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JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - Campus da USP - Ribeirão Preto, SP 364.444 Pereira, José Carlos de Medeiros P436m Medicina, saúde e sociedade / José Carlos de Medeiros Pereira. - Ribeirão Preto: Complexo Gráfico Villimpress, 2003. 1. 364.444 - Medicina Social. 2. Sociologia - Metodologia. I. Título. Direitos autorais de José Carlos de Medeiros Pereira (e de Antônio Ruffino Netto em relação à seção 7, “Sobre tuberculose”). ÍNDICE PREFÁCIO .......................................................................... 5 1. SOBRE MEDICINA SOCIAL ........................................15 1.1. Medicina, saúde e sociedade .................................17 2. MEDICINA PREVENTIVA, SAÚDE PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS ............................................. 33 2.1. O projeto preventivista e a noção de subdesenvolvimento.................................................... 35 2.2. Problema social e problema de saúde pública ... 41 3. SOBRE CONTRACEPÇÃO ............................................ 67 3.1. O direito de não ter filhos .................................. 69 3.2. Aspectos sociais da contracepção .................... 73 4. SOBRE METODOLOGIA ..............................................97 4.1. Cientificismo “versus” ideologicismo ....................99 4.2. O específico e o geral na ciência ........................ 104 5. SAÚDE E POLÍTICA CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA E EDUCACIONAL ......................................................... 109 5.1. Sociedade e educação médica .............................. 111 5.2. Saúde e política nacional de ciência e tecnologia ........... 116 6. ESPECIALIZAÇÃO NA MEDICINA ......................... 135 6.1. Sobre a tendência à especialização na Medicina ...... .137 7. SOBRE TUBERCULOSE (com Antônio Ruffino Netto) .... 149 7.1. Mortalidade por tuberculose e condições de vida: o caso Rio de Janeiro .................................... 151 7.2. Saúde – doença e sociedade; a tuberculose – o tuberculoso ..................................... 172 8. DOENÇA DE CHAGAS — RESENHA DE TESE ..... 183 8.1. A evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo ................................................................ 185 9. VÁRIOS ......................................................................... 189 9.1. A enfermidade como fenômeno social ................ 191 9.2. Sobre a etiologia social da saúde e da doença ........... 196 9.3. Ampliando o conceito de Medicina ..................... 200 9.4. Medicina além do biológico ................................. 204 9.5. Riqueza, poder e doença ..................................... 210 9.6. Urbanização, industrialização e saúde ................. 214 9.7. Fome e suprimento de alimentos ......................... 219 5José Carlos de Medeiros Pereira PREFÁCIO Durante o ano de 2001 resolvi rever o conjunto de artigos de vária espécie que havia produzido durante o período em que fui professor de Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP. Lendo-os e organizando-os, dei-me conta de que aqueles relacionados, de modo direto ou indireto à disciplina, ainda poderiam ser úteis. Talvez haja um pouco de vaidade intelectual em tal constatação, admito. Mas entendo que, apesar de escritos há muitos anos, alguns deles pelo menos, suscitam questões, propõem interpretações e indicam formas de abordagem que poderiam ser retomadas, corrigidas e enriquecidas por outros. Pensei em reescrever algumas partes. Mas lembrei-me de um conselho que meu falecido catedrático, o Professor Florestan Fernandes, dava aos seus auxiliares: uma vez pronto um trabalho intelectual, revisto e achado conforme no momento em que foi escrito, ele não deve ser retomado. No entender dele, a obra já teria cumprido sua função para o autor. Poderia, agora, auxiliar a outros que a lessem. Se o sujeito quisesse retormar o tema, que escrevesse outro trabalho, com base na literatura subseqüente e no entendimento que passara a ter do mesmo. Ora, aposentado, minhas leituras foram dirigidas a outros caminhos. Conseqüentemente, os acrescentamentos que fizesse resultariam apenas de um maior amadurecimento dado pelo tempo e por leituras não correlatas. Fiz, no entanto, pequenos ajustes. Não compartilho mais, inteiramente, de um ou outro ponto de vista exarado na época. Por isso, tomei a decisão de alterá-los, nesse caso. Em outros, minha visão se alterou, mas não a ponto de rejeitar integralmente o que foi 6 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE escrito. Peço aos leitores que, algumas vezes, levem em consideração o momento histórico, político e intelectual em que o artigo foi dado a lume. Os leitores devem ter em conta que o período que vai da renúncia de Jânio Quadros à eleição de Fernando Henrique Cardoso foi, em geral, desfavorável ao avanço das Ciências Sociais. Pessoalmente, no entanto, sempre considerei que a ciência deve fazer as menores concessões possíveis à ideologia. Em razão, porém, da enorme tensão mundial, esta última tornou-se por demais preponderante na produção científica na área. É óbvio que as posições ideológicas influenciam o trabalho intelectual no sentido de condicionar e mesmo determinar a escolha dos temas a serem pesquisados, as técnicas de investigação e, sobretudo, as interpretações. Se em condições normais, esses excessos tendem a ser circunscritos, em tempos de enorme politização da vida social, eles tendem, pelo contrário, a avultarem. Um dos aspectos que mais me chamou a atenção, como profissional da área, foi a tendência generalizada, nessa época, à popularização, na academia, mas também em outros círculos, de um marxismo vulgar, mecanicista, sem mediações. Essa corrente de pensamento foi degradada à situação de um sistema ultra- simplificador da complexidade do mundo social, especialmente por pessoas sem nenhuma formação histórica e sociológica. A sofisticação do pensamento foi varrida muitas vezes. O princípio do sim/não, preto/branco, reacionário/progressista etc. etc. freqüentemente tomou o lugar de formas mais complexas de raciocínio. Entendo que não colaborei para que tal degradação ocorresse. Os leitores aquilatarão se mantive o nível de que estou acusando outros de terem rebaixado. De qualquer modo, noto, com satisfação, que esses tempos estão ficando para trás. Sem dúvida, o modo simplista de fazer ciência também permaneceu, é preciso que se diga. Muitas vezes, contra ele, é que se apelou, canhestramente, para o marxismo. Ou seja, buscam-se dados, nem sempre bem coletados, e procura-se, sem praticamente 7José Carlos de Medeiros Pereira nenhum marco teórico, estabelecer alguma correlação entre eles. Como afirmo no artigo “Cientificismo ‘versus’ ideologicismo”, sem esse marco, que daria sentido às relações buscadas, o investigador pode ficar ao nível do observado, da aparência, não entendendo, na verdade, aquelas relações. Com freqüência, pressupõe uma causalidade inexistente na correlação observada, chegando a conclusões errôneas. Na Medicina Social notei muitas vezes esse erro. Para dar um exemplo banal e tosco: verifica-se a existência de uma correlação positiva entre número de médicos por habitantes e boas condições de saúde. Daí não se pode inferir, sem mais aquela, que médicos estão associados, causalmente, com boa saúde. Na maior parte dos casos a boa saúde também está associada, estatisticamente, à existência de maior número de automóveis, de telefones, de aparelhos de ar condicionado e assim por diante. Ou seja, de modo geral, o que ocorre, é que os médicos, como quaisquer outros profissionais, tendem, simplesmente, a se estabelecer naqueles lugares onde poderão ser melhor remunerados. Os leitores irão verificar que naqueles trabalhos que tratam mais especificamente da Medicina Social, procurei entendera saúde e a doença, assim como a assistência médica, como fenômeno social. Ou seja, buscando as determinações, sócio-econômicas principalmente, responsáveis pela manifestação da enfermidade e pelo modo como ela é enfrentada pela assistência médica. É que nessa disciplina não se trata de estudar a história natural da doença num indivíduo mas numa população, examinando-se os diferentes riscos a que estão expostos os vários grupos constituintes da sociedade e porquê. Importam mais as relações entre os homens do que entre eles e o meio natural. A Medicina não é vista como tendo completa autonomia frente à sociedade, mas encarada, ela própria, como sendo determinada e condicionada, em grande parte, pela estrutura econômica e social. Vai-se até mais além, em alguns artigos, examinando-se as relações da ciência, e sobretudo da tecnologia, com o poder. Como não podia deixar de acontecer, numa disciplina social, a historicidade das práticas e saberes que têm 8 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE como objetivo a prevenção e a cura da enfermidade também é discutida em alguns pontos. Recomendo àqueles que desejarem situar-se rapidamente frente às questões expostas, irem ao final do volume. Em três pequenos artigos jornalísticos (“A enfermidade como fenômeno social”, “Sobre a etiologia social da saúde e da doença” e “Ampliando o conceito de Medicina”), abordo-as de modo mais ou menos sumário. Os que queiram informar-se mais a respeito do assunto podem ler o primeiro dos artigos reunidos neste volume: “Medicina, saúde e sociedade”. Nele, aproveito contribuições tanto da Epidemiologia Social como da Sociologia da Saúde para expor como a Medicina Social explica os dois processos a que me referi acima (saúde-doença e assistência médica). Esclarece-se que a disciplina concebe a Medicina como uma ciência histórico-social, encarando os homens, sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos, mas, sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas, membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes de relações sociais específicas. Insisto que se trata de realizar uma rotação de perspectivas, vendo e examinando o mesmo objeto de investigação de um ponto de vista substancialmente diferente. Ou seja, vê-se a enfermidade não só como fenômeno natural e portanto, técnico, mas também como fenômeno social e, conseqüentemente, como problema social, político e cultural. De fato, todos os homens participam de sociedades históricas, divididas, conflituosas, competitivas, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e prestígio. Por isso é que a Medicina Social não toma a presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica como inevitável. É essencial, para a disciplina, discutirem-se os determinantes extramédicos da assistência médica, que é o outro conjunto de fenômenos pelos quais ela se interessa. Vista como uma instituição social, as práticas sociais da Medicina claramente guiam-se, o mais das vezes, por outros critérios que não somente médicos: em termos societários, políticos e econômicos, umas vidas têm sempre mais valor do que outras. 