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Yves Simon O Viajante magnífico (Rev)

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Yves Simon 
 
O VIAJANTE MAGNÍFICO 
 
Romance 
 
 Tradução de G. Cascais Franco 
Segunda Edição 
 
ín-líbris Sociedade para a promoção 
 do Livro e da Cultura 
Título Original: 
 Le Voyageur Magnifique 
*C* _éditions Grasset ç 
Fasquelle, 1987 
Tradução: G. Cascais Franco 
 1.a Edição -- 1997 2.a Edição -- 1999 Impressão e Acabamento: 
 Imprensa Portuguesa -- 
 Porto Capa: João Guimarães Ferreira 
Depósito Legal: 117312/97 -- ISBN: 972-8474-02-4 
A IN LIBRIS agradece à DEUTSCHE GRAMMOPHON a cessão da imagem gráfica 
da capa do disco «Le Voyage Magnifique», Schubert - Impromptus/ Maria João Pires 
 
 
 
 
 
 
 
Adrien, jovem fotógrafo, está fascinado pelos lugares de começos, aqueles onde, a 
seus olhos, a história da humanidade acusou uma viragem: o lago Turkana no Quénia, 
onde tomou a posição vertical a criatura que, cessando de pertencer ao mundo animal, ia 
inaugurar o reino do homem. Hiroxima, onde este descobriu que podia auto-destruir-se e 
aniquilar o universo. Cabo Kennedy enfim, de onde partiram, em Julho de 1969, três ter-
ráqueos que iam caminhar, pela primeira vez, sobre um objecto celeste que não se 
chamava Terra. 
No momento de embarcar para estes três lugares do mundo, Adrien conhece 
Miléna, uma jovem actriz de origem checa, impulsiva, toda virada para o imediato. «Alegre 
como um início de revolução», a sua história começa como todas as paixões amorosas, 
longe dos dramas e na ilusão da eternidade. Miléna não tarda a querer um filho. Um novo 
começo. Para ambos. Para Miléna que vai mergulhar na maternidade. Para Adrien, 
sobretudo, que se encontrará igualmente grávido mas de um outro filho, diferente, 
imaginário e secreto, que não mais o deixará, vagueando com ele do Quénia ao Japão, de 
Paris a Cabo Kennedy, estranho Viajante Magnífico. 
 De Yves Simon, Michel Foucault disse, após a publicação de *_Oceans*, «Ele é um 
daqueles cuja obra me interessa enormemente, e sob todas as suas formas». 
Compositor, intérprete e romancista, Yves Simon é uma figura emblemática dos 
anos 70. Há na sua obra musical e romanesca uma homogeneidade que reside na 
mensagem de uma sensibilidade, e de um certo olhar sobre os outros, sobre as coisas e 
sobre o amor. *_Viajante Magnífico*, o seu sexto romance, foi galardoado em França com 
o «Prix des Libraires». 
Outras obras do autor: *_Les Jours en Couleurs L._Homme Arc-en-_Ciel Transit-
_Express L._Amour dans l._âme Océans* 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Pelos seus conselhos e pela sua presença, quero agradecer aqui a Yves Coppens, 
José Ferré, Dominique -- A. Grisoni Delphine Lefaucheux, Chris Marker e Tatsuji 
Nagataki Y. S. 
 
 
 
«Chove sobre Santiago meu doce amor. 
No céu brilha e pulula a camélia branca do dia.» 
FREDERICO GARCIA LORCA 
 
 
«Entrámos na idade das nossas derrotas, armados de certos 
conhecimentos mecânicos.» 
JOHN DOS PASSOS 
 
