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UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO FOTOJORNALISMO OCIDENTAL Jorge Pedro Sousa PORTO 1998 INTRODUÇÃO O presente livro resulta da ampliação e restruturação de um capítulo da nossa tese de doutoramento (1997) e pretende contribuir para eliminar uma lacuna no panorama editorial português na área das Ciências da Comunicação: a inexistência de livros sobre a história do fotojornalismo, apesar de este assunto ser crucial para a compreensão do actual momento fotojornalístico. Neste trabalho, propomo-nos encarar as fotografias jornalísticas como artefactos de génese pessoal, social, cultural, ideológica e tecnológica. É um ponto de vista que parcialmente alarga o modelo com que Michael Schudson (1988) procurava explicar por que é que as notícias são como são e parcialmente se opõe à visão schudsodiana, uma vez que esse autor afirmou taxativamente que as notícias são cultura, não ideologia (Schudson, 1995, 31). Por outro lado, estruturámos a nossa visão da história do fotojornalismo em função de momentos determinantes para a evolução da actividade. A esses momentos demos, à falta de melhor, o nome de "revoluções" e é com base neles que subdividimos o presente trabalho em capítulos. Em acréscimo, falamos também da evolução histórica do fotojornalismo em Portugal, capítulo para cuja elaboração muito contribuiu o livro Uma história de Fotografia, de António Sena, e referimos alguns dos trabalhos mais recentes no que respeita à investigação científica sobre fotojornalismo. Estudar a evolução histórica do fotojornalismo é uma opção complexa. Nascida num ambiente positivista, a fotografia já foi encarada quase unicamente como o registo visual da verdade, tendo nessa condição sido adoptada pela imprensa. Com o passar do tempo, foram-se integrando determinadas práticas, tendo-se rotinizado e convencionalizado o ofício, um fenómeno agudizado pela irrupção do profissionalismo fotojornalístico. Chegaram, então, os géneros fotojornalísticos, nomeadamente os géneros realistas, e de um reino da verdade passou-se ao reinado do credível — como muito bem se pode ler na obra Give Us a Little Smile, Baby, de Harry Coleman, já no final do século passado se manipulavam as imagens em função de objectivos que em nada tinham a ver com a verdade, mas, de facto, unicamente com o credível. Ainda assim, na linha da não-manipulação, nasce o fotodocumentalismo, que, em pouco tempo, à vontade do registo vai sobrepor a beleza da arte. Chega-se então à ideia de fotógrafo autor e artista, criador, original. Deste ponto, rapidamente se incorporou no fotojornalismo, em consonância com a visão da época, a ideia da construção social da realidade, processo que em parte se nutre na acção dos media. Mas esta foi também a linha de partida para a interpretação fotojornalística do real, até porque as percepções que dele se têm são dissonantes da realidade em si e, neste sentido, são sempre uma espécie de ficção. Legitimam-se, assim, os criadores-fotógrafos, que olham para si mesmos como participantes num jogo que há muito deixou de ser um mero jogo de espelhos, para desembocar no jogo bem mais elaborado e complexo dos mundos de signos e de códigos, de linguagem e de cultura, de ideologia e de mitos, de história e tradições, de contradições e convenções. Nesse âmbito, interessou-nos, neste livro, focalizar o aparecimento e a manutenção de rotinas produtivas e convenções profissionais fotojornalísticas, um assunto muito bem aprofundado na obra Seeing the Newspaper, de Kevin G. Barnhurst. No campo oposto, fizemos uma incursão pelos fotógrafos-autores, aqueles que procuram traçar percursos fotográficos pessoais ou redireccionar a evolução da fotografia. As obras de Margarita Ledo Andión, particularmente Foto-Xoc e Xornalismo de Crise e Documentalismo Fotográfico Contemporáneo, constituiram, neste ponto, uma pista preciosa. É de referir que o traçado histórico-evolutivo do fotojornalismo que constitui o presente livro corresponde apenas a uma visão pessoal dessa evolução, pois não há uma história da fotografia, mas várias, apesar de os diversos compêndios sobre história da fotografia tenderem a reproduzir as mesmas imagens e a realçar os mesmos fotógrafos. Neste campo, a própria selecção de fotógrafos que fizemos, embora tanto quanto possível abrangente, não impede que muitos contributos históricos para o fotojornalismo se mantenham na sombra — a selecção de informações e personalidades, a este nível, será sempre problemática. De qualquer modo, não foi nossa intenção, com este livro, fazer história, mas tão só corresponder aos propósitos já definidos, tentando sobretudo provar a influência das pessoas, dos meios sociais, das ideologias, das culturas, das histórias e das tecnologias na evolução do fotojornalismo, de onde o relevo dado a vários fotógrafos de diferentes épocas, embora sem preocupações de exaustividade. Foi também nosso objectivo contribuir para a reunião de exemplos de temas, actuações e abordagens fotográficas que permitam ao fotojornalismo português enveredar por um fotojornalismo que, no nosso entender, será mais —e verdadeiramente— performativo, entendendo a performatividade como matéria associável à geração de conhecimento. Realce-se que a própria passagem do tempo relativiza a percepção que se tem das fotografias e da evolução do medium. Aliás, nem sequer as fotografias que entusiasmaram os nossos pais ou avós são sempre aquelas que nos entusiasmam: a aventura do olhar é uma aventura evolutiva. Por exemplo, num estudo de 1980 sobre as mensagens fotográficas eventualmente patentes nas fotos de Russell Lee da era da depressão ("A study of the messages in depression-era photos"), Paul Hightower descobriu que pessoas que viveram a depressão não viam uma pobreza tão intensa nas fotos como aquela que perspectivavam os mais novos. No estudo, o autor coloca até a hipótese de a credibilidade das imagens diminuir com a passagem do tempo, já que uma das respostas que obteve sobre uma foto de uma cozinha foi que esta "não podia parecer assim!". Vemos, assim, que a fotografia de imprensa foi percorrendo, ao longo da história, um caminho de encontros e desencontros, inter-relacionando-se com o ecossistema que a rodeava em cada momento e alargando o campo de visão dos seres humanos. Será esse caminho o motivo que procuraremos descrever neste livro, de forma cronologicamente ordenada, pois essa sistematização facilita a disposição e apreensão de dados e, consequentemente, as tarefas do autor e do leitor. A fechar, gostaríamos de explicitar leve e brevemente do que falamos quando, neste livro, falamos de fotojornalismo. A noção de fotojornalismo é cada vez mais difícil de precisar, devido à multiplicidade de fotógrafos que se reclamam do sector, mas que nem sempre apresentam unidade na expressão e convergências temáticas, técnicas, de abordagens e de pontos de vista. Mais: o fotojornalismo tem-se mesclado com a própria publicidade, como aconteceu nas campanhas da Benetton. E mesmo quando se fala do fotojornalismo como a actividade orientada para a produção de fotografias para a imprensa, repara-se que vários fotógrafos que se reclamam igualmente jornalistas apostam noutros suportes de difusão. Devido à complexidade do assunto, julgamos que a melhor forma de abordar o conceito de fotojornalismo é fazê-lo em sentido lato e em sentido restrito, sendo que, em qualquer caso, para se abordar o fotojornalismo se tem de pensar numa combinação de palavras e imagens: as primeiras devem contextualizar e complementar as segundas. a) Fotojornalismo (lato sensu) — No sentido lato, entendemos por fotojornalismo a actividadede realização de fotografias informativas, interpretativas, documentais ou "ilustrativas" para a imprensa ou outros projectos editoriais ligados à produção de informação de actualidade. Neste sentido, a actividade caracteriza-se mais pela finalidade, pela intenção, e não tanto pelo produto; este pode estender-se das spot news (fotografias únicas que condensam uma representação de um acontecimento e um seu significado) às reportagens mais elaboradas e planeadas, do fotodocumentalismo às fotos "ilustrativas" e às feature photos (fotografias de situações peculiares encontradas pelos fotógrafos nas suas deambulações). Assim, num sentido lato podemos usar a designação fotojornalismo para denominar também o fotodocumentalismo e algumas foto-ilustrativas que se publicam na imprensa. b) Fotojornalismo (stricto sensu) — No sentido restrito, entendemos por fotojornalismo a actividade que pode visar informar, contextualizar, oferecer conhecimento, formar, esclarecer ou marcar pontos de vista ("opinar") através da fotografia de acontecimentos e da cobertura de assuntos de interesse jornalístico. Este interesse pode variar de um para outro órgão de comunicação social e não tem necessariamente a ver com os critérios de noticiabilidade dominantes. Em sentido restrito, o fotojornalismo distingue-se do fotodocumentalismo. Esta distinção reside mais na prática e no produto do que na finalidade. Assim, o fotojornalismo viveria das feature photos e das spot news, mas também, e talvez algo impropriamente, das foto-ilustrações, e distinguir-se-ia do fotodocumentalismo pelo método: enquanto o fotojornalista raramente sabe exactamente o que vai fotografar, como o poderá fazer e as condições que vai encontrar, o fotodocumentalista trabalha em termos de projecto: quando inicia um trabalho, tem já um conhecimento prévio do assunto e das condições em que pode desenvolver o plano de abordagem do tema