9José Carlos de Medeiros Pereira Nos dois artigos seguintes discuto certos aspectos de disciplinas correlatas à Medicina Social: a Medicina Preventiva e a Saúde Pública. Em “O projeto preventivista e a noção de subdesenvolvimento”, trato de uma vinculação, que cria existir, entre mudanças no entendimento das causas do subdesenvolvimento e as transformações pelas quais tinha ou estava passando o projeto orientador da Medicina Preventiva. Explico-me: a interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de uma visão culturalista (teoria da modernização) para uma visão sobretudo de natureza política e econômica (teoria da dependência). No caso da Medicina Preventiva, a interpretação evoluiu desde uma visão de que a doença seria devida a fatores ligados a hábitos culturais principalmente, para a da Medicina Social, em que a doença é relacionada à estrutura social global. O segundo artigo (“Problema social e problema de Saúde Pública”) procura mostrar relações de vária ordem entre os dois tipos de problemas. Nele discuto algumas questões comuns a ambos, como as dificuldades na definição do que seja problema. A quem compete a definição? Quais os vieses, sobretudo de natureza ideológica, que interferem nessa definição e, conseqüentemente, na proposta de soluções? Insisto em que o planejamento destas depende muito do modo como se encare o sistema social, político e econômico. Depois, da capacidade de profissionais da área em interessar um grupo social suficientemente poderoso para que encampe tais soluções ou até as integre em seu projeto de transformação social. Enfatizo o fato de que é praticamente impossível um consenso a respeito do assunto, já que os vários grupos sociais têm objetivos e valores não só diversos como contraditórios. Uma certa possibilidade de superação dessas dissensões político-ideológicas estaria, em meu entender, na necessidade de os diagnósticos e soluções se alicerçarem em modelos interpretativos teoricamente mais sofisticados. Insisto em que sem que isso se dê, as intervenções planejadas para corrigir o problema podem conduzir, elas próprias, a conseqüências negativas não previstas. 10 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE O tema da contracepção sempre me atraiu porque está intimamente relacionado ao de desenvolvimento ecônomico e social. Creio que praticamente todos os que se debruçaram sem vieses ideológicos (e principalmente religiosos) sobre ele, concordam que uma das principais causas da miséria do que era chamado Terceiro Mundo estava na procriação exagerada. Paternidade e maternidade irresponsáveis, infelizmente, eram (e ainda são) estimuladas, em muitos países subdesenvolvidos, por líderes políticos, religiosos e militares. Na verdade, estão eles entre os grandes culpados pelo seu atraso em vários e importantes níveis. Nenhum país pode crescer economicamente e se desenvolver social e culturalmente quando suas taxas de natalidade são demasiado altas. Os investimentos para se manter saudável, educar e profissionalizar uma pessoa de modo a torná-la capaz de viver produtiva e responsavelmente na sociedade moderna são muito elevados. Tais líderes parecem imaginar que se Deus não prouver, o Estado proverá. De onde tirará os recursos é coisa de somenos importância. É claro que só o controle da natalidade não basta. Tanto assim que em todos os países em que o socialismo do tipo soviético ou assemelhado conquistou o poder, uma rígida política de restrição de nascimentos foi posta em prática. Nem sempre daí resultou maior riqueza. O primeiro dos artigos sobre o tema (“O direito de não ter filhos”) é restrito e mais vinculado à discussão que então se tinha estabelecido na imprensa sobre o planejamento familiar. Já o segundo (“Aspectos sociais da contracepção”) é mais amplo. Nele discuto criticamente, com certa profundidade, os argumentos de natureza econômica, social e política favoráveis e contrários à política de regulação da fertilidade. O governo de então (presidido pelo Gal. Ernesto Geisel), mudara muitas das posições assumidas pelas administrações anteriores a respeito do problema populacional. Mostro que os debates tinham, compreensivelmente, caráter profundamente ideológico. Relativizo, no entanto, o exagero das posições defendidas, já que, historicamente, as relações entre população e processos sociais complexos variaram muito no decorrer 11José Carlos de Medeiros Pereira do tempo e de um país para o outro. Concluo, porém, que pôr à disposição da população, sobretudo das mulheres, conhecimentos e meios para que pratiquem a contracepção constitui um dos deveres do Estado moderno e um direito básico delas. A educação é uma daquelas áreas na qual quase todos se julgam com competência para meter o bedelho. Esta é uma tendência aparentemente incoercível. Os profissionais quenela militam queixam- se, com razão, dessa intromissão, freqüentemente não só abusiva como inepta. Confesso que eu também, muitas vezes, nela me intrometi. Aqui, porém, trata-se de uma incursão mais restrita. Num seminário sobre educação médica fui solicitado a proferir uma palestra (“Sociedade e educação médica”). Divergi dos organizadores do evento. Em geral, entendiam, que o ensino médico poderia ter grande influência no modo como a profissão estava ou viria a ser exercida. Segui o ponto de vista normalmente defendido pelos sociólogos, destacando o papel conservador da educação. Assim sendo, é difícil transformá-la num agente de mudança social. No caso específico da educação médica, apontei o fato de que a formação do médico é determinada fundamentalmente pela prática profissional e não o inverso. Nesse sentido, o artigo “Sobre a tendência à especialização na Medicina” constitui, de certa forma, uma demonstração do que afirmei naquele seminário. Nesse trabalho, faço um apanhado das explicações do processo de especialização. No caso da expansão extraordinária da especialização na Medicina (em geral tida como excessiva, no Brasil, pelos que estudam a organização dos serviços médicos), aponto, exatamente, a política de atenção médica do sistema oficial de Previdência Social como o grande favorecedor da tendência. É claro que havia e há outros fatores: a preferência dos próprios pacientes, sobretudo dos que podem pagar; as vantagens para os próprios médicos, que, especializando-se, procuram fugir da acirrada competição profissional; o interesse da indústria produtora de equipamento médico sofisticado etc. Obviamente, essa tendência tornou os médicos menos capacitados a 12 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE encarar seus pacientes como um todo não só biológico, mas, sobretudo, psico-social e cultural. As colocações acima, no entanto, não significam que a política educacional e, sobretudo, a voltada para a ciência e a tecnologia, não possa ter enorme importância no desenvolvimento sócio- econômico de um país. As várias áreas do social se interinfluenciam. O sistema educacional, desde que devidamente gerido por uma política conveniente, pode reagir sobre o meio social global, alterando-o significantemente. Os objetivos da educação e da saúde são definidos em nível societário. Mas, dependendo da estratégia específica, as reações corporativas podem ou não trazer benefícios para aquele desenvolvimento. No artigo “Saúde e política nacional de ciência e tecnologia” indico vários pontos que, em meu entender, estavam dificultando a realização desse papel positivo. No caso da Universidade, apoiando-me em texto de Florestan Fernandes, faço referências à pesquisa inútil, ao desperdício de recursos materiais e humanos, à predominância de interesses individuais e grupais em detrimento dos objetivos mais altos da ciência, à dependência cultural prevalecente em muitos nichos acadêmicos, ao dogmatismo existente em outros etc. O arrolamento de tais pontos talvez possa contribuir para o debate a respeito do tipo de conhecimentos a serem produzidos no ambiente universitário; conseqüentemente, para que eles sejam aproveitados construtivamente pela sociedade. Em 1981 e 1982, escrevi alguns trabalhos em parceria com meu amigo e colega de Departamento, o Prof. Antônio Ruffino Netto. A tuberculose, na qual ele era (e é) interessado, é uma doença que exemplifica bem um dos pontos ressaltados nos estudos de Medicina Social. Ou seja, o de que a causa necessária de uma doença nem sempre é suficiente para desencadeá-la. Ruffino havia levantado dados sobre a mortalidade pela moléstia no Rio de Janeiro. Intrigado com as variações de velocidade de declínio apresentadas pela curva, procurou-me para que o auxiliasse a analisá-los. Da colaboração resultou o artigo “Mortalidade por tuberculose e condições de vida: o caso Rio de Janeiro”. Verificamos a existência de 3 regressões 13José Carlos de Medeiros Pereira distintas. Creio que conseguimos, alicerçados no