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1 APOSTILA O FEDERALISMO E A FEDERAÇÃO BRASILEIRA PROF. DR. JOÃO LUIZ MARTINS ESTEVES1 1 Doutor pelo programa de Doutorado da Pós Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho - UGF. Especialista em Filosofia Política e em Filosofia: História do Pensamento Brasileiro pela Universidade Estadual de Londrina - UEL. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Procurador do Município de Londrina. Professor Titular do Departamento de Direito Público da Universidade Estadual de Londrina - UEL. Membro da comissão coordenadora do curso de Especialização lato sensu em Direito do Estado da Universidade Estadual de Londrina - UEL. 2 ÍNDICE I – O ESTADO FEDERAL I.1 - O federalismo e a Federação brasileira...................................................................4 I.1.1 - Diferenciação corrente entre estado unitário e estado federal: a descentralização.............................................................................................................4 I.1.2 - A Teoria da Federação: uma construção empírica...............................................5 I.1.3 - A trajetória do estado federal................................................................................6 I.1.4 - Teorias sobre a natureza Jurídica do Estado Federal.........................................8 I.1.5 - Características da natureza jurídica do estado federal........................................9 I.1.6 - Federalismo no Brasil..........................................................................................11 I.1.6.1 – A formação do Estado unitário: O Império do Brasil.......................................11 I.1.6.2 – A pré-existência de movimentos por autonomia.............................................16 I.1.6.3 – A transposição do modelo federativo dos E.U.A para o Brasil........................17 I.2 - O Município frente aos demais entes da federação brasileira...............................19 1.2.1 – A estrutura federativa do Estado brasileiro na Constituição de 1988...............19 1.2.1.1- O Estado-membro............................................................................................20 1.2.1.2- A União.............................................................................................................20 1.2.1.3- O Distrito Federal.............................................................................................21 1.2.1.4- O Município......................................................................................................22 Considerações finais.....................................................................................................25 Referências bibliográficas.............................................................................................25 3 II – O SISTEMA DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS Introdução......................................................................................................................27 II.1 - Técnicas de repartição de competências federativas...........................................30 II.2 – Técnica brasileira de repartição de competências...............................................32 II.3 - As competências dos entes da República Federativa do Brasil...........................35 II.3.1 – Competências da União....................................................................................35 II.3.2 - Competências dos Estados................................................................................40 II.3.3 - Competências dos Municípios...........................................................................45 II.3.3.1 – A competência suplementar dos Municípios..................................................49 II.3.4 - Competências do Distrito Federal......................................................................53 Considerações finais.....................................................................................................54 Referências bibliográficas.............................................................................................54 4 PARTE I - O ESTADO FEDERAL. I.1 - O federalismo e a Federação brasileira Iniciamos a primeira parte desta abordagem sob o entendimento de que a interpretação normativa é sim realizada, contudo, primando pela compreensão necessária que se deve ter sobre o papel que os entes federativos desempenham na Federação brasileira, por meio do delineamento, realizado a partir da trajetória do federalismo, do alcance e dos limites da autonomia e competências federativas. A República Federativa do Brasil apresenta um histórico peculiar no próprio processo de criação e trajetória do seu modelo federativo que se deu a partir da existência de um Estado unitário até, surpreendentemente, chegar a um peculiar grau de descentralização que, por meio da incorporação do Município a partir de 1988, apresenta genuinamente três níveis federativos. Assim, o método de abordagem quanto às atividades desempenhadas no âmbito municipal é feito por meio do entendimento de que, no Brasil, em virtude das peculiaridades do nosso modelo federativo, não se deve estudar especificamente o Município sem contextualiza-lo dentro da estrutura complexa que é o Estado brasileiro. I.1.1 - Diferenciação corrente entre estado unitário e Estado federal: a descentralização. Os Estados modernos, sem exceção se constituíram como Estados unitários. Somente mais tarde, no final do século XVIII, na América do Norte é que surge o que hoje conceituamos como Estado Federal. É muito 5 comum que se faça a distinção entre ambos sob a afirmação de que aquilo que que os diferencia se traduz na analise de que o primeiro tem um centro de competência administrativa e legislativa, enquanto que o segundo congrega também outros setores de competência com determinada autonomia. Assim, por exemplo, a República Federativa do Brasil seria uma federação, por contar com governos e órgãos legislativos deslocados do poder central, enquanto que o Uruguai seria um Estado unitário por apresentar como característica um único centro de competência administrativa e legislativa. Entretanto, conforme veremos a seguir, outras características devem definir um Estado federal a fim de distingui-lo de um Estado unitário. Esta necessidade existe pelo motivo de que é possível que um Estado unitário, com a intenção de melhor regular a consecução de seus fins, descentralize suas competências administrativas e legislativas, criando outros centros de competência aos quais pode conferir autonomia. Entendida esta como capacidade de autogoverno, autoadministração e autolegislação. Casos típicos de Estados unitários descentralizados são o Reino de Espanha e a República Italiana, onde regiões autônomas, muitas vezes gozam de mais autonomia do que uma unidade da federação brasileira. Sendo assim, para um entendimento sobre a diferença entre Estado Unitário e Estado Federal é necessário que antes se entenda como se formou e se constituem atualmente as federações. Esta compreensão, é de vital importância para que seja possível entender qual é a posição do Município em um tipo de federação como a brasileira. I.1.2 -A Teoria da Federação: uma construção empírica. A independência das treze colônias (1776-1783) que formaram o núcleo inicial dos Estados Unidos da América do Norte é fruto do movimento burguêsdo século XVIII pela tomada do controle estatal em oposição às classes (nobreza e clero) que controlavam o antigo Estado monárquico 6 absolutista. Este movimento, calcado nas ideias iluministas, teorizou um novo modelo em que o poder e funções do Estado deveriam ser exercidos por meio de órgãos distintos, regulados por um documento político-jurídico ao qual se deu o nome de "Constituição". E é possível dizer que os norte-americanos que criaram os Estados Unidos da América do Norte foram revolucionários em vários sentidos. Primeiramente porque adotaram as ideias concebidas por Montesquieu quanto à Constituição e quanto à separação dos poderes. Em segundo lugar pelo motivo de que, sem que houvesse uma teorização moderna mais elaborada, aboliram também a forma monárquica de Estado para implantar uma forma republicana de Estado, cujas bases remontam à antiguidade clássica. Mas, por último, fundamentalmente foram revolucionários por terem criado uma nova forma de organização do Estado que é a Federação. Esta nova forma de organização estatal nunca tinha sido experimentada e não se encontrava teorizada. A única forma similar até então existente tinha sido a da Confederação Helvética - que deu origem à Suíça como Estado Federal em 1848 - existente entre comunidades dos