que anteriormente traçou. Este background possibilita-lhe pensar no equipamento requerido e reflectir sobre os diferentes estilos e pontos de vista de abordagem do assunto. Além disto, enquanto a "fotografia de notícias" é, geralmente, de importância momentânea, reportando-se à "actualidade", o fotodocumentalismo tem, tendencialmente, uma validade quase intemporal. De qualquer modo, o fotodocumentalismo não apresenta uma prática única: os fotógrafos podem ter métodos e formas de abordagem fotográfica dos assuntos que os distinguem. O documentalismo social, enquanto forma mais comum de fotodocumentalismo, procura abordar, mais ou menos profundamente, quer temas estritamente humanos quer o significado que qualquer acontecimento possa ter para a vida humana ou ainda as situações que se desenvolvem à superfície da Terra e afectam a mundivivência do Homem. Enquanto o fotojornalista tem por ambição mais tradicional "mostrar o que acontece no momento", tendendo a basear a sua produção no que poderíamos designar por um "discurso do instante" ou uma "linguagem do instante", o documentalista social procura documentar (e, por vezes, influenciar) as condições sociais e o seu desenvolvimento. Mesmo que parta de um acontecimento circunscrito temporalmente, o documentalista social tende a centrar-se na forma como esse acontecimento revela e/ou afecta as condições de vida das pessoas envolvidas. É preciso, porém, não esquecer que, como disse Szarcowski (1973) a propósito do eventual carácter documental da fotografia, tanto se pode mentir num sistema documental como noutro. Apesar da tentativa de destrinça, mesmo no sentido restrito o fotojornalismo continua a ser uma actividade larga e ambígua, já que inclui fotografias de notícia, foto-reportagens e até fotografias documentais. Apesar de tudo, parece-nos que, mesmo na actualidade, a sua ambição máxima corresponde à mais antiga vocação da fotografia: testemunhar, com um elevado número de cópias a preço acessível. CAPÍTULO I RUMO A UMA VISÃO HISTÓRICA DO FOTOJORNALISMO NO OCIDENTE(1) A história do fotojornalismo é uma história de tensões e rupturas, uma história do aparecimento, superação e rompimento de rotinas e convenções profissionais, uma história de oposições entre a busca da objectividade e a assunção da subjectividade e do ponto de vista, entre o realismo e outras formas de expressão, entre o matizado e o contraste, entre o valor noticioso e a estética, entre o cultivo da pose e o privilégio concedido ao espontâneo e à acção, entre a foto única e as várias fotos, entre a estética do horror e outras formas de abordar temas potencialmente chocantes, entre variadíssimos outros factores. E é também uma história que assiste, gradualmente, ao aumento dos temas fotografáveis, o mesmo é dizer, a uma história que assiste à expansão do que merece ser olhado e fotografado. Se na evolução histórica do fotojornalismo notamos essas tensões, também não é menos verdade que existem interpretações diferenciadas desse percurso. Por alguma razão demos o título "Uma visão…" ao presente capítulo deste livro e não o denominámos por "A história…". De qualquer modo, parece-nos que por detrás das diversas histórias do fotojornalismo se esconde a noção de que, pelo menos algumas fotografias jornalísticas, são poderosas — como a do suspeito vietcong morto à queima roupa pelo chefe da polícia de Saigão. Essas fotos, se bem que não sejam o dia a dia da profissão, permanecem como seus símbolos e correspondem às qualidades convencionalmente tidas por desejáveis nas fotografias de notícias, mostrando também que a cultura e as convenções profissionais são, em larga medida, transorganizacionais e transnacionais. De facto, os historiadores, ao desvelarem a história, tendem, concomitantemente, a impor-lhe um sentido. Por esta razão, mas também pelo facto de o significado dos produtos fotojornalísticos derivar, em larga medida, dos propósitos e significados que às fotos foram encomendadas pelo devir da civilização, encontramos versões da história da fotografia e do fotojornalismo que constroem sentidos diferenciados para esse percurso. Assim, histórias como a de Gernsheim e Gernsheim (1969), a de Geraci (1973) ou a de Hoy (1986) propõem, de algum modo, a ideia de que a evolução tecnológica (desde as primitivas câmaras escuras às actuais máquinas fotográficas) e estética (principalmente a partir da descoberta da perspectiva linear, que já vem da Renascença) permitiram a representação imagética da realidade de uma forma cada vez mais perfeita, alimentando, por consequência, a ideia de que a fotografia seria o espelho da realidade. Eles olham para a história do fotojornalismo como se fosse composta por fragmentos que levaram a actividade ao sítio onde hoje está, onde seria capaz de cumprir o ideal da reflexão dos acontecimentos actuais que ocorrem na realidade para um elevado número de pessoas. Os mais abordados desses fragmentos são os seguintes: as obras dos "grandes" fotógrafos, elevados, com frequência, a um estatuto quase mitológico (culto dos fotojornalistas); as gravuras pré-históricas; as câmaras escuras; a utilização de gravuras de madeira; o halftone; as primeiras coberturas de guerra; a emergência do fotojornalismo como profissão; as revistas ilustradas; o aparecimento das agências; o serviço de telefoto; as conquistas técnicas, que levaram à diminuição do peso e do tamanho das câmaras, à melhoria das lentes e dos filmes, à conquista do movimento (valorização do instantâneo e do espontâneo), ao aumento da definição das imagens e à fotografia em interiores sem iluminação artificial; o aparecimento do flash de magnésio, a que sucedeu o flash electrónico; o nascimento do fotojornalismo moderno na Alemanha; os fotógrafosdo pós-guerra; a Life, etc. Os livros mais recentes (e.g., Kobre, 1991) falam também da fotografia digital e do tratamento electrónico das imagens fotográficas, salientando os perigos da sua manipulação. Outros focalizam-se na tecnologia, chamando a atenção para a "era do grande formato" ou para a "era do 35 milímetros" (por exemplo, Gernsheim e Gernsheim (1969)). No campo oposto, as obras de vários académicos, como Mitchell (1992), Snyder (1980) ou Crary (1990), rejeitam a ideia de que a evolução da fotografia permitiu ao medium a reprodução da realidade. Pelo contrário, eles sugerem que a história da fotografia é uma história de substituição e imposição de convenções, uma história ideológica, uma história do domínio e abandono de determinadas ideias. E mostram também que a noção de que o que cada um de nós vê com os seus olhos é a realidade não passa de uma falácia, aliás como muitos teóricos —entre os quais os fenomenologistas— foram advertindo e provando ao longo da história. Newhall (1982), Freund (1989) e outros abordam o contexto histórico, económico e social em que a fotografia se desenvolve. Newhall, mais esteta, descreve condições como as que suportaram a demanda social de fotografias; Freund, por seu turno, dá um grande destaque à fotografia documental e ao fotojornalismo enquanto interventores na sociedade. Noutro prisma, Sontag (1986), Sekula (1984), Hall (1981) ou Benjamin (1986) situaram a fotografia no contexto da cultura, das ideologias, dos mitos e dos valores, questionaram o seu valor informativo, lançaram um olhar crítico para o papel político, ideológico e económico de fotógrafos, actantes nas fotografias e organizações fotográficas e abordaram temas como os direitos de autor, a estética, as técnicas e os usos sociais da fotografia. Na linha desses teóricos, Bolton (1989) e Guimond (1991), provavelmente influenciados pelos trabalhos de Barthes (1961, 1964, 1984, 1989) e pela ideia de Foucault (1973) segundo a qual a visão pode impor um controle social, exploram a construção de sentido da fotografia no seio da cultura. Sociólogos e antropólogos, como Becker (1978) e Worth (1981), questionaram, por seu turno, até que ponto a fotografia estaria relacionada com a verdade, enquanto historiadores críticos, como Hardt (1991) e Brecheen-Kirkton (1991), duvidaram da relevância documental do fotojornalismo, embora este último tenha salientado que os fotojornalistas, mais especificamente os fotodocumentalistas, elegiam muitas vezes os grupos menos visíveis na cobertura jornalística dominante como tema do seu trabalho. Os editores podem até, por vezes, segundo Phelan (1991), escolher imagens que rompem estereótipos, padrões, rotinas e convenções. As primeiras histórias especificamente devotadas ao fotojornalismo surgiram em livros de apoio destinados a socializar e aculturar neófitos no ofício e a permitir aos amadores uma aproximação às convenções profissionais (por exemplo, Kinkaid, 1936; Ezickson, 1938). Ainda hoje são publicados livros que cumprem a mesma função (Hoy, 1986; Kobre, 1980 e 1991; Keene, 1993). Outros livros, como os do World Press Photo, os da National Press Photographer's Association, o anuário Fotojornalismo (Portugal), o de Norback e Gray (1980) ou o de Faber (1978) enfatizam as fotografias premiadas em concursos, frequentemente em concursos internacionais, ou as fotografias mais "consideradas" pelo colectivo profissional, mostrando as qualidades convencionais que, em cada momento histórico-cultural, uma fotografia jornalística deve ter para ser considerada "boa", o que releva também a intensa profissionalização do campo. As colecções de imagens de nomes grandes do fotojornalismo, como Capa ou Smith, trabalham no mesmo sentido, bem como livros como o de Lacayo e Russell (1990) e as edições de agências, jornais e revistas. Não são apenas as