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P A R T E 1 PRINCÍPIOS EM VIDEOCIRURGIA Videocirurgia: aspectos históricos e evolução RENATO SOUZA DA SILVA a cavidade peritoneal com um endoscópio. Esse even- to data de 1901, tendo sido realizado em ensaio ex- perimental em um cão vivo. Na ocasião, foi utilizado um cistoscópio de Nitze. Dessa maneira, Kelling utili- zou o termo koelioskopie para designar o procedimen- to. Nessa primeira laparoscopia, o ar foi colocado atra- vés de uma agulha de punção, produzindo o pneu- moperitônio, e o laparoscópio (cistoscópio) foi intro- duzido através do que se poderia, na ocasião, cha- mar de um trocarte calibroso. Apesar do primitivismo do procedimento, ficou evidenciada a possibilidade de se utilizar um procedimento menos invasivo do que uma laparotomia para avaliação dos órgãos intraperitoneais. Igualmente, em 1901, um ginecologista russo, da cidade de Petrogrado, chamado Dimitri Ott, des- creveu uma técnica operatória para observar direta- mente a cavidade abdominal. O procedimento con- sistia em realizar uma incisão via vaginal e refletir luz para dentro do abdome, a partir de um aparelho frontal. Ott descreveu, também, que era possível fa- zer a mesma observação por meio de incisão abdo- minal. Na técnica, contudo, as bordas da incisão eram mantidas com um espéculo, não sendo utilizado endoscópio. Dessa forma, parece inquestionável a prioridade de Kelling como idealizador da lapa- roscopia. Por outro lado, apesar de Kelling ter relatado inúmeras laparoscopias em humanos, a primeira gran- de série de laparoscopias no homem foi a relatada por H. C. Jacobaeus, em 1911. Esse autor, além do relato de laparoscopias, descreveu, igualmente, uma série de casos de toracoscopias, citando, quando rea- lizadas simultaneamente, a denominação laparo- thokoskopie. O primeiro grande trabalho de Jacobaeus demonstrava 115 exames efetuados na cavidade torácica e 72 casos de peritonioscopia. Foram referi- 1 C A P Í T U L O INTRODUÇÃO A videocirurgia é hoje uma técnica operatória consagrada, mas é importante que se esclareça a ter- minologia a ser utilizada nesta obra. Freqüentemen- te se utilizam as palavras cirurgia endoscópica e ci- rurgia laparoscópica como sinônimas. Contudo, há que se diferenciá-las. A palavra endoscopia se origi- na do grego endo (dentro) e do verbo skopein (obser- var). Por tradição, esse termo vem sendo utilizado para indicar a visualização por dentro de algum ór- gão oco. Já a laparoscopia foi sempre definida como a visualização telescópica da cavidade abdominal, sen- do sinonímia dos termos peritonioscopia e celioscopia. Dessa forma, parece-nos adequado designar como endoscopia a visualização por dentro dos órgãos, como na endoscopia digestiva alta e na colonoscopia, exames e termos comumente utilizados em nosso meio. Assim, a laparoscopia ou peritonioscopia fica reservada como designação para propedêutica e te- rapêutica da cavidade abdominal. Nos últimos anos, a possibilidade de avaliação videoendoscópica evoluiu para outras áreas que não só as do aparelho digestivo e ginecológico, adequan- do-se o termo “videocirurgia avançada” como a conceituação de procedimentos cirúrgicos de várias áreas da medicina que se utilizam da tecnologia ori- ginada no início do século XX, a qual se encontra em franca evolução, graças ao incrível avanço tecnoló- gico ligado à área da computação, o qual ocorreu, especialmente, na segunda metade do século XX. HISTÓRICO E EVOLUÇÃO A introdução da peritonioscopia é atribuída a Georg Kelling, que foi o primeiro médico a examinar 22 Silva, De Carli & Cols. dos diagnósticos de sífilis, tuberculose, cirrose e neoplasias. Em 1910, o próprio Jacobaeus, em um pequeno relato, havia já sugerido a possibilidade de examinar tanto a cavidade abdominal quanto a torácica por meio de endoscopia. Conhecedor dos trabalhos de Jacobaeus, Ber- tram M. Bemheis, da John Hopkins University, des- creveu em trabalho