vales nos Alpes centrais da Europa tendo sido formada no século XIII a partir de uma aliança entre pequenos Estados independentes para facilitar as gestões de interesse comum ligadas ao comércio e à paz. A construção do Estado Federal é resultado da experiência construída a partir dos interesses e necessidades das ex-colônias que se tornaram Estados independentes para depois se unirem em uma trajetória que as identifica inicialmente como uma Confederação para então se transformarem em uma Federação. I.1.3 - A trajetória do estado federal. O que difere basicamente a Confederação da Federação é que na primeira as unidades que a compõem preservam sua soberania, podendo 7 se retirar da organização a qualquer tempo, enquanto que na Federação o direito de segregação não existe. Também se pode dizer que na Confederação, ao contrário da Federação, se estabelece que a legislação feita pelo poder central deve ser validada pela unidade confederada para que se faça valer em seu território. Entretanto, desde o início, esta distinção não ficou bem clara nos Estados Unidos da América do Norte. Uma prova desta indeterminação é que o próprio nome, com a designação de "Estados" leva a entender que os componentes preservam todas características de um Estado, entre elas a "soberania", como ocorre na Confederação. Entretanto os revolucionários sempre denominaram sua nova organização de Federação, como fica claro nos artigos da obra "O Federalista" que é resultado de reuniões que ocorreram em 1787 para a elaboração da Constituição estadunidense (MADISON, HAMILTON, JAY, 1993). As divergências sobre a natureza jurídica ou política do Estado federal acompanharam a história de construção dos E.U.A. até meados do século XIX quando o resultado da guerra civil travada entre os anos de 1861 e 1865 acabou por definir os contornos do Estado Federal. Conhecida como "Guerra da Secessão", este conflito opôs os interesses da elite econômica industrial dos Estados do norte à elite econômica agrária escravocrata dos Estados do sul. Após aprovada pelo Congresso dos E.U.A a lei que abolia a escravidão, os sulistas, autodenominados de "confederados", declararam que não a cumpririam pelo motivo de que não estavam obrigados a cumprir uma lei federal, a qual somente poderia ser aplicada em seu território caso fosse ratificada localmente. Também entendiam que o que unia os Estados era um acordo que permitia o direito de segregação dos Estados que não quisessem mais fazer parte dos E.U.A. Este tipo de divergência interna acompanhou as questões políticas e jurídicas nos Estados Unidos até a abolição do modo de produção escravista. Contudo, como se percebe, foi o interesse econômico que acabou por ditar finalmente qual seria a formatação da federação em terras estadunidenses. Os poderios econômico e consequentemente militar dos Estados industrializados acabaram por impor a proibição ao direito de 8 nulificação de leis e de segregação em virtude da imposição de um novo modelo de produção. I.1.4 - Teorias sobre a natureza Jurídica do Estado Federal. É necessária a definição de uma “natureza jurídica” do estado federal que estabeleça uma distinção do estado unitário. Conforme estudo realizado por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1948), desde o início de sua formação, são as seguintes as teorias sobre a natureza jurídica do Estado federal: - Da divisão da soberania: A soberania é repartida entre a União e os Estados Federados, que cedem uma parte de sua soberania (HAMILTON, JAY, MADSON). - Do direito dos Estados membros: O Estado Federal é uma união de coletividades soberanas (JEFFERSON). Serviu aos Confederados, e possui dois atributos: direito de nulificação e de segregação. - Da participação dos Estados-membros na formação do Estado Federal: A qual ocorre através da existência de uma Câmara alta no legislativo (Senado) - (LOUIS LE FUR, EUGÉNE BOREL). Esta teoria é derrubada pelo fato de que existem vários Estados unitários onde as províncias participam nas deliberações do poder central (Bolívia, Chile, Colômbia, Uruguai, África do Sul, etc.). - Dos Estados não soberanos: O que caracteriza o Estado é possuir direito próprio e alguns Estados possuem, além do direito próprio, outra característica que é a soberania. Portanto, Estados-membros são Estados que não têm soberania (GEORG MEYER, GEORG JELLINEK). Segundo a evolução desta doutrina, direito próprio seria a capacidade de auto-organização e de autogoverno. Se for aceita, devemos entender que os Municípios brasileiros também são Estados. 9 - Do Estado de fato: Sendo o Estado uma diferenciação entre governantes e governados, entende que a federação é um Estado que apresenta duas categorias de governantes, com competências exclusivas que não podem ser alteradas sem o consentimento de todos os governantes (DUGUIT). A principal falha desta teoria é que em muitas federações as competências são modificadas sem a concordância de todas as Unidades Federadas. - Da escola austríaca: O positivismo jurídico apresenta dois problemas fundamentais: 1º - caracterização do Estado Federal; 2º - relação existente entre governo central e governo local (KELSEN). No primeiro, exclui a “soberania” como possibilidade de caracterização, e faz a distinção entre Estado Federal e Estados-membros, por estar aquele subordinado ao direito internacional e estes ao direito nacional. Portanto, tal concepção não diferencia Estado federal e unitário, trazendo-lhes somente a característica da descentralização. – Na relação entre governo central e local, apega-se à teoria que não lhe é própria (HAENEL, MEYER, GIERKE), da existência de três ordens jurídicas: a) coletividade central; b) coletividades membros; c) comunidade total. - Das competências exclusivas: Deriva da observação feita em relação aos E.U.A: Descentralização prescrita em uma constituição rígida quanto à atribuição de competências exclusivas e existência de um órgão julgador encarregado de resolver conflitos de competências (BRYCE, DURAND, HAINES). Outras constituições já tiveram estas características como a Chinesa de 1923, a qual afirmava ser a China um Estado unitário. I.1.5 - Características da natureza jurídica do estado federal. Como vimos, não existiu previamente ao modelo federal de Estado uma teoria que pudesse orientar a sua formação. Mesmo depois de formado o primeiro Estado ao qual foi dado a designação de Federal, as teoriasque foram se formando oscilavam entre aquilo que hoje entendemos como 10 Confederação e Estado Unitário. Somente com uma guerra civil, onde estas divergências serviram de base para justificar oposições de conteúdo econômico, é que finalmente se pode consolidar uma teoria prática sobre a Federação. Entretanto, ainda podemos encontrar nas federações existentes modelos federais distintos. Nos Estados federais, como por exemplo, Estados Unidos da América do Norte, República Federal Alemã, República Federativa do Brasil, Estados Unidos Mexicanos, Federação Russa, etc., as competências federativas não estão estabelecidas da mesma forma. Como também já observamos anteriormente, encontramos Estados unitários, como é o caso da Espanha, onde suas regiões autônomas têm mais autonomia do que entes federados de Estados federais como o brasileiro. Então é necessário que seja possível identificar Estados que sejam igualmente federais, mesmo com divisão de competências distintas. Como também é necessário delimitar a distinção entre Estados federais e Estados unitários, mesmo quando nestes últimos exista mais autonomia em suas regiões quando feita uma comparação com um Estado Federal. Este exercício deve ser feito por meio da definição teórica de qual é o acordo interno ao Estado, inscrito no âmbito constitucional, que determina a existência de uma federação. A este acordo é dado o nome de pacto federativo. Nos servimos das lições de Osvaldo Aranha Bandeira de Mello (1948, p. 63-125) que nos dá uma definição sobre as características gerais do estado federal, definidoras do pacto federativo. São elas; -Criação de um ente que congregue a vontade das unidades federadas (União). -Participação das unidades federadas na formação da vontade da União. -Entes Federados dotados de autonomia. -Exercício do poder através de distribuições de competências. -Poder Judiciário com atribuições de julgar conflitos de competências. 