publicações impressas, porém, a marcar as qualidades tidas por desejáveis na fotografia jornalística. Exposições como a The Family of Man, e respectivos catálogos, já nos longínquos anos cinquenta, ajudaram e ainda ajudam (como as exposições da World Press Photo) a definir rumos para a fotografia, sejam eles no mesmo sentido das fotos inseridas nas exposições, seja em sentidos diferentes (por oposição). Em alguns casos, todavia, é dada atenção a fotógrafos com uma produção alternativa, como Karen Korr ou Salgado. Estes, por vezes, trazem para o fotojornalismo (entendido numa forma vasta) a recuperação de antigas ideias ou novas concepções que superam as convenções existentes e redireccionam a história da actividade. Os primeiros fotógrafos foram pintores, pelo que não é de admirar que, conforme Hicks sustenta, as grandes referências que os primeiros fotógrafos de imprensa tinham fossem as da pintura(2); por outro lado, diz o mesmo autor, imbuídos de uma mente literária, os editores resistiram durante bastante tempo a usar fotografias com texto, não só porque desvalorizavam a seriedade da informação fotográfica(3) mas também, julgamos nós, porque as fotografias não se enquadrariam nas convenções e na cultura jornalística dominante na época. Provavelmente, a associação da fotografia à pintura e, portanto, à arte, terá sido também uma das razões que levou ao enquadramento das imagens fotográficas publicadas na imprensa por filetes floreados e outros motivos, como se da representação de uma moldura se tratasse. Baynes sugere que o aparecimento do primeiro tablóide fotográfico, em 1904, marca uma mudança conceptual: as fotografias teriam deixado de ser secundarizadas como ilustrações do texto para serem definidas como uma outra categoria de conteúdo tão importante como a componente escrita.(4) Hicks vai mais longe e considera que essas mudanças, ao promoverem a competição na imprensa e o aumento das tiragens e da circulação, com os consequentes acréscimos de publicidade e lucro, trouxeram consigo a competição fotojornalística e a necessidade de rapidez, que, por sua vez, originaram a cobertura baseada numa única foto —a doutrina do scoop— e o fomento da investigação técnica em fotografia.(5) A investigação teria levado ao aparecimento de máquinas menores e mais facilmente manuseáveis, lentes mais luminosas e filmes mais sensíveis e com maior grau de definição da imagem.(6) Apesar das inovações técnicas, no início do século os fotojornalistas ainda operavam com flashes de magnésio e as máquinas menores continuavam enormes, quando comparadas às actuais. Segundo Hicks, o fumo do flash não só tendia também a impedir que se realizasse mais do que uma fotografia por assunto como também afastava as pessoas do fotógrafo, pois o cheiro do magnésio queimado era nauseabundo.(7) De qualquer modo, as diversas constrições terão levado, pela imitação e pela necessidade (competição), ao aparecimento de uma das convenções mais perenes no fotojornalismo: o cultivo da foto única(8). Esta convenção, segundo pensamos, levou os fotógrafos a procurar conjugar numa única imagem os diversos elementos significativos de um acontecimento (a fotografia como signo condensado) de forma a que fossem facilmente identificáveis e lidos (planos frontais, etc.). Para isso também terá contribuído o facto de no início do século as imagens serem valorizadas mais pela nitidez e pela reprodutibilidade do que pelo seu valor noticioso intrínseco.(9) Conta-nos Hicks que, no início do século, quando o fotógrafo entrava num local para fotografar pessoas, estas paravam, arranjavam-se e olhavam para a câmara ou, em alternativa, levantavam objecções a serem fotografadas.(10) De algum modo, o fotógrafo dominava a cena, até devido à sua reputação de "mal-cheiroso". Hoje, recorrendo à nossa própria experiênciaprofissional, parece-nos que as pessoas procuram mostrar que estão à vontade e naturais, o que demonstrará algum domínio por parte do público das actuais convenções profissionais fotojornalísticas (fotoliteracia), que valorizam o instantâneo e o espontâneo, tal como na viragem do século XIX para o XX as pessoas dominavam minimamente as convenções então vigentes, pelo que posavam. Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma questão de inserção histórico-cultural. O moderno fotojornalismo terá visto a luz do dia pelos anos vinte, devido a vários factores, entre os quais a modificação de atitudes e ideias sobre a imprensa. Barnhurst salienta que, após a I Guerra Mundial, se valorizou a eficiência e a comodidade.(11) Essa terá sido, em conjunto com o aparecimento de máquinas mais pequenas e providas de objectivas de boa luminosidade, como a Leica, uma das razões que levaram à obtenção de imagens sem a cooperação dos sujeitos fotografados e à "fotografia cândida" (candid photography). Solomon, Man, Eisenstaedt e os seus companheiros na fundação do fotojornalismo moderno mudaram quer o modus operandi dos fotojornalistas quer o formato das imagens. Estas puderam tornar-se menos formais e mais vivas. O valor do espontâneo e o valor noticioso sobrepuseram-se, quanto a nós, à nitidez e à reprodutibilidade como convenções profissionais, embora não as substituindo totalmente (a história do fotojornalismo não é apenas uma história de rupturas, também é uma história de reformulações). Barnhurst releva ainda que se valorizavam também o pormenor e a emoção.(12) Szarkowski, na mesma linha, caracteriza o fotojornalismo moderno como sendo franco, favorecedor da emoção sobre o intelecto, enfatizador da subjectividade, redefinidor da privacidade e marcado pela publicitação da autoria.(13) E Hicks chama a atenção para as políticas editoriais da Life e da Time, revistas em que as fotografias eram tratadas como tendo a mesma importância que o texto e onde os editores recusavam o retoque modificador das imagens e a sua emolduração(14), o que trouxe respeitabilidade e reconhecimento aos fotojornalistas(15). Szarkowski vê as fotografias de notícias como um fluxo de rostos particulares em papéis estruturais permanentes: participantes em cerimónias, os perdedores e os vencedores, as vítimas, o bizarro, os contestatários e os manifestantes, o jet-set e os heróis.(16) O autor observa ainda que em parte a forma de cobertura dos acontecimentos dita o formato das fotografias: por exemplo, na alvorada do século a maior parte das fotografias dizia respeito a cerimónias que ocorriam em estrados e a acontecimentos planeados que se desenvolviam a cerca de 3,5 metros do fotógrafo.(17) Aliás, sabemos também da teoria da notícia que a maneira como as organizações noticiosas organizam a produção afecta o formato do produto, conforme se repara em trabalhos como o de Gans (1980) ou os de Tuchman (1969, etc.). Os livros que procuram integrar os neófitos no ofício de foto-repórter também nos dão pistas para analisarmos a evolução e as rupturas das convenções profissionais e das rotinas. Os primeiros desses manuais, como o de Price (1932), o de Pouncey (1946) e o de Kinkaid (1936), advertem os fotojornalistas contra a composição formal das imagens que, segundo eles, era da esfera da arte e dos académicos. Apesar disso, Kinkaid aconselha uma série de regras que, ao fim e ao cabo, são regras de composição: motivo centrado, selecção do "importante" em cenários amplos, manutenção de uma impressão de ordem no primeiro plano, correcção do efeito de inclinação dos edifícios mais altos (o autor era norte-americano, não o esqueçamos) e manutenção da composição simples.(18) Se exceptuarmos a ideia de que o motivo deve surgir sempre centrado, grande parte destas regras mantem-se na fotografia de notícias. Apesar de alguns teóricos da fotografia sustentarem que no fotojornalismo ainda vigoram concepções anti-artísticas, como é o caso de Brecheen-Kirkton (1991), os actuais manuais (Kobre, 1980 e 1991; Hoy, 1986; Associated Press Style Book, etc.) preconizam o aproveitamento fotojornalístico de regras de iluminação e de composição, nomeadamente da regra dos terços. Estas ideias, que adviriam da fotografia publicitária e da fotografia artística, ter-se-iam infiltrado no fotojornalismo a partir dos anos sessenta.(19) Spencer, por exemplo, apela para a combinação de elementos da arte e do design, de maneira a que as fotografias fossem mais apelativas, contribuindo, assim, para a circulação e prestígio dos jornais e para bater a concorrência; esses elementos seriam a enfatização do grafismo visual e a exploração de expressões de dignidade, serenidade, conforto, prazer e semelhantes.(20) A partir da inculcação destas últimas convenções, nos anos oitenta vemos já os manuais a insistir em códigos compositivos baseados na assimetria do motivo (exemplificando com o aproveitamento da regra dos terços), no enquadramento seleccionador do que o fotojornalista entende que é significativo numa cena vasta, na manutenção de uma composição simples, na escolha de um único centro de interesse em cada enquadramento, na não inclusão de espaços mortos entre os sujeitos eventualmente representados na fotografia, na exclusão de detalhes externos ao centro de interesse, na inclusão de algum espaço antes do motivo (inclusão de um primeiro plano, que deve dar uma impressão de ordem), na correcção do efeito de inclinação dos edifícios altos, na captação do motivo sem que o plano de fundo nele interfira (aconselhando, para tal, usar pequenas profundidades de campo, andar à volta do sujeito para que não haja elementos que pareçam sair-lhe do corpo nem fontes de luz indesejadas, etc.), no preenchimento do enquadramento (para o que aconselham técnicas como a aproximação ao sujeito ou o uso de objectivas zoom), na "agressividade" visual do close in, na inclusão no enquadramento de um espaço à frente de um objecto em movimento, na fotografia de pessoas a 45 graus em situações como as conferências de imprensa, etc. Desses manuais fazem parte, por exemplo, o de Hoy (1986), os de Kobre (1980; 1991), e o de Kerns (1980), embora todos eles, em consonância com Schwartz e Griffin, possam ter recebido influências da indústria fotográfica, que terá distribuído manuais e livros ensinando as actuais prescrições compositivas para a realização de boas fotografias.