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Esse artigo tem por finalidade discorrer sobre o princípio da imparcialidade do juiz e demonstrar que a sua inaplicabilidade decorre em prejuízos irreparáveis para as partes

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Esse artigo tem por finalidade discorrer sobre o princípio da imparcialidade do juiz e demonstrar que a sua inaplicabilidade decorre em prejuízos irreparáveis para as partes, para o Estado e para a sociedade.
Para tanto, além da doutrina sobre o tema, utilizar-se-á uma passagem do livro “Notre-Dame de Paris”, de Victor Hugo, que com excelência, relata uma situação na qual esse princípio foi sumariamente desconsiderado.
Tal artigo contará também com “os ensinamentos” de Jonathan Swift, o célebre escritor do livro As Viagens de Gulliver.
Princípio da Imparcialidade do Juiz
Luis Rodrigues Wambier nos ensina que princípios são normas, com âmbito de incidência ilimitada, que dão coerência e ordem a um conjunto de elementos, sistematizando-os.
Conforme José Cretella Neto é posicionamento majoritário que os princípios que informam o processo com previsão constitucional são: o princípio da ampla defesa, princípio do contraditório, princípio da igualdade das partes perante a lei, princípio da imparcialidade do juiz, princípio do duplo grau de jurisdição, princípio da motivação das decisões judiciais e princípio da publicidade do processo e dos atos judiciais.
Dessa forma, existe um paralelo entre o processo e o regime constitucional. Todo o direito processual, como ramo do direito público, tem sua essência prevista na Constituição Federal, a qual fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, garante a distribuição da justiça e a efetividade do direito objetivo. Além do mais, o direito processual é fundamentalmente determinado pela Constituição em muitos de seus aspectos e institutos característicos. É o que defende Cintra, Grinover e Dinamarco.
Para José Miguel Garcia, o processo busca solucionar, mediante terceira pessoa, uma lide. Este terceiro é um órgão instituído pelo Estado para o desempenho da função jurisdicional. O agente que desempenha essa função deve atuar com imparcialidade, e não pode ter interesse em que o conflito seja solucionado em favor desta ou daquela parte. Sendo assim, as partes sempre devem ser tratadas isonomicamente pelo juiz.
O princípio da imparcialidade do juiz é também conhecido como princípio da alheabilidade. O juiz não pode ter interesse pessoal em relação às partes em litígio, tampouco obter qualquer proveito econômico dele, conforme leciona Rui Portanova.
Podemos dizer, portanto, que são os princípios constitucionais que servem de base para todas as disciplinas processuais.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, preocupada com a imparcialidade do juiz, trouxe, no artigo 95, prerrogativas concedidas aos magistrados, tais como: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos. Ainda, com vistas a garantir esta imparcialidade do juiz, há a vedação do exercício de outro cargo ou função, salvo o de magistério; o recebimento de custas ou participação em processo e a dedicação à atividade político-partidária.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, a Constituição não é um simples ideário, mas sim a transformação de um ideário, conversão de anseios e aspirações em regras impositivas, em comandos e preceitos obrigatórios para todos.
Ensina que normas jurídicas não são conselhos ou sugestões. São determinações. O traço característico do Direito é precisamente o de ser disciplina obrigatória de condutas. Uma vez que as normas são imposições de condutas, depreende-se que a Constituição estabelece comportamentos obrigatórios para o Estado e para os indivíduos.
Pois bem. O princípio da imparcialidade está inserido na Constituição Federal e também classificado como princípio estruturante, considerado trave-mestra jurídico-constitucional do estatuto jurídico, como os demais princípios do juiz natural, imparcialidade, igualdade das partes perante a lei, contraditório e publicidade, de acordo com Cretella.
Ensina, ainda, que outros princípios, como o do juiz natural, o do tribunal de exceção e do promotor natural decorrem do princípio da imparcialidade do juiz. Em breve síntese, o princípio do juiz natural é aquele cujo poder de julgar é concedido pela Constituição Federal ou por lei. O princípio do tribunal de exceção é aquele criado ad hoc, ou seja, é instituído por ato arbitrário para julgar determinado caso. E por fim, o do promotor natural, que estabelece que a lei deve criar cargos específicos, com atribuições próprias de promotor de justiça, vedado ao Procurador-Geral a designação arbitrária.