 
à crianca sem rosto, a Pascale, a Alain Borer e Ernest Pignon-_Ernest. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
I 
-- OS -- COMEÇOS 
 1 
 Durante uma semana, Adrien caminhara ao longo do *rift*, essa fenda da terra, 
visível como uma fronteira, e que divide o Quénia numa extensão de vários milhares de 
quilómetros. Uma fractura de continente. 
Amanhã, deparar-se-lhe-ia de novo Nairobi, um hotel de três estrelas, casa de 
banho, ar condicionado. Um aeroporto. 
Apeteceu-lhe bruscamente café e mel. 
Diante do lago, sacou de um canhenho amarelo cingido por um elástico largo e 
escreveu: 
 *«15 de Setembro. Lago Turkana (continuação*). 
...Horas a fio a olhar e a fotografar o céu. As cores mudam a todo o momento... 
Vermelhos, ocres, violetas aqui, à nossa frente, grandiosos, desdobrados neste ecrã 
gigantesco, oferecidos por prazer, para o simples prazer de quem olha. O céu como um 
ecrã... 
Há cinco milhões de anos os primeiros homens do mundo, de tanto o 
contemplarem e dele quererem abeirar-se, aprumaram-se... » 
 Ergueu os olhos e viu à sua volta as pedras, a savana estiolada. O deserto. 
Acrescentou: 
 «Mas não há fósseis dos sonhos e dos olhares...» 
 Entre a última página e a capa de cartão, uma fotografia. O rosto de uma mulher. 
Ela escolhera o derradeiro instante para lho dizer. No aeroporto: :, 
 «Visto que é ao país dos começos que vais, pensa na criança... _é disso que eu 
agora gostaria, de um filho...» 
 Ao fechar o canhenho, murmurou três sílabas: Mi... Lé... 
Na... e repetiu-as como numa confidência. No silêncio desse princípio de mundo, 
ele ciciava o nome de uma jovem mulher, Miléna. 
Miléna num deserto. 
 2 
 Cinemascópio a preto e branco. Miléna: uma rapariga que Adrien encontrara no 
início do Verão numa sala de cinema. 
No final do filme, Woody Allen corre pelos passeios de Nova Iorque, atravessa ruas, 
atropela pessoas e faz sinal a táxis. 
Ele sabe que é demasiado tarde, mas corre pela cidade a preto e branco para ir 
dizer a uma adolescente que não deve partir. 
Ela repetira-lhe porém, vezes sem conta, ao longo de toda a sua história, que o 
amava, mas ele armou-se em esperto e brincou aos indiferentes. Agora reage, porque sabe 
que ela vai apanhar um avião e afastar-se dele. É claro que podia ter corrido ao seu 
encontro mais cedo, muito antes, não ter hesitado, mas a ideia do guião era justamente 
este desfasamento: não desejar, ao mesmo tempo, as mesmas coisas. 
Enquanto o final de *_Manhattan* se desenrolava no ecrã, Adrien ouviu a rapariga 
sentada a seu lado soluçar... Ela desatara chorar, a chorar. Agora, fungava. *_Crescendo*. 
Adrien entrevira o seu rosto antes do início do filme, mas esquecera-o. A 
intensidade dos soluços fê-lo voltar a cabeça e olhar para ela outra vez. Vislumbrou 
cabelos meio compridos e ondulados, em alvoroço. Em redor, para manifestarem, ainda 
que de um modo delicado, a sua irritação, vários espectadores tinham começado a mexer-
se nas cadeiras. Apeteceu-lhe passar o braço em volta dos ombros daquela jovem, e como 
gostava da eternidade, dizer «não faz mal, vá, chore tranquilamente até à consumação dos 
tempos». Mas pensou que talvez acabasse de ter um desgosto e calou-se. 
Ela passou mais de uma vez as costas da mão pelos olhos e por baixo do nariz. 
Adrien hesitou, e já que convinha ser mais prático do que romântico, estendeu-lhe, de 
olhos pregados no ecrã, o lencinho branco que ornava o seu casaco. Ela assoou-se 
finalmente. O filme terminava, e este último ruído misturou-se dolorosamente com a 
música de George Gershwin. 
Assim que as luzes se acenderam, levantaram-se e ela perguntou: 
 -- _é seda; não é? 
 3 
 A cidade onde vivem é imensa. 
Uma cidade da Europa Ocidental onde em ruas e avenidas circulam milhões de 
indivíduos. Os corpos roçam-se, procuram-se, evitam-se também. Há olhares que hesitam 
ao cruzar-se nas escadas rolantes. Por vezes, um poema é escrito num guardanapo de 
papel e em seguida levado a uma pessoa sozinha que parece esperar alguém, rodando 
interminavelmente a sua colher numa chávena de café. Mas talvez ela goste de estar 
sozinha e não espere ninguém... 
A solidão. 
Cada qual poderia descrevê-la à sua maneira, à medida do seu sofrimento. Mas 
frequentemente as palavras não bastam. Não podem contar esta miséria de nos sentirmos 
desligados de tudo, vivendo ao mesmo ritmo que a desordem do mundo, sem nada termos 
de luminoso para imaginar, a fim de lutar contra essa agonia... Então, há o silêncio, que 
não é o mutismo. O silêncio. 
Esta cidade que tem um nome é antes de tudo uma cidade. Com o ruído, a 
multidão, nesgas de céu que se recortam entre os telhados dos prédios e pedaços de ruasque nunca são horizontes. Poder-se-ia dizer que todos os países estão ali reunidos, tantas 
são as raças que aí se cruzam para pronunciar as palavras de todo o mundo com 
sotaques diferentes... Táxi! Estação! Metro! Café! 
 Este território dos possíveis onde incessantemente os habitantes têm o vago 
sentimento de que o curso das coisas pode quebrar-se e mudar a história de uma vida, 
segreda-lhes cada dia e cada noite o contrário: que o seu tempo aí se dispersa e aí se 
dissipa. 
Amiúde, um homem é tentado pelo louco desejo de seguir uma desconhecida 
durante alguns minutos para saber mais acerca da sua vida, partilhar com ela o acaso de 
uma montra que acaba de chamar a sua atenção, a sua espera em frente dos cartazes e 
fotografias de um cinema de várias salas, a sua última hesitação antes de atravessar uma 
passadeira para peões no preciso momento em que surge a luz verde... Nada mais 
imaginar a não ser este corpo que avança alguns metros à nossa frente, ataviado de 
roupas, caminhando pelo passeio de uma cidade da qual conhecemos alguns bairros e 
um vago plano de conjunto. 
No dia do encontro de Adrien e Miléna, um anticiclone protegia esta cidade, assim 
como o país inteiro, de perturbações anunciadas :, por cima da Irlanda e do Atlântico 
Norte. O que significava: céu azul e as margens do rio invadidas por corpos pálidos vindos 
ao encontro do sol. 
A Terceira Guerra Mundial ainda não tinha data, a Segunda terminara uns 
quarenta anos antes e, em circunstâncias tão excepcionais, não se hesitava em proferir as 
palavras «doçura de viver». 
 4 
 Alguns fotografavam rostos, outros cidades. Ele, eram os começos Pouco lhe 
importava chegar no dia seguinte, quinze ou um milhão de anos mais tarde. Os lugares 
de começos é que o atraiam. 
O acaso das leituras e das viagens levara-o a assinalar toda a espécie de lugares 
ou de acontecimentos merecedores de que se pegasse em máquinas fotográficas, bilhetes 
de avião, para ir até ao local onde se tinham produzido. 
Adrien sabia que se podia fotografar o nascimento do Sol: os rastros visíveis da 
explosão e as luzes fósseis continuavam a errar no Universo, afastando-se a trezentos mil 
quilómetros por segundo. Poderia ir igualmente a Belém, a Meca, reencontrar o rastro dos 
profetas, ou ainda apanhar um comboio suburbano e dirigir-se a Versalhes, regressar a 
Paris, descer na estação da Bastilha, seguir para as Tulherias a fim de esquadrinhar os 
primórdios da Revolução Francesa... Ir também ao porto de Odessa, por lá caminhar, 
desencantar certas escadarias célebres, descobrir uma boa alma capaz de lhe indicar 
onde podiam ter ido parar os pedaços do casco do couraçado *_Potemkine* e tentar 
subtilizar, no tempo de hoje, os segredos dos marinheiros sublevados assim como dos 
primeiros bolcheviques. 
Todavia, apenas três lugares distantes no tempo e no espaço haviam retido a sua 
atenção: o lago Turkana no Quénia, Hiroxima e o Cabo Kennedy, a sul da Florida. 
No lago Turkana tinham-se aprumado os primeiros homens, e Adrien queria 
imaginar que eles tinham começado por erguer os olhos para fitar o céu e sonhá-lo, nele 
sonhando como que mergulhados no interior de um enorme capacete de *walkman* que 
lhes embuçasse a cabeça, para poderem ouvir o ruído do mundo e principiarem a 
entender a beleza do firmamento... 
No Cabo Kennedy, certo dia de Julho de 1969, três terráqueos de nacionalidade 
americana embarcavam a bordo do satélite *_Apollo 11*, para penetrar num universo 
ignoto e pousar, pela primeira vez, num objecto celeste que não se chamava Terra. 
Em Hiroxima, fora a morte que descera do céu. Desta vez, o novo ferimento 
infligido à humanidade era atómico. Lugar zero, tempo zero; a 6 de Agosto de 1945 ficava-
se a saber que a matéria tinha artes de libertar uma energia fulminante quando se lhe 
cindia o núcleo. Adrien perguntou a si próprio o que podia resultar de Hiroxima... :, Um 
