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EDUCAÇÃO E PODER: O JOGO DA SOCIABILIDADE As relações entre Educação e os diversos processos que constituem a vida da sociedade são múltiplas, profundas, complexas e íntimas. Na verdade, os processos educacionais são intrínsecos aos processos sociais. A consideração do educacional, separadamente do social, é uma tarefa um tanto complicada, tal a mútua implicação entre as duas esferas. No entanto, para que possamos entender algumas das dimensões desse relacionamento, vamos distinguir didaticamente alguns ângulos de enfoque, lembrando sempre tratar-se de interfaces de um mesmo processo. Assim, podemos destacar três idéias cujo desenvolvimento neste capítulo nos ajuda a entender esse relacionamento: a educação é uma prática social e, ao mesmo tempo, uma prática política de transformação ou de manutenção conservadora. [...] A educação é uma Prática Social Como já afirmamos, a relação entre educação e sociedade é muito íntima. O testemunho histórico das ciências do homem, no que concerne à educação informal, bem o mostra: as práticas informais da educação trazem implícita uma forma de se conceber a sociedade e revelam o tipo de sociedade onde elas acontecem. Quando a educação torna-se uma prática formal, explícita, ela mantém esse vínculo quase que orgânico com a sociedade, mas, ao mesmo tempo, busca-se auto-explicar-se por meio de uma reflexão justificadora, tomando, para isso distância em relação à sociedade. Em cada momento da história da educação, assistimos a um processo de organização e de institucionalização das práticas educacionais e, como em todos os demais setores, vemos formarem técnicos, profissionais, pesquisadores e especialistas teóricos na área educacional. A mesma situação vivemos hoje quando voltamos nossa atenção para o processo educacional como um todo, no contexto brasileiro. Nesse sentido, podemos afirmar que existe uma relação visceral entre o processo educacional e o processo social abrangente, ou seja, entre educação e sociedade. Trata-se de um vínculo orgânico, retirando-se deste termo toda conotação biologista. Ocorre uma pulsação entre o jogo de forças que constituem a sociedade e o jogo de forças que se concretizam na educação, de tal modo que, de um lado, a forma desta se organiza reflete e reproduz integralmente a forma de estruturação da sociedade; mas, de outro lado, o processo de atuação especificamente educacional pode ter efeitos desestruturadores sobre a sociedade, sendo então fator de mudança social. Isto significa, em última instância, que a história humana depende também das ações dos homens e que a educação é uma das mediações dessa ação criadora e transformadora da história. A educação, vista sob o ângulo de sua inserção social, adquire uma nova significação: é conceituada como uma prática social e histórica de uma determinada sociedade, envolvendo comportamentos sociais, costumes, instituições, atividades culturais, organizações burocrático-administrativas. A educação é um evento social que se desdobra no tempo histórico. A educação é, assim, igualmente uma mediação da sociabilidade. Ou seja, a prática educativa tem também a finalidade intrínseca de inserir os sujeitos oriundos das novas gerações no universo social, uma vez que eles não poderão existir fora do tecido social. A sociabilidade é “lugar” necessário e insubstituível da existência humana. Pode, entretanto, ser, ao mesmo tempo, fator de humanização como de desumanização, que despersonaliza o homem. É que toda mediação da existência real dos homens é ambígua, ambivalente: ao mesmo tempo em que torna possível essa existência, servindo-lhe de alicerce objetivo, carrega consigo fatores contraditórios, que produzem efeitos que podem obstaculizar e até mesmo impedir que essa existência se desenvolva com suas especificidades humanas. E isso é fundamentalmente decorrência do fato de a dominação ser entendida como a exacerbação das relações de poder que perpassam todo o tecido social. A educação atua sobre a sociedade para conservá-la na sua identidade Atuando no sentido de inserir os novos sujeitos no universo social, retornando e reforçando a ação da educação informal, as formas institucionalizadas da educação (as formas escolares) exercem fundamentalmente a função de conservar, de reproduzir a sociedade tal qual ela existe. Como vimos, a sociedade encontra-se estruturada por meio de relações políticas, ou seja, o tecido social é estratificado, hierarquizado, correndo por seus veios um coeficiente de poder. Sabemos que esse poder politizado decorre de elementos econômicos e ideológicos, uma vez que são fatores dessa natureza que tecem as relações sociais. De seu lado, a educação é uma prática social e também política, cujas ferramentas são constituídas pelos elementos simbólicos produzidos pela subjetividade e mediados pelos instrumentos culturais. Como tal, sua ação se dará mais diretamente sobre os aspectos simbólicos da existência humana. É por isso que ela se faz como processo de conscientização, lidando com os conteúdos simbólicos da subjetividade dos educandos. Fundamentalmente a educação trabalha com as representações subjetivas, com os conceitos e valores das pessoas. Essa esfera das representações simbólicas, por sua vez constitui o âmbito da ideologia. A educação vai cintribuir para a conservação e reprodução da sociedade e de seus construídos ideológicos. Ao conservar e reproduzir esses conceitos e valores, passando-os às novas gerações, a educação acaba perpetuando as relações sociais vigentes na sociedade, uma vez que tais relações também se sustentam nessa ideologia. Chama-se reprodutivismo a teoria filosófica de acordo com a qual a Educação atua como PR=reprodutora das relações sociais à medida que reproduz a ideologia vigente na sociedade, em geral a ideologia dominante. A Educação como prática Transformadora É verdade que o processo educacional consolida e reforça os processos de dominação atuantes na sociedade, à medida que seus mecanismos reproduzem sem reelaboração as referências ideológicas e as relações sociais. Mas, ao mesmo tempo, constatamos que, contraditoriamente, a educação também atua no sentido de criticar e superar esses conteúdos ideológicos e, consequentemente, de agir na linha da resistência à dominação e da transformação da sociedade, contribuindo para o estabelecimento de relações político-sociais com menor força de opressão. Ela pode, portanto, constituir-se ainda em prática social transformadora. Entretanto, a educação não atua como a grande alavanca da transformação social, uma vez que sua ação não se dá isolada das outras práticas mediadoras da existência histórica dos homens. A transformação profunda da sociedade também não se dará sem as mudanças no âmbito da prática simbólica dos homens. Por isso, a educação ocupa lugar tão importante no processo, em seu conjunto. As mudanças nas esferas econômicas e política pressupõem mudanças profundas e simultâneas na esfera ideológica. Isso porque as práticas reais dos homens – produtiva, política e simbolizadora – são igualmente mediadoras da existência histórica dos homens e se relacionam entre si como interfaces de um mesmo processo geral. Assim, se de um lado a educação contribui para a reprodução da sociedade por meio da produção, da sistematização e da divulgação de uma ideologia, de outro, ela pode contribuir para a transformação da mesma sociedade através da produção, da sistematização e da divulgação de uma contra-ideologia. Ela pode proceder a uma crítica da ideologia vigente, desmascarando-a, denunciando seuscompromissos com os interesses dos grupos dominantes no interior da sociedade e gerando, então uma nova consciência social entre os sujeitos. Evidentemente isso vai depender, em grande parte, do esclarecimento crítico dos agentes educacionais e de seu compromisso político no contexto histórico em que se encontram. (SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia da Educação: construindo a cidadania. São Paulo: FTD, 1994, p. 67-74)
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