Corrobora com essa análise a lição de Nelson Nery Junior de que o princípio do juiz natural, enquanto postulado constitucional adotado pela maioria dos países cultos, tem grande importância na garantia do Estado de Direito, bem como na manutenção dos preceitos básicos de imparcialidade do juiz na aplicação da atividade jurisdicional. Segundo o autor, referido princípio compreende três dimensões, a saber: que não haverá tribunal de exceção; que todos têm direito de submeter-se a julgamento – seja ele civil ou penal – por juiz competente e pré constituído na forma da lei e que esse juiz tem de ser imparcial.
Cretella Neto defende que o princípio da imparcialidade do juiz garante que o processo seja julgado por magistrado investido da autoridade legal conferida ao cargo, isento de pressões de qualquer ordem, sujeito apenas à lei e com aptidão para o efetivo exercício da tutela jurisdicional.
O juiz sempre será imparcial quando não tiver interesse no julgamento, mas, sendo o juiz um humano é evidente que o mesmo possui algum tipo de valoração, porém esta não deve atrapalhar ou beneficiar uma das partes da lide, de acordo com Rui Portanova.
Medina ainda complementa que: “o juiz deve atuar de modo imparcial e neutro, o que não significa dizer que deve o juiz atuar de modo passivo, já que deve atuar inspirado pelos valores sociais e econômicos refletidos nos princípios que balizam o sistema jurídico”.
Candido Rangel Dinamarco nos ensina que o caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. O juiz coloca-se entre as partes e acima delas e que esta é a condição para que ele possa exercer sua função dentro do processo. Aduz que a imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente.
Explica que a imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes, e justamente por isso têm elas o direito de exigir um juiz imparcial. E o Estado que reservou para si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever de agir com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas.
Prossegue, ensinando que só a jurisdição subtraída a influencias estranhas pode configurar uma justiça que dê a cada um o que é seu e somente através da garantia de um juiz imparcial o processo pode representar um instrumento não apenas técnico, mas ético também, para a solução dos conflitos interindividuais com a justiça.
Diz mais. Que o moderno direito internacional não poderia ficar alheio ao problema das garantias fundamentais do homem, nem relegar a eficácia do sistema de proteção dos direitos individuais à estrutura constitucional de cada país.
Confirma essa análise, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que no artigo 10 estabeleceu a imparcialidade como um principio universal:
Artigo 10º Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.
A função da Literatura
Conforme nos ensina Antônio Cândido, a função da literatura está ligada à complexidade de sua natureza e pode ser descrita como uma construção de objetos autônomos, manifestação de emoções e da visão de mundo dos indivíduos e grupos e, sobretudo, é uma forma de conhecimento:
"A função da literatura está ligada à complexidade de sua natureza, que explica inclusive o seu papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório).Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão de mundo dos indivíduos e dos grupos; ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. (...) Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável."
Assim, partindo do pressuposto de que a literatura é uma forma de conhecimento, nos utilizaremos dos preciosos textos de Jonathan Swift e de Victor Hugo para ilustrar a doutrina acerca do Princípio da Imparcialidade do Juiz.
Jonathan Swift e As Viagens de Gulliver
Jonhatan Swift (1667-1745) foi escritor, poeta e crítico literário. Também desempenhou funções públicas - de 1710 a 1714 trabalhou como Secretário de Relações Públicas na Inglaterra.
A obra em questão conta as aventuras de um viajante, o Gulliver – mistura viagem, aventura e ficção científica. Entretanto, melhor que tentar recontar em poucas linhas a historia desse livro é mencionar que o elemento de mais valia que ele nos traz é a descrição geral que o autor faz sobre os homens.
Swift descreve a visão da humanidade a partir de quatro contextos. O personagem principal realiza viagens a espaços diferentes e muito peculiares. Encontra mundos e povos esquisitos, que são analogias para os comportamentos duvidosos do homem.
O primeiro, é a percepção a partir do ponto de vista da superioridade física, que vê o outro como um ser ridiculamente pequeno. O segundo contexto é exatamente ao contrário: o narrador é um pequeno ser, que enxerga a humanidade grotescamente grande. No terceiro, impera o senso comum, e grande parte da humanidade apresenta-se louca e perversa. Por fim, o narrador contextualiza a raça humana como seres irracionais.
Gulliver movimenta-se por entre esses mundos, e as visões o deslumbram, de maneira que seu próprio caráter e atitudes mudam. E o próprio autor remete-nos a uma questão importante: como um ser dotado de razão e sensibilidade reage ao crescente conhecimento da natureza humana? Há, sem dúvida, uma ideia de relatividade, já que em cada perspectiva há desilusões e aprendizagem.