homem novo?... Diferente, porquanto ciente doravante de que a todo o momento podia 
destruir-se, a ele e a todos os outros, e vir encalhar qual bando de baleias numa praia da 
orla do Universo. 
Nestes três lagares, algo entre os homens e o céu acontecera ou estava a 
acontecer, algo que parecia ser o prosseguimento de uma mesma obsessão, tenaz, que 
atravessara intacta séculos de história. «Um desejo de céu...» E era isto que apaixonava 
Adrien: a perseguição de um mesmo sonho ao longo de milhões de anos. 
Era aí que ele queria ir, aonde tais eventos tinham ocorrido, para olhar, fotografar, 
descobrir o que podia realmente ligá-los, e tentar resolver esse enigma do «desejo de céu» 
que se lhe colocara a ele, em criança... De uma maneira muito diferente. 
Um dia, vira um homem empoleirar-se lá no alto de um campanário para 
impressionar a mulher que acabava de o deixar e tentar, deste modo, seduzi-la de novo. 
Adrien perguntara à mãe por que motivo o homem subira, em vez de descer ao fundo de 
um poço ou de um precipício... A mãe respondera-lhe que ele subira a um campanário 
porque a conquista do céu é um velho sonho e os que sabem concretizá-lo são heróis. 
Toda a vitória tinha os olhos no ar... Adrien pensou então que o coração da mulher infiel 
batia apressadamente pelo heroísmo que lhe era oferecido, e que logo que o homem 
descesse ela amá-lo-ia como dantes, mais do que dantes. Mas o homem escorregou, o 
enigma não pôde ser resolvido. 
5 
 Ao saírem do cinema, tinham caminhado por um bulevar. Ela falou de Tchekhov 
e ele adivinhou que era actriz. *_As Três Irmãs*... Devia dar uma audição e sabia de cor 
os três papéis. 
Um princípio de Junho, longe do mar, e um sol à hora dos novos quadrantes da 
hora de Verão. Pessoas sentadas nas esplanadas a ver passar outras pessoas. 
-- Gostaria de lhe dizer as últimas frases de Olga. É o final da peça... 
Ele detestava que lhe lessem em voz alta poemas ou capítulos de romances. Como 
ainda mal se conheciam, afirmou que teria muito prazer nisso. 
Ela acrescentou: 
 -- Irradiam uma tão grande esperança na vida... Na vida vindoura, a nossa de 
hoje, que digo muitas vezes para mim própria estas palavras quando estou sozinha ou um 
pouco triste. Ninguém escreveria agora isto, ninguém, porque não se pensa em... 
Não terminou a frase. Depois, jovial, e como se fosse necessário distrair o 
espírito... 
-- Gostava de ter filhos, quatro, cinco, seis, muitos filhos para haver vida à minha 
volta, gritos, joelhos, esfolados, risos perdidos... Tem filhos? 
-- Não... 
Curiosamente, ele sentira-se culpado. 
 -- ...Deve achar uma parvoíce chorar assim no cinema... 
 -- Não, eu também estava comovido... Como você. 
-- Não podia estar comovido como eu. As emoções nunca se assemelham entre si. 
Elas são sempre bem nossas, coloridas pelas pessoas que conhecemos, pelo que estamos 
a viver... 
-- É verdade -- disse Adrien, que não tinha a mínima vontade de contrariar --, eu 
sentia-me comovido à minha maneira. 
-- E qual era a sua comoção? 
-- Estava triste por eles não conseguirem apaixonar-se um pelo outro, ao mesmo 
tempo. 
-- Eu estava espantada desde o início... Eles eram tão diferentes. Mas ele andava 
de tal modo preocupado... Por mais que ela dissesse que o amava, ele não a escutava. 
Devia estar ferido por alguma coisa, alguma coisa já velha, e você reparou certamente que 
as pessoas :, feridas nunca são tristes. 
Assobiam baixinho, parecem crispadas, como se estivessem habituadas a uma 
mágoa... São cismadoras. Ela, ela ainda não podia ter sido ferida como ele, porque era 
demasiado jovem... 
Assim, amava-o sem reflectir. 
-- E ele, por seu lado, reflectia na história de ambos... 
Era isto o desfasamento. Visto que ela o amava sem reflectir, ele tinha medo que 
ela pudesse, sem reflectir, nãomais o amar e deixá-lo. Então, ele brincava com ela, como 
se nada fosse sério entre ambos... Ele brincava e amava-a. 
 Como Miléna ligava pouco ao que se passava à sua volta, toda absorta no que 
dizia, por vezes alguns transeuntes davam-lhe encontrões. Adrien teve vontade de lhe 
tomar o braço para a guiar como uma cega. 
Ela disse: 
 -- Actualmente os homens têm medo... Sinto-o perfeitamente... Têm medo. 
Adrien insistiu na sua ideia, como se a não tivesse ouvido: 
 -- O desfasamento quase nunca é entre as pessoas, é intrínseco ao ser humano. 
Curiosamente, pensamos, experimentamos certas coisas e agimos de modo diferente... 
-- Você complica tudo. Basta dizer simplesmente o que pensamos, no momento em 
que o pensamos. 
-- Sabe muito bem que isso não se passa assim... E, de resto, há tantas palavras... 
-- ...E nenhuns sentimentos. Nem sequer me perguntou como me chamo... 
-- E você não me disse o fim de *_As Três Irmãs*. 
-- Tem razão. Bom, primeiro Tchekhov... Mas é melhor sentar-se... 
Escolheu uma das esplanadas onde não havia nenhum artista de rua a expelir 
fogo pela boca, a cantar, ou a contar histórias. Aguardou que ele se instalasse, enquanto 
ela ficava de pé em frente dos fregueses, mas dirigindo-se apenas a ele... 
-- ...Oh, meu Deus! O tempo passará, e nós abandonaremos esta terra para 
sempre, esquecer-nos-ão, esquecerão os nossos rostos, as nossas vozes, ninguém saberá 
como éramos, mas os nossos sofrimentos transformar-se-ão em júbilo para os que vierem 
depois de nós; a felicidade, a paz, reinarão sobre a Terra, e dir-se-á bem dos que vivem 
hoje, cobrindo-os de bênçãos. Ó minhas queridas irmãs -- ela fez o gesto de tomar nos 
seus braços dois corpos imaginários e de apertá-los contra si --, a nossa vida ainda não 
terminou. Temos de viver! A música é tão alegre, tão divertida! Só mais um pouco, e :, 
saberemos o porquê desta vida, o porquê destes sofrimentos... 
Se nós soubéssemos, se o soubéssemos! 
 Adrien sentiu-se embaraçado, ela deixara-se arrebatar pelas palavras de 
Tchekhov como se estivessem os dois sozinhos num lugar deserto... Uns casais e uma 
mulher tinham-na ouvido. 
Houve que sorrisse, quem aplaudisse até. Quando ela se sentou ao lado de Adrien, 
este disse-lhe: 
 -- Agora, devia pegar num pires e fazer um peditório... 
-- Gosta de Kafka? 
-- ...Sim... 
-- Chamo-me Miléna. 
 6 
 A cidade onde caminham foi um dia chamada *_Cidade-_Luz*... 
Depois, com a propagação dos néones e de espíritos cheios de presunção este 
qualificativo deixou de caracterizá-la. 
Tornou-se Paris, França, no departamento do Sena, uma capital... 
Se, em Berlim, um muro de pedra delimita dois mundos, aqui os muros que 
separam o antigo e o moderno, o estranho e o barroco, são invisíveis. É uma cidade 
multifacetada com um rio e duas ilhas no meio; o genérico de um filme a cores que lhe 
prestasse homenagem mostraria, numa sequência de planos curtos, o que ela possui de 
mais mágico e prestigioso: uma linha de metro que atravessa a ponte de Bir-_Hakeim no 
percurso Étoile-_Nation, os Campos Elísios à noite vistos do Parque das Tulherias, com o 
obelisco da Praça da Concórdia em primeiro plano; atrás, o resplendor branco e vermelho 
dos carros que sobem e descem a avenida ao longo de três quilómetros, e lá muito ao 
fundo, ligeiramente esbatidos, num mesmo plano, embora basante afastados, o Arco de 
Triunfo napoleónico e as torres dos anos 80 do Bairro de la Défense. Num dia 14 de 
Julho, filmar-se-ia o fogo-de-artifício mais colorido, o que é lançado do Campo de Marte, 
perto da Torre Eiffel enfeitada de lâmpadas eléctricas... 
Haveria igualmente bairros estranhos: Belleville com os caracteres árabes das 
montras, a -- XIII circunscrição junto da Porta de Itália com os seus letreiros chineses, 
Beaubourg, o museu-paquete, cuja armação exterior, toda de metal, é feita de altos 
pilares de aço vermelho e azul, o interior do R E R1 na estação de Auber, perto da Ópera, 
com os seus bancos de baquelite azul, da cor da noite, os barcos-faróis que sulcam o 
Sena desde o entardecer, iluminando como um teatro ambulante as fachadas do século -
- XIX. Enfim, antes de terminar, em plena Praça do Trocadéro, uma mulher de Maillol, 
nua, coberta de ouro, os seios perfeitos; haveria alguns planos dos Seis Dias com os 
ciclistas de Bercy, a fim de se combinarem as luzes do espectáculo e dos raios laser com 
os *smokings* luxuosos dos espectadores convidados, jantando sob os holofotes no meio 
da pista de madeira envernizada, ao passo que giram os corredores de camisolas de 
cetim, aplaudidos e assobiados pelos espectadores de Paris, sentados nas bancadas... :, 
 Enquanto se projectassem estas imagens, ouvir-se-ia uma música de Debassy ou 
talvez a *_Chanson de Prévert*, melancólica, em homenagem a um poeta elegante, e uma 
voz *off* diria: 
 «Adoro esta cidade...» 
 
