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Capítulo 64 605 Rui Seabra Ferreira Júnior Benedito Barraviera Acidentes por Animais Peçonhentos 6464 INTRODUÇÃO Os principais animais peçonhentos que podem causar acidentes são as serpentes, as aranhas, os escorpiões, as abelhas, as vespas, as lacraias e as lagartas venenosas. SERPENTES As serpentes peçonhentas de interesse médico encon- tradas no Brasil pertencem aos gêneros Crotalus, Micrurus, Lachesis e Bothrops (Figs. 64.1 a 64.4). Este último inclui os novos gêneros Bothriopsis e Porthidium (Bothriopsis bilineata, Bothriopsis taeniata e Porthidium hyoprora). Com exceção das Lachesis, Porthidium e Bothriopsis encontradas com mais freqüência na região Amazônica, as demais po- dem aparecer nas outras regiões do Brasil. A maioria dos acidentes é causada pelas serpentes do gênero Bothrops (87,33%), seguido pelo Crotalus (7,43%), La- chesis (1,37%), Micrurus (0,41%) e não peçonhentas (3,46%). Os venenos das serpentes (Fig. 64.5) possuem várias fra- ções, responsáveis pelas alterações nos acidentados. Essas frações são de natureza e concentração diferentes nos di- versos gêneros de serpentes. O conhecimento dos efeitos por elas produzidos auxi- lia o diagnóstico, permitindo a indicação terapêutica mais adequada. A Tabela 64.1 resume as principais manifesta- ções clínicas, decorrentes da ação das diferentes frações de veneno. ACIDENTE BOTRÓPICO Esse acidente é causado por serpentes do gênero Bothrops, dentre as quais destacam-se a Bothrops jararaca (jararaca), Bothrops neuwiedi (jararaca do rabo branco), Bothrops erythromelas (jararaca da seca), Bothrops moojeni (caiçaca), Bothrops jararacussu (jararacuçu), Bothrops alternatus (urutu cruzeiro), Bothrops atrox, entre outras. O veneno botrópico possui principalmente as frações proteolítica, coagulante e vasculotóxica, que determinam manifestações precoces, em geral uma a três horas após o acidente. A ação proteolítica caracteriza-se por edema local firme, acompanhado de dor que pode variar de discreta a intensa, bolhas, necroses e abscessos (Figs. 64.6 e 64.7). A fração vasculotóxica manifesta-se por hemorragias devido a lesão vascular, equimoses e sangramentos, tais como epistaxe e gengivorragia. A ação coagulante manifesta-se por alteração no tempo de coagulação (TC). Nos casos de inoculação de grande quantidade de veneno pode ocorrer choque, por liberação de bradicinina. O tratamento específico deve ser realizado com o soro antibotrópico, ou pela fração específica do soro antibotrópico-crotálico ou antibotrópico-laquético, sen- do que a dose deve ser de acordo com a gravidade clíni- ca (Tabela 64.2). A indicação do teste alérgico de sensibilidade para soro heterólogo ainda é controversa no Brasil. Assim, o Manual do Ministério da Saúde para o tratamento de acidentes por animais peçonhentos desaconselha a realização do teste. Por outro lado, o Manual Técnico do Instituto Pasteur para a profilaxia da raiva humana indica a sua realização antes da aplicação do soro antirrábico. Vários estudos têm sido realizados e a maioria deles concluiu pela contra-indica- ção e perda de tempo precioso, uma vez que o teste não é preditivo nem suficientemente sensível. Se porventura o teste for realizado, isto deve ser feito antes do uso de anti- histamínicos e/ou corticosteróides. Deve ser salientado que as reações adversas à sorote- rapia podem ser precoces e tardias. As reações precoces ocorrem nas primeiras 24 horas e podem se manifestar desde a forma leve até a extremamente grave. Existem pelo 606 Capítulo 64 Tabela 64.1 Quadro Clínico dos Acidentes Causados por Serpentes dos Gêneros Bothrops, Lachesis, Micrurus e Crotalus Gênero da Serpente Ações do Veneno Sintomas e Sinais Sintomas e Sinais (até seis Horas após (12 Horas após o Acidente) o Acidente) Bothrops (*) Proteolítica Dor, edema, calor e rubor Bolhas, equimoses, necrose, Coagulante imediatos no local da picada. oligúria e anúria (insuficiência Hemorrágica Aumento do tempo de renal aguda) coagulação (TC). Hemorragias Alterações locais e choque nos casos graves evidentes Lachesis Proteolítica Poucos casos estudados; manifestações clínicas semelhantes Coagulante aos acidentes por Bothrops, acrescidas de sinais de excitação Hemorrágica vagal (bradicardia, hipotensão arterial e diarréia) Neurotóxica Micrurus Neurotóxica Ptose palpebral (fácies miastênico – “neurotóxica”), diplopia, oftalmoplegia, sialorréia, dificuldade de deglutição e insuficiência respiratória aguda de instalação precoce Alterações locais Crotalus Coagulante discretas ou Aumento do TC Urina cor de “água de carne”. Miotóxica ausentes Mialgia generalizada Evolui com mioglobinúria, Neurotóxica Alterações visuais: diplopia, anúria e insuficiência renal anisocoria, ptose palpebral, aguda dores musculares (fácies neurotóxico de Rosenfeld) *Incluem os gêneros Porthidium e Bothriopsis. Deve-se salientar que os acidentes causados por filhotes de Bothrops (< 40 cm) podem apresentar como único elemento diagnóstico a alteração do tempo de coagulação (TC). Fig. 64.5 – Distribuição dos acidentes ofídicos segundo o gênero da serpente peçonhenta. Bothrops - 87,33% Crotalus - 7,43% Lachesis - 1,37% Micrurus - 0,41% Não peçonhentas - 3,46% menos três mecanismos conhecidos na produção das rea- ções precoces: o pirogênico, o anafilático e o anafilactóide. A reação pirogênica é causada pela interação do soro ou de endotoxinas bacterianas existentes no soro, com os macrófagos do doente. Estes por sua vez acabarão por li- berar interleucina-1 (IL-1), que irá atuar sobre o hipotá- lamo anterior produzindo febre. Clinicamente o doente manifesta inicialmente arrepios de frio e posteriormente calafrios, culminando com a febre. A reação anafilática é mediada pela imunoglobulina do tipo E (IgE) e ocorre em indivíduos previamente sensibi- lizados aos produtos derivados do cavalo, entre eles a car- ne, o pêlo e os próprios soros heterólogos. É possível de- tectar esta reação, pelo menos teoricamente, pela prova intradérmica. A reação anafilactóide não implica sensibilização an- terior. Por isso, pode surgir com a aplicação da