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Presidente da República José Sarney Ministro da Educação Carlos SanfAnna MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Secretaria de Ensino Básico CURRÍCULO DA ESCOLA DE 1º GRAU A P R E S E N T A Ç Ã O A Reunião Técnica Nacional realizada em Brasília de 17 a 19 de maio de 1989, sobre a função social da escola e a função dos conteúdos significativos para o ensino de 1º grau, promovida pela Secretaria de Ensino Básico do Ministério da Educação - SDE/SEB -, representou um momento de debate, junto às secretarias estaduais e municipais de Educação das capitais, tendo em vista a formação.do cidadão brasileiro, numa sociedade democrática. Essa Reunião Técnica constituiu-se numa segunda etapa das atividades que vêm sendo desenvolvidas pela Secretaria, no sen- tido de desencadear ações que viabilizem uma ampla discussão e re- flexão com diretores, professores e especialistas, nas unidades fede- radas. A participação de especialistas das diversas disciplinas do currículo contribuiu, de maneira significativa, para que o intercâmbio de ideias e os debates se centrassem, de maneira objetiva, em questões fundamentais. Desta forma, busca-se a aproximação da uni- versidade brasileira com a educação básica. Este relatório reúne as sínteses das ideias gerais e espe- cíficas de cada disciplina do currículo, discutidas na Reunião Técnica, que apoiarão a continuidade dos estudos e reflexões sobre os temas abordados. PROMOÇÃO: Secretaria de Ensino Básico Subsecretaria de Desenvolvimento Educacional Coordenadoria de Apoio Pedagógico ao Ensino de 1º Grau Prof- Lindóia Vinhas - Secretária/SEB Profª Odete P. Maciel - Subsecretária/SDE Profª Mércia Mª dos Santos - Coordenadora/CRS LISTAGEM DOS PARTICIPANTES CONSULTORES GENERALISTAS E ESPECIALISTAS - José Luiz Domingues UFGO/GO - Selma Garrido Pimenta USP/SP - Avani A. Xavier Lanza UFMG - Português - Nilza Eigenheer Bertoni UnB - Matemática - José Maria G. de Almeida UnB - Ciências - Terezinha Lopes Araújo UFMG - Ciências - Eloísa Mattos Hoffling Unicamp/SP - Estudos Sociais - Vera Lúcia Salazar Pessoa UFU/MG - Geografia A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA DE 1º GRAU -OS CONTEÚDOS SIGNIFICATIVOS Prof. José Luiz Domingues - UFGO I. INTRODUÇÃO 1. Objetivo Meu objetivo, nesta exposição, com base numa reflexão sobre a nossa prática de currículo em nível de Secretaria de Educa- ção, é iluminar retalhos de informações que, a meu ver, devem ser considerados na elaboração de uma proposta curricular (para não sermos como em 1971). Em outras palavras, apresentar fragmentos de discursos, de denúncias e de anúncios sobre o currículo do ensino de 1º grau, para que cada UF transforme-o em texto, no seu contexto. Tentarei, de forma esquemática, apresentar uma agenda de discussão a ser esgotada pelas UFs, dentro dos limites possíveis, antes de se iniciar o processo de reformulação/reconstrução do currí- culo para o ensino de 1º grau, estimulado pelo art. 210 da atual Constituição federal. Os tópicos privilegiados são: • Sociedade brasileira contemporânea; • O que é isso chamado escola?; • Currículo: uma resposta possível; • Aprendendo com a história: os movimentos de refor- mulação curricular. 2. Conteúdos e forma da comunicação II. SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA - O pano de fundo que concretamente sustenta a sociedade brasileira contemporânea pode ser delineado em rápidas pinceladas a partir de um conjunto de três forças: a tradição judaico-cristã, o modo de produção capitalista e os problemas contemporâneos. O Brasil está inserido no Mundo Ocidental, e, em decorrência, suas crenças básicas - valores, princípios de justiça, etc. -estão ancoradas na tradição judaico-cristã. Exemplos são vários, é possível destacar: - não há diferença de raça, sexo, cor, etc; - a dignidade de vida é um direito inalienável do homem; - o homem é um ser racional; - o direito de livre pensar; - a estrutura de família; - a relação do homem com a natureza. Em relação ao modo de produção, o