1 R E R: Réseau Express Régional. (*_N. do T*.) 
 Certas manhãs, tão bem se quadra a sua cor com as fachadas pálidas dos 
prédios, a sua majestosa beleza e as ondas cínzeas do rio que a atravessam, o Sol parece 
não se ter erguido senão para ela... Hoje, um jovem de olhos extremamente claros e uma 
rapariga de cabelos ondulados, em alvoroço, acabam de aí se encontrar. É nesta cidade 
que eles habitam, que estão a viver um começo, o das primeiras palavras trocadas, de 
uma atracção vaga, imprecisa, e talvez deste ténue conjunto vá nascer uma história onde 
o céu e a terra se encontrarão, onde a vida e o imaginário se fundirão, uma vida de todos 
os dias pendurada às horas quase imóveis da História, uma vida que não se assemelhará 
a nenhuma outra, pois eles tentarão ligá-la ao tempo em que os deuses desceram à Terra 
e se misturaram com os homens, acabando por se lhes assemelhar. 
 7 
 Os inícios é que são misteriosos. 
Precisa, dolorosa, dilacerante, a morte é sempre determinável; é um traço brutal 
no mapa do tempo e do espaço. 
Destrói num ápice um conjunto de laços visíveis ou invisíveis que levaram por 
vezes anos, séculos, a entretecer-se. No entanto, apesar de e por causa disto, ela é a 
condição necessária para que a vida continue, se complexifique, criando ordens 
provisórias que retardam todas as vezes a crescente desordem do mundo: cada agonia de 
um sistema, por muito cruel que seja, é indispensável para poderem estabelecer-se novas 
conexões, mais fortes, mais subtis, diferentes. A morte fabrica o tempo. 
Uma vez pelo menos, cada um à sua maneira, Adrien e Miléna já a tinham 
defrontado. A mãe de Miléna morrera num acidente de automóvel, o pai de Adrien cessara 
de respirar depois de um cancro lhe ter invadido a garganta. Haviam chorado e o desgosto 
que os submergira dizia-lhes que eles estariam doravante privados de um número 
incalculável de palavras e de gestos, que certamente os teriam ajudado a viver de outra 
maneira. Melhor, talvez. 
Mas os inícios... 
Os dos encontros entre as pessoas, o que as liga entre si, os inícios de histórias de 
homens e de mulheres são misteriosos porque invisíveis e imprecisos, e os que as vivem 
em nada se apercebem deles. Esvaecem-se, olvidadas nas nossas memórias, as primeiras 
palavras pronunciadas, a primeira compaixão, a primeira palavra garatujada... 
Do seu encontro num cinema, Miléna e Adrien não iriam reter com o tempo senão 
a fungadela e o lencinho. E, no entanto, houvera de facto um primeiro olhar. Antes do 
início do filme, Adrien fora magnetizado por aquele rosto, um breve instante sem dúvida, 
mas a atracção produzira-se deveras. De resto, ele chegara atrasado à sessão, e como 
aprecia ficar de frente para o ecrã, ela tivera de se levantar para o deixar passar. Neste 
primeiro roçamento, ele sentira umperfume, um odor, sem demora igualmente 
esquecidos, pois não lhe passava pela cabeça ter de vir a recordá-los. Miléna, essa, 
incomodada por Adrien, notara apenas uma coisa: o jovem sentado a seu lado trazia 
umas calças de tecido branco e distraíra-a das primeiras imagens do filme, fazendo uma 
mancha clara que se destacava na penumbra. Depois tinham aparecido as imagens de 
Nova Iorque acompanhadas pela primeira frase de clarinete de *Rhapsody in blue*. Aí, já 
tudo tinha :, sido esquecido. Enterrados nas poltronas, eles estavam completamente 
concentrados na ficção que os arrastava para longe da sua história, e os convidava a 
tomarem-se por Ike e Tracy, os dois heróis do filme. 
 Adrien e Miléna tinham sofrido por mor da morte, eles desejavam que as suas 
vidas continuassem, ainda que devessem a maior parte das vezes acomodar-se a elas, e 
esqueceriam os seus inícios. 
Sofrimento, desejo, acomodamento e olvido, eles eram feitos deste bricabraque 
bizarro onde se misturam com o quotidiano a mortificação, a cobardia e a amnésia. 
Restava o desejo. 
 8 
 Depois do filme, Adrien devia ir a uma festa num bairro afastado, perto dos 
antigos matadouros. Ele insistiu para ela o acompanhar... 
-- Está alguém à sua espera? 
Ela não respondeu e acabou por se meter no carro. No fundo, ele não sabia que 
palavras usar, que situação provocar para ela ficar junto de si. 
Passaram pelos grandes eixos da cidade. Miléna mirava os monumentos, os 
museus de pedra ocre-clara iluminada por projectores. 
-- Não nos conhecemos e estou no seu carro, ao pé de si... 
_é estranho. Se olharem para nós, podem imaginar que somos um casal, com 
projectos, um passado, segredos... 
Como nada sabia do que poderia resultar de um tal encontro, ele falou do seu 
gosto pelos começos, do «desejo de céu», das suas futuras viagens... 
-- Parto depois de amanhã para Cabo Kennedy, na Florida... 
Volto no entardecer do Verão. 
Como ela baixara o vidro porque gostava de sentir o vento nos cabelos, ele vira-se 
obrigado a elevar a voz para ser ouvido. Ela respondeu da mesma maneira... 
-- O que vai lá fazer? 
-- Vou fazer uma reportagem sobre o lugar donde partiram para a Lua os 
primeiros astronautas americanos. 
Ela fez notar que eles tinham descolado há muito tempo, e que não compreendia o 
interesse de lá ir agora. Adrien tentou então explicar que não eram os acontecimentos que 
lhe interessavam, mas os lugares onde eles se tinham produzido. 
-- Em Setembro, parto para o Quénia, onde os primeiros homens se aprumaram... 
Foi há cinco milhões de anos, tornarei a chegar demasiado tarde! 
 -- Se gosta tanto dos começos, porque não fotografa o nascimento de uma 
criança? Isso é um verdadeiro início, é belo, é muito próximo, e há tantos todos os dias, 
que não se arrisca a chegar demasiado tarde... Acho-o complicado... 
Inícios, há-os por toda a parte à nossa volta, todos os dias, e são eles que devemos 
surpreender... -- Soltou uma risada. 
-- Olhe, nós acabamos de nos conhecer, :, talvez isto venha a ser uma história 
magnífica e você nem sequer tem a sua máquina fotográfica consigo... Em contrapartida, 
vai a _áfrica.... Vai à Florida... 
-- O que me interessa... Suba o vidro, não nos ouvimos um ao outro... 
-- Mas que grande rabugento, cabelinho na venta, etc... Não se zangue, diga-me lá 
o que lhe interessa... 
Ela fechou o vidro da janela. 
-- Bem... Por que motivo num dado momento certos macacos se aprumaram, por 
que motivo um foguetão partiu pela primeira vez para tão longe da Terra, por que motivo 
um país, o Japão, desloca hoje dos outros continentes e porquê ele, e não a Argentina, o 
Paquistão... 
-- E o que é que fotografaria no Japão? 
-- Hiroxima... 
-- Mas em Hiroxima é a morte... O contrário de uma ascensão. 
Ele travou brutalmente e parou. 
-- Você é incrível... Explico-lhe coisas apaixonantes e contradiz-me sem 
descanso... Cristo não deixou de subir ao céu depois de ter morrido numa cruz... Quem 
lhe diz que não é por causa de Hiroxima que o Japão se eleva hoje acima dos outros 
continentes? 
Miléna ficou muda e queda. Cristo! E aquela pretensão do «conto-lhe coisas 
apaixonantes...»! Ela continuava a achar estranho aquele gosto pelos começos, e ainda 
mais extravagante ir fotografá-los... 
-- Há duas coisas -- disse Adrien. -- As fotos e a história que eu tenho vontade de 
escrever com elas, sobre elas, através delas... 
-- Ora ai está! -- exclamou Miléna, que ele viu radiante como se ela contemplasse o 
mar pela primeira vez... -- Você tira fotografias e quer escrever a sua história! Ao fim e ao 
cabo, em vez de dactilografar confortavelmente em sua casa um romance que se 
intitularia *_A Conquista do Céu ou Os Começos*, é também fotógrafo para desfrutar de 
viagens através do mundo... 
-- Gosto que as palavras que escrevo estejam cheias das paisagens que elas 
descrevem... Só isto... E parto dentro de dois dias... 
-- Já mo disse, e volta no entardecer do Verão... O início de uma estação! 
 Adrien arrancou de novo. 
 De copo na mão, uma densa turba circulava entre as duas árvores de um pátio, 
pelos andares e as divisões de uma imensa casa. Alguns estavam sentados nas escadas. 
Uma aparelhagem arrogante difundia uma música africana. Rostos inquietos procuravam 
rostos para reconhecer, outros procuravam ser vistos pelos que olhavam. Numa sala :, 
enorme, cartazes de cinema em todas as paredes. Dançava-se, falava-se, peneirava-se... 
«Boa-noite, estás bom? _é espantoso uma casa destas em Paris!» Aqui e ali, um copo 
abanava e o conteúdo derramava-se no chão ou sobre sapatos de verniz. Adrien 
apresentou Miléna e sentia prazer em pronunciar o seu nome, Miléna. Por vezes, 
acrescentava... uma amiga. 
Queria absolutamente que ela conhecesse um casal, Antoine e Maria, que ele às 
vezes invejava por viverem uma mesma história desde há muito tempo... Os anfitriões 
abeiraram-se deles, abraços, Miléna sorriu-lhes. Ela parecia já ali não estar. Adrien 
perguntou-lhes se Antoine e Maria tinham vindo... -- Sim, andam... -- fizeram um gesto 
vago... -- por aí... 
Uma doidivanas chegou ruidosamente e pendurou-se ao pescoço de Adrien... 
-- É incrível ver-te hoje, sonhei contigo a noite passada, enfim, connosco, 
estávamos num museu em Colónia, sabes, o museu do chocolateiro... Ludwig... O Museu 
Ludwig de Colónia e nós... 
Ela acabava de reparar em Miléna... 
-- Já nos conhecemos? 
Mas não esperou pela resposta e continuou, dirigindo-se a Adrien. 
-- Sabes o que disse o Presidente do último filme de Luc... 
Que era um ponto culminante, um deslumbramento absoluto, negro e engraçado, 
obcecado pelo sorriso da velocidade... O sorriso da velocidade, genial, hem? 
Ela desviou bruscamente a cabeça: 
 -- Fania! Fania! 
 Afastara-se deles para se agarrar ao braço de uma elegante negra que passava. 
-- Quem era? -- perguntou Miléna. 
-- Uma estilista... Com pouco estilo... 
-- São snobes que se fartam, os seus amigos... 
-- Não são meus amigos... -- Ele avistou Antoine e Maria. 
-- São aqueles que eu lhe queria apresentar. 
Antoine era negociante de quadros, Maria, italiana, traduzia Calvino, Del Monte, 
Malaparte, Carlotti... Eram um pouco mais velhos do que Adrien. Depois das 
apresentações e de algumas frases soltas de conversa, Miléna pareceu simpatizar com 
Maria, elas puseram-se a falar, afastaram-se, deixando Antoine e Adrien para trás... 
-- ...Não, conhecia-a há bocado no cinema... 
-- Ela é parecida... é bonita... com aquela moça que entra em... *_Fool* não sei 
