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1930_Cora

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JJoosséé ddee MMeessqquuiittaa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CCoorráá 
 
CCoonnttoo RReeggiioonnaall 
 
JOSÉ DE MESQUITA 
 2
 
Escrito em 1930, e: 
1) Publicado em 1932, na Revista Nova (1931-1932), de 
São Paulo. Revista literária, de Paulo Prado, Mário de 
Andrade e Antônio de Alcântara Machado. Era espaço 
de publicação de textos “modernistas”. 
2) Publicado em 1959 (em 1° edição) e em 1961 (em 2° 
edição), no volume X, “AS SELVAS E O 
PANTANAL - Goiás e Mato Grosso”, da coleção 
Histórias e Paisagens do Brasil, Editora Cultrix 
(Ernani Silva Bruno e Diaulas Riedel), em São Paulo. 
3) Publicado em 2001, na Revista Vôte, Nº 5. Revista 
publicada com recursos da Lei de Incentivo à Cultura, 
através da Secretaria de Estado de Cultura, do 
Governo do Estado de Mato Grosso, em Cuiabá. 
CORÁ 
 
 
 
 
 
 
José Barnabé de Mesquita 
(*10/03/1892 †22/06/1961) 
Cuiabá - Mato Grosso 
 
Biblioteca Virtual José de Mesquita 
http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm
JOSÉ DE MESQUITA 
 4
 
 3 
JOSÉ DE MESQUITA 
 6
CORÁ 
Pai Chico estava tirando um trago de fumaça 
perto do Jirau, quando Manézinho entrou. 
tomar mulher para toda a vida. Corá é moça andeja, 
cabecinha de vento. Não dá corte de dona de casa, 
não sai dali uma mãe de filho... — Papai, abençoa... Eu andava mesmo à sua 
procura pra mode uma coisa que lhe preciso dizer. — Oh! Meu pai! — exclamou Manézinho, 
escandalizado com a linguagem rude do velho. — 
Ela é um pouco sapeca, lá isso é, mas se o pai 
visse como ela tem mudado aquele gênio... 
 O velho olhou de esguelha para o filho que não 
via desde três dias e tirou uma baforada do pito, 
sem dizer uma palavra. 
— O pai sabe que ando gostando da Corá. 
Vem desde o ano passado esse namoro. Foi na 
festa do Espírito Santo... Ela também, pelos modos, 
gosta de mim. E eu vim dizer ao pai que estou 
resolvido a pedir a Corá... 
— Sim. Lábias para enganar bobos. A mim é 
que não pega. 
 Olhe, assim foi a mãe dela, a Batica, 
que hoje anda aí por esses mundos de Deus... 
Aquilo é de raça, é de família e não há pior 
desgraça para um homem direito, sério, que quer 
trabalhar, do que topar com uma diaba 
dessas...Você sabe a história da Batica, não? Em 
vida do marido, ainda soube fingir, a ponto de ele 
nunca desconfiar... Depois, foi aquele corre-corre, a 
quem mais der. Não serve, meu filho... não serve. 
Desvanece disso, porque Corá vai no mesmo 
caminho da outra. Veja você o que ela pintou com o 
Tonico, na Serra. 
Pai Chico quedou-se uns minutos olhando o 
rapaz que, de pé, diante dele, torcia entre as mãos 
o chapéu de carandá, numa visível atitude de 
constrangimento. 
A tarde caía, fresca e suave, e no terreiro, 
em frente, um bando de galinhas, perus e angolas 
se espojava, perto de um moital de mangaritos. 
— Manézinho, — disse afinal o velho — 
Você é um homem para saber o que faz.. Você já 
tem mais de trinta e há muito não me consulta 
sobre seus negócios... Isso de casamento é coisa 
séria, é um passo que a gente depois que dá não 
pode recuar. Você sabe que eu estimo muito a 
Corá, que o pai dela, que Deus haja, foi um dos 
meus melhores amigos... Conheci Corá, posso 
dizer, desde a hora de nascer. Foi sempre viva, 
esperta, ladina como quê... Quantas vezes 
carreguei a pequena no colo e fui com ela, já 
grandinha, ao mato, apanhar mangaba e 
marmelada! Mas Corá não lhe serve, meu filho. 
Para namoro, de passatempo, está muito bom. Para 
mulher, não. Uma coisa é brincar, distrair com os 
agrados, conversas e passeios...Muito outra é 
Depois, com o Zequinha, da siá Eusébia. 
Ainda há pouco com o filho do major Lalau. E até 
Deus me perdoe dizem que com o próprio Lalau, 
que é, você sabe, um maroto daqueles... Larga 
disso, Manézinho, que ela não lhe serve. Você 
repare bem uma coisa: aquela criatura tem parte 
com cobra. Ah! Tem! 