exame de fatores de ordem social, econômica e cultural, esclarecer as razões das variações. De fato, no caso dessa doença, alterações nas condições de vida das pessoas são fundamentais para explicar sua incidência, prevalência e letalidade. Concluímos que, “apesar de ser marcante o impacto determinado pelos métodos específicos de controle da tuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodos inespecíficos de controle (melhoria das condições de vida)”. Posteriormente, resolvemos produzir um trabalho mais geral. Nele, tentamos mostrar que os ciclos biológicos, descritos no que se chama a “história natural da enfermidade”, não esgotam o seu entendimento. Esses ciclos foram exaustivamente estudados pela Epidemiologia e Saúde Pública. Mas, em nosso entender, para que o estudo ficasse completo, seria preciso atentar para o ciclo social. Neste, o homem histórico, concreto, entra em relações com os outros homens. Tais relações, por sua vez, são condicionadas e mesmo determinadas pela estrutura sócio-econômica inclusiva. Daí porque termos sugerido um modelo mais holístico de interpretação, tanto da doença individual como coletiva, em que o aspecto societário fosse considerado. Indicamos que, em seu estudo, os investigadores pensassem não apenas num ciclo, representado pela letra O, mas em dois. O esquema se transformaria num 8, tendo o homem como ponto comum. “Desta forma, ficaria claro que nem sempre é inevitável que os homens participem de determinada cadeia epidemiológica. Isso levaria mais facilmente o investigador e o técnico, em suas interpretações e nas soluções propostas, a considerar a estrutura social e suas características específicas, que fazem com que a doença se individualize em uns homens e não em outros”. A tese de doutoramento do Prof. Luiz Jacintho da Silva, intitulada A Evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo, defendida em 1981, trata de outra doença, a de Chagas, com importante determinação social. Por isso incluí a resenha que dela fiz no livro que organizei. Como muitos diziam, a doença de 14 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Chagas propagava-se, em grande parte, porque os homens viviam em habitações mais apropriadas a barbeiros do que a eles. O autor, em seu trabalho, mostra como a alteração do espaço geográfico e sócio-econômico, pela cafeicultura, facilitou a disseminação do Triatoma infestans. Com a desarticulação desse espaço (onde a endemia estava presente) e o surgimento, nele, de outra organização social, praticamente desapareceu, no Estado de São Paulo, a transmissão natural da doença. Luiz Jacintho não só estudou o contexto histórico da doença, mas procurou inseri-lo numa totalidade. Além do mais, trata o social não só como características dos sujeitos, mas as vê como produto de forças sócio-econômicas mais profundas. Reiterando o que disse no início deste prefácio, espero que os artigos aqui reunidos tenham utlidade para muitos dos que os lerem. Entendo que, pelo menos, desempenharão funções didáticas. Um pouco mais pretenciosamente, talvez venham a ter também implicações teóricas. Dou-me por satisfeito se contribuírem para uma melhor compreensão dos determinantes sociais da saúde e da doença e da assistência médica. José Carlos de Medeiros Pereira Ribeirão Preto, setembro de 2002 1. SOBRE MEDICINA SOCIAL 17José Carlos de Medeiros Pereira 1.1. MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE* I – INTRODUÇÃO Nosso propósito é apresentar uma certa rotação de perspectivas quanto ao modo de analisar tanto o processo saúde-doença como a assistência médica. O primeiro é freqüentemente pensado como sendo quase exclusivamente biológico. Em relação à segunda ela é vista, demasiadas vezes, como se se orientasse sobretudo por considerações de ordem médica. Ora, saúde e doença são objetos ao mesmo tempo sociais e biológicos. Os homens são sadios, enfermam e morrem nãosegundo apenas variáveis biológicas, mas por razões, o mais das vezes, sociais. Quanto à assistência médica, mais facilmente se percebe que ela é constituída por um conjunto de práticas sociais que obedecem a poderosos determinantes econômicos, políticos e de outras ordens também não-médicas. A assistência médica é, inquestionavelmente, objeto de estudo das Ciências Sociais, principalmente da Sociologia. Trata-se, por certo, de uma instituição social, com a especificidade de se constituir de um complexo de ações e relações sociais referidas à área médica. Mas pode ser objeto também de uma disciplina de fronteira à qual nos referiremos adiante. Tal disciplina, em outra de suas vertentes, volta- se, igualmente, para o estudo das determinações extrabiológicas da saúde e da doença, principalmente desta, quando encarada não em termos de indivíduos isolados, mas de uma população que apresenta segmentos sociais vivendo em condições diferenciadas. Assim, quando se analisa como a enfermidade ocorre e se distribui na população * Publicado originalmente em Estudos de Saúde Coletiva, nº 4, pp. 29-37, Rio de Janeiro, novembro de 1986. 18 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE descobre-se que o fato de ela se individualizar em determinados organismos biológicos é, em grande parte, uma conseqüência de serem esses organismos membros participantes de determinadas relações sociais. II – A MEDICINA SOCIAL Sem dúvida, as várias ciências sociais poderiam dar conta da investigação dos determinantes da assistência médica, como já dissemos. Por outro lado, elas poderiam também estudar: a) os determinantes sociais que fazem com que um dado fenômeno na área da Saúde Coletiva seja considerado normal ou patológico; b) ou, ainda, os fatores e condições igualmente sociais que levariam tal fenômeno a se manifestar diversamente nos vários segmentos sociais (classes, frações de classe, grupos ocupacionais, de renda etc). No entanto, especialmente de duas décadas para cá, foi se desenvolvendo uma novel disciplina, a Medicina Social, que se voltou especificamente para o estudo dessas duas ordens de questões(15). A par de outras razões, talvez se possa dizer que, para o surgimento desta, militaram desdobramentos havidos nas investigações realizadas em dois campos de estudo aparentemente distintos. Num caso, a Epidemiologia, disciplina médica, passou a se interessar, cada vez mais, pela convergência do social e do “natural” na explicação da manifestação do fenômeno doença. Verificou que este depende, freqüentemente, de condições suficientes, de natureza social, tanto ou mais até que de causas necessárias, de natureza biológica. De seu lado, trabalhadores intelectuais na área da Sociologia e, mais recentemente, na da Economia, estabeleceram claramente que o funcionamento e a estrutura do sub-sistema social representado pela assistência médica obedecem a razões extramédicas. Nada mais natural que sendo ambas as questões vinculadas, de um modo ou doutro, à Medicina, fosse adquirindo contornos a disciplina a que nos estamos referindo. Na verdade, algumas correntes heterodoxas dentro da própria 19José Carlos de Medeiros Pereira Medicina, gozando de maior ou menor prestígio conforme o momento histórico e os paradigmas científicos pelos quais ela se norteou, freqüentemente consideraram o fato de os homens doentes serem também participantes de determinadas relações sociais, as quais é preciso levar em conta. Especialmente nos últimos anos, por influência de tais correntes, a Medicina vai deixando de ser quase que apenas o conhecimento (biológico principalmente) da doença e dos meios de curá-la e/ou a ciência do corpo humano, normal e patológico. Um número significativo de trabalhadores na área vai percebendo, cada vez com maior clareza, que a explicação das doenças e sua cura é facilitada pelo conhecimento do contexto social em que vivem as pessoas. Bem ou mal, eles têm buscado explicá-las através da referência a fatores sociais, ainda que, o mais das vezes, esse social seja encarado como constituído por características de pessoas, na já tradicional concepção multicausal da doença. Apesar disso, na atualidade, muitos dos cultores da disciplina médica procuram ampliar o objeto da mesma, a maneira de representá-lo cientificamente e o modo de apreendê-lo. Cada vez mais, em face disso, cremos que a Medicina tenderá a ser concebida também como uma ciência histórico- social, percebendo que as características dos seres humanos (doentes ou não) são sobretudo um produto de forças sociais mais profundas, ligadas a uma totalidade econômico-social que é preciso conhecer e compreender para explicarem-se adequadamente os fenômenos de saúde e de doença com os quais ela se defronta. Passando a Medicina a ser encarada como atrás, suas práticas sociais puderam vir a ser, também, objeto de investigação médica e não apenas de alguma ciência social. De qualquer forma, essas novas concepções facilitaram a constituição da Medicina Social, voltada para o estudo tanto dos processos que mantêm a saúde ou provocam a doença como das práticas sociais que procuram recuperar ou manter aquela. Trata-se de uma mudança qualitativa, porque o objeto de tal disciplina não é representado por corpos biológicos, mas por corpos sociais. Não se trata, tão-somente, de indivíduos, mas de sujeitos sociais, de grupos e classes sociais e de relações sociais 20 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE referidas ao processo saúde-doença. Realizada tal mudança, as práticas sociais da medicina e a doença seriam objeto de investigação, especificamente, dessa disciplina social, que se poderia vincular à Medicina desde que ela fosse concebida como uma ciência que tivesse um objeto social e natural ao mesmo tempo. A rotação de perspectivas quanto ao modo de encarar e interpretar esses objetos de estudo representa uma ruptura em relação à corrente positivista predominante. Tal rotação faz avançar a interpretação, introduzindo tipos diversos de explicação, sobretudo