(21) Em manuais como o de Kerns (1980) ou os de Kobre (1980; 1991) aconselha-se também os fotojornalistas a antecipar o que fotografar e quando fotografar. Esta pré-visualização (pre-visualizing), no entender de Barnhurst, ajuda a consolidar as rotinas fotojornalísticas.(22) Mas não é só esta sugestão que, para nós, promove a consolidação de rotinas de abordagem fotojornalística dos acontecimentos e a cristalização das convenções profissionais. Nos manuais atrás citados, tal como no Le Photojournalisme (1992), no Associated Press Photojournalism Style Book ou no Practical Photojournalism (Keene, 1993), apresentam-se também esquemas de abordagem de acontecimentos, passíveis de aplicação a incêndios, desastres de carros, conferências de imprensa, temas sociais e a uma vasta gama de outras ocorrências, que fomentam igualmente a manutenção de rotinas e convenções, mas que, por outro lado, asseguram também aos fotojornalistas, sob a pressão do tempo, a rápida transformação de um acontecimento em (foto)notícia e a manutenção de um fluxo regular e credível (em parte pela aplicação constante do mesmo esquema noticioso) de foto-informação. Nessa lógica, qualquer reportagem deveria apresentar um plano geral para localizar a acção, vários planos médios para mostrar a acção, um ou dois grandes planospara dramatizar e emocionar, etc. É interessante notar que determinadas práticas de manipulação de imagem, nomeadamente as possibilitadas pelos processos digitais, já se vão inculcando nas convenções profissionais, nomeadamente quando se trata de imitações computacionais do que se fazia em laboratório e quando as fotografias são features photos (fotografias de "situações encontradas", como a criança que beija outra) ou photo illustrations (fotografias que combinam desenho e imagem fotográfica ou que são eminentemente ilustrativas, como a fotografia de um prato culinário). A título exemplificativo, na obra colectiva Le Photojournalisme (1992) aconselha-se o recurso a processos como a acentuação digital do contraste figura-fundo, o reenquadramento e a combinação de diferentes fotos para gerar sentido (por exemplo, a integração de uma imagem fotográfica da mesa de uma conferência numa foto da plateia da mesma conferência). Porém, se excluíssemos os conselhos quanto ao reenquadramento, os autores passam, concomitantemente, duas outras noções: 1) em primeiro lugar, o público deve sempre perceber claramente que se trata de uma imagem manipulada ou, em alternativa, o público deve ser advertido do facto; 2) em segundo lugar, a manipulação só deve ser feita quando, em conformidade com a avaliação do fotógrafo ou com a interpretação que este faz da realidade, o acto resultar em benefício do público (lembremo-nos das fotomontagens de Heartfield). Barnhurst afirma que, seguindo as abordagens estandardizadas, os fotojornalistas podem, sem intenção, reiterar uma série de crenças sobre as pessoas, dando o exemplo dos heróis, que actuam, e das vítimas, que se emocionam — "The narrative teaches that the world is not safe, that when things go wrong, what is needed is a hero to intervene and set them right. And the need for a hero presumes a victim, someone who waits passively for rescue."(23) Na verdade, isto significa que, num determinado contexto histórico-cultural, as narrativas convencionais no (foto)jornalismo contribuem para que seja dado significado social a determinados acontecimentos em detrimento de outros, promovendo, por consequência, determinados acontecimentos, e não outros, à categoria de noticías, concorrendo para dar uma aparência de ordem ao caos que é a irrupção aleatória de acontecimentos e dando inteligibilidade ao real, devido à taxonomização deste em determinadas categorias. Isto vem, aliás, ao encontro da função remitificadora que Adriano Duarte Rodrigues identifica nos meios de Comunicação Social: se antigamente as colectividades humanas recorriam ao mito para explicar as experiências do mundo e dar sentido à vida, hoje teriam transferido para os media a tarefa de organizar e integrar as experiências aleatórias de vida num todo racionalizado.(24) O fotojornalista não apenas reporta as notícias, como também as cria: as (foto)notícias são um artefacto construído por força de mecanismos pessoais, sociais (incluindo económicos), ideológicos, históricos, culturais e tecnológicos. CAPÍTULO II OS PRIMÓRDIOS DO FOTOJORNALISMO A fotografia nasceu no ambiente positivista do século XIX(25), beneficiando de descobertas e inventos anteriores, como as câmaras escura e clara, e da vontade de se encontrar um meio que permitisse a reprodução mecânica da realidade visual. O aparecimento da fotografia, singularizadora e analógica, provocará, assim, uma crise de readaptação no universo da arte representacional, "privada" do realismo por um outro realismo. Nos primeiros tempos, a utilização da fotografia prendeu-se, principalmente, com demonstrações técnicas, mas, pouco a pouco, por influência dos primeiros fotógrafos, em muitos casos também pintores, foram surgindo determinados cânones estético-expressivos para o medium. Estavam criadas as primeiras convenções profissionais, muito semelhantes às da pintura. O pictoralismo via, assim, a luz do dia como a primeira grande tendência a desenhar-se em torno da fotografia, constituindo-se como um movimento que visava a integração da fotografia nas artes plásticas, através de procedimentos mais ou menos forçados, inclusive em laboratório. Essa corrente vai influenciar o novo medium durante todo o século XIX. Os pictoralistas consideravam que se a fotografia queria ser reconhecida como arte tinha de se fazer pintura, pelo que exploravam fotograficamente os efeitos da atmosfera, do clima (névoa, chuva, neve…) e da luz (crepúsculo, contra-luz…). A fotografia de retrato, pelo seu lado, também vai copiar as poses forçadas e os cenários que a pintura usava. Mesmo ao nível técnico, o retoque e a pintura das fotos vão fazer escola. Tal constitui um indício da ideia então vigente de que a fotografia era como uma extensão da pintura que, eventualmente, substituiria esta última. Porém, não só a pintura não desapareceu como também a fotografia a poderá ter ajudado a libertar-se das amarras do realismo. As primeiras manifestações do que viria a ser o fotojornalismo notam-se quando os primeiros entusiastas da fotografia apontaram a câmara para um acontecimento, tendo em vista fazer chegar essa imagem a um público, com intenção testemunhal. Também seria uma questão de tornar a espécie humana mais visível a ela própria(26) e essa preocupação "(…) has led them to confront hostile surroundins, censorship, fallible equipment, the conventional tastes of photo editors and readers, the distorting scrims of their own prejudices, the inherent limitations on what photograph can convey".(27) Mais rigorosamente, a fotografia é usada como news medium, entrando na história da informação, desde, provavelmente, 1842, embora, com propriedade, não se possa falar da existência de fotojornalismo nessa altura. Aliás, o fotojornalismo necessita de processos de reprodução que só se desenvolvem a partir do final do século XIX — até meados do século passado, desenhadores, gravuristas e gravuras de madeira eram intermediários entre fotógrafos e fotografias e os leitores. (Fig. 1) De facto, a publicação directa de fotografias só se tornaria possível com as zincogravuras, que surgiriam ao virar do século. Até essa altura, a tecnologia usada envolvia papel, lápis, caneta, pincel e tinta para desenhar; depois, tornava-se necessário recorrer a madeira, cinzéis e serras para criar as gravuras. Um exemplo eloquente é o registo do que aconteceu a uma das primeiras fotografias de acontecimentos, o daguerreótipo das consequências de um incêndio que destruiu um bairro de Hamburgo, em 1842, realizado por Carl Fiedrich Stelzner.(28) (Fig. 2) A The Illustrated London News, revista semanal que durante muito tempo esteve à frente das publicações ilustradas, grandes artífices da comunicação/informação visual, usou uma imagem, desenhada a partir desse original, para ilustrar o sucedido(29), pois a reprodução de fotografias constituía um problema com que se defrontavam os primeiros jornais e revistas desse tipo. De qualquer modo, também é de relevar que o gosto da época privilegiava o desenho.(30) Nos Estados Unidos, a primeira fotografia de um acontecimento público foi realizada em 1844. Trata-se de um daguerreótipo da autoria de William e Fredecrik Langenheim, mostrando uma multidão reunida em Filadélfia por ocasião da eclosão de uma série de motins anti- imigração.(31) A Guerra Americano-Mexicana de 1846-1848 foi, por seu turno, a primeira guerra para onde jornais enviaram correspondentes, tendo mesmo um daguerreotipista anónimo realizado uma série de fotos de oficiais e soldados.