primeira dose de antiveneno. Seu mecanismo está relacionado com Capítulo 64 607 Tabela 64.2 Acidente Botrópico: Classificação quanto à Gravidade e Soroterapia Recomendada Manifestações e Tratamento (*) Classificação da Gravidade Leve Moderada Grave Manifestações locais Discretas Evidentes Intensas (dor, edema, equimose) Manifestações sistêmicas (hemorragia Ausentes Ausentes ou presentes Evidentes grave, choque, anúria) Tempo de coagulação Normal Normal ou alterado Alterado (TC) (**) Quantidade aproximada de veneno 100 200 300 a ser neutralizada (mg) Uso de garrote Ausente Ausente e/ou presente Ausente e/ou presente TA (****) (horas) < 6 6 > 6 Soroterapia (número de ampolas de soro) 2 a 4 4 a 8 8 a 12 (SAB, SABC, SABL) (***) Via de administração Intravenosa Intravenosa Intravenosa *O doente deve ser mantido internado e a classificação da gravidade é feita no momento da chegada ao hospital. Este processo é evolutivo e pode mudar durante a internação. **TC normal: até dez minutos; TC prolongado: de dez a 30 minutos; TC incoagulável: > 30 minutos. ***SAB = soro antibotrópico, SABC = soro antibotrópico-crotálico, SABL = soro antibotrópico-laquético. **** TA = tempo decorrido entre o acidente e o atendimento médico em horas. Observação: A determinação do TC (tempo de coagulação) tem sido usada como parâmetro de eficácia da dose de antiveneno. Se após 24 horas do início do tratamento o sangue estiver incoagulável, está indicada dose adicional de duas ampolas de antiveneno. a ativação do sistema complemento pela via alternativa, sem a presença de anticorpos. Nesse caso, ocorre a libera- ção de C3a e C5a, denominados anafilatoxinas, que são capazes de desgranular mastócitos e basófilos, por meio de receptores específicos. A conseqüência é a liberação dos mesmos mediadores farmacológicos, responsáveis pela instalação de um quadro clínico semelhante ao da reação anafilática. A reação anafilactóide não é detectada pela prova intradérmica. O tratamento da reação pirogênica deve seguir a se- guinte seqüência: • Diminuir o gotejamento do soro ou parar a infusão, dependendo da gravidade da reação; • Verificar se o doente não está recebendo outro tipo de soro concomitante que eventualmente possa estar contaminado com toxinas bacterianas; • Administrar dipirona (Novalgina®) 2 a 4 mL pela via intravenosa. Em crianças utilizar 10 a 15 mg por qui- lo de peso corporal. O tratamento das reações anafiláticas ou anafilactóides deve seguir o esquema adiante: • Adrenalina aquosa a 1:1.000: é a única medida eficaz e imediata. Deve ser usada na dose de 0,3 a 1 mL (0,01 mg/kg de peso) pela via subcutânea. Em caso de para- da cardíaca, utilizar as vias intravenosa e/ou intracar- díaca; • Anti-histamínicos do tipo prometazina (Fenergan®): uti- lizar 0,1 a 0,5mg/kg de peso, pelas vias intramus- culares e/ou intravenosa; • Aminofilina: nos casos de broncospasmos, utilizar 7 mg/ kg de peso (0,3 mL/kg de peso). Além disso, deve-se instalar cateter de oxigênio para amenizar a hipóxia; • Corticosteróides do tipo hidrocortisona (Solu-Cortef®): utilizar 7 mg/kg de peso corporal diluídos em 100 mL de solução glicosada a 5% e aplicar pela via intravenosa a cada seis horas. Em estudo realizado no Departamento de Doenças Tropicais e Diagnóstico por Imagem da Faculdade de Me- dicina de Botucatu da UNESP, concluiu-se pela não reali- zação prévia do teste de sensibilidade e também pela não aplicação de drogas com o objetivo de se prevenir as rea- ções imediatas. Por outro lado, o Manual do Ministério da Saúde para o tratamento dos acidentes por animais peçonhentos pre- coniza que se deve ter um bom acesso venoso, deixar pre- parado laringoscópio, frasco de solução fisiológica, adrenalina (1:1.000) e aminofilina. A pré-medicação, que deve ser aplicada cerca de dez a 15 minutos antes da soroterapia, com o objetivo de se prevenir as reações ime- diatas, é a seguinte: • Dextroclorfeniramina (Polaramine®): utilizar 0,05 mg/ kg de peso por via intramuscular (máximo = 5,0 mg) 608 Capítulo 64 ou prometazina (Fenergan®) na dose de 0,5 mg/kg de peso via intramuscular (máximo = 25 mg); • Hidrocortisona (Solu-Cortef®): aplicar 10 mg/kg de peso (máximo = 1.000 mg) pela via intravenosa; • Cimetidina (Tagamet®): utilizar 10 mg/kg de peso (má- ximo = 300 mg) ou ranitidina (Antak®) na dose de 3 mg/ kg de peso (máximo = 100 mg) pela via intravenosa. A seguir o soro antipeçonhento deve ser aplicado pela via intravenosa, sem diluição, durante 15 a 30 minutos, sob vigilância contínua da equipe médica assistente. A equipe deve manter preparadas as drogas citadas anterior- mente para o eventual tratamento das reações imediatas (anafiláticas e anafilactóides). As reações tardias, também conhecidas como “doença do soro”, ocorrem cinco a 24 dias após o emprego da soro- terapia heteróloga. Os doentes podem apresentar febre, artralgia, linfoadenomegalia, urticária e proteinúria. O tra- tamento é sintomático à base de aspirina nas doses de 4 a 6 g/dia para os adultos e 50 a 100 mg/kg de peso para as crianças. As reações urticariformes podem ser tratadas com dextroclorofeniramina (Polaramine®) nas doses de 6 a 18 mg/dia para os adultos e 0,2 mg/kg de peso nas cri- anças. Nos casos graves pode-se usar a prednisona (Meticorten®) nas doses de 20 a 40 mg/dia para adultos e 1 a 2 mg/kg de peso nas crianças. A recuperação ocorre em geral sete a 30 dias após o início do tratamento. O tratamento complementar para o acidente botrópico consiste em internar sempre o doente e colocá-lo em repou- so e na posição de drenagem postural, para remissão mais rápida do edema. Para isso, deve ser mantido em decúbito dorsal horizontal e o membro afetado elevado, de tal forma que permaneça acima do plano que tangencia o precórdio. Quando necessário, deve ser feito o tratamento local das le- sões com banhos de anti-sépticos, do tipo permanganato de potássio a 1:40.000, além do uso de antibióticos, analgési- cos e vacina antitetânica. O antibiótico mais utilizado no Serviço de Doenças Tropicais da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP, é a cefuroxima (Zinnat®) nas doses de 250 mg, via