11 - Existência de uma só soberania, em contraposição à confederação, onde várias autonomias convivem mediante tratados internacionais, como é o caso da União Europeia. -Indissolubilidade da federação, em contraposição à confederação, onde é possível que as unidades confederadas retirem ou dissolvam integralmente a confederação. -Constituição com rigidez na garantia da caracterização federal, em contraposição ao Estado unitário. Assim, um Estado pode atribuir um elevado grau de autonomia às suas regiões, mesmo que por meio da sua Constituição, que somente isto não lhe garantirá a condição de Estado Federal. Para isto, é preciso que a Constituição vede expressamente a possibilidade de retirada de autonomia das regiões, mesmo que por meio de emenda à Constituição. Ou seja, a forma federativa de Estado deve estar inscrita na Constituição como cláusula pétrea. I.1.6 – Federalismo no Brasil. I.1.6.1 - A formação do Estado unitário: O Império do Brasil. Não existe dúvida que o movimento revolucionário, ocorrido tanto nas treze colônias inglesas da América do Norte quanto em França, inspirado pelo Iluminismo, tinha como alvo a ser destruído o monopólio mercantilista e o absolutismo monárquico que lhe dava sustentação. Mas foram os ideais iluministas irradiados da Revolução Francesa que influenciaram o quadro político mundial descortinado a partir do final do século XVIII e durante quase todo século XIX. Apesar da Revolução Americana ter sido cronologicamente anterior, a Francesa foi o coroamento de ideias antiabsolutistas que fervilharam durante todo o século XVIII e teve um sentido 12 mais universalizante do que aquela. Os ventos revolucionários espraiaram-se para toda a Europa, atravessando o Atlântico, inclusive. A Independência do Brasil em relação a Portugal, com o consequente surgimento do Estado Brasileiro e sua primeira constituição ocorre neste cenário, e é fruto destes acontecimentos. No Brasil colônia, em que pese o caráter espoliativo adotado pela prática da colonização mercantilista, o qual não visava em princípio a fixação populacional e consequentemente um desenvolvimento comunitário, apresentou-se um quadro nos últimos dois séculos em que, o próprio declínio do sistema colonial iria gerar as contradições que marcariam o tipo de emancipação que se firmaria no século XIX. Uma destas contradições, de caráter interno assume duas feições - a primeira que coloca índios subjugados e escravos em oposição aos colonos e donos de escravos, e uma segunda, que é prolongamento direto daquela contradição externa: o antagonismo entre proprietários de terras e de escravos e comerciantes (SODRÉ, 1990, p.162- 163), sendo estes últimos, na maioria portugueses. Os séculos XVII e XVIII serão marcados por lutas que refletem estas contradições, como por exemplo as resistências, fugas e motins de escravos e as revoltas patrocinadas pelos consumidores contra os detentores do monopólio comercial, como temos exemplo na revolta de Beckman e na Guerra dos Mascates (SODRÉ, 1990, p.163). Estas lutas representaram as contradições internas que irão se arrastar na medida em que não são resolvidas, mas simplesmente reprimidas. E conforme observa HOLANDA, A própria revolução pernambucana de l817, pode-se dizer que, embora tingida de "ideias francesas", foi, em grande parte, uma reedição da luta secular do natural da terra contra o adventício, do senhor de engenho contra o mascate. /.../ E o que era verdadeiro em l817 não deixaria de sê-lo depois de nossa emancipação política. (HOLANDA, 1998, p. 86 e 87) Mas o fato é que as contradições que pesavam sobre os despossuídos, incluindo-se aí escravizados e homens livres que não pertenciam à elite rural dominante, mas eram pequenos comerciantes ou 13 artesãos ou militares, não apresentaram proporções que denunciassem a possibilidade de uma revolta capaz de criar um estado soberano, nos moldes dos ideais iluministas burgueses, pois as condições históricas não permitiam isto. No Brasil, não existia uma burguesia revolucionária. O rompimento com a metrópole somente viria a acontecer caso a classe senhorial agrária investisse nesta empreitada porquanto, como argumenta SODRÉ (1990, p.171), “seu poder era ainda tão grande /.../ que nenhum movimento antimetropolitano tinha condições de triunfar sem o seu concurso”. Tal empreitada da elite agrária veio a ocorrer pelo aprofundamento das contradições externas, que foi a própria crise do modelo mercantilista. Mas a prática demonstrara que o fato de o Brasil ser dividido em áreas isoladas umas das outras, dificultava os movimentos de rebeldia que podiam ser batidos facilmente um a um pelas tropas metropolitanas. E somente um fator novo viria a contribuir com o desligamento em relação à metrópole, que seria o debilitamento da mesma no quadro internacional e a aliança da elite colonial com outros setores econômicos estrangeiros e antagônicos à elite metropolitana. Era esta a situação político-econômica e social da colônia às portas da independência. Num primeiro momento podemos pensar que o pensamento e as ideias enciclopedistas eram aqui reinantes, visto que verificamos a influência de tais ideias em movimentos revolucionários, de que é exemplo a Inconfidência Mineira (1789). Realmente tais concepções chegaram ao Brasil colônia seja através de livros contrabandeados, ou através daqueles que tendo estudado na Europa, de alguma forma tiveram contato com os ideais revolucionários franceses, ou mais tarde através das lojas maçônicas (PRADO JÚNIOR, 1996, p. 371). E isto não ocorre ao acaso, visto que o Brasil, em que pese o isolamento patrocinado pela metrópole, não estava deslocado do contexto mundial; pelo contrário, era parte integrante das relações internacionais de produção esobre ele pairava vigilante o olho voraz do expansionismo capitalista. Mas em que pese a fertilidade do terreno para a propagação de ideais emancipadores, a condição da colônia, com sua produção totalmente voltada para a agricultura, não dava condições para que, na transposição 14 mecânica daqueles ideais, criados na ebulição das lutas entre a burguesia industrial e comercial europeia contra a nobreza feudal, viessem a apresentar a solução para os problemas da população vinculada à colônia. Mas isto não quer dizer que tais ideais não tenham servido para expressar a não conformação de setores da colônia com a situação estabelecida, e por isto mesmo, por querer refletir as condições concretas em que foram colocadas, a compreensão de tais ideias apresentavam uma superficialidade tal que a interpretação das mesmas vagava conforme a conveniência. Neste sentido, conforme verifica PRADO JÚNIOR (1996, p. 377): A "liberdade, igualdade e fraternidade", que como norma política a sumaria, ia prestar-se bastante bem às várias situações que aqui se apresentam. Castigada embora, e deformada não raro (que castigo aliás, e que deformação não cabem no vago da fórmula francesa?), ela servirá de lema a todos que pretendiam alguma coisa: senhores de engenho e fazendeiros contra negociantes; brasileiros contra portugueses. . . (PRADO JÚNIOR,1996, p. 377). Com relação à Inconfidência Mineira, por exemplo, pode-se dizer que a simpatia dos inconfidentes estava voltada para os ideais da Revolução Francesa e para a Revolução Americana, mas o debate político desenvolvido na Europa estava ausente do centro das preocupações dos inconfidentes, cujo ânimo foi o descontentamento diante de uma situação econômica abalada pela crise do ouro, decorrendo daí um período de decadência social e econômica, fato que tenderia levá-los a tentar adaptar os postulados teóricos iluministas às suas perspectivas, transpondo tais concepções da realidade econômica cultural e social europeia, para o ambiente social mineiro. (RODRIGUES, 1986, p. 65) SODRÉ (1990, p. 180) resume a problemática apresentada ao afirmar que, a ideologia é efetiva onde se gerou condições concretas e é mera expressão subjetiva onde chega sem aquelas condições. 15 É conclusivo que não interessava à elite brasileira, ligada à produção rural e encarregada de empreitar o rompimento com a elite metropolitana, os ideais revolucionários da burguesia europeia, traduzidos nas palavras liberdade e igualdade. Isto porque tais concepções eram estranhas à classe senhorial que queria somente a desvinculação econômica e política em relação à metrópole, mas não uma mudança na estrutura política ou nas relações sociais. Neste sentido, se verifica que não havia também condições de rupturas isoladas que levassem a um surgimento de movimentos por independência com a formação de vários Estados que teriam em comum a origem colonial portuguesa. Ou seja, a independência se daria em um só bloco, com a criação de um único Estado. A base ideológica em que se assentou a empreitada da elite agrária escravista para montar um Estado independente ou formar um Império luso-brasileiro abriu as portas ao liberalismo econômico, mas manteve a estrutura político-social em vigor e não alteraou o modo de produção escravista que lhe dava sustentação. Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro em 1808, escapando das tropas napoleônicas, a rudimentar estrutura sócia administrativa brasileira é induzida a adequar-se para ser o centro de decisões do Reino português. Começa a ser transportada para o Brasil toda a estrutura administrativa do Estado português. O País passa por um surto desenvolvimentista há muito desejado, sobretudo com a abertura alfandegária da qual se beneficiou particularmente a Inglaterra, e também com a criação de instituições financeiras. O Brasil tornara-se a metrópole, uma vez que os centros do poder e da economia nele estavam. E o retorno do Rei a Portugal, com os influxos de "liberais" portugueses para que o Brasil voltasse à condição de colônia, não impediu o amadurecimento do processo de independência. O que se desenvolve é o movimento da independência brasileira, sendo que um dos seus aspectos mais marcantes foi o distanciamento progressivo entre as Cortes de Lisboa, centralizadoras e tendentes à união dos dois Reinos, e o governo regencial de D. Pedro, que diante da situação, e para conter um processo de separação em que não tomasse parte, seguindo o conselho do 16 Rei, toma para si a tarefa de proclamar a independência, estabelecendo desta forma uma aliança entre ele, D. Pedro, a elite agrária e o capitalismo comercial inglês (FAORO, 1997, p. 267-268). Rompia-se definitivamente a aliança outrora estabelecida, entre a elite metropolitana e a elite colonial brasileira, que iria subjugar-se a outra, agora internacional e não através de pactos de dominação, mas sim através da subordinação econômica, como se verificaria no decorrer da história. A contradição externa, apontada anteriormente, fora então a principal mola propulsora do movimento de independência. Formou-se um Estado unitário, com uma vasta extensão territorial, herdeiro de parte do Império colonial português e alicerçado política e juridicamente na Constituição de 1824: o Império do Brasil. I.1.6.2- A pré-existência de movimentos por autonomia. A opção dos articuladores da independência foi pela formação de um Estado unitário estabelecido por meio de uma monarquia constitucional, com as províncias subordinadas ao poder central, com a nomeação de seus principais funcionários (presidente, chefe de polícia) nomeados pelo Imperador, assim como eram nomeados pelo poder central, o juiz municipal e o promotor público. Desta forma se manteria a integridade territorial e a construção de uma identidade nacional. Entretanto, já nas primeiras décadas de um período de sessenta e sete anos, iniciaram-se os influxos que se opunham ao mecanismo centralizados e sufocador das autonomias regionais. Conforme observa José Afonso da Silva A ideia descentralizadora, como a republicana, despontara desde cedo na história político-constitucional do Império. Os federalistas surgem no âmago da Constituinte de 1823, e permanecem durante todo o Império, provocando rebeliões como as "Balaiadas", as "Cabanadas", as "Sabinadas", a "República de Piratini". Tenta-se implantar, por várias vezes, a monarquia federalista do Brasil, mediante processo constitucional (1823,1831), e chega-se a razoável descentralização com o Ato adicional de 1834, esvaziado pela lei de interpretação de l840. (SILVA 2006, p. 76-79) 17 Mas é possível dizer que estas rebeliões anotadas por SILVA, e outras que poderíamos também destacar ocorridas ainda no período colonial, como a "conjuração baiana" e a "inconfidência mineira", na grande maioria das vezes estiveram mais alicerçadas em uma oposição ao pagamento de tributos ao poder central do que propriamente ao pensamento por independência política. No entanto revelam que, independente da força ou abrangência, estes movimentos demonstram claramente a existência de movimentos por autonomia financeira e administrativa que fatalmente levariam à opção pela mudança de um Estado unitário para um Estado federal. I.1.6.3 - Transposição do modelo federativo dos E.U.A para o Brasil. Se nos E.U.A a questão relativa à abolição da escravidão levou a uma definição final sobre as características e natureza jurídica do Estado federal, no Brasil a abolição da escravidão levou à queda do Estado monárquico e à formação do Estado republicano. Com a abolição do sistema escravista os latifundiários escravocratas, fiadores do modelo monárquico centralizador, abandonaram a família real, e consequentementetoda a estrutura estatal do Estado, à própria sorte. A Abolição da escravidão, em 1888, significa não apenas o fim do regime de trabalho escravista como também a destruição do direito escravista, que era o fundamento de toda a organização do Estado. Desde a abolição, o direito já igualiza formalmente todos os homens (sejam eles proprietários, operários, camponeses, etc.), ao declará-los, todos, sujeitos individuais de direitos. Desse modo, a relação de exploração do trabalho adquire doravante um caráter contratual. A Proclamação da República, em 1889, e a Assembleia Constituinte, em 1891, completam o trabalho iniciado pela abolição, na medida em que são uma adaptação às novas relações de produção, as quais exigem um novo modelo de Estado. A Revolução política de 1888-1891 leva, portanto, à formação, no plano nacional, de uma estrutura jurídico-política liberal e republicana, possibilitando também a descentralização política e administrativa. O Brasil deixa de ser um Estado unitário para se tornar um Estado federal. No entanto, esta transformação e sua caracterização não se fez 18 espontaneamente. Sob a influência de Rui Barbosa – revisor do texto da Constituição de 1891 - optou-se pela transposição do modelo federal dos E.U.A que servira de paradigma para a formação dos E.U.B, os Estados Unidos do Brasil2. Entretanto o federalismo brasileiro, deu-se às avessas ao ocorrido na no norte do continente americano. Lá, Estados que já haviam declarado sua independência e, portanto, estavam cientes de sua soberania, se uniram para formar uma Confederação que se transformou em uma Federação. O federalismo aconteceu a partir de uma agregação de Estados. Por sua vez, no Brasil, o federalismo se deu por segregação, a partir de um único Estado unitário e soberano, o Império do Brasil, que passou a conferir autonomia à suas antigas províncias3, formando os Estados Unidos do Brasil. Esta diferença, é um dos motivos que explica o fato de que as unidades federadas dos E.U.A têm mais autonomia quando se trata de determinar suas competências federativas do que a República Federativa do Brasil (RFB). Lá, foram as unidades federadas - antes Estados independentes que abriram mão de sua soberania – que passaram para a União federal as competências que consideraram mínimas e necessárias para a existência da Federação. Aqui, foi o poder central, que passou para as antigas províncias – transformadas em unidades federadas – as competências consideradas suficientes para a caracterização de uma Federação. Pode-se ainda explicar o fato de que, no Brasil, as unidades federadas têm baixa autonomia e gozam de menos competências do que suas congêneres estadunidenses, também pela trajetória antidemocrática da República brasileira, que passou por longos períodos de autoritarismo, 2 O próprio Rui Barbosa deixa isto claro na seguinte exposição sobre a inspiração americana para seu trabalho na Constituição de 1891: "Todo o nosso regime, este regime que transplantamos dos Estados Unidos, tem como primordial o princípio da santidade suprema da Constituição, considerada como a lei a que todas as outras leis obedecem. (BARBOSA, 1920, p. 73). 3 E desta situação invertida na criação da federação Rui Barbosa encontra-se ciente, conforme se vê nesta exposição em que ainda fala de uma federação nos marcos do Império: "É mister [...] realizar a federação à americana, tendo por modelo os Estados Unidos, salvo quanto à hereditariedade do chefe de Estado e aos atributos da sua posição compatíveis com o nosso regímen. Não temos simplesmente que reintegrar as províncias no que o Império absorveu, e conceder-lhes o que o Império lhes possa distribuir. As exigências da Federação, pelo contrário, é que hão de fixar o que ao Império caberá.". (BARBOSA, 1889, p. 224) 19 mormente de 1930 a 1945 e de 1964 a 1985, que acabaram por sufocar, mais ainda, a já debilitada autonomia das unidades federadas brasileiras. I.2 - O Município frente aos demais entes da federação brasileira. 