(32) Em Abril de 1848, foi publicada no The Sunday Times uma reprodução sob a forma de gravura de madeira daquele que talvez se possa considerar como o primeirodaguerreótipo político "publicado" na imprensa: The Great Chartist Crowd. Em 1849, um ou mais fotógrafos anónimos fotografaram os soldados e oficiais envolvidos no cerco de Roma, mais um prenúncio da atenção que o fotojornalismo iria devotar à guerra. Em meados do século XIX, inicia-se a edição de publicações ilustradas. A The Ilustrated London News, a primeira revista ilustrada, nasceu em Maio de 1842. O seu fundador, Herbert Ingram, afirmou, no número um, que a revista daria aos seus leitores informação em contínuo dos acontecimentos mundiais e nacionais mais relevantes, da sociedade à política, com a ajuda de imagens caras, variadas e realistas.(33) Entre 1855 e 1860, a tiragem cresceu de 200 mil para 300 mil exemplares(34), o que indicia uma crescente apetência social pela imagem. Em Paris, começa a ser publicada, em 1843, a Illustration, a segunda grande revista ilustrada a ver a luz do dia. É também durante esse ano que um funcionário fixa, em daguerreótipo, a cerimónia de assinatura de um tratado de paz entre a França e a China. Com ele, completa-se a figura do pré-foto-repórter.(35) As fotografias de um incêndio (o de Hamburgo) e de uma cerimónia protocolar ficam, assim, para a história, como indícios daquilo que, mais tarde, se conformaria como alguns dos temas configuradores de rotinas produtivas e convenções no fotojornalismo. À época, os fotógrafos aventuram-se por vários caminhos. O gosto pelo exótico e a curiosidade pelo diferente, por exemplo, vão promover a produção e difusão de fotografias de intenção documental de locais distantes e de paisagens. Na Europa, a atenção vai para a África e o Oriente, facto a que não é alheia a mentalidade colonial. No entanto, se a "documentação" fotográfica africana é norteada por finalidades científicas, o "fotodocumentalismo" no Médio Oriente, sobretudo no Egipto, teve como fim principal a comercialização de postais ilustrados. Nos Estados Unidos, especialmente após a Guerra da Secessão, os olhares dirigem-se para o Oeste, povoado por tribos índias, e para onde os colonos se deslocavam, indo provocar um dos maiores genocídios da história. Os fotógrafos que empreendiam tais expedições eram autênticos "fotodocumentalistas"-viajantes, vergados sob o peso de um equipamento de grandes dimensões e obrigados a transportar consigo —literalmente— o laboratório. Visando dar testemunho do que viam, encobertos pela capa do realismo fotográfico, começavam a ambicionar substituir-se ao leitor, sob mandato, na leitura visual do mundo. É já uma retórica da "objectividade" a despontar, mas que correspondia, de facto, a um discurso fotográfico cujo fim residia na obtenção de imagens sem censura nem truncagens. De todo o modo, embora esses fotógrafos não carregassem ainda o peso de uma tradição histórico-cultural manipuladora e censória, não eram raras as ocasiões em que os gravuristas de madeira acrescentavam pormenores da sua lavra às imagens no momento em que elaboravam ilustrações a partir dos originais fotográficos. Paralelamente, desenvolve-se, também, a fotografia de retrato e a fotografia arquitectónica. Evidencia-se ainda o naturalismo(36), a que sucede a fotografia pictoralista(37), onde as fotos assumiam, como se disse, uma condição de imitação da pintura. (Fig. 3) Algumas das tendências compositivas patentes na fotografia pictoralista ainda hoje se repercutem, por vezes, no campo fotojornalístico. (Fig. 4) A necessidade aguça o engenho. Sentia-se a necessidade de novas invenções e estas, como as que "aprisionam o instante", gradualmente, foram surgindo. Mas as tecnologias não são neutras: emergem num determinado estado de coisas e configuram um novo estado de coisas. É pois notória a inter-relação entre as possibilidades técnicas e os conteúdos: nas guerras daquele tempo seria impossível obter spot news das batalhas. As imagens de Fenton, da Guerra da Crimeia, e de Brady, Gardner, O'Sullivan, Barnard e outros, da Guerra da Secessão Americana, por exemplo, concentram-se, por isso, mais na paisagem bélica do que nos processos de guerra em si. Assim, "Depictions of battle were sanitized by distance and time, leaving the viewing public outside the process of war itself."(38) As exigências do público, dos profissionais e dos consumidores levam, consequentemente, a avanços tecnológicos, que permitirão ganhos para o conteúdo das fotografias. É desta forma que a evolução da temática fotográfica no século XIX é acompanhada por conquistas técnicas. Entre elas, avulta a diminuição dos tempos de exposição, ligada à melhoria da qualidade das lentes e à adopção de novos processos, como o do colódio húmido (cerca de 1851). A técnica do colódio húmido contribuirá para destronar o daguerreótipo. Com o fim do reinado deste e com a disseminação dos processos negativo-positivo, vão produzir-se mudanças na cultura, nas rotinas e convenções profissionais. Na fotografia, vai abandonar-se a ideia da obra de arte única, chegando-se à noção de arte-obra múltipla.(39) Para o fotojornalismo, a conquista do movimento revelou-se de importância vital, uma vez que permitiu "congelar" a acção, impressioná-la numa imagem quase em tempo real, capturar o imprevisto, chegar ao instantâneo e, com ele, acenar com a ideia de verdade: o que é assim capturado seria verdadeiro; a imagem não mentiria (note-se, todavia, que apesar de o instantâneo permitir representações fotográficas mais "sinceras" e espontâneas, as fotografias não deixam de ser representações). O mesmo se passa com a melhoria das lentes — uma maior luminosidade possibilitará até a obtenção de fotografias em interiores sem recurso à iluminação artificial, o que facilita, por exemplo, fotografar pessoas sem que elas se apercebam da presença do fotógrafo, com ganhos para a naturalidade e, assim também, para a verosimilhança. Nadar (1820-1910), o célebre retratista francês, talvez o primeiro fotógrafo a atentar nas expressões características de cada pessoa, explorando as potencialidades expressivas do rosto humano através da máquina fotográfica(40), monta o seu estúdio em 1853. Será a ele que se deverá a primeira fotografia aérea, em 1858, as primeiras fotografias com iluminação artificial (esgotos de Paris) e as primeiras fotografias de uma entrevista (as fotos do filho de Nadar à entrevista que o seu pai fez ao químico Chevreul, por ocasião do centenário deste, em 1886, das quais 12 foram publicadas no Journal Illustré). (Fig. 5) Segundo Gisèle Freund:"A foto inaugura os mass media visuais cando o retrato individual fica substituido polo retrato colectivo. De vez, convertese nun poderoso medio de propaganda e manipulación."(41) Com a abertura do estúdio de Disderi (1819-1889), também na capital francesa, por volta de 1854, opera-se uma mudança radical na evolução da fotografia — surge a fotografia "cartão de visita" e dá-se democratização do acesso à fotografia de retrato por via da diminuição dos preços. É dado o primeiro passo para a fotografia se tornar um mass medium. Julgamos mesmo, aliás, que foi através da popularização massiva da imagem fotográfica que se começou a delinear um mercado para o fotojornalismo. Os pioneiros da "reportagem" fotográfica assistirão à cerimónia de abertura da reconstrução do Crystal Palace, em Sydenham, em 1854, e ao baptismo do príncipe imperial em Notre-Dame de Paris, em 1856.(42) Pelo meio, em 1855, Roger Fenton (1819-1869) parte para a Guerra da Crimeia, com quatro assistentes e uma enorme parafernália de equipamento, entre o qual uma carroça-laboratório, indispensável para a necessária revelação imediata das fotografias (usava- se a técnica do colódio húmido sobre vidro). Ele irá realizar a primeira reportagemextensa de guerra. A década de cinquenta do século passado tornou-se uma época de oportunidades para a fotografia de paisagens, sobretudo no Mediterrâneo, onde fotógrafos britânicos e franceses eram particularmente activos. Algumas das fotos surgiam na imprensa sob a forma de gravuras, como as vistas de Constantinopla de James Robertson (?-1865?), publicadas na Illustrated London News.(43) Também surgiam nos jornais e revistas da época algumas gravuras de fotos que documentavam o processo de industrialização em curso, como as de Robert Howlett da construção do maior navio a vapor da época, o Leviathan, publicadas, em 1858, na Illustrated Times.(44) Entretanto, em 1852, realiza-se uma grande exposição fotográfica em Inglaterra. No Times escreve-se sobre o potencial "fotojornalístico" da câmara: "It secures precise and charming representaions of the most distant and the most evanescent scenes. It fixes, by almost instantaneous processes, the details and character of events and places, which otherwise the grear mass of mankind would never have brought home to them."(45) 1855 é o ano da grande exposição do Palácio da Indústria, em Paris, onde se inclui uma secção especial sobre fotografia. Por essa altura, nos meios intelectuais, animados pelo positivismo, e nos meios artísticos, onde pontifica paralelamente o realismo, alimenta-se uma polémica sobre a fotografia. O debate em curso "(…) exemplifica o ambiente de contradición creadora que pulaba polos seus protagonistas e que estimula o camiño da foto como testemuña, o grande perigo aparecerá vencellado coas correntes pictoralistas, de condición recuada, que pretenden identificar, forzar, foto igual a imitación da pintura."