sociológica. O uso deles pela Medicina Social permite a inserção dos fatos observados e das relações descobertas em teorias mais abrangentes; permite ver coisas novas, como se elas estivessem sendo criadas pelo investigador porque, agora, fatos conhecidos são olhados a partir de outros pontos de vista, embora também conhecidos(16: 101). É certo que os paradigmas da Biologia, de modo geral usados na Medicina, são menos controvertidos. Eles permitem, inclusive, que quase todos os investigadores utilizem o mesmo modelo de análise, ao qual se conformam, Mas tal procedimento gera menores oportunidades de questionamento e, conseqüentemente, de reflexões sobre as questões estudadas(7). Ora, nas Ciências Sociais inexiste um paradigma único sobre o qual se assente um crescimento científico cumulativo. Sua existência implicaria num acordo entre seus grandes cientistas quanto à concepção da sociedade, o que seria praticamente impossível pois esta, ao contrário dos objetos naturais com os quais lida a Biologia e outras ciências naturais, é plena de divisões e conflitos dos quais o próprio investigador é parte. Mas, com isso, o avanço proporcionado pode ser significativo: uma criatividade mais expressiva, mais profícua, cientificamente falando, que acaba produzindo resultados também significativos. III – A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL Adotar a perspectiva da Medicina Social implica em encarar a enfermidade como um fenômeno social também. Tomá-la como um 21José Carlos de Medeiros Pereira fenômeno natural, como habitualmente se faz, tem implicações políticas inegáveis: permite transformar problemas sociais em problemas técnicos, com soluções dependentes da adoção de procedimentos igualmente técnicos e não políticos. Diga-se que o primeiro tipo de solução é o geralmente disponível pelos serviços médicos. Tal fato contribui, certamente, para a Medicina tender a adotar antes um tipo de explicaçãoe não outro. Não nos esqueçamos que ela é, em grande parte, uma técnica de intervenção. Esta característica, e a formação, da mesma forma, muito técnica dos médicos, favorecem a adoção de uma concepção fragmentada do homem e da doença. Tal fragmentação, feita com o objetivo de melhor analisar, para conhecer, o objeto de estudo, impede que este seja inserido num todo social coerente. Tratando-se, porém, de objeto e de problemas sociais, idealmente se exigiria, de quem explica e propõe soluções, a percepção de como se estrutura e funciona o sistema social no qual um se insere e os outros ocorrem. A proposta da Medicina Social pretende preencher essa lacuna, procurando ultrapassar o nível de concreticidade dos fenômenos médico-sociais, não os tomando como se eles fossem transparentes, como muitas vezes se faz. Oferecendo uma visão mais abrangente da doença e dos homens doentes, essa disciplina pretende chegar a uma interpretação sociologicamente mais rigorosa dos fenômenos e a uma proposição de soluções socialmente mais relevantes. Ou seja, ela se propõe ultrapassar a mera aparência dos mesmos, para chegar, realmente, ao que considera a sua essência. Para a Medicina Social boa parte das doenças constitui uma manifestação muito concreta das relações sociais (sobretudo de produção) de que os homens participam. Por isso é que elas se apresentam tão diversamente, se consideramos os diferentes segmentos sociais. Vinculando-se ao modo como os homens vivem, trabalham, se divertem, se relacionam enfim, a prevenção da enfermidade, mantendo-se a saúde, tem muito a ver com quaisquer melhorias nas condições de vida proporcionadas, entre outras coisas, pela diminuição da desnutrição, pelo acesso a moradias mais adequadas, pelo exercício de um trabalho física e mentalmente menos 22 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE desgastante etc. Em outras palavras, os homens enfermam e morrem desigualmente por pertencerem a uma e não a outra classe social, por exercerem diferentes ocupações, por se vincularem a este ou aquele setor econômico (rural ou urbano-industrial por exemplo), por compartilharem culturas ou sub-culturas distintas etc. Isto é que os faz correr riscos desiguais de contraírem moléstias e de morrerem. Os trabalhadores rurais, por exemplo, correm mais riscos do que os burocratas do serviço público por estarem muito mais expostos ao binômio excesso de trabalho-consumo deficiente(8). Ainda que como fenômeno biológico a doença possa ter características universais, podendo o homem ser encarado como um ser isolado, da perspectiva da Medicina Social, fora de seu contexto social esse homem é uma abstração, algo que não existe. Ele participa de uma sociedade histórica, dividida, conflituosa, competitiva, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e prestígio. Por isso, uma visão reducionista do problema de saúde e doença, perdendo de vista essa totalidade social, acaba não proporcionando o entendimento procurado do problema. A divisão deste em partes, para se proceder à análise, pode ser conveniente apenas quando, em seguida, faz-se a síntese, chegando a uma concepção enriquecida do conjunto do qual se partiu. Só quando se tem um mínimo de percepção dos fatores sociais produtores da enfermidade é que se pode compreender porque a presença da causa necessária de uma doença não necessariamente a desencadeia se não estiverem presentes as condições suficientes para que ela exista. É nesse sentido que se pode dizer que a verdadeira causa da tuberculose são as precárias condições de vida e não o bacilo de Koch. Na explicação cabal da produção tanto da saúde como da doença entre os homens, na quase totalidade dos casos, é preciso, pois, ter em conta as relações sociais de que eles participam numa realidade social concreta. Nesse sentido é que podemos ousar afirmar que se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também é incontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradia e 23José Carlos de Medeiros Pereira melhores condições de vida, a incidência e a prevalência de uma doença como a de Chagas possivelmente diminuiriam em proporção maior do que quando se tentam soluções baseadas na noção de que sua causa fundamental é a presença de triatomíneos infectados. Da mesma forma poderíamos nos referir à esquistossomose. Freqüentemente se pensa em combatê-la procurando melhores moluscocidas e não em fazer com que as pessoas vivam em condições de não precisar entrar em contacto com águas infestadas. Num e outro caso,quando a explicação da doença não contempla o social, as soluções aventadas deixam intocada a estrutura social determinante da doença É o caso de muitas proposições epidemiológicas que partem do pressuposto da inevitabilidade da presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica. Ora, se suas relações com os outros homens e com a natureza fossem diferentes da que está ocorrendo naquele lugar e naquele momento histórico ele não participaria de tal cadeia. Sem que essas relações sejam levadas em consideração, a Medicina, o mais das vezes, vai se limitar a enfrentar a doença já produzida. Evidentemente, este modo de proceder constitui uma solução correta em face do problema individual existente, mas não como explicação e solução, ao nível coletivo, do fenômeno doença. O pressuposto da inevitabilidade desta se suas causas necessárias não forem afastadas assenta-se na tendência das ciências naturais de se voltarem para as características universais da produção dos fenômenos. Esta tendência se vincula, por sua vez, à suposição de que se está diante de um universo contínuo, em que as diferenças pouco explicam. Ora, não é este o caso de qualquer fenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em termos societários, é cientificamente incorreto desconsiderar-se as diferenças sociais. Se não nos voltarmos para elas, nossas constatações a respeito, por exemplo, da incidência e prevalência de quaisquer doenças serão meras abstrações. Não nos dirão que grupos ocupacionais ou frações de classes sociais são afetados. De fato, como já nos dizia Marx, a população é uma abstração se deixarmos 24 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE de lado suas divisões. É em decorrência do fato de as relações sociais variarem historicamente que existe, também, uma historicidade das doenças. Dependendo da evolução das condições específicas existentes numa dada formação social concreta, umas doenças surgirão e outras desaparecerão. A tuberculose, por exemplo, foi uma doença largamente disseminada enquanto perduraram as condições de existência precárias determinadas, entre outras razões, pela Revolução Industrial. Neste século, entretanto, diminuiu de muito sua morbi-mortalidade sempre que essas condições melhoraram, antes mesmo de terem sido descobertos tuberculostáticos eficazes. Da mesma forma, à medida que uma sociedade passa de predominantemente rural a urbano-industrial serão diferentes as enfermidades que afetarão seus membros. Poderão diminuir as zoonoses e verminoses mas aumentar os acidentes (de trabalho, de trânsito), as violências ou as doenças cardio-vasculares. Em termos mais gerais, pensemos na passagem do mundo subdesenvolvido: a doença sobe dos intestinos para os pulmões. O que é poluído agora é o ar e não o chão(1). IV – DETERMINANTES EXTRAMÉDICOS DA ASSISTÊNCIA MÉDICA Tradicionalmente concebe-se a assistência médica como o conjunto de práticas sociais da Medicina visando, especificamente, a promoção da saúde e a prevenção e cura da doença ao nível individual. Não entrariam na definição aquelas atividades promotoras de saúde não exercidas por profissionais da saúde, como também as medidas coletivas. Há um certo consenso, por exemplo, de que o saneamento é antes engenharia sanitária do que medicina. Nem mesmo as medidas levadas a cabo pela medicina preventiva são sempre encaradas como assistência médica. Estão também excluídas a indústria farmacêutica,de aparelhos hospitalares