que se faz, meu velho? . pensava. Nunca, na sua vida, uma mulher o beijara assim... O veneno! Certo, ela lhe inoculara o veneno de que devia estar cheia... E sentia-se perdido. Nunca mais teria sossego. Via que a luta ia continuar, pior ainda na sombra, com a presença do filho e rival, por quem já sentia mal disfarçada odiosidade. Que horrível situação a sua! Já via, no dia seguinte, a miserável a tentá-lo de novo, na presença de Manézinho, e talvez até revelando, nas meias frases e indiretas em que era useira e vezeira, a fraqueza dele diante da paixão endemoninhada que o possuía. Ia ser um inferno. E ele tinha certeza de que sucumbiria, por fim, pois o veneno já lhe corria nas veias, O vírus daquele beijo fatal de ofídio humano... Não sabia explicar por que ela o perseguira, o desejara. Nada havia nele do que geralmente atrai as mulheres: mocidade, beleza, vivacidade ou força. Nada. Um molambo de homem, pouco menos do que um defunto. Seria, certamente, o prazer de vingar-se dele, de o esmagar, de o humilhar... Ela bem sabia que ele se opusera ao casamento e quereria, quiçá, mostrar- lhe, numa represália satânica, o seu poderio, o seu feitiço irresistível. Não pôde o negro articular uma resposta. Dera um passo para trás, como fugindo ao bote serpentino. A custo pôde dizer, enquanto ela, em frente estendia a boca, num mudo entregar-se de si mesma: — Menina... menina... Ela, porém, o enlaçara, o envolvera, num enroscar de ofídio e Pai Chico sentiu, numa tonteira, rodar a casa, faltar-lhe onde pisar, como se fosse desmaiando. Nesse instante um cavalo troteou no terreiro e a voz de Manézinho se fez ouvir, aos gritos: — Gente de casa! Olá! Parece que está tudo dormindo já a esta hora! Sozinho, na varanda, enquanto esperava clarear, Pai Chico ruminava o acontecido na véspera. Fôra uma felicidade a chegada do filho, que tendo liquidado os negócios mais cedo, antecipara de dois dias a volta. Corá recebera-o numa alegria intensa, que não condizia com o seu proceder nos últimos dias, em que parecia evitar até a lembrança do marido. Pai Chico os viu subir para o quarto, num arrulhar de pombos, que se prolongou noite adentro. E, torturado, passou o velho, numa agonia a imaginar o que poderia ter sido se Manézinho demorasse mais uns minutos. Mesclava-se-Ihe na idéia um remorso do que fizera a um pesar do que não chegara a fazer... Sentia-se, entretanto, quase liberto de quaisquer preocupações, ante a idéia de que ela fôra quem o procurara, todos aqueles dias passados. Nos lábios, pungia-Ihe ainda a dor aguada da ferida que ela lhe fizera, imprimindo-lhe fundo a marca dos seus caninos agudos. Era bem uma mordida de cobra Com a cabeça a tumultuar desses desencontrados pensamentos, Pai Chico descera até o córrego, onde, antes de tomar o seu banho de costume, ficou largo tempo, banzo e casmurro, a meditar na sua vida. Subiu quase uma hora depois. Já clareava o dia, mas um silêncio profundo reinava naquele recanto de vale adormecido. Ao ganhar o trilho que ia sair nos fundos da casa, Pai Chico cuidou ouvir uma bulha no mato, o agitar de umas moitas, e, logo após, atravessou o caminho uma coral, de bom tamanho, linda, toda vermelha e 21 JOSÉ DE MESQUITA 24 CORÁ anelada, a deslizar sobre areia de ouro. O velho apanhou um pau, grosso e roliço, que encontrou na estrada, e, cercando a cobra em sua passagem, matou-a, com um golpe certeiro na cabeça. Esteve longo tempo a examiná-la. Belo animal! Que pele admirável! pensava. E, por inconsciente associação de idéias, lembrou-lhe a "outra", a corá que o perseguia, que lhe roubara a paz e a felicidade. Também ela deveria morrer... Era a única saída àquele horror em que se via. Uma idéia cruel, fria, o empolgou desde essa hora. Era, sem dúvida, Deus que lhe pusera no caminho aquela cobra, para mostrar-lhe como deveria proceder. dormindo, num oceano de sangue que inundava o travesseiro, o lençol, o leito todo... E, num riso de fera, num esgar de louco, Pai Chico, atirando-se ao filho, que acordara, tonto, sem compreender ainda o que se passava, lhe disse, baixinho: — Não se assuste, meu filho. Não foi nada... Matei uma corá que estava querendo estragar a nossa vida. Já não tinha mais hesitação. Subiu, pé ante pé, entrou na casa silenciosa, galgou a escadinha toscaque dava para o dormitório do casal. Na embriaguez da noite de amor e de saudade, não lhe ocorrera sequer fechar a porta, que o negro, num leve empurrão, descerrou. Louco, possuído da idéia que o obcecava, achegou-se à cama do casal, onde, exaustos da noitada, os dois ressonavam, num profundo torpor. Corá trazia aquele roupão fatídico, que mais lhe acentuava a semelhança com as "outras", suas companheiras... Inerte, numa prostração, ela, meio descomposta, ofertava às vistas do velho o seu corpo,no impudor inconsciente do sono. Um dos braços decaía-lhe sobre os seios e outro ainda envolvia, num amplexo de carícia, o pescoço de Manézinho. Pai Chico aproximou-se dela. Tremiam-lhe as pernas. Um ríctus diabólico lhe aflorava aos lábios. E, alçando o cacete, o mesmo com que matara a corá da estrada, desfechou uma pancada seca sobre a linda cabeça de Corá, que ali mesmo continuou dormindo, 23
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