quê, não achas? :, 
 -- É actriz, julgo eu... 
-- Posso telefonar-te amanhã à noite, porque aqui... Todo este chinfrim... 
-- Tens chatices?... Telefona amanhã, depois já estarei na Florida... 
-- Nãosão bem chatices... Hei-de contar-te... A propósito de Estados Unidos, 
também lá vou. Levantei por lá uma lebre monumental. Imagina que um conselheiro de 
Reagan, um alto responsável do Pentágono, adquiriu a um dos maiores *marchands* de 
Nova Iorque um Dierick Bouts -- é um pintor flamengo do século __XVI -- pela quantia, 
não te assustes, de sete milhões de dólares! Cerca de cinco mil milhões de cêntimos! E eu 
afirmo que é uma falsificação. Ainda por cima uma falsificação grosseira, forjada no 
século 
__xx. O quadro chama-se *_A Anunciação*, e quando eu lhes... «anunciei» isto, 
eles não acharam piada nenhuma. Até o Metropolitan Museum, o Getty Museum, se 
intrometeram... Agora, o *establishment* dos negociantes de quadros nova-iorquinos 
apoda-me redondamente de insuportável tratante... 
Maria estava sozinha quando veio ter com eles. Adrien perguntou onde deixara 
Miléna. 
-- Foi-se embora... 
-- O quê!... Não é possível... 
Ele dirigira-se, sem verdadeiramente os fixar, a Antoine, Maria, Antoine, e por fim 
Maria... 
-- Consolo-a porque choraminga no cinema... Depois declama-me Tchekhov numa 
esplanada de café, eu já não sabia onde me meter... Agora vai-se embora sem me 
prevenir... E com o meu lencinho de bolso... 
-- Encarregou-me de te dizer adeus. 
 -- Obrigado, és muito generosa! 9 
 Juntamente com Sabina, sua irmã mais velha, e o pai, Miléna chegara a Paris 
nos fins do Verão de 1968. Tinha oito anos e só falava checo. As últimas imagens de 
Praga que ela trouxera consigo eram essas raparigas de altas pernas que se bamboleavam 
em frente dos tanques russos, com as saias mais curtas que de costume. Para «encher de 
nostalgia» os soldados, explicara-lhe o pai, e para eles sofrerem terrivelmente por estarem 
sozinhos e longe das suas noivas. 
Uma outra imagem voltava incessantemente nos seus sonhos. 
Encontrava-se à noite numa cidade desconhecida que por vezes se assemelhava a 
Praga, e tentava, no labirinto das ruas e dos becos, reencontrar o apartamento onde vivia. 
Como não conseguia, acordava lavada em lágrimas. 
No Outono, quando deixara a sua cidade natal, todas as placas que indicavam os 
nomes das ruas haviam sido pintadas de preto. Tal como no seu sonho, os soldados 
estrangeiros tinham-se perdido, sem pontos de orientação, numa Praga anónima. 
Em Paris, as esquinas de ruas ostentavam placas azuis e brancas, mas ela não 
podia decifrá-las. Soube que era isto o exílio. Estar num lugar onde as ruas não têm 
nomes. 
 Durante muito tempo a menina não soube que país era aquele em que se via 
obrigada a viver. Um país com rostos, uma língua e recordações. Na escola de Praga, 
começara a aprender a História da Checoslováquia. Agora, por causa de uma 
insignificante viagem de quinhentos quilómetros, já não era a mesma história. A tão 
pouca distância, descobria que os povos têm, como as pessoas, uma identidade, com uma 
memória, manias e um cheiro... 
*_Revolução/1917*. Miléna associara durante toda a sua infância à palavra 
Revolução à data de 1917, e eram ambas tão inseparáveis para ela como Miléna e Pallach, 
o seu nome próprio e o seu apelido. Em França estava tudo alterado, e ensinavam-lhe que 
a essa mesma palavra correspondia outro número: 1789. O pai, perante a sua 
perplexidade, e para ela aprender a relatividade das palavras e os meandros do 
pensamento do seu país de acolhimento, explicou-lhe, à maneira dele, três datas a fixar. 
-- 1789 é o ano em que os Franceses fizeram uma revolução e tomaram o poder 
aos nobres e ao rei. Eles anunciaram então :, ao mundo inteiro que os homens nascem 
livres e iguais... É bonito, não é? 
A menina disse que sim com a cabeça. 
 -- E sabes quando foi abolida a escravatura? Somente sessenta anos mais tarde, 
em 1848. É incrível, não é? 
A menina tornou a acenar com a cabeça e disse: 
 -- São lentos, os Franceses... 
 -- Sim, lentos e esquisitos, pois em 1847, um ano antes de abolirem a 
escravatura, tinham pensado em criar... a Sociedade Protectora dos Animais! 
 Ao ouvir isto, ela riu às gargalhadas e ficou muito contente, pois adorava gatos. 
 Miléna soube finalmente que lograra insinuar-se completamente nesse fluxo que 
eram as palavras, as ruas e as comemorações de França, quando um dia sentiu um ardor 
nos olhos ao ouvir um orfeão tocar *_A Marselhesa*. 
 10 
 Depois de ter fugido do bairro dos matadouros, Miléna fora ao encontro do seu 
amigo de então, cujo apartamento dava para uma minúscula praça onde dois 
castanheiros e uma figueira podiam levar a crer que se estava longe de uma cidade. 
Dormiu aí e voltou para a sua casa no dia seguinte de manhã. No entanto, não falara de 
*_Manhattan*, como se o simples facto de referir aquele filme a obrigasse a incorporar 
uma nova personagem no argumento. Ela traía e sabia-o. 
Ao chegar a casa, Adrien ligou a televisão. _à distância, deitado na cama, passou 
de uns canais para os outros, depois acabou por cortar o som, conservando apenas 
aquelas sombras de realidade que buliam ante os seus olhos. 
Havia algo dentro dele, algo que se tinha insinuado no seu corpo... Não conseguia 
fitar no ecrã o rosto dos actores, os carros e as luzes giratórias que rodavam na noite... Já 
só ali estava um ecrã colorido, nada mais. A sua realidade de então era o outro rosto, essa 
outra maneira de olhar, de atirar o lado direito do cabelo para trás. De um gesto rápido. 
Invisível. E esse nome vindo de Praga, Praga que Kafka dera a conhecer ao mundo 
através de algumas cartas e uma história de amor... 
Ao sair do café onde lhe representara Tchekhov, ela rabiscara um número de 
telefone no talão da conta, mantendo, tal como fazem certas crianças, o alto da caneta 
voltado para fora e o bico apontado para o coração. 
Adrien marcou o número. Depois de vários toques, ao ouvir o som de uma voz de 
mulher, ele desligou, quem sabe se desiludido por uma presença e preferindo que o toque 
nunca mais parasse a fim de ser o acaso a fazer uma escolha em seu lugar. Um jogo. Teve 
o sentimento de estar em falta e permaneceu alguns instantes com o telefone sobre as 
pernas. 
Imaginou então que a voz ouvida era a de um atendedor. Voltou a marcar o 
número. Foi de facto uma mensagem gravada que ele ouviu a seguir... Um pormenor fê-lo 
sorrir... Tranquilizou-o? 
A voz dizia: «Não estou em casa...» E não «nós não estamos»... 
Após o sinal sonoro, ele desligou sem deixar qualquer mensagem, nem sequer 
uma respiração. 
As mensagens dos atendedores são enganadoras... Miléna não vivia sozinha e 
partilhava com a irmã umas águas-furtadas na Bastilha transformadas em apartamento 
elegante. Era por ser actriz e querer :, que a adivinhassem «disponível» para um eventual 
trabalho, que tinham ambas combinado que as mensagens seriam apenas em nome dela. 
 Adrien encontrou no frigorífico um resto de frango, batatas fritas e um pedaço de 
torta de morangos. Com as janelas abertas de par em par, ouviu ao longe a sereia de uma 
ambulância e reparou no ruído que a sua boca fazia ao mastigar. 
 Talvez a distância, a América, o fizessem esquecer esta primeira emoção de uma 
noite... Uma moça que chorava! Mas ele sabia que os encontros são raríssimos, os que 
emocionam, transformam e traçam uma fronteira no tempo para haver um antes e um 
depois. 
 11 
 Se Adrien sentia paixão pelos começos do mundo, também é verdade que tinha 
dificuldade em conceber as dimensões da sua vida e a dos outros. Marianne, a rapariga 
com quem vivera anteriormente uma história, gostava de repetir que ele era o único 
homem que ela alguma vez conhecera incapaz de dizer «para toda a vida». «A eternidade», 
respondia ele sempre que ela lhe perguntava quanto tempo se amariam. De qualquer 
modo, enganara-se, visto que se haviamseparado. 
Mas ele sabia ser prático, e quando a agência *_Voir* se resolveu a financiar a sua 
reportagem dos começos, soube organizar a sua primeira viagem e verificou até à última 
hora cada pormenor da sua estada americana. 
Donald Lander, o engenheiro dos voos espaciais com quem ele se correspondia 
desde há várias semanas, seria na Florida o seu guia. protector e confidente nos dédalos 
da __NASA, dos foguetões e das áreas de lançamento. Lauder tinha-o definitivamente 
seduzido aquando da sua última estada em França, quando Adrien soube que ele se 
dirigira a Auvers-sur-_Oise junto do túmulo de Van Gogh, e jantara nessa mesma noite 
com Louis de Broglie, o pai da mecânica quântica. 
 Mas Miléna? 
A sua aparente vulnerabilidade seduzia-o ao mesmo tempo que o aterrorizava. 
Quem era ela? 
Ele imaginou falsas pistas, uma falsa história com palavras perdidas entre corpos 
que não se compreendiam. Teria ela sofrido e gostaria de matar os que a amavam? 
Esquecê-la sem mais demora... Que mulher se escondia, encolhida no interior das 
seis letras do seu nome?... 
Preferiria Lauren Bacall em *_Paixões sem Freio* ou Jessica Lange em *_O 
Carteiro Toca sempre Duas Vezes*? 
Meteria os pés para dentro quando lhe diziam que era bonita? 
Seria preciso ensinar-lhe, pois ela não devia sabê-lo, que o ponto mais ocidental 
da Europa se situa em Portugal e se chama cabo da Roca... 
 12 
O teatro, o palco, o espectáculo, transmitir a desconhecidos emoções que não 
tinham sido premeditadas por ela, eis o que apaixonava Miléna. Mas ela era mais do que 
isto... 
Uma mulher jovem, por vezes infantil e despreocupada, falando, depressa, ansiosa 
por dizer a alguém o que pretendia que ele soubesse sem rodeios, ao ponto de gaguejar ou 
inverter as palavras ou a sílabas. Outras vezes, era grave, sonhadora, com uma 
melancolia, insondável em todo o seu rosto, em cada um dos seus gestos, como s vivesse 
à beira do mundo, na fronteira dele, sabendo ver, como a Alice de Lewis Carroll, o outro 
lado dos rostos, e adivinhar o que podia aí dissimular-se de feio e assustador. Mas ela 
gostava das pessoas, gostava de as ouvir contar horas a fio as suas misérias ou as suas 
facécias e podia passar do riso às lágrimas com tanta convicção como rapidez. Imprecisa, 
ela entrara um dia numa livraria e pedira «As cem mil vergas» de Apollinaire. O livreiro, 