Assim é que Gulliver descreve as quatro perspectivas que vivencia, compara-a com o seu mundo real (na narrativa, mora em Londres) de maneira critica, ao seu tempo. Mas, são reflexões e lições atuais e podemos perfeitamente intertextualizá-las com a contemporaneidade. Há, permeada pelo livro, uma ideia de relatividade.
Na Parte Primeira do livro, e a mais importante para este estudo, devido ao mau tempo, e o naufrágio do navio, Gulliver é arrastado para uma estranha terra – Liliput – povoada por minúsculos seres humanos.
O autor visualiza a raça humana em miniatura, que de inicialmente encantadora, transforma-se em traidora, cruel e ambiciosa. Entretanto, antes da desventura, Gulliver aprende sobre os habitantes de Liliput, sua cultura, leis e costumes: Ao conversar com o Imperador desse país, descobre que, diferente dos ingleses, esse povo tem outra perspectiva da Justiça:
“Os liliputianos acharam que existe um prodigioso erro politico entre nós quando lhes contei que nossas leis são reforçadas apenas por punições, sem nenhuma menção a recompensa.
É por isso que a imagem da justiça, nos tribunais deles, é representada por uma figura com seis olhos: dois na frente, dois atrás e um de cada lado, para significar circunspecção; apresenta na mão direita uma bolsa de ouro, aberta, e na esquerda uma espada desembainhada, para demostrar que tem mais inclinação para recompensar do que para castigar."
Podemos utilizar esse trecho de Swift para ilustrar a doutrina de Dinamarco, no sentido de que o juiz deve colocar-se entre as partes e acima delas, sendo essa a condição indispensável para que ele possa exercer sua função dentro do processo. À medida que aplica a pena justa e a condenação na medida certa, recompensa a outra parte, com a justiça.
E apenas uma Justiça circunspecta, ou seja, cautelosa, prudente, que olha à volta de si, será, de fato, efetiva e eficaz, na medida em que o juiz imparcial - mas, diligente – desempenha com excelência a análise do processo, aplicando todos os princípios processuais cabíveis.
Victor Hugo e Notre Dame de Paris
Referidos doutrinadores e suas lições nos remetem a Victor Hugo, importante escritor francês, que também foi poeta, dramaturgo e político. Deputado eleito para integrar a Assembleia Constituinte, apresentou ao Parlamento Francês, em 1849, um programa social revolucionário, cujo lema era “é preciso destruir a miséria”.
Um pouco antes disso, mas há quase dois séculos, publicou o romance “Notre-Dame de Paris”. Nas palavras do próprio autor, conforme Louis Chevalier, o livro “é um retrato de Paris no século XV, e do século XV a propósito de Paris (...) não tem pretensões históricas, a não ser talvez a de retratar com alguma ciência e consciência, mas unicamente por bosquejos e vislumbres, o estado de costumes, crenças, leis, artes, enfim, da cultura no século XV (...) ”
Assim, a obra que não é apenas um fato literário, se dedicou ao estudo de um acontecimento histórico de Paris – e emblemático do destino da Europa: a Queda da Bastilha.
Há quem defenda que essa grande obra, além de um retrato histórico, foi um “prenúncio alegórico” de fatos históricos do destino da Europa. Apenas para citar um exemplo, Louis Chevalier chama a atenção para a construção do personagem “Claude Frollo”, o monge cruel que acolhe Quasímodo. Na narrativa, que literariamente ocorre em 1482, Victor Hugo informa que o religioso ficou órfão aos dezenove anos, por causa da “grande peste de 1466.”
E de fato, tem-se que ao longo dos séculos, Paris vive o perigo do alastramento de epidemias, que produziram devastações compensadas pelas imigrações. Entretanto, uma das mais terríveis epidemias eclode em Paris pouco tempo depois da publicação de Notre-Dame de Paris.
Ainda que se trate de uma obra literária, o certo é que a catedral do romance impõe a sua existência à catedral de pedra, de verdade, que até hoje reina em Paris. E não se pode duvidar que esse brilhante autor tenha descrito a Paris de seu tempo, ainda permeada pela Idade Media do século XV. E é disso que o livro trata, a despeito de seu título.
Uma leitura atenta desse livro nos permite visualizar além do literário e constatar que a obra contribui para a interpretação de princípios constitucionais e princípios gerais do processo, em especial o Princípio da Imparcialidade do Juiz.