— Meu pai! Isso também é demais! Vancê 
tem prevenção a toa com a moça! — exclamou 
Manézinho, revoltado. 
— E o nome dela está dizendo o que ela é - 
continuou, sem perturbar-se, Pai Chico. 
— Cobra corá... Você já botou tento em 
como ela anda, toda se requebrando, toda num 
 5 
JOSÉ DE MESQUITA 
 8
CORÁ 
ziguezague, num remelexo de cobra a se arrastar 
no chão? E as feições dela, Manézinho? Aquilo é vê 
cobra corá. Tal e qual.. Os olhinhos dela, a cor da 
pele, muito corada, a cabeça, muito preta, curta, 
quase sem pescoço, o jeito de mexer... Os dentes 
já viu bem os dentes de Corá? os de cima muito 
saídos, com aquelas presas... Hum... pode ser que 
me engane, mas ali ela tem, deve ter veneno 
guardado! 
todos os luxos e caprichos dela... 
Manézinho continuava a refletir, 
macambúzio, casmurro. Não lhe era possível 
dissimular a impressão que lhe viera das palavras 
sensatas do velho. E, com pavor, reconhecia exatas 
suas ponderações, sobretudo no que se referia a 
semelhança da moça com as serpentes do gênero 
coral. E até o nome vinha auxiliar aquela 
associação mental: Corá, corruptela caseira de 
Escolástica. O sertanejo, em permanente contato 
com a natureza, tem extraordinário poder de 
analogia e estabelece verdadeira simbólica entre as 
pessoas e as coisas que o rodeiam... Manézinho 
sentia a fundo a realidade daquela comparação. 
Mais alto, porém, que tudo, gritou no seu espírito 
conturbado, a voz dominadora do amor que o 
cegava: 
— Figa, meu pai! gritou, horrorizado, 
Manézinho. 
— Aquele corpo muito roliço, todo dengue, 
todo a desmanchar em não me toques... aquele 
modo de falar meio assoviando... Jesus! Aquilo tudo 
é de cobra, e de cobra corá, fique certo. Queira 
Deus que eu me engane — concluiu o velho — Mas 
aquela mulher tem parentesco perto com cobra... 
Manézinho pôs-se a pensar, metido em si, 
triste, desapontado. Não esperava tão áspera 
acolhida. No íntimo, doía-Ihe a repulsa do pai, a 
quem muito queria, por aquela criatura que era hoje 
tudo para ele, que conseguira dominá-lo, no império 
de uma paixão irresistível. 
— Será tudo que vancê diz, meu pai, mas eu 
é que já não vivo sem aquela mulher! Sinto ter de o 
contrariar; apesar do respeito que lhe devo, declaro 
que, domingo, peço Corá e antes do natal ela será 
minha mulher... 
E sem mais dizer, sem sequer tomar a 
benção do velho, disparou, estrada a fora, rumo da 
casa da namorada. 
O velho, vendo o seu enleio, continuou: 
— Que ela é bonita, lá isso é, mas que vale a 
beleza que não dá sossego? Moça qude já teve 
quatro, cinco namorados, quem pode assegurar 
que, casada, se contente com um homem? Não 
quero estragar sua vida, meu filho, por isso é que 
digo e redigo: não serve para você aquela mulher... 
Depois, lembre do que seu avô dizia sempre: “Não 
te cases com mulher de condição superior, que te 
humilhe, nem inferior, que te vexe”. Você é 
curiboca, procura mulher da sua cor. Deixa Corá, 
que é branca, para branco, que possa satisfazer 
Esfriava. Um vento pesado começava a 
correr, com o cair da noite. Pai Chico levantou-se, 
para entrar no rancho, mas ainda ergueu os 
punhos, em sinal de ameaça, na direção para onde 
partira o filho tresloucado: 
 — Bacorá! Amaldiçoada! Você há de me pagar! 
Longe, no silêncio da noitinha, ouviu-se,fino, 
estrídulo, um assovio prolongado, quase como um 
silvo de serpe a esgueirar-se entre as moitas... 
Casaram-se pela Conceição e foram morar 
 7 
JOSÉ DE MESQUITA 
 10
CORÁ 
num casebre ao lado do de Pai Chico, já no laçante 
do córrego. Corá foi, nos primeiros tempos, uma 
pomba sem fel. Manézinho vivia encantado com ela 
e fazia-lhe todos os gostos. Conseguiu trazer o pai 
para sua casa, sob pretexto de dar companhia a 
Corá, quando ele fosse obrigado a sair. A vida 
entrou-Ihes de correr mansa e tranqüila, como uma 
água quieta de ribeirão, no meio da várzea. 