experimental a utilização da laparoscopia em dois pacientes. Esse autor acrescen- tou o termo “organoscopia” e utilizou um proctoscópio como seu laparoscópio. Coincidentemente, um des- ses pacientes era também paciente de Wiliam Halsted, sendo este doente portador de neoplasia de pâncreas com icterícia obstrutiva. O outro paciente laparosco- pado teve apenas uma exclusão de uma suspeita de ulceração gástrica no exame. Em 1912, Nordentdeft, em Copenhague, Dina- marca, realizou pneumoperitônio em cadáveres de mulheres e descreveu, pela primeira vez, o interior da pelve, com a utilização da posição de Trendelem- burg e um endoscópio denominado Trocar-Endocap. No mesmo ano, Tedesko, da Áustria, e Stokind, da Rússia, publicaram trabalhos a esse respeito. No ano seguinte, L. Renom mostrou dez casos de laparoscopia a semelhança da abordagem de Jacobaeus, na Socie- dade Médica de Paris. Em 1914, Rocavilla, da Itália, e Schmidt, da Alemanha, demostraram um método de iluminação externa, com fonte de luz fora do corpo. Em 1920, Omdoff, de Chicago, passou a utili- zar oxigênio em vez de ar para realizar o pneumo- peritônio e usou um trocarte com extremidade pira- midal e bainha automática com o intuito de evitar a perda de gás, quando da retirada do trocarte. Ainda nesse mesmo ano, Zollikofer, da Suíça, substituiu o ar por gás carbônico para a confecção do pneumo- peritônio. Em 1924, outras duas referências têm sua im- portância. W. E. Stone, do Kansas, relatou sua expe- riência com a utilização de um nasofaringoscópio para a realização de laparoscopias. Sua experiência foi so- mente em cães, porém ele referiu que a laparoscopia poderia ser útil em humanos quando em combinação com raio X. Além disso, Stone referiu que o exame laparoscópico poderia ser efetivado com anestesia local e que era “um exame ligeiramente mais drástico do que a indução do pneumoperitônio transabdominal”. Nesse mesmo ano, Otto Steiner, de Atlanta, Geórgia, escreveu dois trabalhos, um em inglês, ou- tro em alemão, ambos denominados “Abdominos- copia”, conceituando o exame como um novo méto- do de examinar os órgãos intra-abdominais. Pelo que se sabe, a abdominoscopia por ele descrita usava um cistoscópio, um trocarte e oxigênio para insuflação peritoneal. Nos relatos de Steiner, contudo, não há referência quanto ao número de pacientes examina- dos por ele. Em 1925, um trabalho muito interessante foi publicado por Nadeau e Kampmeier. Esses autores fazem uma referência histórica detalhando 42 laparoscopias, apenas um ano após Otto Steiner ter dito que não havia conseguido um único trabalho a respeito de laparoscopias. No trabalho desses cirur- giões, há um estudo em cães sobre a absorção do ar quando da realização do pneumoperitônio. Nesse mesmo ano, A. Rendle Short, cirurgião da Bristol Royal Infirmary, relatou sua experiência com celioscopias. Nesse trabalho, Short faz uma compa- ração entre laparoscopias e laparotomias explorado- ras, fazendo uma referência muito curiosa a respeito da possibilidade de fazer o exame laparoscópico na residência dos pacientes. Ele definiu a importância do exame na medida em que “a celioscopia é valiosa especialmente pelo que pode ser visto de maneira definitiva e não pelo que é aparentemente ausente”. Até esse período, os avanços em laparoscopia haviam sido pequenos. Entretanto, em 1929, o hepatologista alemão Kalk introduziu a utilização de um sistema de lentes de 135 graus e o uso de dois trocartes, iniciando-se, a partir de então, a era da lapa- roscopia como terapêutica e não mais somente como método propedêutico. Um outro momento fundamental no histórico da laparoscopia foi a publicação de John C. Ruddock, intitulada “Peritonioscopia”, sendo apresentada a ex- periência do autor em aproximadamente 500 casos, no período de quatro anos. Foram feitas 39 biópsias, o que, na ocasião, era uma inovação em termos de avaliação diagnóstica. Ruddock publicou seu traba-lho em uma grande revista