O personagem central é Quasímodo – de origem cigana, quando criança foi abandonado às portas da catedral de Notre-Dame. É o corcunda, surdo, caolho, terrível, mas, ao mesmo tempo, risível, doce e bondoso. Esse personagem se projeta em temas recorrentes à decadência moral e material da Paris do século XV, como a distorção da humanidade pela perversão dos suplícios em praça pública, pelo obscurantismo místico, pela arbitrariedade das leis e da justiça, pelo excesso dos Poderes.
Necessário mencionar que Quasimodo era sineiro da Notre-Dame, e que se tornara surdo devido o forte ressoar habitual dos sinos. Entretanto, não era mudo.
Mas, infelizmente esse artigo, que cuida de tratar do Princípio da Imparcialidade do Juiz, não serve para falar ou recontar a história de Victor Hugo, mas sim, intertextualizar um pequeno trecho, no livro sexto, cujo título sugestivo é “um olhar imparcial sobre a antiga magistratura”.
Assim, a despeito da vasta doutrina sobre o tema, teríamos bastante dificuldade em encontrar jurisprudência ou algum caso prático, no qual estivesse configurada a parcialidade do juiz, combatida pelo Principio em trato. Por isso, Victor Hugo se mostra tão útil nesse estudo.
De forma bem sucinta, tem-se que Quasímodo, após se envolver em uma confusão na rua, e sem que houvesse cometido qualquer crime, foi preso. A Corte parisiense decidiria seu destino.
Nesse capitulo “um olhar imparcial sobre a antigamagistratura”, Victor Hugo, excelentemente, contextualiza o Judiciário francês, de forma bastante crítica.
Inicia descrevendo como um determinado personagem - Robert d’Estouteville - que fora conselheiro, camareiro do rei e guarda do prebostado de Paris, recebe do rei, o “belo cargo de preboste de Paris” - uma função que representa a dignidade que acompanha um imenso poder de polícia e muitos direitos prerrogativos”.
Assim, depois de discorrer sobre a boa vida desse sujeito, diz “que com tantos motivos para viver a vida com paciência e alegria”, no dia do julgamento de Quasímodo, esse juiz acordara “com humor massacrante”.
Pergunta o autor: - “De onde vinha esse humor”: Após oferecer ao leitor várias opções, termina por escolher, ele próprio, aquela que lhe parece mais conveniente: Crê que, simplesmente, ele estava de mau humor porque estava de mau humor.
De maneira bastante sarcástica, acrescenta: “Ora, observamos que os juízes, em geral, arranjam-se de maneira a coincidir seus dias de audiência e seus dias de humor, a fim de ter sempre alguém em quem descarregar comodamente, da parte do rei, a lei e a justiça'.
Atrasado o juiz, a audiência começa sem ele e seu substituto inicia os trabalhos - um mestre auditor do Embas do Châtelet. Tal personagem, Florian Barbedienne, entretanto, era surdo.
Diz o autor: “Pequeno defeito para um auditor. Mestre Florian não deixava, por isso, de julgar sem apelo e muito corretamente. Decerto, basta que um juiz aparente escutar; e o venerável auditor cumpria da melhor maneira essa condição, a única essencial na boa justiça, desde que sua atenção não se distraísse com o menor ruído.”
Porém, quem seria julgado e fora colocado na sala era Quasimodo, que aparecera “algemado, amarrado, atado, garroteado e sob forte escolta”.
E prossegue o autor:
“Mestre Florian, o auditor, folheava com atenção o documento da queixa dirigida contra Quasímodo, que o escrivão lhe trouxe. Graças a essa precaução, que ele tinha sempre o cuidado de tomar no momento de proceder a um interrogatório, é que se sabia de antemão os nomes, qualidades, delitos do acusado, fazia réplicas previstas e respostas previstas, conseguia tirar todas as sinuosidades do interrogatório, sem transparecer de forma tão evidente sua surdez. O documento do processo era-lhe um cão guia de cego. Se calhasse, por acaso, que sua enfermidade o traísse aqui ou ali por algum apóstrofe incoerente ou questão ininteligível, passava por profundidade para alguns e imbecilidade para outros. Nos dois casos, a honra da magistratura não sofria nenhum dano; pois vale mais um juiz ser julgado como imbecil ou profundo do que como surdo. Com grande cuidado, dissimulava sua surdez aos olhos de todos e, geralmente, era tão bem sucedido que chegava a iludir a si mesmo. O que era mais fácil do que se acredita. Todos os corcundas tem a cabeça erguida, todos os gagos falam pouco, todos os surdos falam baixo. Quanto a ele, acreditava, quando muito, que tinha o ouvido um pouco rebelde. Era a única concessão que fazia acerca desse ponto à opinião pública nesses momentos de franqueza e de exame de consciência.