Comiam juntos, na varandinha aberta,que dava 
para o jardim, de que Corá cuidava 
caprichosamente. Acabado o jantar, ficavam 
conversando no terreiro até a hora em que os dois 
casadinhos iam para o quarto de cima, ficando Pai 
Chico a ronronar, cachimbando, no degrau. 
sogro por a mesa ao terreiro para almoçarem 
juntos. Pai Chico, acostumado desde o começo a 
comer de cócoras, no canto que dava para a 
cozinha nunca fora convidado para a mesa, a que, 
de resto, se não ajeitaria recusou. Quis opor-se, em 
vão, talo insistente pedido a que não havia fugir. 
— Esta diaba tem jeito de pedir as coisas, 
que a gente não sabe negar... — disse, consigo 
mesmo, o preto velho. 
E, de se para si, Pai Chico se confessava 
vencido. Nesses três dias de convivência, Corá 
modificara por inteiro a opinião que antes o sogro 
fazia a seu respeito, pois, além de não lhe dar 
motivo de queixa, desautorizava, com seu proceder, 
as antigas e fundadas suspeitas de leviandade. Jogavam, às vezes, o truco. Raro, saíam. As 
chuvas, nesse ano muito fortes, compeliam 
docemente a vida caseira, plácida, de familiar 
recolhimento. Três meses depois do casamento, 
pela enchente de São José, Manézinho teve 
necessidade se ir ao sítio por uns negócios de 
gado. Era a primeira separação e Corá chorou 
muito, abraçada ao marido, pedindo-lhe que não 
fosse. Passou fechada no quarto todo o dia sem 
descer, recusando até alimento. No outro dia 
apareceu, já na hora do almoço, com as feições 
abatidas, um tudo nada de languidez, de abandono 
de si mesma. Trazia um roupão vermelho, de 
longas listras pretas, que lhe viera no enxoval, mas 
que, pela primeira vez, usava. Arrastando os 
chinelos de couro, numa apatia de quem se 
desinteressava de tudo, veio, quieta e tristonha, 
sentar-se no batente da porta, ao lado do velho, que 
cachimbava, macambúzio. Esperou que saísse um 
vizinho, que viera falar a Pai Chico de um milho que 
queria comprar mesmo em espiga, e propôs ao 
— Quem sabe, bem pode ser mentira, 
despeito, aquilo que diziam dela, coitadinha! Isso de 
namoros, tempo de moça, quem é que não tem? Se 
mesmo a Joana, que Deus tenha, não fui eu o 
primeiro de quem ela gostou... E, séria como 
aquela, está por nascer. 
Assim monologava o velho, enquanto a nora 
ia e vinha, num afã, preparando a mesa para o 
almoço. Estalou uns ovos, apanhou no terreiro 
umas folhas de cebola verde, pimenta para o 
caruru, que sabia ser um dos pratos preferidos de 
Pai Chico. Durante o comer, não cessou sua 
loquacidade. Sentada em frente do velho, ria-se, 
expansiva e tagarela, a cada esquerdice que ele, no 
seu desajeitamento, praticava. Quando acabaram 
convidou-o a passear até o córrego. Ele pretextou 
uma dor de cabeça, enxaqueca velha, para não ir. 
— Ora, o dia está fresco, meu pai... Isso faz 
mal, vancê ficar aí o dia inteiro, na mesma posição, 
chupando esse pito sarrento... 
 9 
JOSÉ DE MESQUITA 
 12
CORÁ 
Saíram. Ele sorria, vencido pelos agrados da 
moça. O mormação muito quente esbraseava o ar. 
Ela, para evitá-lo, arrepanhara o roupão, erguendo-
o à altura da cabecinha, protegendo-a como uma 
coberta. No seu desleixo caseiro, não trazia saia 
branca e deixava ver, sob a camisa de mulher, cura 
até os joelhos, as pernas roliças, penugentas e o 
relevo provocante das ancas. 
Insensivelmente, ela o foi pondo à vontade, com 
aqueles modos muito dela, desembaraçados e 
alegres. Deixando a sua habitual casmurrice, Pai 
Chico contou histórias do seu tempo, anedotas do 
sertão, episódios de sua vida de moço. Sentaram-
se no terreiro, à sombra de uma velha chagueira, e 
enquanto Corá fazia seu crivo, o velho tagarelava, 
tirando enormes baforadas no cachimbo de barro. 
De vez em vez, a moça entreparava no serviço, e, 
risonha, descansava nele os olhos miudinhos, 
vivos, úmidos, sempre como se andasse 
constantemente a chorar, de tristeza ou de alegria. 