1.2.1 – A estrutura federativa do Estado brasileiro na Constituição de 1988. Nos seus princípios fundamentais a Constituição Federal de 1988, no seu art. 1º, enuncia que A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (...). E ao tratar da Organização do Estado e da Organização Político Administrativa, a Constituição Federal, no seu art. 18 estabelece que A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. A partir destes enunciados e do entendimento sobre a teoria da federação, podemos estabelecer qual é a personalidade jurídica e posição dos entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, na Federação brasileira, bem como podemos indicar como se comportam relativamente às questões como soberania, competências federativas e autonomia, entendida esta como a capacidade de autogoverno, auto-organização e autoadministração. 20 1.2.1.1- O Estado-membro. O Estado, como unidade federada recebe este nome de forma imperfeita. Teoricamente, "Estado" deve ser entendido como o ente de direito público externo que possui como um de seus elementos a soberania. Entretanto, é compreensível e aceitável que, nos E.U.A as unidades federadas recebam a designação de "Estados", uma vez que se declararam independentes e soberanos antes de se unirem e celebrarem o pacto para formarem os Estados Unidos da América. Mas, no Brasil, isto não aconteceu. As províncias do império nunca foram Estados soberanos. A adoção do nome "Estado" somente encontra explicação na transposição do modelo federativo dos E.U.A para formar os E.U.B. Outras Federações, utilizam nomenclaturas mais condizentes como sua história. Assim, na Rússia são denominadas de "repúblicas", na Argentina são denominadas de "províncias" e na Suíça são denominadas de "cantões". Para amenizar esta imperfeição é comum que se utilize o termo "estado-membro" (membro da federação) para designar as unidades da República Federativa do Brasil. O estado-membro é uma pessoa jurídica de direito público interno. Portanto, sujeito de direitos e obrigações no âmbito do direito brasileiro. Quanto à sua posição na federação, mediante a utilização da teoria da federação, o estado-membro é entendido como integrante do pacto federal. Portanto, participa do pacto federal. Aparece no art. 1º da Constituição Federal como uma das entidades formadoras da República Federativa do Brasil, e integra a organização do Estado Federal Brasileiro, conforme estabelece o art. 18 da Constituição Federal. É a entidade mais genuína que integra uma Federação e, por este motivo, é dotado de autonomia e de competências, no que é acompanhado, nesta dotação, pelos demais entes que integram a organização político-administrativa do Estado Federal brasileiro. 1.2.1.2- A União. A União é uma pessoa jurídica de direito público interno. Portanto, sujeito de direitos e obrigações no âmbito do direito brasileiro. E quanto a isto se destaca que não pode ser confundida com o Estado brasileiro, 21 a República Federativa do Brasil (RFB), esta sim uma pessoa jurídica de direito público externo que responde juridicamente no plano do direito internacional. Em que pese competir à União "manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais", ela o faz por meio de atribuição de competência dada pela República Federativa do Brasil no inciso I do art. 21 da sua Constituição. Explicitando este aspecto, dizemos que um Estado estrangeiro,ao celebrar um acordo comercial com o Brasil, o faz com a República Federativa do Brasil e não com a União. Quanto à sua posição na federação, a União é entendida como uma criação constitucional necessária à congregação da vontade das unidades federadas (estados-membros) sendo esta criação uma das características do pacto federativo. Portanto, não participa do pacto federal. Com relação a isto, deve ser percebido que a União não aparece no art. 1º da Constituição Federal como uma das entidades formadoras da República Federativa do Brasil. Sua criação acontece somente quando se passa a organizar o Estado Federal Brasileiro, no art. 18 da Constituição Federal. Entretanto, como todos os entes que integram a organização político- administrativa do Estado federal brasileiro a União é dotada de autonomia e de competências federativas. 1.2.1.3- O Distrito Federal. Originariamente foi instalado no sudeste brasileiro, como um enclave no Estado do Rio de janeiro, cuja capital era Niterói, fazendo fronteira também com o Oceano Atlântico. Posteriormente foi transposto para o centro- oeste, tornando-se um enclave no Estado de Goiás4. 4 Com a transferência, seu antigo território tornou-se em 1960 o Estado do Guanabara, cuja capital era seu único Município, o Rio de Janeiro. A partir de 1975, em total afronta ao pacto federativo, por meio da lei complementar nº 20/74, os Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara foram fundidos, estabelecendo-se a capital no Município do Rio de Janeiro em detrimento do Município de Niterói. 22 Assim como os demais entes da Federação brasileira, o Distrito Federal é uma pessoa jurídica de direito público interno. E, portanto, sujeito de direitos e obrigações no âmbito do direito brasileiro. Mas existe controvérsias quanto à sua posição na federação. Teoricamente deve ser entendido como uma criação constitucional necessária ao estabelecimento de um território para implantação da capital do Estado Federal e fixação da sede do governo da União. Portanto, teoricamente, não participa do pacto federal, mas é resultado dele, assim como a União. Para ser tido como uma unidade federada, também deveria gozar de mesma autonomia conferida aos estados-membros. Mas isto não acontece, pois, apesar de ter as mesmas competências que estados-membros e municípios, sua autonomia é limitada em face da impossibilidade de se subdividir em municípios (art. 32, caput da CF) e de que a utilização de polícias civil e militar e do corpo de bombeiros militar é regulada por legislação da União federal (art. 32, § 4º da CF). Apesar deste entendimento teórico, a Constituição, no seu art. 1º, coloca o Distrito federal entre as entidades que formam a República Federativa do Brasil, ao mesmo tempo em que dotou o distrito federal de representação junto ao Senado Federal (art. 46 da CF), que é órgão de participação das unidades federadas na formação da vontade da União. Esta situação prática coloca o Distrito Federal na condição de participante do pacto federal, entretanto como entidade particular e singular na Federação brasileira. 1.2.1.4- O Município. Assim como os demais entes da República Federativa do Brasil, o Município é uma pessoa jurídica de direito público interno, sujeito de direitos e obrigações no âmbito do direito brasileiro. É dotado de autonomia e de competências federativas que foram ampliadas significativamente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. 23 Quanto à sua posição na federação, ou seja, quanto a ser considerado uma unidade da Federação, participante do pacto federal, existem fortes divergências na literatura jurídica brasileira. Com efeito, a Constituição, assim como fez com o Distrito Federal, além de estabelecer o Município na organização do Estado Federal Brasileiro (art. 18 da CF), no seu art. 1º, coloca o Município entre as entidades que formam a República Federativa do Brasil. Mas, para autores como José Afonso da Silva isto é um equívoco que deve ser interpretado à luz da teoria da federação. Segundo o autor A Constituição consagrou a tese daqueles que sustentavam que o Município brasileiro é "entidade de terceiro grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo". Data vênia, essa é uma tese equivocada, que parte de premissas que não podem levar à conclusão pretendida. Não é porque uma entidade territorial tenha autonomia político-constitucional que necessariamente integre o conceito de entidade federativa. Nem o Município é essencial ao conceito de federação brasileira. Não existe federação de Municípios. Existe federação de Estados. Estes é que são essenciais ao conceito de qualquer federação. Não se vá, depois, querer criar uma câmara de representantes dos Municípios. Em que muda a federação brasileira com o incluir os Municípios como um de seus componentes? Não muda nada. Passaram os Municípios a ser entidades federativas? Certamente que não, pois não temos uma federação de Municípios. Não é uma união de Municípios que forma a federação. Se houvesse uma federação de Municípios, estes assumiriam a natureza de Estados-membros, mas poderiam ser Estados-membros (de segunda classe?) dentro dos Estados federados? Onde estria a autonomia federativa de uns ou de outros, pois esta pressupõe território próprio, não compartilhado? Dizer que a República Federativa do Brasil é formada de união indissolúvel dos Municípios é algo sem sentido, porque, se assim fora, ter-se-ia que admitir que a Constituição está provendo contra uma hipotética secessão municipal. Acontece que a sanção correspondente a tal hipótese é a intervenção federal que não existe em relação