amavelmente, respondera-lhe que de momento só tinha «onze mil», mas todas 
disponíveis... 
Alguns são incessantemente dilacerados por pulsões mórbidas; as pulsões dela 
eram de amor. Podia ficar meses arredada do olhar de um homem, sem no entanto deixar 
de amar... uma criança, uma amiga, um desconhecido que lhe contasse um episódio da 
sua vida num café... Do mesmo modo que outros se protegem do mundo ou lhe são 
indiferentes, Miléna *amava*. Numa época em que sentia que os sentimentos se cobriam 
de véus e iam talvez desaparecer, uma noite, ela quis morrer. Não estava então nem 
triste, nem desencantada, apenas exaltada de amor por tudo e num desamparo de não 
encontrar o rosto, o objecto no qual pudesse depor esta imensa carga de gestos e de 
sentimentos... «Então morrer», dissera ela consigo, morrer dessa lufada insuportável saída 
da sua boca, das suas mãos, da sua respiração, essa torrente que ela via escoar-se em 
vão. 
Morreu deveras. Quer dizer que não fingiu, devendo a *overdose* ultrapassar 
largamente os limites da sua vida. Só o acaso pôs um casal no que deveria ter sido a sua 
derradeira trajectória, e ela acordou dois dias depois num lugar desconhecido, branco, 
onde rostos que não conhecia a olhavam por entre caretas. 
Ela ouviu: «porquê?» e disse: «eu amava», disseram: «quem?», ela repetiu: «eu 
amava». 
 13 
Cada qual a seu modo, segundo o seu ardor, viveu algumas histórias. Umas de 
cumplicidade, outras onde a sensualidade prevalecera. Como não lhes fora possível, já em 
plena situação de amor, transformar esse sentimento cem vezes imaginado, para lhe dar 
forma e energia, eles julgaram-se condenados a viver apenas histórias pungentes. 
Parecia-lhes que a época que atravessavam era justamente uma das tais em que 
os sentimentos haviam abandonado a Terra, indo a modos que satelizar-se em torno do 
planeta, fora do alcance daqueles cujo coração lhes competia fazer bater. 
Procriação, inseminação, rim, pulmão, coração, perna, inteligência, nada parecia 
resistir mais cedo ou mais tarde ao *charme* discreto do artificial. Muitos se interrogaram 
então se as suas histórias o não eram igualmente, da mesma maneira que a sua 
existência ou os seus amores. *_Procuro ternura natural, desesperadamente*, foi o tipo de 
anúncio que apareceu nas páginas de certos jornais que sabiam misturar nas suas 
colunas o humor e o desespero. 
A vida escapulia-se, os simulacros ficavam. As salas de cinema e de concerto eram 
os únicos lugares onde os rituais continuavam a exercer-se, onde as palavras de amor 
eram pronunciadas, os sentimentos declarados, e a paixão dilacerava os corações. 
Alguns experimentaram nostalgia por sentimentos que nunca tinham conhecido, 
ou que só descobriam através dos filmes e dos romances. Outros choravam ao saber que 
os amores das celebridades que veneravam já não eram o que eram, mas sim idênticos 
aos seus, indiferentes, infiéis e passageiros. 
Quando afinal se julgava a aventura à mão de semear, a dos corpos, das almas, da 
imaginação, da invenção, cada desejo de infinito esbarrava contra limites em que 
ninguém pensara, mas que tinham o aspecto de Jivaros emboscados, pois a sua função 
era sem sombra de dúvida reduzir o sentido, o espaço e o tempo. Prostrada na contempla-
ção de ecrãs, sem nunca chegar a furar um só a fim de lá entrar, toda a gente se pôs 
então à procura de um papel para representar, e não de uma vida para viver. 
Miléna disse a Sabina: 
 -- Tenho a sensação de que se fazem gestos, se proferem palavras, porque eles 
são habituais numa situação, mas que no fundo de :, nós há uma terrível inquietude ao 
apercebermo-nos de que isso não corresponde a nada. E apavora-me um tal 
desfasamento. Apetecia-me tanto amar, dar, viver coisas divinas, vindas de longe, e vejo-
me agir como uma estranha, sem poder entrar no interior dos meus sentimentos... 
Adrien dissera a Antoine: 
 -- Estou certo de que nos lugares dos começos redescobrirei parcelas desta 
magia... Como santuários da história passada, foi para esses sítios que convergiram um 
dia todos os desejos, as vontades, as forças dos homens, na mira de se superarem, de 
tentarem unir o céu à terra, os deuses às solidões, as palavras aos sentimentos... 
Apartados do vento, do mar, das estrelas, da bruma e do orvalho, Adrien e Miléna 
sentiam-se vivos numa cidade, e mortos no mundo. Cidadãos de um país que não existia, 
europeus sem Europa. 
 14 
 Com um saco de viagem e uma mala de alumínio pousados a seu lado, Adrien 
fumava um cigarro enquanto esperava o táxi. O telefone tocou. Reconheceu Antoine e não 
teve tempo de lhe dizer que estava prestes a partir. 
-- Sabes, lá na festa disse-te que precisava de falar contigo. Pois bem... tinha de 
acontecer um dia... Conheci alguém... uma mulher e... Maria não sabe de nada, claro... 
Durmo à noite com ela, mas a minha cabeça está cheia das imagens da outra... Se 
me dissessem isto há apenas... um mês... É a primeira vez... imagina tu... Eu que julgava 
ser o homem de um só amor... Toda esta certeza, agora, não passa de... bosta de 
bisonte... 
De telefone debaixo do braço, Adrien tentou ir até à janela verificar se o táxi já aí 
vinha. Mas o fio era demasiado curto. Ficou de pé, no ponto onde parara. 
-- ...Não sei se é melhor acabar tudo agora... Quero eu dizer, com a nova... 
Chama-se Alice... Não sou capaz... Éum entendimento sexual, intelectual, em todos os 
planos, já vês... Todas as noites penso no nosso encontro do dia seguinte num hotel... 
Dantes não conhecia os hotéis de Paris, podes crer! E depois, se rompermos 
imediatamente, terei um pesar, a impressão de ter falhado qualquer coisa... Também digo 
para mim próprio... talvez se deva estar à escuta do que a vida traz... Vivi dez anos com 
Maria, conhecemo-nos aos vinte anos... Dez anos é um número redondo, e agora talvez 
tenha chegado o momento de começar uma nova vida... Há certamente círculos de 
harmonia com alguém que se devem interromper para nos lançarmos no desconhecido... 
Achas que é preferível enganarmo-nos em vez de ousarmos? _é uma pergunta que eu faço 
a mim próprio... 
-- Sim, compreendo -- disse Adrien, olhando para o relógio. 
-- Não, tu não podes compreender... Há tanta coisa entre mim e Maria, uma 
história, um filho, recordações, aniversários, prendas, férias, noites, toda a espécie de 
atenções... Tirei as suas fotografias da minha carteira, porque todas as vezes que estou 
com a outra, e pago a conta no restaurante, vejo Maria ao lado do meu cartão *_American 
Express* e sinto um nó na garganta... Quase tenho vontade de chorar e já não consigo 
digerir... Ela que foi sempre tão directa comigo, sem nenhuma reserva... Tudo isto não é 
mais que bosta de bisonte... Não passo de um cobarde, de um infiel... O que farias tu no 
meu caso? :, 
 -- Eu... eu cá... 
-- Bem sei, és solteiro... Mas quando... Como se chamava ela? Ah, sim, Marianne... 
quando ela se foi embora andaste meses e meses à deriva... Digo para os meus botões que 
se optar por ir viver com a Alice, nunca mais pensarei senão na Maria, e se renunciar a 
esta história acabarei por estrangulá-la... É deprimente, não é? 
-- Antoine, quem te pede que optes? Encontraste uma pessoa, uma única, que te 
tenha dito, Antoine, deves escolher entre a Maria e... a Alice? Não. Então escuta quatro 
princípios budistas... 
-- Agora és budista? Só faltava mais essa... 
-- Não sou budista, cultivo-me, é diferente. Quatro saberes que são as chaves do 
não sofrimento: saber aceitar, saber fazer, saber dar, saber sentir... No caso presente, 
retenho os dois primeiros... Saber aceitar e saber fazer. Tens de aceitar, é importante, 
ouve-me bem, tens de aceitar esta nova situação: estás embeiçado pela Alice e ainda 
gostas da Maria. 
É só depois, quando tiveres aceite este novo dado que, aqui para nós, não é 
dramático, duas mulheres... que deverás agir, mas... Desculpa, chamei um táxi... vou ver 
se já chegou... 
Uma pausa. 
-- ...Dizia eu... No que toca ao teu horário é um bocado complicado, naturalmente, 
Alice nos hotéis e Maria em casa, mas isso é secundário. Só deves tomar uma decisão 
depois de teres aceite esta nova situação. Não actues sem aceitar, entendido? Quanto ao 
resto, falaremos logo que eu volte. 
Aceita, e ocuparás assim o teu tempo todo... 
-- É verdade, estarei em Nova Iorque na próxima semana por causa do assunto 
dos quadros falsos... Telefona para o Méridien se por lá passares... 
Desligaram ambos. 
«Mas porque é que ele falou em bosta de bisonte» -- interrogou-se Adrien, ao entrar 
no táxi. 
 15 
 Num ecrã de vídeo, Adrien viu o foguetão afastar-se da Terra. Girândola de 
chamas, contagem decrescente, *insert* sobre a sala de controlo, Neil Armstrong, Edwin 
Aldrin e Mike Collins, três terráqueos de nacionalidade americana deixam o seu planeta 
para serem os primeiros da História a pousar na Lua. Estamos na manhã de 19 de Julho 
de 1969, sete horas e sete minutos, hora local. Rostos das esposas. Uma das três leva a 
mão à boca e mordisca os dedos. A órbita terrestre a atingir encontra-se a 190 
quilómetros deste ponto da Florida que, por sua vez, se situa a 28.o de latitude norte e a 
81.o de longitude oeste. Um pouco menos de dez horas mais tarde, precisamente às 
dezassete horas e seis minutos, o satélite *_Apollo 11* irá de novo afastar-se à velocidade 
de 39.000 quilómetros por segundo, para correr desta feita, em plena noite, até ao seu 
objectivo final: o *mar da Tranquilidade*. 
Por intermédio desse guia refinado e competente que era o engenheiro Donald 
Lauder, a agência espacial americana pôs à disposição de Adrien toda a espécie de 
documentos, vídeos, fotos, bandas sonoras... Desde o seu primeiro encontro, no grande 
*hall* de recepção, eles tinham contraído amizade e durante uma semana Adrien 
fotografou as áreas de lançamento, os hangares de foguetões, o céu, o oceano Atlântico ali 
mesmo ao pé, o _L_E_M, o próprio satélite, não faltava nada, nem sequer os fatos-macaco 
brancos que o mundo inteiro vira em directo nesse dia e nessa noite de Julho de 69. Ele 
trabalhava com uma *_Hasselblad* cromada de formato 6 x 6, quadrada, perfeitamente 
adequada para fotografar o céu e os objectos verticais. Concentrado em tudo o que 
observava, julgava-se em missão, como encarregado de apurar o segredo dos começos. 