(46) É na exposição parisiense de 1855 que, pela primeira vez, são exibidas provas retocadas de negativos, do fotógrafo Franz Hamfstangel, de Munique. Mas, se Hamfstangel inventou o retoque do negativo, também abriu as portas à manipulação da imagem fotográfica pela truncagem. Gisèle Freund afirma mesmo que: "O retoque constituiu um facto decisivo para o desenvolvimento ulterior da fotografia. É o começo da sua degradação pois, uma vez que o seu emprego inconsiderado e abusivo elimina todas as qualidades características de uma reprodução fiel, ele despojou a fotografia do seu valor essencial."(47) Nessa mesma época, a fotografia estereoscópica (em três dimensões) vai popularizar- se, chegando quase ao estatuto que têm hoje os videos domésticos. Paisagens, fotos de guerra, fotos de acontecimentos (frequentemente também inseridas na imprensa), fotos do mundo industrial, fotos de viagem, todas contribuiam para os lucros das companhias que se dedicavam a esse produto, como a London Stereoscopic Company, que, no final da década de cinquenta do século passado, havia vendido 500 mil aparelhos em que podiam ser usadas quase 100 mil fotografias. A fotoestereoscopicomania durará até à I Guerra Mundial. A este fenómeno, provavelmente, não será estranho o facto de só a partir dos finais do século XIX os jornais e revistas começarem a editar fotografias e não gravuras obtidas a partir de fotografias. Alguns fotógrafos, como o coronel Langlois (1789-1870), autor de Panoramas de la Guerre de Crimée, 1855) ou Gustave Le Gray (1820-1884), começaram também por essa época a realizar várias fotografias em sequência espacial, algumas das quais com interesse documental, para tentar compor panorâmicas. A ideia da panorâmica, hoje em dia, é representada pelas técnicas que permitem a sua realização, como o Advanced Photo System. CAPÍTULO III NASCE O FOTOJORNALISMO: A GUERRA COMO TEMA PRIVILEGIADO Em meados da década de cinquenta do século XIX, a fotografia já havia beneficiado dos avanços técnicos, químicos e ópticos que lhe permitiram abandonar os estúdios e avançar para a documentação imagética do mundo com o "realismo" que a pintura não conseguia. A foto beneficiava também das noções de "prova", "testemunho" e "verdade", que à época lhe estavam profundamente associadas e que a credibilizavam como "espelho do real". As guerras não puderam, assim, deixar de merecer a atenção dos "proto- fotojornalistas" e dos seus editores. Por um lado, a herança cultural consagrava-lhe atenção artística, pois a guerra sempre foi um tema sedutor e de sucesso junto das pessoas(48); por outro lado, na segunda metade do século passado ocorreram numerosos conflitos em que se viram envolvidas as potências mais industrializadas. Há ainda a acrescentar que se ia formando um público para a "reportagem ilustrada". É assim que a participação britânica na Guerra da Crimeia (1854-55), com o consequente interesse popular, leva o editor Thomas Agnew a convidar o fotógrafo oficial do Museu Britânico, Roger Fenton, a deslocar-se à frente de batalha, para cobrir "fotojornalisticamente" o acontecimento. Todavia, a rudimentaridade das tecnologias vai originar um caso paradigmático de desfavor do "proto-fotojornalismo". As fotografias da Guerra da Crimeia obtidas por Fenton, publicadas no The llustrated London News e no Il fotografo, de Milão, em 1855, foram inseridas na imprensa sob a forma de gravuras, apesar dessas fotos constituirem o primeiro indício do privilégio que o fotojornalismo vai conceder à cobertura de conflitos bélicos. De qualquer modo, e de acordo com Marie-Loup Sougez, Roger Fenton foi o primeiro repórter fotográfico.(49) As fotografias que Fenton obtém na Crimeia não mostram o horror da dor e da morte. (Fig. 6) Os cerca de 300 negativos que restam são antes imagens de soldados e oficiais, por vezes sorridentes, posando para o fotógrafo, ou imagens dos campos de batalha, limpos de cadáveres, embora juncados de balas de canhão. As fotos da Guerra da Crimeia realizadas por Roger Fenton possuem, de facto, um condicionalismo que ultrapassa o dos limites definidos pelas tecnologias. Sendo uma expedição encomendada pelo empresário Thomas Agnew, com a primeira cobertura "fotojornalística" de guerra nasce a censura prévia ao fotojornalismo.(50) Daí serem imagens que nada revelam da dureza dos combates. Em vez disso, mostram a "falsa guerra", os soldados bem instalados, longe da frente. É ainda a guerra vestida com a sua auréola de heroísmo e de epopeia, como tradicionalmente era representada pela pintura. Por outro lado, porém, há evidentemente que atentar nas limitações técnicas: a "reportagem" de guerra estava limitada ao "teatro das operações" e às consequências das actividades bélicas, pois o fotógrafo era incapaz de se posicionar "na acção". É preciso que se note que as fases iniciais do conflito da Crimeia, que se desenrolaram nos Balcãs, podem ter sido registadas por Karl Baptist de Szathmari, um amador de Bucareste, mas as fotos não sobreviveram, pelo que se desconhece o seu conteúdo. Durante a Guerra da Crimeia salientou-se ainda um outro fotógrafo, também britânico: James Robertson. Ele, provavelmente, foi o primeiro fotógrafo a fotografar mortos em combate, quando "reportou" a queda de Sebastopol, ampliando "o universo do mostrável", a "liberdade de ver".(51) Um outro "proto-fotojornalista" desses tempos foi um associado de Robertson, Felice Beato (c. 1830-1906). Juntos após 1850, depois do conflito da Crimeia foram para a Índia, onde Beato fotografará a rebelião dos Cipayos, em 1857. Da Guerra da Crimeia em diante, todos os grandes acontecimentos serão reportados fotograficamente, como o conflito que opôs a Áustria à Sardenha (Luigi Sacchi, Berardy e Ferriers, pai e filho, 1859), a colonização da Argélia (Jacques Moulin, 1856/57), as rebeliões na Índia (Robertson e Beato, 1857-1858), a intervenção britânica na China, durante as Guerras do Ópio (Beato, 1860), o ataqueda Prússia e da Áustria à Dinamarca (Friedrich Brandt, Adolph Halwas e Heinrich Grat, 1864), a Guerra da Secessão nos EUA (1861/65) e a Guerra Franco-Prussiana, onde Disdéri chegou a fotografar as ruínas de St. Claud (1870). De qualquer modo, acontecimentos mais pacíficos ou até mesmo agradáveis também mereceram reportagens: concursos agrícolas, festas, exposições universais, grandes construções.(52) A audiência crescia: "With the press embarking upon a period of quick expansion —the result of increasing literacy and advances in rapid printing that made it possible to produce huge editions— 'the people' were becoming 'the public'. Civil life would be transfomed. Popular prejudices were magnified by the press, leading to a louder clamor and intensified passions."(53) A exemplo do que aconteceu com as fotos da Crimeia, nos Estados Unidos levantam- se também problemas tecnológicos na hora de reproduzir em revistas ilustradas (como a Harper's Weekly, a New York Illustrated News ou a Frank Leslie's Illustrated Newspaper) fotografias como as da Guerra da Secessão — o primeiro evento a ser "massivamente" coberto por fotógrafos. Na cobertura desse conflito pontificaram, entre outros, nomes importantes para a história do fotojornalismo, como Mathew Brady (1823-1896), um freelance que havia sido o fotógrafo oficial do candidato Lincoln, e os seus colaboradores mais importantes, Alexander Gardner (1821-1882), Timothy O'Sullivan (activo de 1840 a 1882) e George N. Barnard (1819- 1902). As práticas de construção imagética tiveram alguma influência durante a Guerra Civil Americana: Gardner chega a rearranjar um corpo de um sulista na célebre foto de um soldado morto intitulada "Home of a Rebel Sharpshooter".(54) (Fig. 7) Aliás, esse mesmo corpo pode ter sido usado não só para essa mas também para outra foto de um morto, desta feita de um soldado da União: "A Sharpshooter's Last Home".(55) A associação de Brady (que raramente operava a câmara) com os seus colaboradores ruiu quando estes começaram a reclamar do facto de Brady assinar todas as fotos, incluindo as desses últimos, o que deixa adivinhar o despontar da ideia do direito de autoria e assinatura no fotojornalismo. Devido ao mau estar desencadeado pela actuação de Brady, Gardner, por exemplo, dissociar-se-á do seu contratante a meio da guerra, publicando, no final das hostilidades, o Gardner's Photographic Sketch Book of The War. Contudo, independentemente dos seus méritos e desméritos, Pollack assegura que foi Brady a ter a ideia inovadora de montar a primeira agência distribuidora de fotos de actualidade, embora se tenha arruinado no empreendimento.(56) Ao contrário do que sucedeu a Fenton, durante a Guerra da Secessão, sem censura, começa a revelar-se uma certa estética do horror, que, mais actualmente, dominou obras como a de Don McCullin ou as de uma parte dos fotojornalistas de guerra, mas que já se adivinhava, por exemplo, nas fotos de Felice Beato durante as Guerras do Ópio, na China, em 1860. As imagens de Beato da captura de Tientsin pelas tropas franco-britânicas não teriam sido sujeitas aos condicionalismos com que Fenton se defrontou, mostrando os cadáveres, por vezes em decomposição, dos que tombaram na luta. Pelo estudo de William Thomson, The Image of War, chega-se, todavia, à conclusão que a cobertura fotográfica da Guerra Civil Americana abrangeu também, especialmente no seu início, imagens idealizadas de oficiais garbosos a conduzir ordeira e heroicamente os seus soldados na frente.(57) O retrato duro e cruel das realidades (mortais) do conflito só aparece numa fase posterior, quando os editores perceberam que os leitores pretendiam notícias "factuais" sobre o que realmente acontecia aos combatentes.