etc. Cecília Donnangelo resume o que foi dito afirmando que a assistência médica seria o “conjunto de ações 25José Carlos de Medeiros Pereira de diagnóstico e terapêutica dirigidas ao consumidor individual”(3). Há outras concepções de assistência médica mas, para nossos propósitos vamos nos cingir a esta para distingui-la de Saúde Pública, no sentido de medidas orientadas coletivamente visando o atingimento dos fins mencionados acima. Ainda que a assistência médica diga respeito exclusivamente à atividade exercida por médicos, de modo algum, como já foi dito, ela se faz tendo em conta apenas critérios médicos. É que as práticas sociais referidas constituem uma instituição social cujo funcionamento e dinâmica obedecem a determinações extramédicas. Dificilmente serão os médicos que, nas condições concretas de sua atuação, decidirão quem e como alguém será atendido e considerando critérios tão-somente médicos. O mais das vezes, como umas vidas têm mais valor do que outras em termos societários, políticos e econômicos, serão nesses termos que as decisões serão tomadas. Ou seja, os pacientes serão assistidos em razão de sua capacidade de pagamento, ou porque podem exigir a assistência médica dado o poder de que dispõem ou, ainda, porque são considerados economicamente mais produtivos do que outros. Sobretudo nas sociedades capitalistas, em que há um quase completo domínio dos interesses econômicos, os valores alheios à medicina tenderão, em muito, a orientar as decisões. Sendo assim, há necessidade de analisar mais profundamente os aspectos sociais, políticos e econômicos responsáveis pelo desvirtuamento dessa assistência (em relação ao ideal expresso) de modo a não produzir os resultados que, medicamente, dela seriam esperáveis na redução, por exemplo, da morbi-mortalidade do conjunto da população. Nessa análise, uma das primeiras questões que chamam a atenção é a tendência de considerar a saúde e a doença como sendo de responsabilidade individual. Esta é, em grande parte, uma conseqüência de modo predominante de pensar nas sociedades capitalistas. Contudo, ela já era também a visão dominante na medicina. Mesmo antes do capitalismo a atenção médica era considerada uma questão individual(5). Além do mais, agravando o 26 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE problema, ao não se voltar para a determinação social da saúde e da doença, a assistência médica acaba atuando, muito freqüentemente, mais sobre os efeitos do que sobre as causas. A determinação social da assistência médica é claramente percebida inclusive quando se estuda sua história. Como nunca existiram sociedades históricas sem imensas desigualdades sociais, o que se vai observar é que o tratamento e prevenção da doença sempre variaram de um segmento social para outro. No capitalismo, especificamente, pode-se mesmo dizer que a proteção da vida e da saúde depende de um cálculo econômico. Isto é visível, por exemplo, na própria distribuição geográfica dos médicos. Eles, como diz Illich, têm tendência compreensível de se instalarem “onde o clima é sadio, a água pura e as pessoas podem pagar seus serviços”(6). Mas não é só por regiões, evidentemente, que a distribuição é desigual. O mesmo se pode dizer em relação às várias classes sociais. À distribuição desigual dos médicos pode-se acrescentar uma série de outros serviços de saúde, como hospitais, centros de saúde, laboratórios, pessoal para-médico etc. Há uma hierarquia de tratamento porque os corpos são vistos socialmente. Ou seja, eles se hierarquizam de acordo com sua produtividade, com o capital neles investido (por exemplo, num médico investiu-se mais do que num professor primário), com seu status, com seu poder. Muitas vezes, mesmo quando o Estado se volta (em termos de assistência médica) para a população marginal e o sub-proletariado é porque está preocupado em diminuir as tensões sociais, por exemplo. Evidentemente, numa sociedade capitalista, é inevitável que se façam tais cálculos econômicos e políticos e se considere a capacidade de pagamento dos que se encontram enfermos. Afinal os recursos são sempre escassos (em face do modo como são estruturados os serviços). Daí ser necessário que se tenha uma base “racional” para decidir. Ao estabelecê-la considerando coisas como a produtividade ou a capacidade (expressa na possibilidade de pagar), o sistema social vigente pode tornar a diferenciação da assistência médica relativamente aceitável para o conjunto da população, porque 27José Carlos de Medeiros Pereira se funda em distinções tidas como socialmente normais em nossa sociedade. É claro que seria incorrer num mecanicismo pouco defensável explicar toda e qualquer transformação no âmbito da assistência médica como estando inteiramente vinculada aos interesses do capital. Em qualquer sistema sócio-econômico global as instituições sociais nele existentes tendem a funcionar de modo a reproduzi-lo. Assim sendo, a medicina, enquanto prática social, acaba tendo esse papel no capitalismo como teria em outro modo de produção. Na verdade, é muito interessante observar que a orientação coletiva da medicina, enquanto assistência médica, é muito mais expressiva com o avanço do capitalismo do que em modos de produção anteriores. Os serviços de assistência crescem quantitativamente e segmentos sociais, até então desassistidos, são incorporados ao cuidado médico. Uma outra explicação para essa incorporação, além das já mencionadas (preocupação com a produtividade e controle das tensões sociais) estaria no fato de que tanto a indústria farmacêutica como a de equipamentos cresceu enormemente nestas últimas décadas. Como o lucro dessas atividades só se efetiva através dos atos médicos, que levam ao consumo das mercadorias produzidas por essa indústria, ela pressiona sempre no sentido de que os cuidados médicos se estendam a uma porção maior da população. É evidente que a própria população, por sua vez, luta para que o Estado proporcione sempre assistência médica mais adequada, o que leva à expansão da mesma, ainda que com diferenciação muito grande de qualidade, conforme se assinalou. A discussão sobre relações da assistência com a estrutura social pode ser encarada ainda sob outros aspectos, mas vamos nos limitar a estes. Poderíamos, por exemplo, discutir o enorme desenvolvimento do aparato técnico dessa assistência; a crescente politização do ato médico; os movimentos de contestação a esse gigantismo tecnológico; a contradição gerada pelos custos crescentes dessa assistência, o que inevitavelmente vai lhe estabelecer um limite; as tentativas de racionalização dos serviços médicos; o surgimento 28 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE de medicinas alternativas etc. Os limites de espaço nos obrigam, entretanto, a restringirmos nossa exposição aos pontos abordados. V – CONCLUSÕES O desenvolvimento de uma disciplina como a Medicina Social contribuiu, ao lado de outras causas evidentemente, para esclarecer a dupla natureza (biológica e social) do objeto da Medicina. O processo saúde-doença tendeu, cada vez mais, a ser percebido como sendo determinado (em boa parte pelo menos) pelo funcionamento e dinâmica do sistema social inclusivo onde ele ocorre. Passaram a ser devidamente consideradas as diferenças sociais na produção dos ditos fenômenos. Percebeu-se que saúde e doença só são explicáveis quando a sociedade deixa de ser vista como um todo homogêneo, estável e ahistórico e passa a ser, ao contrário, visualizada como dividida em classes, estratos e grupos sociais, freqüentemente opostos e mesmo antagônicos. Sob esse prisma, foram inovadas as concepções metodológicas que norteavam o entendimento da enfermidade. Ultrapassando relações causais imediatas, geralmente vinculadas apenas às características do organismo biologicamente considerado, a rotação de perspectivas proporcionada permitiu chegar à noção de totalidade social. Ouseja, entender que nem mesmo são as características sociais das pessoas que explicam boa parte das doenças, mas o conjunto de forças sociais mais profundas, as quais só podem ser adequadamente compreendidas quando nos voltamos para o bosque, deixando de nos cingir tanto às árvores que o compõem. Em termos de explicação e solução do problema doença, a novel disciplina tem mostrado que encarar o homem isoladamente, ou a população indistintamente, implica, sem dúvida, em construir uma abstração inadmissível. A explicação sociológica dos fenômenos médico-sociais, contudo, refere-se, principalmente, aos processos sociais vinculados às práticas sociais da medicina (especialmente assistência médica). É que, nesse caso, os fenômenos são inequivocamente sociais, com 29José Carlos de Medeiros Pereira a especificidade de estarem vinculados à área médica. A visão mais abrangente e totalizadora de como se estrutura, funciona e se transforma o sistema social, permite à Medicina Social determinar com mais precisão os aspectos extramédicos presentes na assistência médica. Tratando-se de uma sociedade dividida em segmentos sociais que mantêm entre si relações de dominação-subordinação ao nível sócio-econômico e político, entende-se que, nela, a proteção da vida e da saúde dependa de um cálculo econômico. É que, na verdade, tal assistência não é prestada, exatamente, a corpos biológicos mas a corpos sociais. O que está em jogo é a produtividade dos mesmos, seu poder, sua riqueza, seu prestígio. Quem os possui recebe tratamento (ou melhor tratamento). Não se pode, evidentemente, desconsiderar a capacidade política das classes dominadas de lutar por uma melhor atenção médica, mas a expansão da mesma, ocorrida no capitalismo, vincula-se, em grande parte, ao processo de reprodução ampliada do capital. Ou seja, valores alheios à ordem médica, em geral, orientam as decisões nesse campo. Enfim, uma diferente concepção geral do mundo e o domínio de outro instrumental metodológico, permitiram desenvolver um marco teórico de mais longo alcance seja no tocante à explicação do processo saúde-doença, seja na compreensão dos determinantes das práticas sociais da medicina.Tornou-se evidente que, para isso, era necessário considerar a sociedade específica em que esses fenômenos ocorrem, com seu sistema de estratificação social, de produção econômica e de distribuição de bens e serviços. Sobretudo no caso da assistência médica, a perspectiva aberta pela Medicina Social apontou o fato de as soluções aventadas, ao nível individual e coletivo, basearam- se, freqüentemente, numa percepção incorreta das relações sócio- culturais e dos interesses político-econômicos envolvidos. Se a visão predominante contribui, muitas vezes, para tecnificar variados problemas que são principalmente sociais, transformando-os em problemas médicos, esta outra (ainda heterodoxa) tende a colocá-los no campo específico de sua resolução: o político. 