_à noite, encontravam-se para jantar. Donald apresentou Patrícia, a sua mulher, a 
Adrien. Eram um pouco mais velhos do que ele e viviam numa casinha à beira de um 
pinhal. Falaram de Walt Whitman, Jack London, Niels Bohr, Woody Allen, e imaginaram 
a sinopse de um livro que contaria o impensável encontro entre Albert Einstein e Arthur 
Rimbaud. 
Improvisaram logo uma sequência imaginada para Patrícia. 
*_Arthur*: Está reencontrada... 
*_Albert*: O quê? 
*_Arthur*: A eternidade... :, 
 *_Albert*: Mas o tempo e o espaço nada significam para além do que 
percebemos... 
*_Arthur*: Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior à eternidade. 
*_Albert*: Parece-me difícil desvendar o jogo de Deus. Mas não posso acreditar que 
ele jogue aos dados. A diferença entre passado, presente e futuro não passa de uma 
ilusão, ainda que seja uma ilusão tenaz. 
*_Arthur*: Tenho os olhos fechados à vossa luz. Sou um animal, um negro... 
*_Albert*: O melhor, é um sono bem ébrio na praia. 
*_Arthur*: Ela está, portanto, reencontrada... 
*_Albert*: O quê? 
*_Arthur*: A eternidade. É o mar misturado com o sol. 
Sentiam-se contentes, Patrícia rira muito durante a cena, e nessa noite eles 
despediram-se depois de terem desencantado um título para a sua futura colaboração. « 
(Uma gravitação no Inferno» 
 A estada de Adrien chegava ao fim. Entrementes, em segredo, Dona preparara-
lhe um encontro excepcional. Enquanto não tivera a certeza de que podia realizar-se, 
calara-se. Hoje, sabia a resposta e rejubilava por ir anunciar a sua surpresa. 
Almoçavam pela última vez num *fast-food* à beira do mar. 
-- Voar é um velho sonho -- disse Donald -- , mas estou convencido de que há 
uma obsessão mais violenta, intensa e arcaica e que engloba e supera este antigo mito de 
ícaro. É o desejo de penetrar o céu, não para planar e viajar como as aves de um lugar 
para o outro, mas para ligar a Terra ao Cosmo, ao Universo. É este o primeiro sonho do 
homem sobre a Terra. Lembre-se do Génesis... Foram os filhos de Noé, salvos do Dilúvio, 
que empreenderam a construção de uma torre que seria uma cidade cujo cimo alcançasse 
o céu «afim de obterem renome e de não ficarem dispersos à superfície da Terra». E Deus -
- que é versado em matéria de soberania -- viu muito em breve que no interior desta torre, 
todos os homens unidos, falando a mesma língua e armados de um sonho único, seriam 
capazes de atingir o seu alvo, o céu, e desapossá-lo do seu poder. Então, Ele desceu para 
ver essa famosa cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam e disse: «Eles 
formam um só povo e têm uma mesma língua, e foi isto que empreenderam. 
Agora, nada os impediria de fazer tudo o que tivessem projectado Confundamos as 
suas línguas, a fim de nunca mais se entenderemDonald acrescentou: 
 -- Como vê, para a Bíblia, a obsessão divina é que a Humanidade se erga como 
um único homem à conquista do céu! 
 Ele desatou a rir: 
 -- Deus morreu e os seus sacerdotes também, mas o sonho subsiste. 
Adrien, seduzido: 
 -- ...E os foguetões de hoje são os bisnetos de Noé que continuam a partir ao 
assalto do céu... 
-- ...Os foguetões não passam de objectos fabricados por homens, que eles lançam 
ao céu como pedras, mas estão vazios de humanidade. A Babel moderna dos netos de Noé 
é Nova Iorque, e ela nunca pôde alcançar o céu, porque não podia descolar... 
Por excesso de violência, de lutas, de antagonismos, de diversidade. A próxima 
etapa importante da conquista do céu não será nem um foguetão nem uma cidade, mas 
antes, em meu entender, um país solidário, unido, dotado dos mesmos sinais e de uma 
única linguagem, que desta vez descolará em peso a caminho do céu. Hoje, só existe um 
capaz de tal... Por ser o primeiro da era pós-industrial... Não está a ver? 
Adrien sabia que Donald se referia ao Japão, mas quis dar-lhe o prazer de 
prosseguir solitariamente a sua demonstração para chegar às conclusões que ele próprio 
tirara nas últimas semanas, desde que pensava nesse projecto. Donald julgou vislumbrar 
embaraço e voltou a cabeça. Empurrou os óculos para o alto do nariz e continuou: 
 -- Os foguetões que lançamos são simultaneamente a culminância e as 
derradeiras imagens das tecnologias pesadas do século __XIX. Toda a indústria nascida 
desse século se baseou na força, no músculo, nas chaminés de fábrica, na luta de 
classes, nos antagonismos entre operários e proprietários, no capitalismo selvagem, 
desenfreado. Hoje, a matéria-prima estratégica da indústria já não é o carvão, o aço, o 
petróleo ou qualquer metal raro, mas a matéria cinzenta. E há hoje um país que lê mais 
do que os outros, que viaja mais do que os outros, que está mais informado do que os 
outros, um país onde as empresas empregam cinco ou dez vezes mais dinheiro que em 
nenhum outro lado na formação do seu pessoal... Este país tem o coeficiente intelectual 
mais desenvolvido do planeta, em suma, este país aposta não na força de trabalho, mas 
na única matéria-prima que possui, na inteligência. Este país, onde você irá dentro em 
breve, é uma ilha no fim do mundo, uma ilha, como Manhattan, mas, ela sim, descolará, 
estou certo disso, pois a inteligência é a leveza e possui todos os poderes... 
-- ...O Japão -- disse finalmente Adrien. 
-- Olhe, já me esquecia, tenho uma surpresa para si. 
Amanhã, num rancho perto de Santa Fé, no Novo México, tem um encontro 
marcado... importante. Às 18 horas, Neil Armstrong espera por si... Boa sorte! 16 
 O deserto. 
O *_Thunderbird* castanho-claro rodava com todas as janelas fechadas e o ar 
condicionado no máximo. Um deserto, vermelho. 
*_No desire*. 
Adrien, fascinado pela estrada rectilínea que, lá muito à frente, encontrava o céu, 
só fitava este conjunto estrada/deserto/céu. Um espaço entre duas dimensões, 
intermediário entre vida e morte, o espectáculo de uma vida virgem de todo o sentimento. 
Nem mágoa, nem esperança, o lugar estético da indiferença, sumptuoso, melancólico, 
vazio. 
Algumas placas lembravam a regra do *freeway*, 55 *_MILES/_H*, emblemas 
americanos e, por si só, toda a América. Como esse néon tremeluzente do Moon Motel 
onde ele passara a noite, perto do aeroporto de Santa Fé. 
Andar, ouvir o deslizar do carro na camada de ar abrasadora, fascínio, andar 
como arrastado por um desejo sem objectivo, tragado pela profundeza, um só anelo: que 
não houvesse fim. 
Andar para sempre sem segredo, sem memória, com uma moral a duas injunções: 
velocidade limitada, seguir a faixa branca do macadame... 
Por vezes surgiam montanhas, pousadas no solo, sem contrafortes nem 
esbatimento, artificiais. Outras vezes, um casebre de madeira, miserável, um cavalo e um 
automóvel estacionados, lado a lado. Uma linha eléctrica acompanhava a estrada... 
Sem descanso, Adrien repetia para si próprio, eis a América, eis a América... Um 
contrário da Europa, porquanto gigantesca no seu espaço. Libertos das extensões, os 
olhos entre o céu e a terra fixavam uma linha de horizonte imaginada, a cabeça direita. 
Como reencontrar uma simples expressão de Miléna neste lugar fora do tempo? 
Este lugar onde as recordações não são mais que miragens de calor. Ele olhou para o 
banco vazio à sua direita e tentou imaginar pernas, um corpo, um braço pousado por 
detrás de si. Um corpo de Miléna na América... 
 Tentava reconstruir a imagem de uma mulher que mal conhecia enquanto ia ao 
encontro do primeiro homem que caminhara sobre a Lua. 
 17 
-- Pensei na minha mãe e na Humanidade... 
Fora sem hesitar que Neil Armstrong respondera à pergunta de Adrien: 
 -- Em que pensa aquele que pisa o solo lunar, sabendo que é para o resto de toda 
a nossa história o primeiro a fazer isso? 
Político e quinquagenário, de cabelo ralo e rapado, o astronauta aguardara o 
fotógrafo francês numa cadeira de lona, à beira de uma piscina cujo contorno, em 
mosaico, desenhava quadrados de xadrez. _à chegada, levou-o a visitar a casa de madeira 
vermelha de sequóia, e convidou-o a refrescar-se e a descontrair-se na água Veronesa do 
tanque. 
Nadaram como se já se conhecessem desde há muito e Armstrong, ao referir-se a 
Lauder, afirmou entre duas respirações que era o único engenheiro das suas relações que 
sabia falar tão bem da teoria quântica como dos poemas de Gérard de Nerval... 
-- Sabe que Nerval traduziu o Fausto de Goethe e se enforcou numa rua de Paris, 
de loucura... Louco dos seus sonhos? 
Saíram da água e, diante de dois copos de sumo de frutos fresco, Armstrong 
respondeu à primeira pergunta de Adrien. 
-- ...Não pensei na bandeira, na América... Tudo isso era secundário. Na minha 
mãe, porque todas as vezes que me vi em perigo, ou que uma honra me recompensou, 
foram sempre para ela os meus primeiros pensamentos. Instintivamente... 
...Na Humanidade também, ou seja, do primeiro ao último homem, porque tinha o 
sentimento de que, graças a esse gesto em vias de se cumprir -- em si mesmo banal, que 
consiste em pôr o pé em qualquer parte -- , eu ia ser para sempre o primeiro de toda a 
história da Terra a fazê-lo. O pé esquerdo2 -- esclareceu ele numa risada. E 
contrariamente a tudo o que precedera, preparação para o solo, simulações de ausência 
de força de gravidade ou de atmosfera lunar, considerávamos então, os meus dois colegas 
de equipa e eu, tal aventura como um jogo, mas eu sabia nesse preciso instante que ia 
produzir-se um acontecimento prodigioso e hesitei, ou melhor, esperei, um, dois segundos 
talvez, para aproveitar este derradeiro lapso de :, tempo e concentrar todos os recursos da 
minha memória, todas as faculdades de memorização do meu corpo e do meu espírito 
para que em cada instante da minha vida eu pudesse reencontrar o que ia produzir-se. O 
acontecimento e o ambiente, aquele céu novo, a Terra iluminada na noite por cima das 
nossas cabeças, aqueles cenários desolados e comoventes, brancos, lívidos, aqueles 
arremedos de montanhas, afiladas... 
Depois tudo se desvaneceu de novo. No momento de pousar o pé, já encetado o 
meu gesto, duvidei. Pensei que tudo aquilo era um sonho e que, tal como Little Nemo, ia 
dar comigo debaixo da minha cama. Porquê eu? E foi então que o orgulho substituiu esta 
dúvida insidiosa. Vi-me, aureolado, solitário no meio dos homens sobre a Terra e repeti 
baixinho: porquê eu? E muito mais que um campeão chegado em primeiro lugar, senti-me 
 