oral, duas vezes ao dia para os indivíduos adultos e 15 mg/kg de peso corporal, pela via oral, duas vezes ao dia para crianças. O soro antitetânico deverá ser indicado quan- do ocorrer acidente grave com extensas áreas necrosadas de acordo com as indicações da Tabela 64.3. As principais complicações locais são principalmente a síndrome compartimental, abscessos e necroses especial- mente quando a picada acomete extremidades (dedos). Nestes casos pode haver seqüela permanente. As compli- cações sistêmicas são o choque e a insuficiência renal agu- da e ambos têm patogenia multifatorial. Os exames laboratoriais que podem ser feitos são: o tempo de coagulação, hemograma, exame de Urina I e do- sagem de creatina fosfoquinase (CPK). O tempo de coagu- lação tem sido repetido 24 horas após o acidente e usado como parâmetro de evolução clínica do doente. ACIDENTE LAQUÉTICO Este acidente é causado pelas serpentes do gênero Lachesis, encontradas em florestas da zona trópico-equato- rial e conhecidas por surucucu. A fisiopatologia do vene- no deste tipo de serpente se assemelha muito com a do gê- nero Bothrops, uma vez que ambas apresentam as frações proteolítica, coagulante e vasculotóxica. As serpentes deste gênero inoculam grande quantidade de veneno; por isso Tabela 64.3 Guia para Profilaxia do Tétano em Caso de Ferimento* História de Imunização com o Toxóide Tetânico (DPT, dT, DT, TT) Tipo de Ferimento Menos de Três Doses ou Ignorada Três ou Mais Doses Leve, não contaminado (originado Aplicar toxóide tetânico Só aplicar toxóide tetânico após por ofídio elapídico e não-peçonhento) • Em menor de sete anos, aplicar DPT, completando decorridos mais de dez anos três doses, com intervalos de dois meses entre as doses da última dose • Sete anos ou mais: aplicar toxóide tetânico (TT) ou dupla (dT), completando três doses com intervalos de dois meses entre as mesmas Não aplicar soro antitetânico (SAT) Não aplicar soro antitetânico (SAT) Todos os outros ferimentos, inclusive Aplicar toxóide tetânico Só aplicar toxóide tetânico após puntiformes (originados por ofídio • Em menores de sete anos, aplicar DPT, completando decorridos mais de cinco anos da botrópico, laquético e/ou crotálico) três doses, com intervalos de dois meses entre as mesmas última dose • Sete anos ou mais: aplicar toxóide tetânico (TT) ou dupla (dT), completando três doses com intervalos de dois meses entre as mesmas Aplicar soro antitetânico (SAT) em caso de necroses extensas • Administrar 5.000 unidades, via intramuscular, ou usar imunoglobulina antitetânica (IGAT), via intramuscular, 250 unidades Não aplicar soro antitetânico (SAT) DPT = vacina tríplice bacteriana, dT = vacina dupla adulto, DT = vacina dupla infantil, TT = vacina antitetânica, SAT = soro antitetânico. *Adaptado de Centers for Disease Control – Diphtheria, tetanus and pertussis: guidelines for vaccine prophylaxis and other preventive measures. Annals of Internal Medicine 1985; 103:896-905. Capítulo 64 609 preconiza-se o uso de dez a 20 ampolas de soro antila- quético ou antibotrópico-laquético, pela via endovenosa. O tratamento complementar e os cuidados que devem ser tomados são os mesmos da terapia antibotrópica. A Tabe- la 64.4 a seguir descreve a orientação para o tratamento deste acidente. ACIDENTE ELAPÍDICO As serpentes do gênero Micrurus, que são as corais ver- dadeiras e venenosas, causam este tipo de acidente. A ação neurotóxica deste veneno manifesta-se precocemente e determina casos graves. As manifestações clínicas caracte- rizam-se por ptose palpebral bilateral, diplopia, aniso- coria, mialgia, sialorréia, dispnéia e paralisia respiratória. O óbito é causado por insuficiência respiratória aguda. O bloqueio da junção mioneural pode ocorrer de ma- neira pré ou pós-sináptica. A reversão do bloqueio pós- sináptico é possível, portanto, com o uso de anticoli- nesterásicos. Evidências experimentais indicam que o veneno de algumas espécies encontradas no Brasil (Micrurus frontalis, Micrurus lemniscatus) atuam pós- sinapticamente. Dessa forma, o tratamento da insuficiência respiratória aguda, quando presente, poderá ser tentado com antico- linesterásicos (edrofônio e neostigmina), enquanto o pa- ciente é removido para centros médicos que disponham de recursos de assistência ventilatória mecânica. O tratamento específico antielapídico deve ser aplica- do à base de dez ampolas de soro por via intravenosa con- forme descrito na Tabela 64.5. O tratamento geral, quando há manifestações clínicas de insuficiência respiratória, deve ser feito com oxigeno- terapia e intubação endotraqueal. O tratamento da insuficiência respiratória aguda deve ser feito com o teste da neostigmina na dose de 0,05 mg/ kg em crianças ou uma ampola no adulto pela via intravenosa. A resposta é rápida havendo melhora eviden- te em torno de dez minutos. A terapia de manutenção, se houver melhora com o teste citado, deve ser feita aplican- do-se neostigmina na dose de 0,05 a 0,1 mg/kg via intravenosa, a cada quatro horas. Cada administração de neostigmina deve ser precedida de uma injeção intravenosa de 0,5 mg de sulfato de atropina (Atropina®, 1 mL = 0,25 mg), para obter-se aumento de freqüência de pulso, na or- dem de 20 batimentos por minuto. O prognóstico desses doentes é sempre favorável se tan- to a soroterapia quanto a assistência ventilatória forem aplicados precoce e adequadamente. ACIDENTE CROTÁLICO Esse acidente é causado pelas serpentes do gênero Crotalus, conhecidas popularmente por cascavéis. O vene- no possui ações neurotóxica, miotóxica e coagulante. As manifestações clínicas deste acidente são precoces, surgindo em torno de uma a três horas após a picada. Ca- racterizam-se por “fácies neurotóxica” com ptose palpebral bilateral, diplopia e anisocoria (Fig. 64.8). Ao mesmo tem- po, surgem as alterações devidas à ação miotóxica do vene- no, isto é, a urina do doente inicialmente passa a ter cor de “água de carne”, tornando-se a seguir cor de “Coca-cola”, podendo ser acompanhada de oligúria, anúria e de insufi- ciência renal aguda. Pode haver incoagulabilidade sangüí- nea com aumento evidente do tempo