30 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE RESUMO O artigo apresenta o ponto de vista da Medicina Social quanto ao estudo tanto do processo saúde-doença como da assistência médica. Nele, de início, se aponta o fato de essa disciplina ter-se aproveitado, recentemente das contribuições feitas pela Epidemiologia Social (no tocante à interpretação social do processo saúde-doença) e pela Sociologia da Saúde (quanto à determinação extramédica da assistência médica). É exposto, em linhas gerais, o modo como essa disciplina explica os dois processos. Esclarece-se como ela concebe a Medicina como uma ciência histórico-social também, encarando os homens, sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos mas, sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas, membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes de relações sociais específicas. Indica-se como a rotação de perspectiva decorrente, ao alterar o paradigma do investigador, permite a este ver coisas novas em relação aos mesmos fatos. Em seguida estuda-se mais de perto a enfermidade como fenômeno social. Mostra-se como vê-la apenas como fenômeno natural tem enorme signficado político, pois transforma os problemas sociais envolvidos na produção da doença em problemas técnicos e não políticos. A Medicina Social, ao não fragmentar seu objeto, insere o fenômeno num todo social coerente, ao contrário da Medicina tradicional. Sua proposta de investigação ultrapassa o exagerado nível de concreticidade com que esta vê o processo saúde-doença, permitindo-lhe considerar outros aspectos essenciais do mesmo. É que a nova disciplina entende que o estudo do homem, sadio ou doente, isolado de seu contexto social, constitui mera abstração, já que ele participa de sociedades históricas, divididas, conflituosas, competitivas, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e prestígio. Conseqüentemente, não se pode tomar a presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica como inevitável. Ou seja, a Medicina Social volta-se para as diferenças sociais, considerando-as fundamentais. 31José Carlos de Medeiros Pereira Na parte final discutem-se os determinantes extramédicos da assistência médica. Este seria o outro conjunto de fenômenos pela qual se interessaria a disciplina examinada. Depois de se definir o que se entende por assistência médica, mostra-se como as práticas sociais da mesma configuram uma instituição social. Tomando-a como tal, verifica-se que a assistência médica raramente guia-se por critérios tão-somente médicos: em termos societários, políticos e econômicos, umas vidas têm sempre mais valor do que outras. As mesmas diferenças de tratamento são também claramente percebidas quando se estuda a história da assistência médica. É que como os corpos são principalmente sociais, eles se hierarquizam de acordo com sua produtividade, com o capital neles investido, segundo seu status e poder. Mesmo quando a assistência médica se volta para as populações marginais, o mais das vezes o que se pretende com ela é diminuir as tensões sociais. O autor entende, contudo, que explicar toda e qualquer transformação no âmbito da assistência médica como se vinculando inteiramente aos interesses do capital seria incorrer num mecanismo inadmissível. Crê que para explicar cabalmente o processo em discussão seria preciso ter em conta toda a complexidade da realidade social, na qual os aspectos políticos e sociais, por exemplo, desempenham também um importante papel. Ainda que sendo as determinações econômicas as mais evidentes, sem dúvida, haveria ainda que discutir outros pontos, como a influência da ciência e da técnica no aparato técnico dessa assistência, a crescente politização do ato médico, os movimentos de contestação ao tipo de assistência médica hoje em voga, as tentativas de racionalização dos serviços médicos, o surgimento de medicinas alternativas etc. 32 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1 - Berlinguer, G., 1978. Medicina e Política, Cebes-Hucitec, São Paulo; 2 - Conti, L., 1972. “Estrutura social y medicina”, in ALOISI e outros, Medicina y Sociedade, Editorial Fontanella, Barcelona; 3 - Donnangelo, M. C. F., 1975. Medicina e Sociedade, Livraria Pioneira Ltda., São Paulo; 4 - Donnangelo, M. C. F. e Pereira, L., 1976. Saúde e Sociedade, Livraria Duas Cidades, São Paulo; 5 - Gonçalves, R. B. M., 1979. Medicina e História – Raízes Sociais de Trabalho Médico, Dissertação de mestrado, Faculdade de Medicina da USP, São Paulo; 6 - Illich, I., s/d. A Expropriação da Saúde – Nêmesis da Medicina, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro; 7 - Kuhn, T. A., 1978, A Estrutura das Revoluções Científicas, Editora Perspectiva, 2a. edição, São Paulo; 8 - Laurell, A. C., 1981. “Processo de trabalho e saúde”, Saúde em Debate, nº 11, Rio de Janeiro; 9 - Laurell, A. C., 1983. “A saúde-doença como processo social”, in Nunes, E. D. (org.), Medicina Social– Aspectos Históricos e Teóricos, cap. 4, Global Editora, São Paulo; 10 - Pereira, J. C., 1983. A Explicação Sociológica na Medicina Social, tese de livre-docência em Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, mim., Ribeirão Preto; 11 - Pereira, J. C., 1984. “O específico e o geral nas ciências”, Ciência e Cultura, 36 (9), São Paulo; 12 - Pereira, J. C. e Ruffino Netto, A., 1982. “Saúde-doença e sociedade; a tuberculose – o tuberculoso”, revista Medicina, 15 (1/2), Ribeirão Preto; 13 - Ruffino Netto, A. e Pereira, J. C., 1982. “O processo saúde-doença e suas interpretações”, revista Medicina, 15 (1/2), Ribeirão Preto; 14 - Singer, P. e outros, 1978. Prevenir e Curar – O Controle Social através dos Serviços de Saúde, Forense-Universitária, Rio de Janeiro; 15 - Teixeira, S. M. F., 1984. “Investigações de Ciências Sociais em Saúde no Brasil”, Cadernos EBAP, nº 29, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro; 16 - Weber, M., 1973. Ensayos sobre Metodologia Sociológica, Amorrurtu Editores, Buenos Aires. 2. MEDICINA PREVENTIVA, SAÚDE PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS 35José Carlos de Medeiros Pereira 2.1. O PROJETO PREVENTIVISTA E A NOÇÃO DE SUB- DESENVOLVIMENTO* Quando, logo após a Segunda Guerra Mundial principalmente, começou-se a discutir mais intensamente as razões do subdesenvolvimento, surgiu uma extensa e variada literatura a respeito, produzida sobretudo nos Estados Unidos, que relacionava o subdesenvolvimento à inexistência, nos países do Terceiro Mundo, de uma mentalidade e um conjunto de valores que propiciassem o crescimento econômico. Esta literatura se referia, entre outras coisas, à falta de mentalidade empresarial, à inexistência de valores positivos ligados ao trabalho duro e continuado (considerando-se os povos africanos, asiáticos e, de certa forma, também latinos, como demasiadamente adeptos do ócio), à ausência de preocupação com o amanhã, o que faria com que a poupança e o investimento fossem relativamente baixos e assim por diante. Conseqüentemente, a superação da situação de subdesenvolvimento foi vista como dependendo, em grande parte, de um intenso esforço de modernização cultural. Ou seja, ela se faria através de um processo de mudança cultural ao cabo do qual os povos desses países passassem a ter mentalidade, valores, instituições etc. mais próximos aos imperantes na Europa Ocidental (não latina especialmente), Japão e Estados Unidos. Em face dessa interpretação do processo de desenvolvimento/subdesenvolvimento, caberia aos países tidos como desenvolvidos o papel de mentores da transformação apregoada. * Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 35(8) agosto de 1983, pp. 1075-7. Um trecho foi alterado porque divergia acentuadamente do modo de pensar atual do autor. 36 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Contribuiriam para a modernização proposta oferecendo cursos de formação e treinamento de modo a formar quadros superiores para os países mais ou menos à margem da civilização ocidental (entenda- se, ainda não suficientemente vinculados ao modo de produção capitalista); fornecendo assessores às instituições governamentais desses países; produzindo programas radiofônicos, televisivos e cinematográficos em que o estilo de vida mais adequado à situação de desenvolvimento e crescimento econômico fosse propagado; enviando missionários que convertessem esses povos a um catolicismo menos tradicionalista ou, o que seria melhor, à forma de cristianismo considerada como mais burguesa (as várias seitas protestantes); exportando capitais e managers que difundissem as modernas técnicas de organização empresarial etc. Enfim, seria “dever” dos países desenvolvidos compartilhar sua civilização com os subdesenvolvidos. Paulatinamente, contudo, especialmente depois dos anos 60, foi ficando claro para os estudiosos do problema do subdesenvolvimento menos comprometidos com o status quo, que a condição de subdesenvolvimento tem raízes que vão além de um suposto atraso cultural. É preciso sempre se perguntar: atraso em relação a que? De fato, cada cultura tem valores próprios, de modo geral adequados à consecução dos fins maiores a que se propõe. Sem dúvida, há excessiva justificação ideológica nas teorias que consideram o subdesenvolvimento como decorrente, fundamentalmente, da espoliação sofrida pelos atuais subdesenvolvidos em face dos desenvolvidos. Mas há que se tomar tal possibilidade em consideração, sobretudo no caso de alguns desenvolvidos, como a Grã-Bretanha em face da Índia por exemplo. Ou seja, se os fatores culturais não podem ser desprezados, igualmente não podem ser os econômicos, especialmente no caso de algumas relações históricas que se estabeleceram entre alguns países no decorrer do processo de desenvolvimento capitalista mundial. Vai uma distância muito grande entre considerar um fator como sendo causal a considerá-lo como determinante. Os processos sociais, na quase totalidade, possuem fatores multicausais. 