2 Em certos países, é sinal de resolução iniciar uma empresa com o pé esquerdo. (N. do T.) 
o eleito de um poder que nos ultrapassava,aos engenheiros, políticos e outros... 
*_Eleito*... Quando pousei finalmente o pé, o orgulho invadia todo o meu corpo. 
Armstrong bebeu um gole de sumo. 
-- Lauder persuadiu-me a encontrar-me consigo quando me falou desse projecto... 
Os inícios, os primeiros homens em _áfrica, o primeiro foguetão lunar, Hiroxima... O que 
é que liga tudo isto, é capaz de mo dizer? 
-- É esse o objectivo do meu trabalho. Fotografo, encontro-me com pessoas que 
fazem narrações, registo, anoto... 
-- Como deve saber, a bomba de Hiroxima foi concebida em segredo muito perto 
daqui, do outro lado do Rio Grande, em Los Alamos... 
Adrien esboçou um vago gesto. 
-- ...e no dia 19 de Julho de 1945, duas semanas antes de Hiroxima, a primeira 
bomba atómica do mundo explodiu num deserto um pouco mais acima, na White Sands, 
ao lado de Alamogordo. Bob Wilson, um dos engenheiros que lá trabalharam, morreu 
como Nerval, louco. 
Grandes farrapos vermelhos misturaram-se com o azul do céu. 
Os dois homens calaram-se. Adrien voltou a uma das perguntas de Armstrong: 
 -- Ainda não sei o que liga tudo isto, mas torno a evocar esse dia 21 de Julho de 
1969, o seu dia... Da Terra, foi o primeiro espectáculo em mundo-visão, visto em tempo 
real e aplaudido no próprio instante por vários milhares de milhões de indivíduos que 
reconheciam através deste acontecimento um sinal de progresso para a Humanidade, 
aguardado desde há milhões de anos. Vi-o na televisão em casa de uns vizinhos; era 
noite, quatro horas da manhã, eu tinha onze anos... E o meu pai e a minha mãe, toda a 
gente chorou... Pois o que fazia sentido, :, não era tanto a cadeia de invenções e de 
tecnologias que tinham logrado conduzir o seu foguetão ao mar da Tranquilidade, nem o 
facto de você, Armstrong, pousar o seu famoso pé, mas o entusiasmo dos milhares de 
milhões de ouvidos e de olhos virados para os aparelhos de rádio e de televisão, em cada 
fuso horário do planeta, de dia e de noite, perscrutando o bom desenrolar da operação e 
que se apropriavam orgulhosamente, tal como você, de uma parcela desse êxito para com 
ele se alegrarem. 
 -- É realmente muito simpático da sua parte, Adrien! -- Ele ria... -- Assim, 
dezassete anos mais tarde, vem desculpabilizar-me do meu orgulho... -- Voltou a rir. -- 
Sabe, tenho algo de extremamente concreto a dizer-lhe: estou com fome. Convido-o a vir à 
margem do rio, a um pequeno restaurante mexicano, há-de ver... 
-- Eu cá, tenho uma pergunta idiota para lhe fazer... 
Aceita... que eu fotografe o seu pé, o esquerdo, com este ceu? 
-- *_OK*. E quanto à legenda, será... Pé de Neil Armstrong com sol poente... 
Tirou-se a fotografia. Eles vestiam-se enquanto dois colibris, esvoaçando ali perto, 
aspiravam a água açucarada que o proprietário do local preparava todos os dias em sua 
intenção. 
 18 
Ingerira uma cápsula de *_Tranxène*, mas quando chegou a sua vez de entrar em 
cena, o nervosismo acometeu-a de novo. 
Pavoroso. Via-se a si própria representar, ouvia-se falar. Ela assistia ao espectá-
culo de Miléna a interpretar Irina, uma personagem de Tchekhov. Uma rapariga mais 
velha do que ela dava-lhe a deixa. 
 Acto III. Patético, sem excesso... «Contenção», indicava Tchekhov... 
-- Em breve farei vinte e quatro anos, há já muito que trabalho, o meu cérebro 
ressequiu-se, emagreci, desfeei-me, envelheci, e nada, nada, nenhuma satisfação, e o 
tempo passa... 
Teve vontade de chorar. Não por causa das palavras que pronunciava, mas porque 
só depois de chegar ao fim da tirada é que conseguira sentir-se longe de Paris, num palco 
de teatro, a dar uma audição. Frágil e forte, ela conseguia enfim ser Irina. 
Lá da sala, o encenador agradeceu-lhe e pediu-lhe para voltar no dia seguinte, à 
mesma hora. Sem mais comentários. 
Tinham sido convocadas dezoito actrizes para o papel de Irina. Uma hora mais 
tarde, Miléna soube que só três voltariam no dia seguinte. Esta boa notícia foi mais eficaz 
que o *_Tranxène*: a ansiedade desapareceu. Ela entrou no Café Le Lucrèce, em frente do 
teatro, com a moça que lhe dera a deixa. 
Toda sorridente. Bebeu um café de uma assentada, depois encomendou outro: 
 -- Nunca sei o que hei-de tomar quando entro num café, por isso peço um café! 
 A moça chamava-se Anne e fora escolhida na semana anterior para interpretar 
Olga. 
Chovia. Elas permaneceram um bom bocado no café. Mas a barulheira do *flipper* 
acabou por irritá-las e, apesar da chuva, puseram-se a andar pelo bulevar fora. Chuva 
quente e amena de Junho... Fizeram paragens debaixo dos toldos de lojas ou nas 
esplanadas protegidas dos cafés. Refugiaram-se, quando a chuva redobrou, numa 
entrada de cinema. Não se exibia aí *Manhattan*, mas Miléna sentiu vontade de falar de 
Adrien. 
Disse ela: 
 -- Conheci um rapaz, há uma semana... É curioso, não se passou nada e penso 
muito nele... Tinha um ar ao mesmo tempo tão presente e ausente. A princípio, meteu-me 
um pouco de medo por causa do seu olhar... Olhos brilhantes, febris, um olhar que sonda 
cada pormenor, :, sem dar mostras disso... Eu sentia-me observada, julgada... E, agora, 
sinto-o vulnerável, embaraçado com tudo. 
Anne afirmou que era a fluidez da recordação que transformava as primeiras 
impressões e que se devia desconfiar do distanciamento... 
Miléna disse: 
 -- Até sonhei com ele... Vi-o tentar apanhar uma criança que corria de sandálias à 
beira do oceano, ele dizia-lhe que voltasse, mas a criança corria, corria... A dada altura a 
criança desapareceu na areia, como por magia, e ele levou as mãos à cabeça, puxando o 
cabelo para trás Chorava, contemplando o céu... 
A chuva parou, elas caminharam de novo. Um sujeito jovem abordou-as dizendo 
que saíra da prisão nessa mesma manhã... 
Elas passaram indiferentes. 
-- _é um sonho esquisito -- disse Anne. -- Os homens são por vezes tão bizarros... 
Eu, por mim, vivo sozinha com um filho. Queria à viva força um filho e o meu 
companheiro não queria. Então, sem prevenir, deixei de tomar a pílula... 
-- Acho isso indecente! 
 -- ...Não. De qualquer modo ele abandonou-me pouco depois, sem saber que eu 
estava grávida. Nunca mais o vi... De resto, tanto se me dá. 
Diante de um estabelecimento estava parado um grupo de pessoas, todas elas de 
olhos pregados no interior, através da montra... No momento em que as duas raparigas 
passavam, houve como que um movimento de despeito expresso por um «oh» desiludido e 
braços que se tinham levantado para logo se deixarem cair. 
-- _é o Campeonato Mundial de Futebol -- disse Anne. 
-- Mas se se voltarem a ver? -- perguntou Miléna. 
-- Ele julgará que se trata do filho de outro. É o meu segredo... 
Anne dissera isto muito tranquilamente. Miléna: 
 -- Só as mulheres é que têm o dom de tais segredos. Eu prefiro que o meu filho 
tenha um pai e uma mãe... é a minha maneira de ver... 
Despediram-se em frente de uma estação de metropolitano. Os passeios estavam 
molhados. Miléna passou uma mão pelo cabelo e atirou-o para trás. 
 _à noite, em casa, Miléna abriu o seu álbum de fotografias. 
A irmã estava de serviço no hospital. Observou atentamente os rostos. O seu pai 
Ivan, Sabina, ela própria Miléna, alguns dos seus namorados. Inscrevera a lápis branco 
legendas que a fizeram rir. Datas esquecidas... Miléna olhava os seus diferentes rostos de 
menina, em seguida de mulher jovem. 
«O que é que mudava?» -- perguntou a si própria. :, 
 O que aprendia ela em cada dia da vida e do mundo, sobre como viver? 
Interrogou-se também se progredia e se aprendia a interpretar melhor o silêncio dos 
outros. 
Carregou na tecla de registo do seu pequeno gravador e pôs-se a falar, de olhos no 
tecto, deitada na cama... 
-- Você está na América, eu estou em Paris. Tenho de lhe devolverum lencinho, é 
o meu único pretexto para voltar a vê-lo... Esta noite penso em si, e se não me desse ao 
trabalho de lhe gravar estas palavras, você jamais o saberia... Seria um instante que 
existiu para mim, mas não para si... Por ora, tal pensamento é um segredo, e se eu lhe 
entregar um dia esta *cassette* será uma autêntica prenda, pois o melhor que temos para 
oferecer são os nossos segredos... Espanto-me de o tratar por você, eu que digo «tu» tão 
facilmente... Gosto desta delicadeza, que não é uma distância... Ponho-o assim numa 
categoria onde está sozinho: o homem a quem eu trato por você, e com quem sonho à 
noite... Hei-de contar-lhe esse sonho do oceano e da criança... É verdade, esta noite penso 
em si como quando se imagina um país, uma cidade onde se sonha ir... 
Passear, flainar, uma cidade do imaginário onde sabemos que poderíamos viver, 
emigrar... As histórias de amor são sempre histórias de emigrados que momentaneamente 
encontraram um país de asilo... Nesta noite de meados de Junho eu pensava em si... 
E você? 
 19 
 Na sala do Restaurante Oaxaca, três mexicanos tocavam uma valsa triste. 
Trémulos na guitarra, trémulos na voz, trémulos no som. Por vezes o cantor acentuava as 
gravações entre o *mezza voce* e o forte, e alguns convivas viravam-se para o palco, a 
aplaudir. Bem vistas as coisas, ele exagerava um nadinha... 
_à chegada, serviram-lhes dois copos de *mescal*. 
-- É o outro álcool do México, não tem nada a ver com a *tequilla* -- disse o 
astronauta --, já vai ver, põe-nos a cabeça quente... 
Neil Armstrong era um tipo interessado por tudo, culto, requintado, de uma 
extrema educação. Embora estivesse habituado há uns bons quinze anos a responder a 
toda a espécie de entrevistas, e sobretudo a recusá-las, manteve-se atento durante todo o 
serão aos pormenores, tanto aos da refeição como aos que emanavam do seu convidado. 
Escutava, fazia perguntas... 
Adrien, esse, tomava notas, fotografava, registava. Ele não tardara a reparar que a 
diferença de idades, em vez de o prejudicar, ajudava-o. O antigo astronauta gostava de 
falar, gostava de comunicar os seus conhecimentos e as suas reflexões. Sob o efeito das 
viagens orbitais, ou seja, do facto de olhar de cima e de longe toda esta arquitectura 
terrestre de sentimentos, conflitos e oposições, o legítimo orgulho de ser um herói da 
conquista espacial devia ter sido relativizado sem demora, para dar lugar ao seu quase 
contrário, a humildade... 
-- Os campos de concentração nazis continuam a obcecar os Alemães, mesmo os 
que ainda não tinham nascido... Quando se anda na auto-estrada, um pouco antes de 
Munique, e se avista à direita uma placa como todas as outras, mas onde está inscrito 
*_Dachau*, nunca se fica indiferente... Dever-se-ia falar mais frequentemente de 
Hiroxima, disse ele. Poucos americanos lhe falarão nisso, mas Hiroxima é uma mancha 
na nossa memória... 
Veja bem, este país, os Estados Unidos da América, país da democracia, da 
liberdade, capaz de destituir um presidente por mentira, este país é o primeiro e o único a 
ter utilizado a arma atómica sobre populações civis! O primeiro país da história a ter feito 
isto... 
Um dos músicos deu uma volta por entre as mesas com um *sombrero* na mão. 
Armstrong fez um gesto na direcção de Adrien significando... Deixe! E meteu lá dentro 
uma nota de dez dólares. :, 
 -- Em minha casa, há bocado, falei-lhe desse engenheiro, Bob Wilson, que morreu 
de loucura. A mulher dele é que me contou isto... Na noite de 6 de Agosto de 1945, 
Wilson, que acabava de saber no laboratório que a «Operação Manhattan» fora bem 
sucedida e que o *_Boeing Enola Gay* largara de facto a tal bomba sobre Hiroxima, 
meteu-se no seu *Dodge* e seguiu para a vivenda que o exército lhe arrendara, nas 
colinas de Los Alamos. Quando lá chegou, desatou a vomitar, a vomitar. A mulher 
despiu-o, enfiou-lhe um roupão e preparou-lhe um banho. Enquanto a água enchia a 
banheira, ela voltou para junto dele, e aí, sentada num divã, deitou-o e aconchegou-lhe a 
cabeça contra si, contra o seu ventre. E fitou esta cabeça imaginando a quantidade de 
saber acumulada naquele cérebro, tão perto da sua pele de mulher, contra o seu calor... 
Todo esse saber e essa longínqua destruição que acabava de sobrevir! A rádio ainda não 
dissera nada. Mas ela adivinhara que a América e o Ocidente acabavam de ganhar a 
guerra. O saber e a destruição... O homem que ela amava endireitou-se, mirou-a, olharam 
os dois um para o outro, e ela soube desde logo que ele era uma personagem de tragédia. 
Nunca mais ele proferiu uma palavra. Nunca mais sorriu. Nunca mais ergueu a cabeça 
para o céu. 
Quando saíram do restaurante, a orquestra atacou *_Blue Moon*. 
-- Isto é para mim -- disse Armstroog a rir... -- Faz parte dos meus direitos em 
todos os lugares públicos com orquestra. 
-- Talvez em Paris lhe tocassem... -- (Adrien pôs-se a cantar) -- *_Le soleil a 
rendez-vous avec la lune, mais la lune n.est pas là et le soleil attend*... É uma velha 
canção de Charles Trenet. 
-- Trenet era aqui muito conhecido nos anos cinquenta... 
Como Edith Piaf, Yves Montand... 
Já dentro do carro, Armstrong contou que os seus pais o tinham levado uma noite 
ao Carnegie Hall de Nova Iorque. Aí cantava Trenet... 
-- Tenho um disco dele em 78 rotações... *_Douce France, cher pays de mon 
enfance*... 
Trautearam a música sem se lembrarem do resto da letra. 
Rasgando a noite, o *_Cadillac* preto ladeou durante um quilómetro o Rio Grande, 
antes de bifurcar a caminho do rancho e da casa de sequóia. 
-- Sabe o que eu cantava na cabina Apollo com Aldrin e Collins? O êxito do 
Verão... *_Get Back*, dos Beatles! 
20 
 Nova Iorque, ao anoitecer. 
O quarto de hotel dá para as árvores de Central Park. Do outro lado, os edifícios 
da 5.a Avenida e os do East Side. Só faltava o clarinete de Gershwin para reconstituir o 
genérico de *_Manhattan*... Miléna? 
Adrien escrevia. Rememoração das conversas. Neil Armstrong, Donald Lauder. 
Arrumação de tudo o que fora visto, ouvido. 
*_Cassettes*, notas manuscritas num canhenho cor de laranja fechado com um 
elástico, rotulagem e classificação dos filmes Illford e Eastmancolor. 
«Nova Iorque, a Babel dos netos de Noé...» -- dissera Lander. Mas ele esquecera-se 
de falar do fascínio que exerce esta beleza, as nuvens que se reflectem nos edifícios-
espelhos, o aço, o vidro esfumado, o calor sufocante, os táxis amarelos com tiras 
axadrezadas de lado, o polícia a cavalo na Avenida das Américas... 
Durante toda a tarde Adrien caminhara, fotografara, tornara a caminhar, tomara o 
metropolitano e táxis... Fotografara o reclamo a néon para a cerveja Budweiser, o patrão 
de *cofee-shop* grego, com um dente da frente prateado, os distribuidores cromados de 
guardanapos de papel, o avesso das máquinas de ar condicionado, a pilha de 
*_Washington Post* pousada ali mesmo no passeio por um pequeno ardina da 48.a Rua, o 
*diplodocus* do Museu de História Natural, os fatos de linho claro dos transeuntes, os 
vendedores de rosquilhas... 
Como um holograma, cada parte ou pormenor de Nova Iorque era Nova Iorque 
inteira. 
Vinham sereias distraí-lo nas suas reflexões. Miadelas eléctricas, inumanas, 
trágicas. Ele não podia coibir-se de imaginar o acidente, a *overdose* de mal. A morte que 
assalta a vida a cada instante. 
Assim que chegara, telefonara para o Hotel Méridien. 
Antoine ausente. Recado deixado. Ao longo de todo o dia, Adrien estivera 
sucessivamente sozinho, feliz... feliz, sozinho... 
Feliz por estar nesta cidade eriçada de arranha-céus, esses foguetões que não 
tinham partido, como se Cabo Kennedy ali começasse. Feliz por esta energia, este 
cataclismo colorido de loucura contida

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