E Pai Chico sentia que aquele olhar, repousado, 
parado quase, coando-se num espasmo, por baixo 
das pestanas veladas, exercia um fascínio 
poderoso sobre ele. Bulia-lhe com todo ser, corpo e 
alma, parecia atraí-lo para ela, para perto dela... E, 
sem querer, fitava-a, de esguelha, atentando-lhe 
nas feições,que achava mais bonitas do que antes, 
nos lábios grossos que ela, volta e meia, como num 
cacoete, umedecia, passando-Ihes a lingüinha fina 
e rubra... Foi-se toda a tarde naquela descuidada 
palestra e o sol já se punha. E a sombra entrava de 
crescer, envolvendo o terreiro silencioso, onde a 
criação se empoleirava, quando ela, num gritinho de 
susto, exclamou: 
Ria, falava sem cessar, como quando junto 
de Manézinho. 
— Está fresco, está!... — disse Pai Chico, 
para dizer alguma coisa. 
Corá, suando em bicas, riu-se da observação 
irônica do velho, com que buscava contradizer a 
afirmação dela à saída e replicou: 
— É verdade... Não pensei que estivesse tão 
quente assim! O sol não está de fora, mas o 
mormaço é pior que o próprio sol... 
De volta do ribeirão, donde Corá trouxe uns 
pés de samambaia que lhe havia encomendado a 
Tuda, do Zé Nanico, Pai Chico, que 
propositadamente se atrasara, a vinha observando. 
O andar coleante, a cabecinha irrequieta, a volver-
se a cada momento para todos os lados, o falar 
estridente, num tom de silvo, mostrando os incisivos 
salientes, lhe haviam reavivado a semelhança da 
nora com as corais, semelhança que naquela hora, 
mais se acentuava pelo traje que ela trazia, uma 
verdadeira pele de cobra, vermelhaça com rajas 
pretas. E, de novo, começava no espírito 
conturbado do negro, a luta entre os sentimentos 
antagônicos, um que o levava a temer e evitar a 
intimidade daquela mulher perigosa e outro que, 
sem o querer, o envolvia, lento, lento, nas 
enfeitiçadoras e enliçantes carícias da nora. 
— Jesus! Pai, não é que já é noite, e nós 
aqui nesta mamparreação? 
Pai Chico, quase sem acordo do tempo, só 
então viu que.se esquecera de tudo, a prosear com 
a moça. Nem h.avia pensado em recolher as vacas 
no curral, nem em ralar seu guaraná ou picar o 
fumo para.a noite... Corá correra à cozinha para ver 
o.jantar, já frio, pois o fogo se apagara e até o 
borralho se fizera pura cinza. Jantaram já de noite 
 11 
JOSÉ DE MESQUITA 
 14
CORÁ 
fechada. à luz da lamparina, frouxa e morrente. E 
quando Corá, depois.de haver ajuntado a louça, na 
gamela, para lavar no dia seguinte, subiu para seu 
quarto, Pai Chico foi-lhe preciso ter força sobre si 
para não a acompanhar, tal a:atração irresistível 
que sentia exercer no seu sentimento aquela 
criatura. Ela, já em liberdade, ainda voltou até o 
meio da escada, para pedir-lhe os fósforos que 
havia esquecido. Trôpego, quase cambaleando, Pai 
Chico conseguiu chegar perto da nora, que. A sorrir, 
com mal fingida malícia, lhe disse: 
suas chinelas, no soalho, e, no silêncio enorme, até 
seu respirar harmônico e sereno, que uma ou vez, 
um suspiro longo entrecortava. Por que deixara ela 
a porta apenas encostada, quando era costume 
fechá-la com o trinco, estando Manézinho? Um 
impulso irresistível o arrastava até junto dela... nem 
ele sabia por que ou para quê... mas a idéia de que 
ela ali estava a alguns passos apenas, o torturava 
horrivelmente, como se fosse a consciência do 
perigo ou o medo da própria covardia... Muito tarde, 
ouviu uma serenata, longe, já depois da sair, ao 
doce amiudar dos galos. Apenas lhe chegavam os 
bordões do violão e a lenta, Iangue toada do verso, 
que ele reconheceu como sendo uma canção de 
que Corá muito gostava: 
— Boa noite, pai... Foi tão bom o nosso dia. 
Que pena não possa ser assim a noite... 
E, cerrando a porta, ainda sussurrou. Em tom 
para ser ouvida por ele: 
— Quando virá meu Manézinho? Que falta 
faz à gente um marido! 
mulher é como cobra, 
vem quando menos se quer... 
Pai Chico passou em claro a noite. Fazia um 
calor terrível e o velho virou e revirouna rede até o 
amanhecer. O luar veio já de madrugada encontrá-
lo com os olhos da véspera, pisados e secos. No 
brejo, atrás da casa, uma rã cantou toda noite, em 
coro com o lirismo vagabundo dos grilos. Pai Chico 
sentia dentro de si, a um só tempo, todas as 
delícias do céu e todos os horrores do inferno. 
Quem não tem corpo fechado 
Ai! Cuidado! 
Não se chegue com mulher... 