37José Carlos de Medeiros Pereira Na verdade, tanto a chamada “teoria da modernização” como a do desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista, a par de serem ideologicamente viesadas, possuem seus méritos específicos, sobretudo se, no caso da segunda, pensarmos mais em termos de dependência do que propriamente em termos de espoliação. Ambas, possivelmente, exageram na tendência de tomar a aparência das coisas pela sua essência. Em suma, o aprofundamento da discussão a respeito das razões do subdesenvolvimento mostrou que a referência ao “atraso cultural” é uma explicação muito parcial da questão. Concluiu-se que enquanto não fosse suplantada a dependência econômica, dificilmente o seria a cultural, inclusive científica e tecnológica. O enfrentamento daquela (a econômica) torna-se difícil, por sua vez, pelo fato de que a dependência representada pelo subdesenvolvimento cria também mentalidades dependentes, internalizando-se a dominação. De modo assemelhado as coisas se passaram ao nível da medicina preventiva. O projeto preventivista proposto para o desenvolvimento na América Latina (a partir dos Estados Unidos) foi um projeto em grande parte colonizador, como os demais projetos sociais elaborados segundo a visão que se tinha do subdesenvolvimento atrás exposta (a do atraso cultural) Segundo ela entendia-se que os povos subdesenvolvidos eram doentios porque, sobretudo,muitos aspectos de sua cultura eram inadequados em termos de produção da saúde: hábitos de higiene e alimentares, noções a respeito da saúde, métodos de prevenção e cura, habitações; enfim, um modo de vida errôneo, incorreto, que acabava facilitando a disseminação da doença e abreviando a morte. Os países desenvolvidos tinham, nesse campo, outra tarefa de cunho missionário, colonizadora e civilizadora, que era a de levar a esses povos atrasados os benefícios da ciência e da técnica, da educação e da medicina modernas, ensinando-os a ter uma vida mais sadia. Influenciando as escolas médicas, esta visão do problema levou ao desenvolvimento de uma medicina preventiva bastante normativa, ainda que não necessariamente sob esta denominação. Assim é que praticamente até o início da década de 60 não havia 38 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE departamentos que ensinassem aquela disciplina, mas sim higiene e saúde pública. Sem dúvida, para estas, de modo geral, sempre foram atraídos muitos médicos com uma preocupação mais social do que individual dos problemas da saúde, interessados antes em conservá- la do que em tratar da doença. Contudo, dada aquela interpretação das razões da doença, a higiene e saúde pública tornaram-se freqüentemente policialescas. Não é à-toa, por exemplo, que os serviços de saúde pública passaram a fazer inúmeras recomendações ou mesmo determinações quanto ao uso de alimentos, ao modo como as casas deveriam ser construídas (em termos, por exemplo, de metragem dos cômodos, instalações sanitárias,etc) e assim por diante. Um entendimento do problema de saúde a esse nível levou, conseqüentemente, a uma continuada tentativa de normatizar a vida da população à semelhança dos demais órgãos governamentais. Os preventivistas viram-se a si mesmos como donos do saber e aos outros como ignorantes a serem ensinados, sua atuação pouco diferindo, quanto a este aspecto, da maneira de agir dos demais médicos. Conseqüentemente, tenderam, freqüentemente, a afastar a população do processo de tomada de decisões no tocante a uma esfera fundamental da existência, qual seja a relativa à saúde e à doença. Posteriormente, houve uma evolução da compreensão do problema, no sentido de se perceber que muitas daquelas recomendações, que entram em choque com o modo de ver das populações, são inaplicáveis, na prática. Mais ainda, concluiu-se que nem tudo aquilo que o povo crê e pratica é necessariamente maléfico à saúde e que, além do mais, dada a responsabilidade governamental em prover a população de bens e serviços considerados como geradores de saúde, seria conveniente educar a população para pleitear tais bens e serviços (por exemplo, saneamento básico). Esta foi uma característica do período da medicina comunitária. Só muito mais recentemente, quando se reinterpretou o subdesenvolvimento sócio-econômico é que houve, entretanto, uma 39José Carlos de Medeiros Pereira radical alteração no modo de se entender a doença a nível coletivo. Em razão dela, o projeto preventivista chegou, finalmente, a encampar a proposta da medicina social, que interpreta o processo de saúde/ doença nos países do Terceiro Mundo, como sendo, fundamentalmente, conseqüência do subdesenvolvimento, nos termos em que se discutiu no final da primeira parte deste artigo. Isto é, enquanto não houver uma alteração significativa das estruturas sociais, políticas e econômicas responsáveis pela situação de miséria material e não- material em que vivem os povos subdesenvolvidos, muito pouco se poderá fazer para melhorar sua condição de saúde. Modificado assim o projeto preventivista, em razão da alteração da compreensão do processo de subdesenvolvimento, aqueles profissionais agora voltados para a medicina preventiva e social tendem a alterar sua postura no trato com a população. Na prática concreta se dirigirão a ela, cada vez menos, supomos, como se fossem donos de um saber e de uma cultura superior que se atribuíram a missão de ensinar e orientar os ignorantes. Isto porque terão em conta que os homens doentios e sem educação formal elevada são, eles próprios, vítimas de uma situação pela qual não são nem individual nem coletivamente responsáveis. Desta forma, ainda que compreendam a necessidade de enfrentar, com os recursos normais e próprios da medicina, a doença que as relações sócio-econômicas vigentes tendem a produzir em determinados conjuntos de indivíduos, considerarão outros aspectos da relação entre estrutura social e processo saúde-doença. Também, tampouco, dentro da nova visão, se negará a possibilidade de se levar a população a sentir, pensar e agir de modo diferente frente a esse processo (embora respeitando mais sua própria visão sobre o assunto), como queria a medicina comunitária. O que vai distinguir tais profissionais será sua visão mais politizada da questão. Isto significa que pensarão o problema e atuarão não só como técnicos da área, mas perceberão que, sem um projeto político que seja encampado por segmentos sociais significativos, não ocorrerão aquelas mudanças sócio-econômicos capazes de aliviar a situação 40 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE de pobreza material e não-material responsável pela doença coletiva evitável. Em nada altera o entendimento de que a solução do problema desta é político o fato de que variará o projeto ao qual cada pessoa, individualmente, se ligará. RESUMO É discutida uma possível vinculação entre a mudança no entendimento das causas do subdesenvolvimento e as transformações pelas quais tem passado o projeto que orienta a medicina preventiva. A interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de uma visão culturalista (teoria da modernização) para uma visão econômica (teoria da dependência). No caso da medicina preventiva, a interpretação evoluiu desde uma visão de que a doença seria devida a fatores ligados a hábitos culturais, para a medicina social, em que a doença coletiva é relacionada à estrutura social e global. 41José Carlos de Medeiros Pereira 2.2 PROBLEMA SOCIAL E PROBLEMA DE SAÚDE PÚ- BLICA* 1. INTRODUÇÃO Há grandes semelhanças na discussão do que seja problema social e problema de saúde pública. Em primeiro lugar, elas surgem já na dificuldade de definição de ambos; depois, no estabelecimento do que seja normal e patológico e nas interferências de natureza ideológica tanto na definição como nas soluções. O planejamento destas, em ambos os casos, vai depender, por sua vez, do modo como se encare o sistema social, político e econômico e, freqüentemente, da capacidade dos profissionais do setor de interessar um grupo social suficientemente poderoso para que se empenhe nelas, incluindo-as no seu projeto de transformação social. Não menos importantes são as semelhanças decorrentes do fato de muitos problemas de saúde pública serem, ao mesmo tempo, problemas sociais, e vice-versa, embora haja uma tendência indevida, na medicina, de incluir como problemas médicos questões que, na verdade, são fundamentalmente sociais. Essas similitudes é que pretendemos abordar no presente artigo. 2. QUEM DEFINE? O NORMAL E O PATOLÓGICO DO TÉCNICO E O DA POPULAÇÃO. Temos verificado que médicos, em geral, e sanitaristas e preventivistas, em particular, praticamente não se preocupam com a * Artigo publicado originalmente em Temas IMESC 4(1): 5-20, 1987. 