científica, Surgery, Gyne- cology and Obstetrics, o que valorizou muito essa re- ferência. Em 1937, E. T. Anderson, de Corpus Christi, Texas, publicou outro relato com a mesma denomi- nação “Peritonioscopia”. Nesse trabalho, discutia-se a laqueadura tubária laparoscópica. Igualmente foi descrito o uso do endoscópio no estômago, na bexiga e no retossigmóide em associação ao procedimento laparoscópico, objetivando a transiluminação das paredes desses órgãos com o intuito de facilitar a ava- liação peritonioscópica. Goetze, em 1918, havia sugerido o uso de uma agulha para realização do pneumoperitônio. Contu- Videocirurgia 23 do, a agulha espiralada desenvolvida por Janos Veress, em 1938, foi o grande marco no que se refere à reali- zação do pneumoperitônio, sendo essa a agulha para punção, usada até hoje, praticamente sem modifi- cações. Em 1939 (1), Te Linde, da John Hopkins Uni- versity, fez a tentativa de avaliar a pelve através do fundo de saco posterior, com o paciente em litotomia e utilizando um cistoscópio. No ano seguinte, Meigs demonstrou seus trabalhos a respeito do diagnóstico e seguimento laparoscópico do câncer de ovário. Decker e Cherry, em 1944, publicaram a utilização da posição genupeitoral para a avaliação dos órgãos da pelve, através do fundo de saco de Douglas, técni- ca denominada culdoscopia que se popularizou, predominando sobre a laparoscopia, na América. No que se refere ao uso da laparoscopia cirúr- gica propriamente dita, essa teve início em 1962, com o primeiro relato em literatura inglesa de ligadura tubária com o uso de cautério. A cirurgia laparos- cópica ginecológica provocou uma grande evolução na cirurgia endoscópica, abrindo um novo leque no arsenal terapêutico das patologias. Mais de vinte anos se passaram entre o desen- volvimento da agulha de Veress, e o uso da insuflação automática controlada, que foi idealizada por Kurt Semm no início dos anos de 1960. Além disso, Kurt Semm projetou vários instrumentos endoscópicos que passaram a ser utilizados na laparoscopia terapêutica. Após o uso e a evolução da insuflação automá- tica, foram aprimorados os usos de sistemas de len- tes ópticas por meio do desenvolvimento do sistema com a haste-lente. O físico Hopkins incorporou as len- tes com formato de haste como transmissores da luz com lentes de ar entre os elementos de vidro com formato de haste, gerando uma melhora na resolu- ção e no contraste. Entretanto, até os anos de 1980, a laparoscopia era tida como uma técnica eminentemente prope- dêutica e ginecológica. Os cirurgiões gerais passaram a incorporar a laparoscopia em seu arsenal diagnós- tico e terapêutico, a partir do desenvolvimento da câmera de televisão com chip de computador. A evo- lução foi logarítmica. O que era tido como um méto- do quase supérfluo e pouco resolutivo passou a ser aceito como uma alternativa segura com previsão de se tornar, com o passar dos anos, uma abordagem preferencial para o tratamento de inúmeras patolo- gias, especialmente as do trato gastrintestinal. Em 1983, Mouret, na França, e Semm, na Ale- manha, publicaram suas experiências com a apen- dicectomia laparoscópica. Em 1987, Philippe Mouret, de Lyon, realizou a primeira colecistectomia lapa- roscópica da história médica. Já a partir do ano se- guinte, iniciaram-se, na videocolecistectomia, vários cirurgiões renomados, como François Dubois (2) da França, Saye e Mickernan dos Estados Unidos. Perissat (1), eminente cirurgião francês, publicou a primeira grande série de colecistectomias laparoscópicas, com 42 casos, no período de novembro de 1988 a junho de 1989. Em 1990, durante o Segundo Congresso Mundi- al de Cirurgia Endoscópica, em Atlanta (EUA), foram apresentadas as primeiras grandes séries de videocole- cistectomias, por meio de François Dubois, com 350 casos, e Reddick, de Nashville, com 200 casos. No Brasil, a introdução da colecistectomia videolaparoscópica se deve a Thomas Szego e Sergio Roll, em