Pai Chico estremeceu, ao recordar a letra 
expressiva e simples da cantiga. Era bem aquilo! 
Corá ali estava para despertá-lo à realidade doce e 
pungente, Corá, a boicorá perigosa, que, a despeito 
de toda sua prevenção, já começava a instilar-Ihe 
suavemente seu veneno pérfido... Ele, velho, mais 
de seus setenta, quase um trapo de homem, ainda 
não tinha o corpo fechado para esses amavios de 
mulher... E, por outro lado, impressionava-o a idéia 
de que Corá desejasse conquistá-lo, a ele, quase 
uma múmia, sombra de gente, tapera humana, já 
morta em vida... Tão perigosa era, assim, aquela 
criatura ou exercia ela, sem o sentir, o seu poder 
maléfico, como as serpentes que matam sem 
consciência, talvez, do que fazem? E revia-a, o seu 
Fechava os olhos, para não ver, e via; tapava os 
ouvidos, para não escutar, e escutava. Viu Corá, 
tentadora e meiga, a sorrir-lhe; ouviu-a, na sua 
parolice gárrula, em que havia tanto ingenuidade 
como malícia, entremescladas... Sentia que era feliz 
por causa dela e que ela o poderia fazer muito 
desgraçado. E, entretanto, onde encontrar em si 
forças apara fugir-lhe, para evitar a fascinação 
indominável que dela toda se desprendia? Cuidava 
ouvir, lá em cima, o ronron da rede, o barulho de 
 13 
JOSÉ DE MESQUITA 
 16
CORÁ 
olhar, diante do qual se sentia como um passarinho 
atraído pelo filtro letal que projetam as cobras... o 
seu rir, só dela, com aquele passar e repassar da 
língua úmida sobre os lábios, da língua que, para 
ser viperina, só lhe faltava a bifidez... Pai Chico, 
horrorizado do rumo a que iam se enveredando as 
suas idéias, ergueu-se, num pulo, da rede cearense 
e, atando a cinteira de couro sobre a calça de 
mescla, saiu para o terreiro, exclamando: 
E nesse tom, a colubrina criatura, 
exasperava de momento a momento os nervos 
amolentados do pobre velho. A libido, adormecida 
há muito, acordava nele, como o rugido de uma fera 
de seus desertos africanos, ao látego vibrante 
daquela cruel domadora. E Corá ria, ria, ria. E o seu 
riso satânico tinha o estrídulo som dos silvos das 
serpes, suas irmãs... Já Pai Chico lhe não era 
mister andar se escondendo pelos sarãs e ferindo-
se nos cansasões da margem, para vê-Ia, à hora 
matinal do banho no ribeirão. Via-a o dia todo, 
numa dádiva lânguida e aliciante do seu corpo 
admirável de morena clara, a ofertar-Ihe, sob a 
camiseta, leve e decotada, que lhe punha à mostra, 
sob os cabeções de crivo ou crochê, os amplos 
seios, opulentos e firmes na sua magnífica e ereta 
apojadura de sangue; via-lhe, atarracados pela 
ombreira, os braços roliços e grossos, pubescentes 
como folha de malva-maçã e, sob a cova macia que 
faziam, ela lhe entremostrava, a cada passo, com o 
pretexto de endireitar o cabelo, a maranha 
negríssima das axilas... De toda ela se desprendia 
um fluido perverso de sedução, de sensualidade 
moça e sadia. Pai Chico sentia-se vencido, mas 
custava-lhe confessá-lo. Não se animava a 
repreender a nora por aquilo que fazia, não só 
porque lhe parecia natural e sem estudo, da parte 
dela, como ainda porque seria, talvez, um motivo de 
ela agastar-se e esfriar no trato com ele... E, no seu 
egoísmo, aquilo lhe doía, Assim corria a semana, 
ao fim da qual deveria regressar Manézinho. Pai 
Chico, na incoerência da paixão, agravada pela 
senilidade, ansiava pela volta do filho e desejava, 
ao mesmo tempo, que um imprevisto o retardasse. 
O imprevisto veio. Manézinho mandou dizer a Corá 
— Tomara que Manézinho não demore e que 
acerte logo este negócio de gado! 
Dentro dele, porém, um "outro" ciciou, no seu 
cérebro esgotado pela insônia, entre uma zoada 
infernal que lhe enchia os ouvidos de um longo 
escachôo de corredeiras: 
— Manézinho... Manézinho pode vir.. você é 
que nunca mais terá sossego. A Corá já picou seu 
coração... 
Quis Pai Chico reagir contra o veneno, que, 
sutil, se lhe instilara nas veias, mas foi debalde. 
Corá o dominava inteiramente e, o que é pior, 
parecia divertir-se à sua custa, gozar do seu 
completo esmagamento. Era um inimigo que ela 
conseguira inutilizar... Brincava com ele, dizia-lhe 
liberdades, ria-se muito ao ver-lhe a atrapalhação e 
a esquivança com que procurava fugir ao seu 
influxo empolgante e vencedor. 