de coagulação (TC). O tratamento específico é realizado com soro anticro- tálico, ou pela fração específica do soro antibotrópico- crotálico, de acordo com o preconizado na Tabela 64.6. Devem ser adotados os mesmos cuidados referidos para a soroterapia antibotrópica, quando da administração do soro anticrotálico. O tratamento complementar, a fim de evitar a insuficiên- cia renal aguda, consiste em hiperidratar o doente pela via endovenosa com solução fisiológica. A seguir induzir a diurese com solução de manitol a 20%, na dose de 10 a 12 mL/kg de peso corporal, via endovenosa. Para os indiví- duos adultos utilizar 100 mL de manitol a 20% a cada seis horas, pela via intravenosa. Caso persista a oligúria pode- se tentar o uso de furosemida na dose de 1 mg/kg/dose na criança e 40 mg/dose no adulto pela via intravenosa. Deve- se também usar bicarbonato de sódio 1 a 2 mEq/kg de peso, dose/hora, para alcalinizar a urina e evitar as lesões renais favorecidas pelo pH ácido. Para os indivíduos adul- tos utilizar bicarbonato de sódio a 5%, 50 mL, via oral, a cada seis horas. O tratamento com manitol e o bicarbona- to de sódio deve ser mantido por pelo menos cinco dias. Se após essas intervenções persistir a anúria, avaliar a função renal pela dosagem de uréia, creatinina e clearance de creatinina, bem como os níveis eletrolíticos de sódio e potássio. Constatada a insuficiência renal aguda, promo- ver a hemodiálise e/ou diálise peritoneal, de acordo com a gravidade clínica. Tabela 64.4 Acidentes Laquético e Elapídico: Orientação para o Tratamento Específico Tipo de Acidente Orientação para o Tratamento Soroterapia Via de Administração (Ampolas) do Soro Laquético Poucos casos estudados. Gravidade avaliada pelos sinais 10 a 20* Intravenosa locais e intensidade das manifestações vagais (bradicardia, hipotensão arterial, diarréia) Elapídico Acidentes raros. Pelo risco de insuficiência respiratória 10 Intravenosa aguda devem ser considerados graves *ASL = soro antilaquético ou SABL = soro antibotrópico-laquético. 610 Capítulo 64 Os exames complementares que se mostram elevados nestes acidentes são a creatina fosfoquinase (CPK), aspartato aminotransferase (AST), alanina aminotrans-ferase (ALT) e desidrogenase láctica (DHL) decorrente da rabdomiólise. O tempo de coagulação (TC) em geral encontra-se aumenta- do e o hemograma apresenta-se com leucocitose, neu- trofilia e desvio à esquerda. No exame de urina tipo I pode haver proteinúria, hematúria e mioglobinúria. Além disso, deve-se internar sempre o doente, a fim de verificar a evolução clínica. Após 24 horas de internação, reavaliar o tempo de coagulação. Se este ainda se encon- trar alterado, suplementar a soroterapia anticrotálica na dose de duas ampolas. As manifestações clínicas neuroló- gicas e renais observadas nestes doentes são reversíveis, não deixando seqüelas. A Tabela 64.7 resume as manifestações causadas pelas serpentes venenosas. ACIDENTE POR SERPENTES CONSIDERADAS NÃO-PEÇONHENTAS As serpentes consideradas “não-peçonhentas” perten- cem a duas famílias: Colubrídeos e Boídeos. Estas últimas não possuem veneno e alimentam-se matando a presa por constricção. As principais espécies são a jibóia (Boa constrictor), a sucuri (Eunectus murinus) e a cobra papagaio (Corallus caninus). Estas serpentes possuem dentição do tipo áglifa (dentes iguais e ausência de presas inoculadoras de veneno) e a mordida deixa múltiplos sinais com traje- to em arco. A família Colubridae, entre elas as espécies Philodryas olfersii (cobra-verde), Philodryas patagoniensis (pare- lheira) e Clelia clelia (cobra-preta ou muçurana), possui dentes inoculadores do tipo opistóglifa (dois ou mais dentes posteriores com sulco na parte anterior ou lateral) e têm sido relatados acidentes com manifestações clí- nicas. Ao que se conhece, o veneno destas serpentes pos- sui atividades hemorrágica, proteolítica e fibrinoge- nolítica, podendo ocasionar edema local importante, equimose e dor. A conduta nestes casos consiste em se fazer uma avalia- ção clínica cuidadosa do doente, à procura de sinais e sin- tomas que poderiam ajudar no diagnóstico, tais como ava- liação do tempo de coagulação (TC), presença de fácies neurotóxica e mioglobinúria. A ausência destas alterações sugere o diagnóstico de acidente por serpente considera- da não-peçonhenta. O tratamento é sintomático, embora tenha sido relata- do na literatura o emprego do soro antibotrópico. Esta conduta ainda é controversa. ARANHAS Os três gêneros de importância médica são: Phoneutria, Loxosceles e Latrodectus. Os acidentes com Lycosa e caranguejeiras são destituídos de maior importância. ACIDENTE POR PHONEUTRIA Este acidente é causado pelas aranhas do gênero Phoneutria (Fig. 64.9), conhecidas por aranhas armadeiras, que se refugiam nas residências e seus arredores, bananei- ras e folhagens de jardim. Tabela 64.6 Acidente Crotálico. Classificação quanto à Gravidade e Soroterapia Preconizada Manifestações e Tratamento* Classificação da Gravidade Leve Moderada Grave Fácies miastênica/visão turva Ausente ou tardia Discreta ou evidente Evidente Mialgia Ausente ou discreta Discreta Intensa Urina vermelha ou marrom Ausente Pouco evidente ou ausente Presente Oligúria/anúria Ausente Ausente Presente ou ausente Tempo de coagulação (TC) Normal Normal ou alterado Alterado Quantidade aproximada de veneno a ser neutralizada (mg) 100 200 300 Soroterapia (número de ampolas de soro) (SAC, SABC)** 5 10 20 Via de administração Intravenosa Intravenosa Intravenosa *O doente deve ficar sempre internado. **SAC = soro anticrotálico, SABC = soro antibotrópico-crotálico. Tabela 64.5 Esquema Terapêutico Indicado para Adultos e Crianças Medicamento Crianças Adultos Atropina 0,05 mg/kg IV 0,5 mg IV (ampola 0,25 mg) Neostigmina 0,05 mg/kg IV 0,05 mg/kg IV (ampola 0,5 mg) Tensilon 0,25 mg/kg IV 10 mg IV (ampola 10 mg) Observação: cloridrato de edrofônio (Tensilon®, 1 mL = 10 mg) é um anticolinesterásico de ação rápida. Apesar de não ser disponível comercialmente no Brasil, é mais seguro e pode substituir o uso da neostigmina como teste. Capítulo 64 611 O acidente causa dor local