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1 Caroline Chandler Pedrozo Medicina de Emergência PORFIRIA A via de síntese da heme tem oito etapas facilitadas enzimaticamente, cada um está associado a um produto intermediário, um porfirinogênio (ou precursor da porfirina), e a deficiência de cada um deles está associada a uma sín- drome clínica: as porfirias. Quando o defeito é fisiologicamente significativo, resulta em superprodução de precursores da via que precedem o passo defeituoso. Esse precursor entra então na circulação e é excretado na urina ou na bile. As doenças foram agrupadas como porfirias hepáticas agudas e porfirias fotocutâneas. As porfirias agudas são devidas à superprodução patológica dos precursores da porfirina, do ácido delta-aminolevulínico e do porfobilinogênio, e os sinto- mas são causados por lesões principalmente no sistema nervoso. A porfiria cutânea ocorre devida a superprodução de porfirinas fotossensibilizantes pelo fígado ou pela medula óssea. Porfiria intermitente aguda é o tipo mais frequentemente encontrado na prática clínica. As porfirias cutâneas mais prevalentes são porfiria cutânea tardia e protoporfiria. PORFIRIA INTERMITENTE AGUDA Existem vários tipos diferentes de porfirias, mas esta é uma das que tem as consequências mais graves e a que geralmente se apresenta na idade adulta. A doença clínica geralmente se desenvolve em mulheres, os sintomas come- çam na adolescência ou na faixa dos 20 anos, mas o início pode ocorrer após a menopausa em casos raros. É uma condição autossômica dominante, causada pela deficiência parcial da atividade da terceira enzima da síntese da heme a hidroximetilbilano sintetase (ou porfobilinogênio desaminase), levando ao aumento da excreção de ácido aminolevulínico e porfobilinogênio na urina. ACHADOS CLÍNICOS Sinais e Sintomas Geralmente é uma paciente jovem, saudável, que se queixa de fadiga severa há vários dias e dificuldade de concentração, seguida de dor abdominal com piora progressiva, náuseas, vômitos e sinais neurológicos sutis como fra- queza e disestesia. A dor abdominal é intermitente e de grau variável devido a anormalidades na inervação autonômica intestinal, podendo inclusive simular abdome agudo (mas sem febre ou leucocitose diretamente relacionados ao abdome) em alguns pacientes e levar à laparotomia exploradora. A recuperação completa entre ataques é usual. O paciente pode apresentar histórico familiar ou pessoal ou então nunca ter tido sintomas da doença (primeiro quadro). Os ataques são precipitados por inúmeros fatores, incluindo drogas, infecções (por isso pode haver febre), es- tresse, álcool, menstruação, gravidez, fome, desidratação. Qualquer parte do sistema nervoso pode estar envolvida, com evidências de neuropatia autonômica e periférica. • A neuropatia periférica pode ser simétrica ou assimétrica, leve ou profunda; no último caso, pode até levar a tetraplegia com paralisia respiratória. É do tipo axonal aguda. Os sintomas motores geralmente ocorrem primeiro, e a fraqueza é geralmente mais proximal (80%) e em membros superiores (metade dos casos). Alteração sen- sorial ocorrem em 60% dos casos, tipicamente proximal. Os reflexos tendinosos profundos, particularmente os reflexos do tornozelo, podem ser retidos, embora alguns pacientes apresentem hiporreflexia global. A dor miál- gica profunda pode se desenvolver. O envolvimento dos nervos cranianos acompanha 75% dos casos, podendo afetar os nervos facial e vago e, menos comumente, os nervos trigêmeo, hipoglosso, acessório e oculomotor. 