Tendo, então ruminado tão bem o processo de Quasimodo, tombou a cabeça para trás e fechou um pouco os olhos, para maior majestade e imparcialidade, de modo que agora estava, ao mesmo tempo, surdo e cego. Dupla condição sem a qual não seria um juiz perfeito. Foi com magistral atitude que começou o interrogatório.
-Seu nome?
Ora, eis um caso que não fora “previsto por lei”, aquele em que um surdo teria de interrogar outro surdo.
Quasímodo, sem ter sido advertido da pergunta que lhe fora dirigida, continuou a olhar o juiz fixamente e não respondia. O juiz, surdo e sem saber da surdez do acusado, acreditou que ele houvesse respondido, como faziam em geral todos os acusados, prosseguiu com seu aprumo mecânico e estupido.
- Muito bem. Sua idade?
Quasimodo, de novo, não respondeu a essa pergunta. O juiz acreditou satisfatório e continuou.
-E agora, seu estado?
Sempre o mesmo silencio. O auditório, no entanto, começava a cochichar e a se entreolhar.
- Basta – retomou o imperturbável auditor quando supôs que o acusado tivesse dado a sua terceira resposta. – O senhor é acusado diante de todos: primo, de desordem noturna, secundo, em vias de atos imorais com a pessoa de uma mulher louca, in praejudicium meretricis; (em prejuízo da cortesã); tertio, de rebelião e deslealdade para com os arqueiros da ordem do rei, nosso senhor. Explique-se acerca desses três pontos. Escrivão, anotou o que o acusado disse ate aqui?
Com essa pergunta desastrada, subiu do cartório ao auditório uma gargalhada tão violenta, tão louca, tão contagiosa, tão universal que os dois surdos a perceberam. Quasimodo se voltou, erguendo sua corcunda com desdém, enquanto que o mestre Florian, espantado como só, e supondo que o riso dos espectadores fosse provocado por alguma replica irreverente do acusado, que se tornava evidente para ele por esse sacudir de ombros, apostrofou com indignação.
- Seu engraçadinho, o senhor deu agora uma resposta que mereceria a forca! Sabe com quem esta falando?
Essa não era a melhor saída para conter a explosão de gargalhada geral (...) O juiz, cada vez mais irritado, acreditou dever continuar no mesmo tom, esperando assim impressionar o acusado com um terror que se estendesse sobre o auditório e lhe trouxesse respeito.(...)
Um surdo que fala a outro surdo não tem motivos para parar. Deus sabe onde e quando iria parar mestre Florian, lançado assim por todos os ramos da alta eloquência, se a porta baixa do fundo não fosse aberta, subitamente, e não desse passagem ao senhor preboste em pessoa. Com sua entrada, mestre Florian não se intimidou (...):
-Monsenhor – disse ele -, requeiro a pena que mais o agrade contra o acusado aqui presente, por grave e mirífica falta com a Justiça. (...)
O preboste (...) fez a Quasímodo um gesto de atenção de tal forma imperioso e significativo que o surdo decerto o compreendera e lhe dirigiu a palavra com severidade:
- O que o senhor fez para estar aqui, (...):
O pobre-diabo, supondo que o preboste houvesse lhe perguntado o nome, rompeu seu silencio costumeiro e respondeu com sua voz rouca e gutural:
-Quasímodo.
A resposta coincidia tão pouco com a pergunta que o riso louco recomeçou a circular, e o senhor Robert gritou, vermelho de cólera:
- O senhor zomba de mim (...):
- Sineiro da Notre-Dame – respondeu Quasimodo, acreditando que se tratava de explicar ao juiz quem ele era.
- Sineiro! - retomou o preboste, que acordara de manha com um mau humor suficiente, como dissemos, que sua fúria prescindia de respostas tão estranhas. – Sineiro! Pois hei de talhar em suas costas um carrilhão de chibatadas pelas esquinas de Paris. Entendeu (...):
- Se é a minha idade que deseja saber – disse Quasímodo -, acredito que tenho vinte anos em Saint-Martin.
- Ah! O senhor escarnece do prebostado, miserável! Senhores sargentos das varas, levem esse engraçadinho ao pelourinho da Grève e o malhem e o rodem no suplicio por uma hora. (...)
O escrivão pôs-se a redigir o julgamento.(...)
O preboste se voltou e lançou de novo sobre Quasímodo seus olhos flamejantes.(...)