aos Municípios. A intervenção neles é da competência dos Estados, o que mostra serem ainda vinculados a estes. Prova que continuam a ser divisões político-administrativas dos Estados, não da União. Se fossem divisões políticas do território da União, como ficariam os Estados, cujo território é integralmente repartido entre seus Municípios? Ficaram sem território próprio? Então, que entidades seriam os Estados? Não resta dúvida que ficamos com uma federação muito complexa, com entidades superpostas. (SILVA, 2006, p. 474-475). José Afonso da Silva ainda afirma que a Constituição não diz realmente se transformou os municípios em unidades federadas. Para justificar esta afirmação, alega que, "ao contrário, existem onze ocorrências das expressões unidade federada e unidade da federação (no singular ou no plural) 24 referindo-se apenas aos Estados e Distrito Federal, nunca envolvendo os Municípios. (conf. arts, 34, II, IV e V, 45, § 1º, 60, III, 85, II 132, 159, § 2º, 225, § 1º, III; ADCT, arts. 13, § 4º, e 32, § 9º)". (SILVA, 2006, p. 640). São contundentes as alegações do autor, alicerçadas em uma compreensão da definição clássica de Federação, bem como por meio de uma interpretação sistemática da Constituição. Mas, de outro lado, podemos encontrar autores, como por exemplo, Celso Ribeiro Bastos que discordam deste posicionamento clássico que excluí os municípios de uma posição mais destacada na federação brasileira. Ao observar o fato de que o art. 18 da Constituição, ao dar a estrutura da federação brasileira, nela incluiu os municípios comenta que Embora isso desatenda àqueles estudiosos que preferiram a adoção de um modelo mais clássico de federação, onde se desconhece a ordem municipal no próprio nível da Constituição, não se pode negar que nesse particular andou bem o constituinte ao incluir o município como parte integrante da federação. O argumento principal é que, sendo a autonomia municipal um dos centros de polarização de competência constitucional a ser exercida de forma autônoma, não sevê por que não hão de os municípios, figurar naquele próprio artigo que fornece o perfil jurídico-político da República Federativa do Brasil. O fato de os municípios não se fazerem representar na União e, portanto, não comporem de certa forma o suposto pacto federativo, nos parece ser um argumento de ordem excessivamente formal. (BASTOS, 1998, p. 294) Parece-nos que os argumentos favoráveis a que os municípios estejam colocados na posição de entes da estrutura república e na sua organização político-administrativa no art. 18 da Constituição têm grande relevância. O fato de tanto a União quanto o Estado-membro quanto o Município e também o DF serem dotados de autonomia (mesmo que deste último seja limitada) e exercerem competências federativas os coloca na posição de entes federativos. E, por isto, não existiria sentido que o Município não fizesse parte da redação dada ao art. 18 da Constituição. Entretanto, isto não significa dizer o mesmo quanto ao que dispõe o art. 1º da Constituição, o qual não inclui ali a União, pelo motivo de esta não participar do pacto federal, pois é somente resultado ou criação dele. Ou seja, a União não é um ente federado que participa da formação do Estado federal. É bom que se faça esta distinção relativa a ente federativo, o qual possui autonomia e competências federativas e ente federado que, além disso, participa da formação do Estado Federal durante a formação do pacto federal. Disto decorre que, se o Município 25 se encontra no art. 1º da Constituição que define a República Federativa do Brasil como sendo formada pela união indissolúvel de estados, municípios e também o DF, pela simples leitura se deduziria que o Município também participa do pacto federal e seria não somente um ente federativo, mas também um ente federado. Entretanto não há unanimidade na doutrina quanto a isto e nem mesmo existe um efetivo enfrentamento sobre a questão, que seria de extrema importância no caso, por exemplo, em que uma eventual proposta de emenda à Constituição tivesse a pretensão de extinguir municípios existentes por falta de capacidade para exercer suas competências federativas. Considerações finais A partir de um estudo que realiza a interpretação normativa e aliada à observação sobre qual o papel que o Município desempenha na Federação brasileira, foi possível verificar que as Federações, como as conhecemos atualmente, derivam de uma trajetória histórica que estabeleceu suas características. Também foi possível identificar que no Brasil a Federação apresenta complexidades que não são encontradas em outras federações, principalmente quanto ao estabelecimento dos limites da autonomia municipal. Assim, inclusive por não exitir unanimidade doutrinária quanto à posição do Município na federação brasileira, existe um campo teórico a ser aberto levando ao aprofundamento do estudo e reflexão sobre o Estado brasileiro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.11. ed. São Paulo: Globo, 1997. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 26 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Natureza Jurídica do Estado Federal. São Paulo: Obra publicada pelo Município de São Paulo, 1948. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 26. reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996. RODRIGUES, José Carlos. Idéias Filosóficas e Políticas em Minas Gerais no Século XIX. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006). SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Volume 16, tomo 2, 1889. (página http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc ?CodFrase=1282 – acesso em 15/11/2015) BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Volume 47, tomo 3, 1920. (página http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc ?CodFrase=1230 – acesso em 15/11/2015) Proposta de Estudo 1) É possível dizer que há alguma diferença, possível de ser notada, entre os Estados federais que se formam por agregação do que se forma por segregação? Justifique a resposta. 2) Quais são as caracacterísticas que distinguem os Estados federais dos Estados unitários e que distinguem os Estados federais das Confederações? 3) O Município deve ser considerado como participante e formador do pacto federal? 27 PARTE II - O DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS. Introdução Na parte I foi possível identificar que no Brasil a Federação apresenta complexidades que não são encontradas em outras federações, principalmente quanto ao estabelecimento dos limites da autonomia municipal. E como se verá nesta segunda parte, a complexidade se extente ao nível das competências. Como solução para desenvolvimento dos objetivos do Estado brasileiro, optou-se por um modelo de federalismo cooperativo que, no caso brasileiro, é tripartite por envolver a União, Estados/DF e Municípios na gestão e controle dos atos administrativos e recursos públicos. A complexidade derivada de um modelo federativo que congrega competências que são comuns, concorrentes, exclusivas e privativas entre três níveis federativos, onde a Constituição não delimita claramente a competência de cada ente federativo, particularmente do Município, vem acompanhada da necessidade de que se faça tal definição por meio de uma interpretação sistemática da Constituição. Uma das características fundamentais do pacto federal é exercício do poder através de distribuições de competências disciplinadas constitucionalmente. Fica então evidenciado que é na Constituição que se define a qual ente federativo pertence uma determinada competência. Esta compreensão é de extrema importância para que seja possível entender qual é o alcance do poder de cada ente federativo, seja ele a União, o Estado- membro ou o Município. Tem sido comum as pessoas entenderem, quando existe conflito entre leis editadas pela União e por um Estado-membro, que a lei da 28 União deve prevalecer. Da mesma forma, quando o conflito é entre uma lei de um Estado-membro e um Município, que a do Estado-membro deva prevalecer. Ou ainda que, no conflito entre leis editadas pela União e por um Município, que a lei da União deve prevalecer. Uma compreensão deste tipo, que coloca a norma da União em posição hierarquicamente superior mostra-se totalmente equivocada. Não existe hierarquia entre os entes federativos, mas sim esferas de poder em que um ente não pode interferir na esfera de competência de outro. Uma confusão deste tipo pode ocorrer pelo motivo de que no Brasil – se comparado a outras Federações - a União sempre foi mais poderosa do que os demais entes federativos, quando se trata da divisão territorial do poder político estabelecida por meio da distribuição de competências federativas, sejam elas materiais ou legislativas, como também – acrescentamos agora - as relativas à capacidade de instituir e arrecadar tributos. Entretanto, deve ficar claro que se a Constituição atribui a um ente federativo, como por exemplo, o Município, a competência para legislar sobre determinada matéria, caso a União venha também legislar sobre o mesmo assunto de forma contraditória, deve prevalecer a lei do Município. Neste caso a lei da União deve ser considerada inconstitucional no seu aspectoformal, por ter invadido competência municipal. Deve ainda ficar esclarecido que, nas federações, é possível que a União não seja a entidade mais poderosa politicamente. Isto acontece em federações como, por exemplo, a do Canadá. Na federação estão estabelecidas forças centrípetas e centrifugas, em que a União representa a força que arrasta o poder para um centro de decisões, enquanto que o Estado- membro, e mais especialmente o Município, agem em oposição inversa, buscando levar para extremidade o poder de decisão. 