(58) Brady e outros fotógrafos, por exemplo, devem ter influenciado a opinião dos públicos, ao dar a conhecer fotos do campo de prisioneiros de Andersonville, onde se dizia que morria um prisioneiro a cada onze minutos. As gravuras dos "esqueletos humanos" publicadas, em Junho de 1864, na Leslie's e na Harper's, a partir das fotos, escandalizaram o Norte: não traziam a emoção visceral, intensa e instantânea das fotos-choque, mas saber que eram desenhos executados a partir de fotografias potenciava a sua credibilidade e dramaticidade. (Fig. 8) Os principais aspectos a reter sobre o desenvolvimento do fotojornalismo durante a cobertura da Guerra da Secessão talvez sejam: a) A descoberta definitiva, por parte dos editores das publicações ilustradas, que os leitores também queriam ser observadores visuais(59); a fotografia passa a ser vista como uma força actuante e capaz de persuadir devido ao seu "realismo", à verosimilitude; b) A percepção de que a velocidade entre o momento de obtenção da foto e o da sua reprodução era fundamental numa esfera de concorrência: o recurso ao comboio para transportar as fotos até à redacção tornou-se um procedimento de rotina(60), que terá começado a acentuar a cronomentalidade(61) dos fotojornalistas envolvidos e a tornar a actualidade num critério de valor-notícia (também) fotojornalístico; por vezes, as fotografias das batalhas eram publicadas menos de uma semana após a sua realização;(62) c) A aquisição da ideia de que era preciso estar perto do acontecimento quando este tivesse lugar(63), a mesma intenção que alguns anos depois incitará Robert Capa e muitos outros fotojornalistas, especialmente nas agências noticiosas e nos jornais e revistas; as fotos das batalhas obtêm-se ainda com o fumo e o odor a sangue a pairar pelo campo(64); d) A emergência da noção de que a fotografia possuía uma carga dramática superior à da pintura e que era nisto que residia o poder do novo medium; essa carga dramática ser-lhe-ia principalmente outorgada pelo facto de a câmara "registar" o que é focado no visor; assim, o observador tende a intuir que se estivesse lá veria a cena da mesma maneira; e) A guerra é despida da sua auréola de epopeia; f) Como a cobertura fotográfica da Guerra Civil que assolou os Estados Unidos foi a "estória" dos exércitos da União, já que a Confederação não possuía jornais ilustrados bem estruturados(65), evidencia-se que a imagem da guerra é, frequentemente, a imagem que dela dá o vencedor ou, pelo menos, que, em todo o caso, a imagem final da guerra é conformada pela imprensa mais forte. A Guerra da Secessão foi também a primeira ocasião da história em que os "fotojornalistas" correram perigo de morte ao cobrirem a frente de batalha. Um perigo agravado pela enorme quantidade de equipamento que necessitavam de transportar consigo, incluindo uma carroça-laboratório (tal como na Crimeia, usava-se a técnica do colódio húmido, que exigia que as fotografias fossem reveladas mal fossem obtidas) e câmaras enormes com tripé. Em 1866, foram publicados dois importantes livros fotográficos sobre a Guerra da Secessão, o primeiro exemplo de edições fotográficas organizadas pelos fotógrafos para serem tomadas em conta na hora de se fazer história: o já referenciado Photographic Sketch Book of the War (de Gardner, embora reunisse contribuições de outros fotógrafos) e Photographic Views of Sherman's Campaign (de Barnard). Este último talvez seja mais curioso, devido ao seu pendor ensaístico: trata-se de uma colecção quase obsessiva de fotografias "de paisagens" em que silhuetas de edifícios esventrados se alinham contra um céu claro. Era, afinal, o que restava da tal marcha do general Sherman. Por outro lado, são realizadas várias exposições, nomeadamente por Brady. Livros e exposições iniciam, assim, um percurso indelevelmente ligado ao fotojornalismo, mostrando que os processos de difusão de imagem fotojornalísticana actualidade têm raízes (também) histórico- culturais. Depois da rendição, Brady conseguiu convencer o general Lee a deixar-se fotografar em casa, na cidade de Richmond. Pela última vez, o general vestiu o uniforme Confederado. O trabalho de cobertura fotográfica do conflito tinha terminado. Segundo Karen Becker, além das imagens de guerra, a imprensa ilustrada da época privilegiava a inserção de imagens de eventos e cerimónias públicas importantes, encetando uma lógica que configura algumas das rotinas produtivas do fotojornalismo moderno.(66) Porém, mais importante do que a simples constatação de um facto é reflectir sobre as consequências da introdução das fotos traumáticas dos acontecimentos violentos nas tranquilas casas burguesas. Depois da fotografia, a guerra nunca mais seria a mesma. Com o medium emergente, o observador era projectado num mundo mais próximo, mais real, mas por vezes mais cruel. No mundo da imprensa, com as fotos, o conhecimento, o julgamento e a apreciação deixaram de ser monopolizados pela escrita. É preciso notar-se que os fotógrafos que cobriram esses primeiros grandes acontecimentos não se viam a si mesmo como fotojornalistas, até porque não existia um corpo profissional autónomo. Foi apenas por volta da última década do século passado, graças à emergência da imprensa popular, de que resultou a contratação de fotojornalistas a tempo inteiro por Pulitzer e Hearst, que o profissionalismo fotojornalístico começou a vir ao de cima(67) — em definitivo, grande parte da produção fotográfica deslocou-se para a imprensa, abandonando o estúdio, e muitos fotógrafos deixaram, consequentemente, o seu estatuto de pequenos burgueses. O estatuto de dependência económica que o fotojornalismo adquiriu com a profissionalização viria a conformar a actividade, tornando a sua produção algo "popular", uma tendência que adquiriu maior projecção nos dias que correm com o triunfo da foto-ilustração, do glamour e do show biz bem como com os fotógrafos paparazzi, que se movem ao faro do sensacional, do exótico, do escandaloso, e não do documento de valor socio-histórico, e cuja (má) fama foi relevada com a morte da Princesa Diana. CAPÍTULO IV UM LUGAR AO SOL: INVENÇÕES E INOVAÇÕES DESENHAM O ÊXITO DO FOTOJORNALISMO A agenda fotojornalística na imprensa nos finais do século XIX e princípios do século XX vai configurando-se no ambiente tenso que resulta das pulsões de sinais contrários que animavam as discussões sobre fotografia e as práticas fotográficas. Na mesma época, a procura da fotografia de actualidades aumenta. Encontra aqui, aliás, justificação o interesse que, em 1889, o British Journal of Photography mostra pela criação de um arquivo de fotos de actualidade(68), prenúncio do que, mais tarde, jornais, revistas e agências se veriam forçados a fazer. Hoje em dia, as novas tecnologias facilitam a arquivística fotográfica, permitindo, entre outros factores, uma melhor conservação (digitalização e armazenamento em banco de dados), a poupança de espaço, a rápida localização e a inclusão de várias informações em texto anexo. Porém, as novas tecnologias facilitam também a manipulação imagética, constituindo uma fonte de preocupação, embora também um desafio a que fotojornalistas, arquivistas e outros profissionais se rejam pelas pautas da honestidade, da ética e da deontologia. Na Europa, os grandes acontecimentos que ocorreram no último terço do século passado mereceram cobertura fotográfica. É interessante referenciar as "reportagens" da guerra Franco-Prussiana, entre 1870 e 1871, onde se começa a detectar a introdução do conceito de velocidade na fotografia europeia. É também nesse conflito que são realizadas as primeiras fotos de soldados lutando no campo de batalha (despontar da estética da próximidade). A cobertura da Comuna de Paris (1871) também se salienta na história da fotografia, pois, após o desenlace da revolta, as fotos foram, pela primeira vez, usadas com intuitos repressivos, para identificar pessoas com vista à instauração de processos criminais que levaram frequentemente a execuções. De facto, quando, nas barricadas, os revoltosos radicais posavam ingenuamente para os fotógrafos, certamente estavam longe de pensar nessa nova utilização da fotografia. Hoje, quem não quer ser reconhecido, tapa a cara — um gesto simples, embora denunciante de fotoliteracia, que poderia ter salvo vidas entre os revoltosos. Anos mais tarde, curiosamente, um álbum que reunia a memória fotográfica da Comuna não teve a aceitação do mercado. Tentativas de esquecimento, de lavar a memória nas seguras regiões da anestesia? Vai ser também depois da Comuna que surge a informação gráfica truncada, com as primeiras montagens. O fotógrafo Liébert publicou no livro Crimes de la Commune fotos de pessoas retratadas sobre fotos de Paris. Depois de várias experiências de diversos inventores, em Julho de 1871 o jornal sueco Nordisk Boktryckeri-Tidning publicou uma fotografia impressa conjuntamente com o texto, graças a uma impressão em halftone com uma trama de linhas. Carl Carleman, o inventor do processo (que será usado, depois, na imprensa de outros países, como na revista francesa Le Monde Illustré, a partir de 10 de Março de 1877), sublinhou que seria somente dessa forma que a fotografia poderia penetrar massivamente no público e tornar-se o meio mais poderoso para elevar culturalmente a humanidade. A conquista da travagem do movimento também deu passos largos: beneficiando da cronofotografia do fisiologista francês Étienne-Jules Marey (1830-1904), que estudava sobretudo o movimento de pessoas e animais, mas também de alguns objectos, o fotógrafo norte-americano Edward Muybridge (1830-1904), já bastante conhecido pelas suas fotos de Yosemite Valley, conseguiu registar —travado— o movimento em trote e a galope do cavalo do governador da Califórnia, Lelan Stanford. Muybridge obteve uma sequência das fases sucessivas do movimento usando doze máquinas fotográficas dispostas sequentemente, em bateria, accionadas por obturadores eléctricos cujo disparo era, por sua vez, accionado pelo cavalo ao tocar em fios que atravessavam a pista nos locais onde as câmaras se posicionavam. Nas duas últimas décadas do século XIX surgem revistas de fotografia em vários pontos do Globo, como a Illustrated American (Estados Unidos, 22 de Fevereiro de 1890), provavelmente a primeira revista ilustrada concebida deliberadamente para usar fotografias em exclusivo, a The Photographic News (Reino Unido) e a La Ilustración Española y Americana (Espanha). No primeiro número da Illustrated American, que inseria 75 fotografias, o seu editor proclamava: "(…) o objectivo especial será desenvolver as possibilidades até aqui quase inexploradas da câmara e dos vários processos que reproduzem o seu trabalho."