São Paulo, no ano de 1990 (3). No mesmo ano, a mesma cirurgia foi realizada por Áureo Ludovico de Paula, em Goiás, e por Célio D. Noguei- ra, em Minas Gerais. Logo após, no ano seguinte, a técnica avançou com Osmar Creuz, no Rio de Janei- ro, e Pablo Roberto Miguel, no Rio Grande do Sul. Na última década do século XX, a colecis- tectomia laparoscópica passou a se constituir no mé- todo de preferência no tratamento das colecistopatias. Em decorrência da freqüência com que é realizada essa operação, os cirurgiões se viram obrigados a in- corporar a videolaparoscopia em suas condutas clíni- co-cirúrgicas. Desde então, igualmente se fez neces- sário o desenvolvimento de cursos de treinamentos didáticos de pós-graduação e em laboratório. Um curso de treinamento em laparoscopia com instrução didática e ensaios cirúrgicos em animais vivos se tor- naram obrigatórios para o aprendizado da técnica videoendoscópica. Assim sendo, um currículo abran- gente associado a uma instrutoria experiente são es- senciais no bom curso de treinamento, e a evolução natural é de que o ensino videoendoscópico passe a ser inerente na graduação médica e nas residências médicas das diversas especialidades cirúrgicas. Os programas de aprendizado, treinamento e educação continuada em videocirurgia são abordados em capí- tulos subseqüentes. Outro aspecto essencial no que se refere à qua- lificação e ao credenciamento em videocirurgia foi a necessidade de formação de sociedades médicas, em todo o mundo, que objetivam congregar e estabele- cer diretrizes para a atividade videocirúrgica. No Bra- sil, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Laparoscópica (Sobracil) é parte integrante da história da medicina 24 Silva, De Carli & Cols. brasileira. Neste capítulo, que, de certa forma, revisa e homenageia aqueles que construíram e vêm desen- volvendo a videocirurgia, faz-se mister relembrar o nome de Francesco Viscomi, Presidente da Sobracil, nos anos de 2005 e 2006. Viscomi foi um renomado ginecologista, praticante da arte da videocirurgia, e veio a falecer no ano de 2006, quando já vinha fa- zendo revisões para a realização de capítulo para este livro, do qual era um colaborador especialmente con- vidado. Na Revista Brasileira de Videocirurgia de de- zembro de 2005 (4), em editorial por ele assinado, Viscomi relembra o início da Sobracil, em julho de 1991, e o crescimento da mesma, que passou a ser a maior sociedade de videocirurgia do mundo, com cerca de 3.000 sócios. A Sobracil conseguiu criar uma sociedade multiprofissional com a participação de gi- necologistas, cirurgiões gerais, urologistas, procto- logistas, cirurgiões torácicos, cirurgiões vasculares, cirurgiões pediátricos e cirurgiões plásticos, tendo como fio condutor a cirurgia minimamente invasiva. Com base nessa sublime história da evolução da videocirurgia e na congregação dessas especialidades, os editores desta obra procuraram contemplar essas áreas médicas neste livro e a partir deste capítulo abrem as portas do caminho que percorre a “video- cirurgia avançada”. REFERÊNCIAS 1. Creuz O. Manual de cirurgia videoendoscópica. Rio de Janeiro: Revinter; 1993. 2. Dubois F, et al. Laparoscopic cholecystectomy: his- toric perspective and personal experience. Surg Laparosc Endosc 1991; 1(1): 52-7. 3. Szego T, Roll S, Nogueira Filho WS. Videolaparos- copic cholecystectomy: report of the first Brazilian series. Arq Gastroenterol 1991; 28 (1); 6-8. 4. Veress J. Neues Instrument zur Ausfuhrung von Brust: oder Bauchpunktionem und Pneumotho- raxbehandlung. Deutschland Med Wochenschr 1938; 41: 1480. BIBLIOGRAFIA Papas T, Schwartz L, Eubanks S. Atlas de cirurgia lapa- roscópica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1996. Scott-Coner CEH. Clínicas cirúrgicas da América do Nor- te. Interlivros; 1996. vol. 3. Viscomi, Francesco. Revista Brasileira de Videocirurgia. Sobracil; 2005out./dez.
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