Já não tinha cerimônias com ele. E fazia tudo 
aquilo sem ar de maldade, como se fosse a mais 
ingênua menina. Para vestir-se ou despir-se perto 
dele, ela costumava dizer, rindo-se, 
convulsivamente: 
— Pai Chico, olhe do outro lado... Também, 
pai não está mais para ver certas coisas... A vista já 
encurtou... e, depois, já deve ter visto tanto... 
 15 
JOSÉ DE MESQUITA 
 18
CORÁ 
que, tendo de esperar o boiadeiro que não havia 
chegado, era-lhe forçoso passar mais uma semana 
no "sítio". Ela contou a notícia a Pai Chico, sorrindo, 
como se não lhe fizesse mossa. 
que não fugia dali, sob qualquer desculpa?... Ficar, 
era cada hora se chafurdar mais naquele pântano, 
em que se ia afogando deliciosamente... Oh! Aquilo 
era, talvez, um castigo, por haver caluniado, 
desprezado a moça, antes de ser sua nora. Uma 
tarde, já na segunda semana da ausência do filho, 
Pai Chico esteve a pique de naufragar com todos os 
seus escrúpulos. Corá, entrando na cozinha, levou 
uma escorregadela de mau jeito e machucou-se. 
Veio coxeando até junto do sogro a quem pediu que 
lhe fosse buscar, em cima, o vidro de cachaça 
canforada. E apoiando a perna sobre o tamborete 
de couro, a gemer, sofraldou a roupa até o ponto 
contundido, bem acima do joelho direito. Pai Chico 
teve um choque formidável à vista daquela perna 
que se lhe exibia, impudica, na inconsciência da 
dor. Todo sangue lhe afluiu ao rosto, e, a dois 
passos dela, tremia, como uma criança que vê um 
perigo iminente. 
— Manézinho esquece que tem mulher... 
Deixa a gente sozinha tanto tempo e isso não é 
bom, não acha, pai? 
O velho viu naquele fato trivial na vida dos 
sertanejos o adiamento de um negócio, de uma 
viagem o dedo misterioso do destino que o 
entregava àquela mulher. Fatalista como todo 
caipira, em quem a religião transforma numa 
passividade diante da sorte, Pai Chico deixava-se, 
levar no arrastão da corrente. Corá tê-Io ia a um 
aceno, à hora que quisesse. Ele não acenderia o 
rastilho, mas, aceso, não seria ele quem recuasse. 
Ia para ela como para a morte: porque era preciso. 
De repente, porém, a lembrança do filho se 
superpunha àquelas idéias, se entremetia no seu 
espírito, como um avejão escuro, a voar 
sinistramente, apartando-o de Corá. E um horror de 
si mesmo, de haver consentido naquelas coisas, lhe 
vinha, como a nítida consciência do remorso na 
alma do criminoso. Não, aquilo não poderia ser. Era 
monstruoso. Aquela menina, cuja idade era cinco 
vezes inferior a dele, além de tudo era sua nora, 
estava no lugar de sua filha. Manézinho lhe 
confiara, dizendo, ao sair: 
Corá, a quem a dor magoava muito, não dera 
pelo estado do velho e pediu-lhe, súplice: 
— Faz uma fricção ai, pai. Olhe... arnica 
ainda é melhor. Ali, no armarinho tem um vidro. 
Pai Chico, entretanto, se revelara de vez. 
Inútil qualquer simulação: os olhos esbugalhados, o 
seio a arfar, todo ele um hircino acordar de 
animalidade, começou a andar de costas, como 
querendo fugir à envolvente tentação que o prendia. 
— Papai, tome tento na Corá... Ela vai sentir 
tanto a minha falta, tadinha! 
— Não... não...Corá — dizia, 
desarticuladamente — Não... Isso não... - e, como 
tomado da loucura momentânea.— Manézinho 
vem aí e pode ver. 
Àquela confiança, seria ele tão miserável de 
retribuir roubando-lhe a mulher! E logo ele, ele que 
abrira as vistas do filho, julgando conhecê-la, para 
depois vilmente o trair, seduzido pelos mimalhos 
daquela serpente! Nunca! Nunca... mas então, por 
A moça, num relance, apanhou tudo. 
Senhora da situação, viu que tinha nas mãos o seu 
velho adversário. Não era ainda o momento, 
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CORÁ 
pensou. E, estralejando uma risada gostosa, 
demoníaca: 
E, num suspiro: 
— Pobre Manézinho! 
— Irra, pai! Isto é paixa, sim senhor! E da 
boa! Livra que seu filho venha a saber desse 
rabicho! 