42 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE questão de a quem cabe a definição do problema de saúde pública, ao contrário do que ocorre, pelo menos com alguns sociólogos, em relação aos problemas sociais. Nisto, certamente, interferem os vieses profissionais de ambos. Os médicos, por exemplo, tendem a considerar que questões de saúde e doença são de sua inteira responsabilidade, enquanto os sociólogos são menos exclusivistas no que tange à discussão de temas sociais. De qualquer modo, as dificuldades são assemelhadas. Na discussão dos sociológos há, de princípio, uma divergência significativa: quem é que vai considerar como socialmente indesejáveis atitudes, comportamentos, processos, relações, instituições sociais? Indesejável para quem? Para toda a sociedade ou para um seu segmento? Por trás da definição dificilmente vamos deixar de encontrar atitudes valorativas quanto ao que seja normal, sabidamente uma noção muito relativa. Dado que em toda sociedade complexa encontram-se grupos sociais heterogêneos, classes com interesses divergentes, contraditórios e mesmo antagônicos, o que um grupo pode perceber como patológico, outro pode ver como perfeitamente normal. O mesmo, pelos menos em parte, aplica-se à definição de problema de saúde pública. Esta é uma das dificuldades quando se reserva a definição de problema social à população. Não sendo homogênea e predominando nela os interesses e a ideologia dos grupos dominantes, aquilo percebido como socialmente indesejável pode ser uma inovação capaz de contribuir para a melhoria das condições de vida da maioria da coletividade. A visão conseqüentemente, é, em geral, conservadora, havendo a tendência de conceber o status quo como normal. De qualquer modo, quando se percebe algo como gravemente indesejável do ponto de vista social, lança-se mão dos conhecimentos técnicos e científicos para corrigir as assim tidas como disfunções do sistema vigente. É verdade que essa mesma ordem pode ser considerada, ela própria, como indesejável por grupos minoritários. Esta, no entanto, é uma dificuldade insanável. O que é concebido como problema social varia de uma classe oufração de classe para outra, ou conforme a religião, a subcultura do grupo, etc. Por exemplo, um grupo de 43José Carlos de Medeiros Pereira criminosos pode ter valores discrepantes em relação ao restante da sociedade, mas perfeitamente aceitos no interior do grupo e, portanto, sociologicamente normais se esse grupo restrito for tomado como paradigma. Tomar o geral, o comportamento médio ou mediano como normal não oferece, na verdade, maiores problemas cientifícos quando se trata de um sistema social relativamente estável. A dificuldade surge nos momentos de transição, quando comportamentos comuns não respondem às exigências do sistema social emergente. Neste momento é possível ao sociólogo, como veremos, considerar como patológico aquilo que ainda tem a aparência de normal. Outra possibilidade de definição de problema social é atribuí-la ao discernimento do cientista social, principalmente do sociólogo. Também, neste caso, é difícil não haver interferências ideológicas. Por exemplo, o sociólogo, segundo sua concepção, pode entender como inexorável a tendência de transformação de um dado sistema social, que se encontra em transição, no sentido de ele se constituir em plenamente capitalista. Então, muito daquilo que estivesse obstaculizando a emergência do novo tipo social poderia ser tido como problema social. Suponhamos, para continuar o exemplo, uma população vivendo em economia de subsistência. Ainda que ela não estivesse sentindo sua situação como socialmente indesejável, esse tipo de economia pode representar um problema em termos do modelo representado pelo sistema capitalista de produção. Pode-se estabelecer um conflito entre a noção de normal do cientista social e a da população envolvida. Mais grave ainda é quando se realiza uma intervenção planejada para alterar uma situação social vista pelo grupo técnico-científico como problemática e que tem, como conseqüência não planejada, a criação de outra, esta sim considerada pela população como socialmente indesejável. Continuando ainda o exemplo, suponhamos que a população vivendo em economia de subsistência tivesse sido inserida na economia de mercado e que, não tendo sido devidamente preparada para isso, passasse a sentir dificuldades de integração à nova situação. Nesse caso teríamos alterado uma condição existencial vista como problemática pelo sociólogo e criado 44 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE um problema social inexistente antes, do ponto de vista da população. É claro que, em qualquer intervenção planejada nos processos sociais, há de se ter em conta as possíveis conseqüências negativas da mesma para a população alvo. É certo que os sanitaristas dificilmente concedem à população a responsabilidade pela definição do problema de saúde pública, mas dificuldades assemelhadas, decorrentes de conflitos com a população, criam-se também para eles. Como alguns sociológos, eles podem achar a definição de problema pela população como científicamente inaceitável, dada a quantidade de preconcceitos sobre a saúde e a doença existentes no seu meio. Mas ao reservarem a si a incumbência, podem entrar em conflito com ela, ou, mais precisamente, com certas parcelas da mesma interessadas na manutenção de um dado estado de coisas. Teremos oportunidade de discutir adiante a própria definição de problema de saúde pública, mas suponhamos que certos hábitos e comportamentos sejam considerados, pelos sanitaristas, como tendo conseqüências negativas para a saúde da população que os pratica. Ora, dificilmente se consegue fazer a correção planejada de condições sócio-culturais e econômicas sem maiores resistências, mesmo quando a alteração pretendida for no nível individual (a referida mudança de hábitos); mais ainda quando o nível no qual se pretende interferir é o institucional ou o estrutural (modificação da arquitetura ou da distribuição de renda). Seja, para exemplificar, uma intervenção numa área relativamente simples como a da moradia. Imaginemos que se tenha chegado à conclusão de que a melhor forma de combater a doença de Chagas, numa dada região, seja a construção de casas de alvenaria de certo padrão. A resistência à alteração poderá ser grande por parte dos proprietários rurais que estejam destinando aos seus trabalhadores habitações sanitariamente impróprias. 3. OS CONFLITOS DE OBJETIVOS Poderia parecer que os conflitos entre o pessoal técnico- 45José Carlos de Medeiros Pereira científico e a população, ou certas parcelas dela, no caso do problema de saúde pública, seriam menores porque o ideal de saúde é muito mais facilmente aceito por todos os segmentos sociais do que objetivos de natureza social. Isto só em parte é correto. É verdade que há padrões quantitativos e qualitativos mais precisos em se tratando do que seja saúde e doença, sobretudo em termos individuais, do que os que indicam o normal e o patológico sociais, ainda que a definição de saúde comumente usada, difundida pela Organização Mundial da Saúde, deixe muito a desejar (“estado de completo bem-estar físico, mental e social e não, apenas, ausência de enfermidade”). Aqui nos deparamos com duas dificuldades principais: 1) a de que o problema de saúde pública pode, ao mesmo tempo, ser um problema social e, mais do que isso, fundamentalmente, um problema social; 2) a decorrente do fato de não haver coerência entre os objetivos de pessoas, grupos ou coletividades. Eles podem, inclusive, ser contraditórios. Discutiremos aqui esta segunda questão, deixando a primeira para mais adiante. Médicos e sanitaristas, quando se trata de problemas de saúde individual ou coletiva, geralmente raciocinam como se pessoas e grupos sociais tivessem como principal motivação, em suas vidas, a conquista ou manutenção da saúde. Isto só é verdadeiro em alguns momentos de sua existência. A razão é simples: os homens, seja individual, seja coletivamente, comportam-se socialmente tendo em conta objetivos diversos, contraditórios ou até mesmo antagônicos, situados em diferentes esferas do social, como já dissemos. A intervenção planejada de cientistas, técnicos sociais, médicos ou sanitaristas, numa determinada realidade médico-social, vai portanto, encontrar, sob esse ponto de vista, escolhos outra vez assemelhados. Por exemplo, um objetivo econômico, como o de ganhar mais, pode conflitar com o de gozar mais saúde, porque o atingimento do primeiro pode implicar um modo de vida estressante, fatigante, depauperante etc. O sentir-se bem física, mental e socialmente pode exigir, por exemplo, em certos casos, até que se beba e que se fume. A variedade e diversidade de objetivos perseguidos na vida em sociedade por 46 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE indivíduos, grupos e classes torna inimaginável um homem tendo como único objetivo na vida (seja o de ter saúde, seja o de apenas ganhar dinheiro). Imaginá-lo assim seria concebê-lo como um ser alienado e, portanto, sem saúde. Estaríamos diante de uma contradição. Os vários fins que os homens perseguem estão ligados, por sua vez, a valores socialmente aceitos, pelo menos num determinado ambiente social, já que o que um grupo social pode ter como valor positivo, outro pode ter como valor negativo. Repetindo o exemplo, num grupo heterodoxo os valores aceitos como desejáveis serão, com grande probabilidade, contestados pelos grupos majoritários da sociedade na qual todos se incluem. Mas, dentro de um mesmo grupo social, os valores socialmente aceitos como meritórios são freqüentemente contraditórios. Valoriza-se, por exemplo, o homem economicamente bem-sucedido e o homem honesto, mas as duas coisas nem sempre andam juntas. Em nosso tipo de sociedade, aceitar o primeiro valor pode implicar desobedecer ao segundo. Por isso é que, em grande parte, as pessoas se neurotizam. Elas introjetaram, em seu processo de socialização, valores discreprantes. Para se conseguir atingir um fim socialmente valorizado numa esfera, podemos
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