- Creio que o engraçadinho disse “Mae de Deus!”. Escrivão, acrescente doze dinheiros de Paris como multa pela praga; (...)
Logo depois, o julgamento foi ouvido. O teor era simples e breve.(...) O escrivão apresentou a sentença ao preboste, que apôs seu selo e saiu para continuar sua visita aos auditórios (...) Quasimodo olhava ao redor com um ar indiferente e espantado.
No entanto, o escrivão, no momento em que o mestre Florian lia o julgamento para assiná-lo, sentiu-se piamente comovido pelo pobre-diabo do condenado e, com esperança de obter alguma diminuição da pena, aproximou-se o mais perto que pode do ouvido do auditor e lhe disse, apontado Quasímodo:
- Este homem é surdo.
Esperava que essa enfermidade comungada despertasse o interesse do mestre Florian em favor do condenado. Porem, nós já havíamos observado que o mestre Florian não sedava conta de que sua surdez era percebida. Além do mais, tinha os ouvidos tão duros que não escutou uma só palavra do que lhe disse o escrivão; no entanto, quis dar a impressão de escutá-lo e respondeu:
- Ah! Ah! Então é diferente. Eu não sabia disso. Neste caso, então, uma hora a mais de pelourinho.
E assinou a sentença assim modificada.
Victor Hugo foi tão completo ao discorrer literariamente sobre a falta de imparcialidade da magistratura francesa, que dispensa qualquer comentário. Bem assim, a visão de Justiça desenhada por Swift, não poderia ser melhor. Os trechos dos livros falam por si.
Cabe-nos apontar, entretanto, que Victor Hugo descreve um exemplo do que Candido Rangel Dinamarco denominou de “influências estranhas à jurisdição” que presentes, podem impedir uma justiça que dê a cada um o que é seu, e sofre a ausência da garantia de um imparcial.
Veja-se que Quasímodo sequer foi ouvido, não houve defesa, não houve legalidade. Violados os princípios da ampla defesa, do contraditório, da igualdade das partes perante a lei e, sobretudo, o principio da imparcialidade do juiz. O julgamento deixou de ser técnico e especialmente, não foi ético.
Bem assim, esse trecho literário reforça a doutrina de Cretella, já citada, a qual defende que o princípio da imparcialidade do juiz deve garantir o processo julgado por magistrado investido da autoridade legal conferida ao cargo, isento de pressões de qualquer ordem, sujeito apenas à lei e com aptidão para o efetivo exercício da tutela jurisdicional.
Florian deixou de lado quaisquer valores, e não percebeu que estava diante de jurisdicionado surdo e que jamais poderia ter atuado de modo passivo. Dessa forma, não estava sujeito às leis locais, nem isento de pressões sociais. Como mencionou Victor Hugo, não basta que um juiz aparente escutar – literal e metaforicamente.
Se, talvez, mestre Florian e o juiz Robert tivessem visitado Liliput e conhecessem a perspectiva de Justiça desse país, Quasímodo teria tido o direito ao devido processo legal e à um julgamento baseado no princípio da imparcialidade do juiz.
BIBLIOGRAFIA
CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. 1995. São Paulo. Livraria Duas Cidades.
CHEVALIER, Luis, no Prefácio da Obra Notre-Dame de Paris. Victor Hugo. Estação Liberdade. São Paulo, 2011.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo. 23º edição. 2007. Malheiros Editores.
HUGO, Victor. Notre-Dame de Paris. Estação Liberdade. 2010. São Paulo.
MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo. 1º edição. 1º tiragem. 2011. Editora Revista dos Tribunais.
MELLO, Celso Antônio Bandeira – Eficácia das Normas Constitucionais e Direitos Sociais, 1ª Edição, 4ª Tiragem. 2015 – Malheiros.
NETO, José Cretella. Fundamentos principiológicos do processo civil. Rio de Janeiro. 1º edição. 2002. Editora Forense.
Nery Junior, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 97-98.
PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3º edição. 1999. Porto Alegre. Editora Livraria do Advogado.
SWIFT, Jonhatan. As Viagens de Gulliver. 2003. São Paulo. Nova Cultural.
TOLEDO, Caio Bastos- prefácio do livro O Ultimo Dia de Um Condenado. Victor Hugo. Tradução de Sebastião Paz. São Paulo. DPL. 2005.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil V.1. 2007. 9º edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais.
http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf
Escrito por Miriam Teresinha de Azevedo - servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, formada em Letras pela USP e estudante de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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