intensa, geralmente irradian- do para a raiz do membro acometido. Outras manifesta- ções são edema, eritema, parestesia e sudorese no local da picada. Em crianças é possível ocorrer choque neurogênico após a picada. A Tabela 64.8 descreve a classificação do foneutrismo de acordo com a gravidade e as manifestações clínicas. O tratamento consiste na analgesia, pela infiltração lo- cal, ao redor da picada, de aproximadamente 4 mL de anes- tésico do tipo lidocaína a 2%, sem vasoconstritor. Para as crianças usar entre 1 e 2 mL do anestésico. Se necessário, repetir a mesma dose uma a duas horas após. Caso sejam necessárias mais de duas infiltrações, e des- de que não haja alterações do sistema nervoso central, re- comenda-se o uso cuidadoso de meperidina (Dolantina®), nas seguintes doses: crianças 1,0 mg/kg de peso via intra- muscular, e adultos 50 a 100 mg pela mesma via. O trata- mento complementar da dor local pode ainda ser feito com banho de imersão em água morna ou pelo uso de dipirona. A soroterapia específica tem sido indicada nos casos com manifestações sistêmicas principalmente em crianças e em todos os acidentes graves. Nestes casos interna-se o doente e, além do emprego da analgesia, aplica-se o soro antiaracnídico de acordo com a Tabela 64.8. Os mesmos cuidados referidos para a soroterapia antibotrópica devem ser tomados quando da administra- ção do soro antiaracnídico. ACIDENTE POR LYCOSA O acidente é causado por aranhas do gênero Lycosa, conhecidas como aranhas de jardim, de grama ou tarân- tula. Apresentam como característica um desenho negro em forma de ponta de flecha no dorso do abdome. São ara- nhas errantes, vivem em gramados junto às residências e não são agressivas. O quadro clínico é em geral pouco importante e o tra- tamento restringe-se ao curativo local. Não há necessida- de de soroterapia específica. ACIDENTE POR LOXOSCELES Este acidente é causado pelas aranhas do gênero Loxosceles, conhecidas por aranha-marrom (Fig. 64.10). São aranhas pequenas, com aproximadamente 1 cm de corpo, de hábitos noturnos, podendo viver no interior das residências, atrás de móveis, em porões, sótãos e quartos de despejo. Não são agressivas, picando quando comprimi- das contra a roupa. As ações proteolítica e hemolítica do veneno dessas aranhas manifestam-se tardiamente, em torno de 12 a 24 horas após o acidente. O quadro clínico cutâneo caracteriza-se por edema, eritema, dor local semelhante a queimadura. Quando há comprometimento cutaneovisceral, observamos febre, mal-estar generalizado, anemia, icterícia, equimose, vesículas, bolhas, necrose e ulceração (Fig. 64.11). A uri- na torna-se escura, cor de “Coca-cola”. Pode evoluir para oligúria, anúria e insuficiência renal aguda, semelhante ao que ocorre no acidente crotálico. O tratamento específico, para os casos moderados e gra- ves, é feito com o soro antiaracnídico com ou sem a prednisona de acordo com a Tabela 64.9. O tratamento com- plementar consiste na limpeza local com anti-sépticos (permanganato de potássio a 1:40.000) e hidratação do doen- te de maneira semelhante ao preconizado para o aciden- te crotálico. A vacinação antitetânica está indicada. Os an- tibióticos devem ser utilizados quando houver infecção secundária de maneira semelhante ao preconizado no aci- dente botrópico. O tratamento cirúrgico das áreas necro- sadas pode ser necessário no tratamento das úlceras e cor- reção das cicatrizes. O emprego do soro específico deve ser feito até 36 horas após o acidente. ACIDENTE POR LATRODECTUS Este acidente é causado pelas aranhas do gênero Latrodectus, conhecidas popularmente por viúva-negra, aranha ampulheta ou flamenguinha. O veneno é neurotó- xico central e periférico causando quadro clínico no local da picada e no sistema nervoso central. Além da dor inten- sa no local da picada, o doente pode ainda apresentar mialgia intensa, contraturas musculares generalizadas, po- dendo levar a convulsões tetânicas. O tratamento deve ser intensivo, utilizando-se analgésicos potentes para o alívio das dores musculares e abdominais. Podem ser realizados bloqueios anestésicos regionais à base de lidocaína sem vasoconstritor. Os relaxantes musculares à base dos benzodiazepínicos, além do gluconato de cálcio, podem ser utilizados para alívio das contrações espasmódicas, tre- mores e cãimbras musculares. O tratamento com o soro específico é obrigatório, sendo que atualmente este soro é importado pelo sistema de saúde do Brasil. As Tabelas 64.10 e 64.11 classificam os acidentes de acordo com a gravidade e sugere esquemas de tratamento. Tabela 64.7 Resumo Geral das Manifestações Causadas por Serpentes Venenosas Gênero da Serpente Manifestações Reações Locais Fácies Neurotóxico Mioglobinúria Incoagulabilidade Sangüínea Bothrops ++++ - - ++++ Crotalus + ++++ ++++ +++ Micrurus - ++++ - - Lachesis ++++ - - +++ 612 Capítulo 64 Deve-se garantir suporte cardiorrespiratório e os pacien- tes devem permanecer internados pelo menos 24 horas. ACIDENTE POR PAMPHOBETEUS E GRAMMOSTOLA Estas aranhas são conhecidas popularmente por ara- nhas caranguejeiras e não são venenosas. Sua importância médica está no fato de elas poderem lançar pêlos urtican- tes, situados no dorso do abdome. Esses pêlos podem cau- sar reações de hipersensibilidade, com prurido cutâneo, mal-estar, tosse, dispnéia, broncospasmo. O tratamento é feito à base de pomada de corticosteróides. Quando ocor- re reação de hipersensibilidade, com manifestações clíni- cas sistêmicas, está indicado o uso de anti-histamínicos, como a prometazina, uma ampola por via intramuscular. Para crianças, utilizar 0,1 a 0,5 mg/kg de peso corporal. ESCORPIÕES Os escorpiões do gênero Tytius são os causadores des- te tipo de acidente. As principais espécies são o Tytius bahiensis (escorpião marrom), Tytius stigmurus e Tytius ser- rulatus (escorpião amarelo) (Figs. 64.12 e 64.13). Este úl- timo é atualmente causador do maior número de mortes, principalmente quando acomete crianças abaixo de sete anos de idade. A Tabela 64.12 resume a classificação e o tratamento do escorpionismo. O tratamento, na maioria dos casos, consiste na