29 A decisão relativa à divisão territorial do poder político, que define qual ente federativo terá mais competências, é estabelecida na Constituição Federal, e é resultado direto da história política de um povo e de seu Estado. E as federações além de não se apresentarem iguais quanto a distribuição de competências relativamente ao seu quantitativo e conteúdo, também não utilizam, necessariamente, a mesma forma para distribuir as competências. União Estados-membros Municípios Municípios Estados União Força centrípeta Força centrífuga Não deve ser esta a forma de representar o poder normativo dos entes federativos Deve ser esta a forma de representar o poder normativo dos entes federativos 30 Ou seja, as federações existentes não apresentam sempre a mesma técnica de repartição de competências, podendo ser observado que existem sistemas que são mais complexos do que outros. A seguir é feita uma explanação relativa às técnicas de repartição de competência, a fim de que seja possível identificar e entender qual é a utilizada no Brasil e como o Município se encaixa no sistema brasileiro de repartição de competências federativas. II. 1 - Técnicas de repartição de competências federativas. As técnicas utilizadas globalmente, sozinhas ou combinadas são: a) residual para a União; b) residual para as unidades federadas; c) enumeração exaustiva; d) combinação de competências exclusivas e comuns. � Residual para a União. A Constituição elenca as competências das unidades federadas e estabelece que aquilo que não está elencado, ou seja, não está previsto expressamente para as unidades federadas, pertence à União. � Residual para as unidades federadas. A Constituição elenca as competências da União e estabelece que aquilo que não está elencado, ou seja, não está previsto expressamente para a União, pertence às unidades federadas. A opção pela técnica de repartição de competências em que se estabelece o residual para a União ou para as unidades federadas não significa necessariamente que em um ou outro caso esteja também se fazendo a opção 31 por conceder mais competências à União ou às unidades federadas. Por exemplo: com a utilização da técnica que elenca competências para as unidades federadas, deixando o residual para a União, poderão ser elencadas poucas ou muitas competências às unidades federadas. Assim, inversamente, na primeira situação as competências da União serão muitas e na segunda, serão poucas. � Enumeração exaustiva. Por meio desta técnica se estabelecem de forma exaustiva todas as competências possíveis de serem exercidas no exercício das atividades estatais, disciplinando de forma objetiva as competências da União e das unidades federadas. Esta técnica de repartição de competências, utilizada de forma exclusiva a qualquer outra se apresenta problemática caso não sejam previstas e elencadas todas as competências possíveis de serem exercidas pelo Estado Federal. Portanto, é indicado que se possa utilizar esta técnica combinada com o estabelecimento de competência residual para a União ou para as unidades federadas, para o caso de não se ter observado a existência de uma determina competência. � Combinação de competências exclusivas e comuns. De forma independente da opção por estabelecimento de competências de forma objetiva ou residual, a Constituição estabelece competências que devem ser exercidas conjuntamente entre a União e as unidades federadas. 32 O estabelecimento de competências que são comuns, além de competências que são exclusivas, encontra-se em consonância com a formação e trajetória de um federalismo que não é dual, onde cada ente federativo (União e unidade federada) exercia de forma isolada suas competências, mas sim cooperativo onde os entes exercem conjuntamente suas competências. O federalismo cooperativo surgiu, e ganhou cada vez mais força, em virtude da necessidade imposta pela crise do Estado liberal a partir do século XIX. A intervenção estatal em vários segmentos, principalmente na área social, levou à necessidade de cooperação entre os entes federados de forma a que o Estado cumprisse de forma mais eficiente suas atividades. II.2 - Técnica brasileira de repartição de competências. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece um complexo sistema de repartição de competências federativas. Inicia por elencar de forma exaustiva as competências dos entes federativos, estabelecendo um rol de competências que são exclusivas a cada um ou lhes são comuns (art. 21, 22, 23, 24, 25 e 30 da CF). Ao mesmo tempo defere aos estados-membros a competência residual, reservando a estes as competências que não lhes sejam vedadas na Constituição (art. 25 § 1º da CF). José Afonso da Silva, conceituou competência como "(...) a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões(...)" enquanto que competências " são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções" (SILVA, 2006, p. 479). E sob vários critérios classifica as competências em dois grandes grupos definidos como competência material e competência legislativa, devendo ser entendida esta última como a competência para fazer leis sobre determinada matéria, enquanto que a competência material diz respeito a questões políticas e 33 administrativas, ou seja, ao agir administrativo do Estado, como por exemplo, "emitir moeda" (art. 21, VII). Entretanto, a competência material também pressupõe a existência de uma competência legislativa sobre a matéria. A princípio, o ente competente materialmente também será o ente competente para legislar sobre a matéria. Somente não o será se houver disposição constitucional atribuindo a competência legislativa a outro ente federativo. Assim, o ente federativo competente materialmente poderá ser o ente competente legislativamente para disciplinar uma determinada matéria. Ou ainda, pode ocorrer que um ente federativo seja competente materialmente, mas que a competência para legislar sobre a matéria seja de outro ente federativo. Ou seja, toda competência material atribuída um ente federativo sobre uma determinada matéria, pressupõe que haja também uma competência (deste ou de outro ente) para legislar sobre este assunto. Também significa dizer que a competência legislativa sobre determinada matéria pode, ou não, pertencer ao ente federativo competente materialmente. SILVA atribui a estes dois grandes grupos subclasses, na seguinte forma: "(1) competência material, que pode ser: (a) exclusiva (art. 21); e (b) comum, cumulativa ou paralela (art. 23); (2) competência legislativa, que pode ser: (a) exclusiva (art. 25, §§ 1º e 2º)5; (b) privativa (art. 22); (c) concorrente (art. 24); (d) suplementar (art. 24, § 2º)" (SILVA, 2006, p.480). Assim, entendemos que as competências dos entes federativos da República Federativa do Brasil devem ser, inicialmente, classificadas da seguinte forma: 5Entretanto, vemos um equívoco o Autor ao considerar a competência prevista no parágrafo 2º do art. 25 como sendo legislativa exclusiva. Não concordamos e destacamos que deva ser classificada como material exclusiva. Isto pelo motivo de que aquela competência, antes de qualquer competência legislativa, envolve questão administrativa relativa à exploração do serviço de gás canalizado, observada a legislação da União, conforme iremos nos referir mais adiante. 