— Por quê? fez Pai Chico, sobressaltado. 
— Porque vai tomar chuva pelo caminho... 
Pai já esqueceu que ele está chega não chega? 
Desde esse dia Pai Chico percebeu que 
estava nas mãos de Corá. Esta. Logo que se 
convencera da completa rendição do velho, 
passara a fazer dele um joguete infantil, tentando-o 
por todas as maneiras, para depois, ao vê-lo 
enfuriado, desfechar-lhe de chofre uma gargalhada 
de zombaria, que era como uma ducha gelada na 
paixão decrépita, mais ainda fervida, do negro. Via 
Pai Chico que tal paixão não podia prolongar-se. 
— Ora — respondeu o velho num muxoxo — 
Ele está acostumado. É homem viajado e 
vaqueano. 
Corá sentara-se na rede, e com um sorriso 
de maldade, perguntou: 
— Pai, aposto que o senhor não tem muita 
pressa que ele volte? 
Compreendendo aonde ela queria chegar, 
preferiu o velho mostrar-se ingênuo e ignorante. 
Como efeito, nas guerras do amor, é impossível 
manter por muito a beligerância: ou há, fatal e 
rápida, a rendição ou o próprio tempo traz o 
desfecho, pelo recuo ou pele frieza. Já ia quase no 
fim de semana e aproximava-se o Sábado, para o 
qual se anunciara Manézinho o seu regresso. Uma 
tarde, Pai Chico que voltava da lenha, deu com a 
Nora deitada na rede, que, devido ao calor, armara 
na varanda aberta, ao lado do terreiro. Estava-se 
em fins de março, as chuvas iam acabando, mas 
fazia um calor inaudido. O ar abafava; uma torreira 
parecia comburir o mundo. Corá, trazendo sobre o 
corpo apenas o roupão vermelho, que parecia 
preferir nesses dias tórridos, embalava-se, 
indolente, com uma perna fora da rede, fazendo de 
remo daquela leve embarcação. Pai Chico quedara-
se de pé à porta da cozinha, onde atirava o feixe de 
lenha que havia trazido do mato. 
— Eu? Por que não? Acho até que ele está 
demorando muito... 
— Sério, pai? — insistiu Corá, quase 
desfechando uma de suas risadas, diante da 
constrangida situação em que via o sogro. 
E, de repente, fazendo-se de séria, e 
parando o balanço da rede: 
— Diga, Pai Chico, mas diga com franqueza, 
o senhor gosta mesmo de mim? 
O negro sentiu faltar-lhe o solo. Trêmulo, 
gaguejante, replicou com outra pergunta: 
— Mas por que não hei de gostar? 
Corá sorriu de leve, gozando o embaraço 
cada vez maior do velho e, após alguns segundos 
de hesitação, sussurrou, quase num silvo, entre os 
dentes fechados: 
— Pois, olhe, eu também, gosto muito, muito 
do meu velho... Pai Chico sentiu que era chegada a 
hora decisiva. Corá levantara-se, e, pondo-lhe a 
mão no ombro, flexuosa e coleante perguntou: 
— Vamos ter chuva esta noite, meu velho 
disse ela, provocando a conversa. Este calor 
abafado é sinal de água... — E quando duas pessoas se gostam... e 
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CORÁ 
nada atrapalha o que é que se faz, meu velho? . pensava. Nunca, na sua vida, uma mulher o beijara 
assim... O veneno! Certo, ela lhe inoculara o 
veneno de que devia estar cheia... E sentia-se 
perdido. Nunca mais teria sossego. Via que a luta ia 
continuar, pior ainda na sombra, com a presença do 
filho e rival, por quem já sentia mal disfarçada 
odiosidade. Que horrível situação a sua! Já via, no 
dia seguinte, a miserável a tentá-lo de novo, na 
presença de Manézinho, e talvez até revelando, nas 
meias frases e indiretas em que era useira e 
vezeira, a fraqueza dele diante da paixão 
endemoninhada que o possuía. Ia ser um inferno. E 
ele tinha certeza de que sucumbiria, por fim, pois o 
veneno já lhe corria nas veias, O vírus daquele beijo 
fatal de ofídio humano... Não sabia explicar por que 
ela o perseguira, o desejara. Nada havia nele do 
que geralmente atrai as mulheres: mocidade, 
beleza, vivacidade ou força. Nada. Um molambo de 
homem, pouco menos do que um defunto. Seria, 
certamente, o prazer de vingar-se dele, de o 
esmagar, de o humilhar... Ela bem sabia que ele se 
opusera ao casamento e quereria, quiçá, mostrar-
lhe, numa represália satânica, o seu poderio, o seu 
feitiço irresistível. 
Não pôde o negro articular uma resposta. 