infil- tração local de 2 a 4 mL de anestésico do tipo lidocaína a 2% sem vasoconstritor. Repetir este procedimento mais duas vezes se necessário, com intervalos de uma hora. Caso a dor persista, está indicada a soroterapia específica com soro anties-corpiônico ou antiaracnídico, na dose de duas a três ampolas para os casos moderados e quatro a seis ampolas para os casos graves. A soroterapia está sempre indicada em crianças menores de sete anos e em adultos com dor persistente. Os pacientes com manifestações sistêmicas, espe- cialmente as crianças, devem ser mantidas em regime de observação continuada objetivando o diagnóstico e o tratamento precoce de possíveis desvios das funções vitais. Tabela 64.8 Foneutrismo – Classificação quanto à Gravidade, Manifestações Clínicas e Tratamento Geral e Específico Classificação Manifestações Clínicas Tratamento Geral Tratamento Específico Leve Dor local na maioria dos casos, eventualmente Observação até 6 horas - taquicardia e agitação + analgesia Moderado Dor local intensa associada a: sudorese e/ou vômitos Internação + analgesia duas a quatro ampolas de ocasionais e/ou agitação e/ou hipertensão arterial SAAr* (crianças) Via intravenosa Grave Além das anteriores, apresenta uma ou mais das Unidade de cuidados cinco a dez ampolas de seguintes manifestações: sudorese profusa, sialorréia, intensivos + analgesia SAAr* vômitos freqüentes, hipertonia muscular, priapismo, Via intravenosa choque e/ou edema pulmonar agudo *SAAr-soro antiaracnídico: 1 ampola = 5 mL (1 mL neutraliza 1,5 doses mínimas mortais). Tabela 64.9 Loxoscelismo – Classificação dos Acidentes quanto à Gravidade, Manifestações Clínicas e Tratamento Classificação Manifestações Clínicas Tratamento Leve • Loxosceles identificada como agente causador do acidente Sintomático: • Lesão incaracterística Acompanhamento até 72 horas • Sem comprometimento do estado geral após a picada* • Sem alterações laboratoriais Moderado • Com ou sem identificação da Loxosceles no momento da picada Soroterapia: • Lesão sugestiva ou característica Cinco ampolas de SAAr** via intravenosa e/ou • Alterações sistêmicas (rash cutâneo, petéquias) Prednisona: • Sem alterações laboratoriais sugestivas de hemólise Adultos 40 mg/dia Crianças 1 mg/kg/dia durante cinco dias Grave • Lesão característica Soroterapia: • Alteração no estado geral: anemia aguda, icterícia Dez ampolas de SAAr via intravenosa e • Evolução rápida Prednisona: • Alterações laboratoriais indicativas de hemólise Adultos 40 mg/dia Crianças 1 mg/kg/dia durante cinco dias *Pode haver mudança de classificação durante este período. **SAAr = soro antiaracnídico. Capítulo 64 613 ABELHAS E VESPAS Os acidentes por picadas de abelhas e vespas apresen- tam manifestações clínicas distintas, dependendo da sen- sibilidade do indivíduo ao veneno e do número de picadas. O acidente mais freqüente é aquele no qual um indivíduo não-sensibilizado ao veneno é acometido por poucas pica- das. Nestes casos, o quadro clínico limita-se à reação in- flamatória local, com pápulas eritematosas, dor e calor. Na maioria das vezes esta situação é resolvida sem a partici- pação médica. Outra forma de apresentação clínica é aquela na qual o indivíduo previamente sensibilizado a um ou mais compo- nentes do veneno manifesta reação de hipersensibilidade imediata. É ocorrência grave, podendo ser desencadeada por apenas uma picada e exige a intervenção imediata do mé- dico. O quadro clínico em geral manifesta-se por edema de glote e broncospasmo acompanhado de choque anafilático. A terceira forma de apresentação deste tipo de aciden- te é a de múltiplas picadas. Geralmente o acidente ocorre com as abelhas do gênero Apis, quando o doente é ataca- do por um enxame – em geral no campo. Nesse caso ocor- re inoculação de grande quantidade de veneno, devido às múltiplas picadas, em geral centenas ou milhares. Em de- corrência, manifestam-se vários sinais e sintomas, devido à ação das diversas frações do veneno. Este tipo de acidente é raro. O quadro clínico decorre da ação das diferentes fra- ções do veneno. Entre elas podemos citar: apamina, fosfolipases A e B, peptídeos da família melitina, peptídeos desgranuladores de mastócitos (MCD), além de histamina, bradicinina e substâncias de reação lenta. Ao darem entrada no hospital, os doentes em geral apre- sentam dor generalizada, prurido intenso e agitação, po- dendo posteriormente evoluir para estado torporoso. A uti- lização combinada de anti-histamínicos, corticosteróides e meperidina contribui para controlar a dor, o prurido e a Tabela 64.11 Latrodectismo – Drogas Utilizadas no Tratamento Sintomático Medicamento Crianças Adultos Benzodiazepínicos do tipo 1 a 2 mg/dose intravenosa a cada quatro 5 a 10 mg intravenosa a cada quatro horas diazepam horas se necessário se necessário Gluconato de cálcio a 10% 1 mg/kg intravenosa lentamente a cada 10 a 20 mL intravenosa lentamente a cada quatro horas se necessário quatro horas se necessário Clorpromazina 0,55 mg/kg/dose intramuscular a cada 25 a 50 mg intramuscular a cada quatro horas oito horas se necessário se necessário Tabela 64.10 Latrodectismo – Classificação dos Acidentes quanto à Gravidade, Manifestações Clínicas e Tratamento Classificação Manifestações Clínicas Tratamento Leve • Dor local • Sintomático: analgésicos, gluconato de cálcio, observação • Edema local discreto • Sudorese local • Dor nos membros inferiores • Parestesia em membros • Tremores e contraturas Moderado • Além dos acima referidos • Sintomático: analgésicos, sedativos e • Dor abdominal • Sudorese generalizada • Específico: SALatr* uma ampola via intramuscular • Ansiedade/agitação • Mialgia • Dificuldade de deambulação • Cefaléia e tontura • Hipertermia Grave • Todos os acima referidos e • Sintomático: analgésicos, sedativos e • Taqui/bradicardia • Hipertensão arterial • Específico: SALatr* uma a duas ampolas via intramuscular • Taquipnéia/dispnéia • Náuseas e vômitos • Priapismo • Retenção urinária • Fácies latrodectísmica *SALatr = soro antilatrodéctico. 