34 � Competência material: � Competência legislativa: A partir desta preliminar classificação que demonstra existir certa complexidade no sistema brasileiro de distribuição de competências federativas, no próximo subitem, passaremos a expor de forma mais explicita como se identificam as competências de cada um dos entes federativos. Ao mesmo tempo, explicaremos ainda como se dá o funcionamento desta distribuição de competências que se torna ainda mais complexa no Brasil por dois aspectos: a) a República Federativa do Brasil, diferentemente dos demais Estados Federais tem definidas três esferas de competências (e não duas), incluindo nelas o Município; b) a Constituição apresenta lacunas quanto ao alcance da atribuição de competências, principalmente quanto às competências do Município. Esta situação exige uma intepretação jurídica que, em observância ao comando político-jurídico da Constituição brasileira, incluído nele o princípio federativo, utilize um método que trate igualmente os entes federativos. Neste sentido, a intepretação que fazemos utiliza o método sistemático que não realiza a interpretação da Constituição em "tiras", mas sim a entendendo como um único documento jurídico, aliado ao método analógico Competência Exclusiva Comum Competência Privativa Concorrente Suplementar 35 que retira do próprio texto constitucional as soluções para que sejam supridas as lacunas. II.3 - As competências dos entes da República Federativa do Brasil. II.3.1 – Competências da União. Na partilha de competências realizada na República Federativa do Brasil, percebe-se claramente que a União ficou com a maior parte de competências materiais e legislativas. A Constituição Federal inicia por dispor que a União tem competência material exclusiva conforme ampla enumeração de assuntos no art. 21, e de competência legislativa privativa consoante discriminação constante do art. 22, de competência comum com os Estados, Distrito Federal e Municípios arrolados no art. 23 e, por último, de competência legislativa concorrente com os Estados sobre temas especificados no art. 24. (SILVA, 2006, p. 496). Com relação a como se classificam as competências definidas nos artigos 216 e 227, pode parecer que se utilizou uma repetição com 6 Art. 21. Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizaçõeinternacionais;II - declarar a guerra e celebrar a paz;III - assegurar a defesa nacional;IV - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente;V - decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal;VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;VII - emitir moeda;VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de 36 nomenclatura diversa ao se dizer que a competência pode ser "exclusiva" ou "privativa". Realmente, na linguagem coloquial, ambas as palavras têm o mesmo significado. Mas na técnica aqui utilizada há que se fazer uma passageiros;f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;XIII - organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e a Defensoria Pública dos Territórios; XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio; XV - organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;XVII - conceder anistia;XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações;XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso; XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;XXI - estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação;XXII - executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa; XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa. 7 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;II - desapropriação;III - requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra;IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;V - serviço postal;VI - sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais;VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;VIII - comércio exterior e interestadual;IX - diretrizes da política nacional de transportes;X - regime dos portos, navegação lacustre, fluvial,marítima, aérea e aeroespacial;XI - trânsito e transporte;XII - jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia;XIII - nacionalidade, cidadania e naturalização;XIV - populações indígenas;XV - emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros;XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;XVII - organização judiciária, do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e da Defensoria Pública dos Territórios, bem como organização administrativa destes; XVIII - sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia nacionais;XIX - sistemas de poupança, captação e garantia da poupança popular;XX - sistemas de consórcios e sorteios;XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;XXII - competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais;XXIII - seguridade social;XXIV - diretrizes e bases da educação nacional;XXV - registros públicos;XXVI - atividades nucleares de qualquer natureza;XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; XXVIII - defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa civil e mobilização nacional;XXIX - propaganda comercial.Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo. 37 importante distinção. A palavra exclusiva é utilizada no sentido de que exclui qualquer outro da competência atribuída, e a palavra privativa é utilizada no sentido de que é algo que lhe é próprio, mas não totalmente excludente de atribuição a outrem. Assim, conforme explica o autor que instituiu a classificação: "A diferença que se faz entre competência exclusiva e competência privativa é que aquela é indelegável e esta é delegável. Então, quando se quer atribuir competência própria a uma entidade ou a um órgão com possibilidade de delegação de tudo ou em parte, declara-se que compete privativamente a ele a matéria indicada. Assim, no art. 22 se deu competência privativa (não exclusiva) à União para legislar sobre: [...], porque o parágrafo único faculta à lei complementar autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo. No art. 49, é indicada a competência exclusiva do Congresso Nacional. O art. 84 arrola a matéria de competência privativa do presidente da República, porque o seu parágrafo único permite delegar algumas atribuições ali arroladas. Mas a Constituição não é rigorosamente técnica neste assunto. Veja-se, por exemplo, que nos arts. 51 e 52 traz matérias de competência exclusiva, respectivamente, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, mas diz que se trata de competência privativa. Não é deste último tipo, porque são atribuições indelegáveis." (SILVA, 2006, p. 480) Portanto, a competência material exclusiva do art. 21 não é delegável, enquanto que a competência legislativa privativa, prevista no art. 22, pode ser delegável pela União aos Estados membros, por meio de lei complementar, conforme definido no parágrafo único deste artigo. Quanto às competências estabelecidas no art. 238, percebe-se que estão em consonância com a concepção de federalismo cooperativo, ao 8 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação; VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;XII - estabelecer e implantar política de educação para a 38 estabelecer competências que são comuns à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. O art. 249, por sua vez, estabelece uma competência legislativa que é concorrente entre a União e os Estados-membros e entre a União e o Distrito Federal. Nesta competência legislativa, que é concorrente, não se trata de que a União estabeleça normas de cooperação, como na competência material comum, mas sim, como estabelece o § 1º, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais, enquanto que os Estados- membros ou o Distrito Federal deverá fazer normas específicas para atender o seu interesse regional, desde que observada a norma geral legislada pela União. Assim, conforme é previsto no inciso IX do art. 24, a União deve fazer normas gerais sobre educação, de que temos, por exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional10, enquanto que os Estados-membros devem fazer normas específicas que completam a estrutura do ensino no âmbito estadual. Entretanto, a definição do que, no âmbito das matérias enumeradas no art. 24, é reservado à norma geral e o que é reservado à segurança do trânsito.Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. 9 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;II - orçamento;III - juntas comerciais;IV - custas dos serviços forenses;V - produção e consumo;VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação; X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;XI - procedimentos em matéria processual;XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;XIII - assistência jurídica e Defensoria pública;XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;XV - proteção à infância e à juventude;XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.§ 2º A competência
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