Dera um passo para trás, como fugindo ao bote 
serpentino. A custo pôde dizer, enquanto ela, em 
frente estendia a boca, num mudo entregar-se de si 
mesma: 
— Menina... menina... 
Ela, porém, o enlaçara, o envolvera, num 
enroscar de ofídio e Pai Chico sentiu, numa 
tonteira, rodar a casa, faltar-lhe onde pisar, como se 
fosse desmaiando. Nesse instante um cavalo 
troteou no terreiro e a voz de Manézinho se fez 
ouvir, aos gritos: 
— Gente de casa! Olá! Parece que está 
tudo dormindo já a esta hora! 
Sozinho, na varanda, enquanto esperava 
clarear, Pai Chico ruminava o acontecido na 
véspera. Fôra uma felicidade a chegada do filho, 
que tendo liquidado os negócios mais cedo, 
antecipara de dois dias a volta. Corá recebera-o 
numa alegria intensa, que não condizia com o seu 
proceder nos últimos dias, em que parecia evitar até 
a lembrança do marido. Pai Chico os viu subir para 
o quarto, num arrulhar de pombos, que se 
prolongou noite adentro. E, torturado, passou o 
velho, numa agonia a imaginar o que poderia ter 
sido se Manézinho demorasse mais uns minutos. 
Mesclava-se-Ihe na idéia um remorso do que fizera 
a um pesar do que não chegara a fazer... Sentia-se, 
entretanto, quase liberto de quaisquer 
preocupações, ante a idéia de que ela fôra quem o 
procurara, todos aqueles dias passados. Nos lábios, 
pungia-Ihe ainda a dor aguada da ferida que ela lhe 
fizera, imprimindo-lhe fundo a marca dos seus 
caninos agudos. Era bem uma mordida de cobra 
Com a cabeça a tumultuar desses 
desencontrados pensamentos, Pai Chico descera 
até o córrego, onde, antes de tomar o seu banho de 
costume, ficou largo tempo, banzo e casmurro, a 
meditar na sua vida. Subiu quase uma hora depois. 
Já clareava o dia, mas um silêncio profundo reinava 
naquele recanto de vale adormecido. Ao ganhar o 
trilho que ia sair nos fundos da casa, Pai Chico 
cuidou ouvir uma bulha no mato, o agitar de umas 
moitas, e, logo após, atravessou o caminho uma 
coral, de bom tamanho, linda, toda vermelha e 
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JOSÉ DE MESQUITA 
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CORÁ 
anelada, a deslizar sobre areia de ouro. O velho 
apanhou um pau, grosso e roliço, que encontrou na 
estrada, e, cercando a cobra em sua passagem, 
matou-a, com um golpe certeiro na cabeça. Esteve 
longo tempo a examiná-la. Belo animal! Que pele 
admirável! pensava. E, por inconsciente associação 
de idéias, lembrou-lhe a "outra", a corá que o 
perseguia, que lhe roubara a paz e a felicidade. 
Também ela deveria morrer... Era a única saída 
àquele horror em que se via. Uma idéia cruel, fria, o 
empolgou desde essa hora. Era, sem dúvida, Deus 
que lhe pusera no caminho aquela cobra, para 
mostrar-lhe como deveria proceder. 
dormindo, num oceano de sangue que inundava o 
travesseiro, o lençol, o leito todo... E, num riso de 
fera, num esgar de louco, Pai Chico, atirando-se ao 
filho, que acordara, tonto, sem compreender ainda o 
que se passava, lhe disse, baixinho: 
— Não se assuste, meu filho. Não foi nada... 
Matei uma corá que estava querendo estragar a 
nossa vida. 
Já não tinha mais hesitação. Subiu, pé ante 
pé, entrou na casa silenciosa, galgou a escadinha 
toscaque dava para o dormitório do casal. Na 
embriaguez da noite de amor e de saudade, não lhe 
ocorrera sequer fechar a porta, que o negro, num 
leve empurrão, descerrou. Louco, possuído da idéia 
que o obcecava, achegou-se à cama do casal, 
onde, exaustos da noitada, os dois ressonavam, 
num profundo torpor. Corá trazia aquele roupão 
fatídico, que mais lhe acentuava a semelhança com 
as "outras", suas companheiras... 
Inerte, numa prostração, ela, meio descomposta, 
ofertava às vistas do velho o seu corpo,no impudor 
inconsciente do sono. Um dos braços decaía-lhe 
sobre os seios e outro ainda envolvia, num amplexo 
de carícia, o pescoço de Manézinho. Pai Chico 
aproximou-se dela. 
Tremiam-lhe as pernas. Um ríctus diabólico 
lhe aflorava aos lábios. E, alçando o cacete, o 
mesmo com que matara a corá da estrada, 
desfechou uma pancada seca sobre a linda cabeça 
de Corá, que ali mesmo continuou dormindo, 
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