614 Capítulo 64 agitação. A insuficiência respiratória pode instalar-se pre- cocemente, sendo em geral acompanhada de edema de glote, broncospasmo e edema generalizado das vias aéreas. Estas alterações são causadas pela histamina liberada em decorrência da ação de frações do veneno, entre elas os peptídeos da família melitina, a fosfolipase A e principal- mente os peptídeos desgranuladores de mastócitos. A uti- lização de anti-histamínicos, corticosteróides e adrenalina, assim como a traqueostomia e/ou a intubação endotra- queal, seguida de ventilação artificial, contribui sobrema- neira para controlar a insuficiência respiratória. Hemólise intensa é freqüente, acompanhada de insufi- ciência renal. É causada pela ação da apamina, pelos peptídeos da família melitina e pela fosfolipase A sobre a membrana eritrocitária. Os doentes podem evoluir tam- bém com hipertensão arterial, decorrente possivelmente da hiperatividade simpática. O tratamento de poucas picadas de abelhas ou vespas em indivíduo não-sensibilizado deve ser à base de anti-hista- mínicos sistêmicos e corticosteróides tópicos. Temos dado preferência à dextroclorofeniramina (Polaramine®), na dose de 2 a 6 mg pela via oral, a cada seis ou oito horas. Este tra- tamento deve ser mantido por três a cinco dias, de acordo com a evolução clínica. Além disso, devemos adicionar corti- cóides tópicos isoladamente ou associados ao mentol a 0,5%. O tratamento do indivíduo sensibilizado que evolui com broncospasmo, edema de glote e choque anafilático é o mesmo referido para as reações anafiláticas e anafilac- tóides, citado anteriormente neste capítulo. O tratamento do acidente por múltiplas picadas de abe- lhas ou vespas é sempre uma emergência médica. Infeliz- mente ainda não se dispõe de um soro específico contra estes venenos, embora já existam pesquisas em desenvol- vimento. Devem ser tomadas as seguintes providências imediatamente após o doente chegar ao hospital: • Injetar, via intramuscular, uma ampola de prometazina (Fenergan®); em crianças utilizar 0,1 a 0,5 mg/kg de peso corporal; • Injetar, via intramuscular, uma ampola de hipnoanal- gésico do tipo meperidina (Dolantina®); em crianças aplicar 1,5 mg/kg de peso/dia; • Se estiver em estado de choque, injetar, via subcutânea, 0,5 mg/kg a uma ampola de adrenalina aquosa 1:1.000. Em crianças utilizar 0,01 mg/kg de peso corporal; • Se houver broncospasmo com presença de sibilos, in- jetar, via intramuscular, uma ampola de aminofilina. Em crianças utilizar 7 mg/kg de peso, o que corres- ponde a 0,3 mL/kg de peso, seguidos da instalação de cateter de oxigênio. Manter o esquema até o desapare- cimento do broncospasmo; • Cateterizar uma veia central, com posterior instalação de pressão venosa central; • Administrar, via endovenosa, 1 g de hidrocortisona (Solu-Cortef®). Em crianças utilizar 7 mg/kg de peso corporal. Este esquema deve ser mantido por pelo me- nos três a cinco dias, de acordo com a evolução clínica; • Hidratar bem o doente com colóides e cristalóides, in- duzindo a seguir a diurese osmótica com manitol a 20%, na dose de 100 mL, via endovenosa, a cada seis horas para adultos, e 10 a 12,5 mL/kg de peso corpo- ral para crianças. O manitol deverá ser mantido por pelo menos cinco dias. Deve-se tomar cuidado com uma possível desidratação iatrogênica. Quando o doen- te apresentar anúria, o manitol está contra-indicado; • Alcalinizar a urina com solução de bicarbonato de sódio na dose de 1 a 2 mEq/kg de peso/dose a cada seis horas, para prevenir as lesões renais causadas pela hemoglo-binúria. O pH ácido da urina favorece as le- sões renais; • Retirar os ferrões um por um, com o cuidado de evitar a inoculação do veneno neles contido. Deve ser salien- tado que durante a picada apenas um terço do veneno contido no ferrão é inoculado na vítima. O restante fica no aparelho inoculador, situado na extremidade proximal do ferrão. A retirada incorreta dos ferrões pode ser acompanhada de compressão deste aparelho. Como conseqüência haverá inoculação de grande quan- tidade de veneno. Para retirá-los, utilizar uma gilete ou um pinça de Halsted aplicada rente à pele; • Sondagem vesical e nasogástrica; • Aplicação de permanganato de potássio na diluição de 1:40.000, para anti-sepsia das áreas picadas; Tabela 64.12 Acidentes Escorpiônicos – Classificação quanto à Gravidade, Manifestações Clínicas e Tratamento Específico Classificação Manifestações Clínicas Soroterapia (N.o de ampolas)** Leve* Dor e parestesias locais - Moderado Dor local intensa associada a uma ou mais manifestações, 2 a 3 intravenosa como náuseas, vômitos, sudorese, sialorréia discretos, agitação, taquipnéia e taquicardia Grave Além das citadas na forma moderada, presença de uma ou mais 4 a 6 intravenosa*** das seguintes manifestações: vômitos profusos e incoercíveis, sudorese profusa, sialorréia intensa, prostração, convulsão, coma, bradicardia, insuficiência cardíaca, edema pulmonar agudo e choque *Tempo de observação das crianças picadas: seis a 12 horas. **SAEEs = soro antiescorpiônico, SAAr = soro antiaracnídico. ***Na maioria dos casos graves, quatro ampolas são suficientes para o tratamento, visto que neutralizam o veneno circulante e mantêm concentrações elevadas de antiveneno circulante por pelo menos 24 horas após a administração da soroterapia. Capítulo 64 615 • Alimentação enteral com cerca de 2.000 calorias por dia; • Manutenção dos equilíbrios hidreletrolítico e aci- dobásico; • Traqueostomia e/ou intubação orotraqueal, com insta- lação de reposição assistida, quando indicada; • Diálise peritoneal e/ou hemodiálise, quando houver insuficiência renal aguda; • Prevenir a formação de escaras de decúbito; evitar in- fecções respiratórias secundárias. LACRAIAS Os quilópodes, conhecidos popularmente como lacrai- as e centopéias, possuem corpo quitinoso dividido em ca- beça e tronco articulado, de formato achatado, filiforme ou redondo, permitindo fácil locomoção. As lacraias estão distribuídas por todo o mundo em regiões temperadas e tropicais. As lacraias que costumam provocar acidentes com maior freqüência pertencem a três gêneros, a saber: Cryptops, Otostigmus e Scolopendra (Fig. 64.14). Devido à dificuldade em coletar quantidades