(69) Aquelas revistas tiveram um relevante papel inovador: "Por razóns de periodicidade, de especialización temática ou de público será neste sector da prensa escrita —na revista— onde irá manifestarse o avance no uso da imaxe, mesmo as súas aplicacións vangardistas, sector que influirá e propiciará a súa introdución no xornal, no diario."(70) Na mesma altura, porém, alguns títulos tradicionais, como a The Illustrated London News, chegam até a manifestar-se contra a substituição da gravura artesenal pelos novos procedimentos de impressão(71), nomeadamente o halftone, disponível em geral a partir de 1880. Por um lado, é provável que um público mais conservador continuasse a considerar o desenho como uma forma de arte, estatuto que não outorgaria à fotografia. Desta forma, o seu gosto privilegiaria o desenho da fotografia em detrimentoda fotografia em si, fazendo-se eco da polémica que os detractores do novo medium alimentavam quase desde o seu nascimento. Por outro lado, esta postura é algo anacrónica, pois, ao fim e ao cabo, renegava os novos processos técnicos e invenções que concorriam para consolidar a fotografia como news medium (lentes anastigmáticas, emulsões sensíveis, película flexível, câmaras manuais e processos de impressão inovadores). Não obstante, a informação fotovisual tinha um lugar assegurado na imprensa. Por isto, as aparições esporádicas da fotografia nas páginas dos jornais e revistas mais não fizeram do que abrir caminho para a informação fotojornalística sistemática e, assim, para uma informação mais directa. De qualquer modo, com as conquistas técnicas e as inovações no uso da imagem, com o instantâneo e a conquista da acção, com a competição entre as cada vez mais numerosas revistas ilustradas ("fotojornalísticas"), nasce um novo discurso "fotojornalístico", ligado a uma retórica da velocidade. Aliás, em 1884, o Illustrierte Zeitung, de Leipzig, consubstancia o espírito renovador ao publicar dois instantâneos (fotografias que valem mais por existirem do que pela qualidade que apresentam) de Ottomar Anschütz, em halftone, sobre as manobras do exército alemão em Hamburgo. Justificando o acto, o director da publicação escreveu: "Pela primeira vez vemos duas fotografias instantâneas impressas conjuntamente com letra de imprensa (…). A fotografia abriu novos caminhos. A sua palavra de ordem é agora 'rapidez' em todos os aspectos, quer ao tirar a fotografia quer ao reproduzi-la. As velhas técnicas estão já ultrapassadas pelas de hoje (…)."(72) Estas ideias ainda hoje moldam algum fotojornalismo, como o fotojornalismo de agência noticiosa, o que releva as condicionantes histórico-culturais da evolução da actividade. A utilização do halftone generaliza-se a partir de 4 de Março de 1880, dia em que o The New York Daily Graphic publica a sua primeira foto reproduzida através desse processo (Stephen Horgan, A Scene in Shanty Town, uma fotografia de um bairro de lata). O halftone veio emprestar ao fotojornalismo a base tecnológica que lhe faltava para conquistar um lugar ao sol na imprensa. Ulteriormente, tornou-se mais fácil fazer acompanhar os textos de imagens fotográficas. Na Europa, por exemplo, são publicados dois halftones na Leipziger Illustriert, em 15 de Março de 1884. Todavia, a introdução do halftone não originou, inicialmente, a mudança das rotinas produtivas anteriores. De facto: (a) os repórteres fotográficos ainda necessitavam de desenvolver as performances "intuitivas" que o seu trabalho implica; (b) nem todas as notícias são fotografáveis ou, pelo menos, "fotogénicas"(73); e (c) a adaptação tecnológica ao halftone era cara e poderia contrariar os gostos e expectativas do público. Assim, os desenhos continuaram a ser a principal fonte de imagens dos jornais, com excepção dos domingos, em que os suplementos passaram a incluir fotos em grande número. Consequentemente, os gravuristas de madeira eram mais considerados do que os fotojornalistas, sendo vulgar que as fotografias fossem apenas usadas como modelo para os gravuristas de madeira, que chegavam a assinar as imagens nos jornais em detrimento de quem as obtinha. Conforme explica Karen Becker: "Despite these successes newspapers resisted the costly reorganization of production and hiring of outside printers to screen photographs. Their investment in engravers also satisfied standards of visual art and supplied more lively images than the slow photographic technology was capable of the time."(74) As fotografias surgiam nos jornais do século XIX como um pouco menos do que intrusas. O design de imprensa era centrado na letra. Além disso, nos jornais do final do século passado, como o Boston Evening Trancript, por exemplo, as fotografias surgiam sobretudo para ilustrar features. Nas páginas de features, era inclusivamente comum a inclusão de fotos de casamentos, embora separadas do texto por enfeites sóbrios. Frequentemente suprimia-se o fundo para se destacarem as figuras.(75) O Daily News, o Herald and Examiner e o Post usavam a fotografia de maneira equivalente.(76) "This mode of photo use was inspired by the art concepts of picture making, principally from portraiture and landscape genre paiting. These two sometimes joined together in a montage: cutout close shots of the principal faces, mounted on a static landscape taken after the fact, at the scene of events. Montage was used (…) but died out completely during the early 1930s, along with borders and silouettes (…)."(77) A película fotográfica em forma de tira, um invento de George Eastman e W. Walker surge também em 1884, como se referiu, o ano de publicação pela Illustrirte Zeitung dos instantâneos de Ottomar Anschutz das manobras do exército alemão em Hamburgo (hoje em dia as manobras militares continuam a ser pretexto de foto-reportagens, devido não só ao seu carácter espectacular mas provavelmente também aos inteligentes serviços de relações públicas das Forças Armadas). Essa invenção, para além de ter contribuido para o uso da fotografia como self-medium, virá a facilitar a vida aos fotojornalistas, pois trata-se de um material extraordinariamente mais manipulável e de transporte mais fácil do que as chapas de vidro ou metal. Quatro anos mais tarde, em 1888, Eastman inventa e fabrica a primeira câmara Kodak. Com ela, a fotografia promove-se definitivamente a medium de uso massivo e democratiza- se — "You press the bottom. We do the rest!" ("Você Carrega no Botão. Nós Fazemos o Resto!"), sustentava a campanha publicitária da Kodak. A partir deste momento, deixam de ser necessários conhecimentos relativamente aprofundados sobre os processos de revelação, impressão e composição imagética para se ser fotógrafo. Em pouco tempo, a fotografia vai permitir o amadorismo das cabeças cortadas. E também disseminar as ideias compositivas estereotipadas da foto bonita, lisa e aplanada no sentido, bem centrada — para o senso comum, estas seriam, em exclusivo, as boas fotografias, inclusive no domínio do fotojornalismo. Mas, por outro lado, também permitirá ao amador tornar-se num criador e até mesmo num caçador de imagens, garantindo que os acontecimentos marcantes das histórias individuais e familiares ganhem uma memória. Baptismos, casamentos, férias, ganham uma dignidade fotográfica que, para a fotografia tradicional, actua não só como um agulhão espicaçador mas também como um boião de liberdade. O caso do pintor Jacques-Henri Lartigue (1894-1986) é exemplificativo da anterior asserção. De facto, Lartigue veio a ser um dos amadores que usou abundantemente as máquinas portáteis. Ainda na sua juventude, realizou, a partir de 1904, diversos instantâneos de pessoas, cheios de graça e ternura, que contrastavam vivamente com a anémica estética pictoralista dominante, chegando mesmo, por vezes, a roçar a abstracção. Depois, continuou a fotografar a família, as crianças e as mulheres de estratos privilegiados da população francesa, até 1935, contemplando a elegância e a doçura de viver. Na imprensa, a competição derivada da cobertura da Guerra Hispano-Americana (uma guerra em que os jornalistas não se limitaram a reportar as notícias: fizeram notícias(78)), a partir de 1898, vai incentivar as empresas jornalísticas dos EUA a uma política de investimentos que alarga a utilização do halftone e promove definitivamente a fotografia ao estatuto de news medium. Apesar dos excessos do yellow journalism e do jornalismo sensacionalista(79) praticados na ocasião, os jornais norte-americanos, com o sensacionalista World, de Joseph
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