2 Caroline Chandler Pedrozo Medicina de Emergência Diferenças para Guillain-Barré Envolve músculos proximais e membros superiores O LCR durante um ataque porfírico geralmente não mostra a dissociação citoalbuminológica clássica. A eletromiografia tipicamente mostra uma neuropatia motora axonal (em vez de neuropatia desmielini- zante) com denervação mais acentuada proximalmente • As convulsões ocorrem em cerca de 5% dos pacientes com PAI. Geralmente são crises parciais complexas, com ou sem generalização secundária. No entanto, alguns pacientes desenvolvem ausências, mioclonias e cri- ses tônico-clônicas, bem como epilepsia parcial contínua. A hiponatremia que acompanha os ataques agudos pode reduzir o limiar convulsivo. A encefalopatia se desenvolve em até 70% dos ataques porfíricos. As caracte- rísticas clínicas e radiológicas da encefalopatia porfírica podem assemelhar-se à síndrome da encefalopatia reversível posterior, incluindo áreas de hiperssinal de T2 na RNM no córtex occipital ou frontoparietal que não aumentam com o contraste. Outras anormalidades incluem as lesões focais e lesões da substância branca que podem se assemelhar às placas da esclerose múltipla • 20-58% desenvolvem sintomas neuropsiquiátricos durante os ataques agudos. Podem começar com pequenas alterações comportamentais, como ansiedade, impaciência ou insônia até depressão grave, anedonia, delírios grandiosos e episódios psicóticos graves, lembrando sintomas mais tipicamente associados à esquizofrenia. Eles incluem características positivas e negativas e podem ocorrer sem sintomas neurológicos. Os médicos devem estar atentos, pois alguns pacientes tentam suicídio • O envolvimento autonômico é por vezes pronunciado (dor abdominal, náuseas, vômitos, constipação, taquicar- dia, hipertensão, sudorese episódica) A hiponatremia ocorre devido à liberação inapropriada do hormônio antidiurético e também à perda gastrointes- tinal de sódio e pode causar ou exacerbar ainda mais as manifestações neurológicas. A porfiria variegada e a coproporfiria hereditária podem apresentar ataques agudos idênticos aos da PIA, embora também possam apresentar lesões cutâneas fotossensíveis, com ou sem ataques. Ou seja a PIA, em contraste às outras formas de porfiria, não manifesta fotossensibilidade cutânea. 3 Caroline Chandler Pedrozo Medicina de Emergência Achados laboratoriais Abordagem pacientes testados no momento de um ataque agudo 1. Análise do porfobilinogênio urinário em uma amostra aleatória protegida contra luz. Níveis elevados de porfobi- linogênio na urina ou plasma são específicos para a porfiria aguda. Durante um surto agudo o aumento atinge 10 a 150 vezes o limite superior. O teste pode ser realizado em uma amostra aleatória, corrigindo o resultado para g de creatinina urinária (dispensando coleta de urina de 24h). 2. Repetição de porfobilinogênio juntamente com porfirinas e ácido delta-aminolevulínico (ALA), medidos na mesma amostra de urina, preferencialmente em um centro de referência. 3. Exame de espectro de emissão de fluorescência das porfirinas no plasma (protegido contra luz) a. Pico de emissão de plasma ≥624 nm: porfiria variegada b. Pico de emissão de plasma <624 nm: coproporfiria hereditária ou AIP 4. Porfirina fecal: para distinguir entre coproporfiria hereditária ou AIP a. Proporção de coproporfirina III para coproporfirina I for superior a 1,5, o diagnóstico é coproporfiria hereditária b. Proporção de coproporfirina III para coproporfirina I abaixo de 1,5, o diagnóstico é AIP 4 Caroline Chandler Pedrozo Medicina de Emergência PREVENÇÃO Evitar fatores conhecidos, especialmente medicamentos, pode reduzir a morbidade. Sulfonamidas e barbitúricos são os culpados mais comuns; outros estão listados na Figura 1. Alterações hormonais durante a gravidez e jejuns pro- longados também podem precipitar crises. Figura 1. Substâncias de uso inseguro e provavelmente seguro em pacientes portadores de porfiria Fonte: Current Medical Diagnosis & Treatment 2017 Precipitantes anestésicos • Definidos: barbitúricos, fenitoína, sulfonamidas, ropivacaína • Possíveis: etomidato, lidocaína, clordiazepóxido,diazepam, halotano, corticosteroides, cetamina, atracúrio Drogas seguras • Antiácidos - Na + citrato • Indução: propofol • Agentes inalantes: N2O, halotano, isoflurano (usar com cautela) • Bloqueadores: succi, pancurônio e vecurônio 5 Caroline Chandler Pedrozo Medicina de Emergência • Reversão: atropina, glicopirrolato, neostigmina • Analgesia: opioides • LA: bupivacaína • Sedativos: midazolam, temazepam, lorazepam • Antieméticos: droperidol • Medicamentos cardiovasculares: adrenalina, fenilefrina, salbutamol, Mg2 +, betabloqueadores, fentolamina TRATAMENTO O tratamento com uma dieta rica em carboidratos diminui o número de ataques em alguns pacientes. O objetivo da gestão da crise porfírica é parar/retirar o agente precipitante, tentar reverter o fator que está levando o aumento da produção de hemoglobina (atividade da ALA sintetase) e substituir os estoques de heme do corpo, dimi- nuindo assim a produção hepática de ácido delta-amino-levulínico. Em ataques leves, sem vômitos, fraqueza ou hipona- tremia, vale a pena tentar uma dieta rica em carboidratos com medidas de suporte por até 48 horas. Um mínimo de 300 g de carboidratos por dia deve ser administrado por via oral ou intravenosa, se necessário, incluindo glicose ou levulose. Se houver alguma complicação neurológica, entretanto, os pacientes necessitam de tratamento imediato e es- pecífico. A terapia com hematina deve ser feita com a dose de 3 a 4mg/kg uma vez ao dia (durante 30-40 minutos), diluídos em 100 mL de salina ou 20% de albumina, durante 4 dias. Pode levar a uma melhora rápida e os possíveis efeitos adversos são flebite (veia periférica calibrosa ou acesso central – diluir em albumina e fazer flush com solução salina) e coagulopatia (causa agregação plaquetária com uma diminuição acentuada na contagem periférica que é recobrada ao longo de um período de 5 horas; prolongamento do tempo de protrombina dura aproximadamente 24 horas). A primeira indicação de resposta é uma diminuição acentuada do nível de porfobilinogênio plasmático ou urinário, que geralmente ocorre no dia 3 do tratamento (após a segunda ou terceira infusão). Impede a deterioração adicional na neuropatia peri- férica, mas não reverte o dano estabelecido. O equilíbrio eletrolítico requer muita atenção. O propranolol (até 100 mg por via oral a cada 4 horas) pode controlar a taquicardia e a hipertensão em ataques agudos. O transplante de fígado pode fornecer uma opção para pacientes com doença mal controlada pela terapia me- dicamentosa. 6 Caroline Chandler Pedrozo Medicina de Emergência Figura 2. Manifestações clínicas em um ataque porfírico agudo e o respectivo tratamento sintomático Fonte: O'Malley et al (2018) PROGNÓSTICO O prognóstico para um ataque porfírico é bom, com resolução rápida da dor abdominal, sintomas autonômicos, convulsões e encefalopatia, assim que o ataque é abortado. A neuropatia se resolve mais lentamente, com a extensão e a escala de tempo da recuperação dependendo da magnitude do dano axonal. A recuperação geralmente ocorre ao longo de muitos meses, mas o diagnóstico tardio pode levar ao retorno incompleto da função motora. Ataques repetidos podem resultar em acúmulo de dano, produzindo fraqueza fixa e atrofia. Menos de 10% dos pacientes com PAI desenvolvem ataques recorrentes sem um fator precipitante identificável. ALTA O paciente está pronto para receber alta quando não necessitar mais de narcóticos e a ingestão calórica oral é adequada. BIBLIOGRAFIA BISSELL, D. M.; ANDERSON, K. E.; BONKOVSKY, H. L. Porphyria. The New England Journal of Medicine, [s. l.], v. 377, n. 9, p. 862–872, 2017. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28854095>. Acesso em: 3 abr. 2018. O’MALLEY, R. et al. Porphyria: often discussed but too often missed. Practical neurology, [s. l.], 2018. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29540448>. Acesso em: 3 abr. 2018. PYERITZ, R. E. Inherited Disorders. In: PAPADAKIS, M. A.; MCPHEE, S. J.; RABOW, M. W. (Eds.). CURRENT Medical Diagnosis & Treatment 2017. 56a ed. [s.l.] : McGraw-Hill Education, 2017. p. 1676–1677.
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