adequadas de veneno, pouco se conhece sobre o mecanismo de ação, sugerindo- se atividade exclusivamente local. Na maioria das vezes o quadro clínico é benigno, cau- sando apenas envenenamento local sem maiores conseqü- ências, caracterizado por dor local imediata em quei-ma- ção, de intensidade variável, acompanhada ou não de prurido, hiperemia, edema e com evolução para necrose superficial. Sintomas gerais eventualmente podem estar presentes, como cefaléia, vômitos, ansiedade, pulso irregu- lar, tonturas, linfadenite e linfangite. O tratamento deve ser basicamente sintomático, direcionado para o alívio da dor. Podem ser utilizados analgésicos sistêmicos, bloqueio anestésico local ou troncular e calor local. A assepsia com água e sabão é im- portante para prevenir a ocorrência de infecção secundá- ria local. Quando necessário, indica-se o bloqueio anes- tésico, no local da picada ou no tronco nervoso, infil- trando-se lidocaína a 2%, sem vasoconstritor, 3 a 4 mL em adultos e 1 a 2 mL em crianças. Não se recomenda o uso de corticosteróides, antiinflamatórios ou anti-hista- mínicos. LAGARTAS VENENOSAS A ordem Lepidoptera possui mais de 100 mil espécies de insetos distribuídos pelo planeta e são conhecidos na forma adulta como borboletas ou mariposas. As formas adultas raramente causam problemas ao homem, exceção a alguns surtos epidêmicos de dermatite. Neste caso o aci- dente é denominado lepidopterismo. Os acidentes com as formas larvais do inseto (lagartas, taturanas) são denomi- nados erucismo. Estes ocorrem quando há contato entre a pele e os pêlos da lagarta (Fig. 64.15). As três principais manifestações clínicas são as seguin- tes: dermatológicas, hemorrágicas e osteoarticulares. As manifestações dermatológicas ocorrem muito freqüentemente com as lagartas do gênero Megalopygae, embora acredite-se que todas as lagartas (Lonomia, Premolis) provoquem lesão urticante na pele e mucosas após o contato inicial. No momento do acidente o paciente sente dor de leve a muito intensa, acompanhada de eritema, lesões papulares e prurido. As flictenas e as vesículas podem-se formar 24 horas após o acidente com necrose superficial e hiperpigmentação. Mal-estar, sensa- ção febril, náuseas, vômitos, diarréia, lipotimia e outros sintomas podem aparecer. As manifestações hemorrágicas são causadas principal- mente pelas lagartas do gênero Lonomia. Estas, quando em contato com a pele humana, produzem queimaduras à se- melhança de qualquer outra taturana. Entre duas e 72 ho- ras após o acidente, aparecem hematomas, equimoses, hema-túria, gengivorragia, cefaléia e palidez. Acredita-se que o veneno deste gênero tenha ação fibrinolítica e ação semelhante à coagulação intravascular disseminada. Existe consumo de fatores de coagulação e a insuficiência renal aguda aparece como complicação dos fenômenos hemor- rágicos. As manifestações osteoarticulares ocorrem principal- mente nos seringueiros da região Amazônica que entram em contato com as lagartas do gênero Premolis. A pararamose, assim popularmente denominada, é conside- rada doença profissional de natureza inflamatória causa- da pelo contato acidental com as cerdas destas lagartas. A reação cutânea inicial é semelhante à das outras espécies de lagartas (dor, prurido e eritema). A exposição subse- qüente e continuada acaba por levar o paciente a uma ar- trite crônica deformante. Tabela 64.13 Classificação da Gravidade e Orientação Terapêutica nos Acidentes por Lagartas do Gênero Lonomia Manifestações e Quadro Local Tempo de Coagulação Sangramento Tratamento Gravidade Leve Presente Normal Ausente Sintomático Moderado Presente ou ausente Alterado Ausente ou presente Sintomático em pele/mucosas Soroterapia: cinco ampolas de SALon* intravenoso Grave Presente ou ausente Alterado Presente em vísceras Sintomático – risco de vida Soroterapia: dez ampolas de SALon intravenoso *SALon = soro antilonômico. 616 Capítulo 64 No tratamento aos indivíduos recém-acidentados e que apresentam ardor intenso é recomendada infiltração anestésica com lidocaína a 2% em torno da lesão. O blo- queio anestésico diminui sobremaneira os sintomas clíni- cos. A aplicação de calor local, imediatamente após o aci- dente, pode reduzir a sintomatologia. Os analgésicos e antiinflamatórios de uso sistêmico ajudam no combate à dor e à inflamação, bem como o uso de corticosteróides tópicos. Os doentes acometidos pela síndrome hemorrágica devem ser tratados em ambiente hospitalar com correção da anemia pela administração de concentrado de hemá- cias. O sangue total e o plasma fresco podem acentuar o quadro de coagulação intravascular e por isso são contra- indicados. O soro antilonômico (SALon) começa a ser produzido em pequena escala, estando em fase de ensaios clínicos, de utilização restrita. As doses utilizadas no mo- mento estão descritas na Tabela 64.13. Para as formas osteoarticulares não há conduta terapêu- tica específica. As formas crôncias com artropatia devem ter acompanhamento especializado. Finalizando, deve ser salientado que os acidentes por animais peçonhentos constituem emergência médica fre- qüente em nosso meio, requerendo tratamento adequado e imediato, evitando com isso que muitos doentes evoluam para o óbito. BIBLIOGRAFIA 1. Barraviera B, Marins LV, Szpeiter N. Vacinas contra vírus. EPUB, Rio de Janeiro 1999; 85p. (inclui CD-ROM). 2. Barraviera B. Ofídios – estudo clínico dos acidentes. EPUB, Rio de Janeiro 1999; 46p. (inclui CD-ROM) 3. Barraviera B. Venenos – aspectos clínicos e terapêuticos dos acidentes por animais peçonhentos. EPUB, Rio de Janeiro 1999; 411p. 4. BRASIL. Ministério da Saúde. Manual de diagnóstico e trata- mento de acidentes por animais peçonhentos. Brasília: Fun- dação Nacional da Saúde 1998; 131p. 5. Ferreira Jr. RS, Barraviera B. Artrópodes de importância mé- dica. EPUB, Rio de Janeiro 1999; 82p. (inclui CD-ROM). 6. Profilaxia da raiva humana. São Paulo, Instituto Pasteur 1999; 33p.(Manual técnico do Instituto Pasteur, n.4) 7. Veronesi R, Focaccia R. Veronesi: tratado de infectologia. São Paulo: Atheneu 1997; 1803p.
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