Brasil é um país capitalista periférico, agravado pelos diferentes estágios de desenvolvimento do mesmo. Enquanto, no Norte, temos uma economia tipicamente extrativista, com todas as sequelas sociais da mesma, já, no Nordeste, vivemos um pré-capitalismo, com base mais no agrário, sendo a reforma agrária algo ainda a ser conquistada. Por sua vez, no Centro-Sul do País, o capitalismo na sua forma mais avançada - base nos serviços - vive, principalmente em alguns pontos, a modernidade típica das economias lentas deste final de século XX. Os interesses conflitantes de uma sociedade de classe são uma realidade no nosso cotidiano. De um lado temos o grupo he-qemônico lutando para continuar aumentando o capital e não acei- tando socializar o poder. De outro, a luta diária da classe trabalhadora para avançar na melhoria de sua qualidade de vida e na participação/intervenção nos diferentes níveis do poder (econômico, político...)- Evidentemente, o positivismo, como forma dominante da produção do conhecimento nas ciências sociais, é um fato, é o método científico por excelência. A neutralidade da ciência, a universalidade da teoria, a decomposição do todo em variáveis mensuráveis e controláveis, primazia do método sobre o objeto, são os fundamentos epistemológicos que dominaram, quase que exclusivamente, a história das ciências sociais no Brasil. Por fim, mas não o último, seria importante agendar nesta comunicação alguns exemplos da contemporaneidade dos nossos problemas - final do século XX: - Problema I - Economia: inflação, desemprego, multinacional fazem parte do nosso cotidiano, com a agravante de sermos uma economia periférica. - Problema II - Ecologia e poluição: agrotóxicos, Césio, vitalidade dos nossos rios estão presentes na qualidade de nossas vidas, com o agravante de uma baixa (para não dizer inexistente) consciência preservacionista/cooperativa na relação homem versus natureza. - Problema III - Ciência e tecnologia: informática, engenharia genética, energia solar. A revolução social, a partir da ciência e tecnologia, já bate as portas com o agravante de que continuamos morrendo de fome, de falta de higiene primária, de vermes na barriga... - Problema IV - Comunicação: Telefone (DDD, DDI...), TV (via satélite...) já são realidade para a maioria da população, po- rém não chegaram à escola. Nós, educadores, por termos medo de fazer o enfrentamento com os meios de comunicação de massa, dei- xamos que eles exerçam, a cada dia, mais influência na formação do cidadão. - Problema V - Estilo de vida: As cidades cresceram e o País deixou de ser predominantemente rural para se urbanizar e em decorrência: o inchaço das cidades, a violência urbana, a pauperiza- ção do homem. A família: o que é família? qual é o papel da mulher? o lugar da 3º idade no coletivo familiar? É cada vez maior o número de questões sobre a família ideal. III. O QUE É ISSO CHAMADO ESCOLA? Tentarei responder à questão buscando resposta na His- tória. História entendida como a humanidade elaborando-se a si mesma. História como resgate do passado para iluminar o presente e nos auxiliar a projetar o futuro. Se jogarmos uma rede e pararmos no Egito Antigo, pas- sando pela Grécia, por Roma, pela Idade Média... e chegarmos até os dias atuais, iremos encontrar alguns pontos comuns que nos permitem responder à questão, a saber: • instituição ligada ao poder/Estado; • objetivo - formar o cidadão -, definição que, apesar de pontualizada nos diferentes blocos históricos, se desvela sempre como o homem capaz de conservar e modernizar aquela sociedade; • Professores: funcionários (proletários) da superestrutu-ra; • Base curricular: instrução intelectual e aprendizagem do ofício. • Deve-se ressaltar que as três dimensões fundamentais da vida humana se encontram sempre por trás das atividades curri culares desenvolvidas na escola, na sua trajetória: Egito - dias de hoje. A ênfase numa ou noutra dimensão depende, em cada momen to, dos interesses da classe detentora do poder. As dimensões fundamentais da vida humana a que me re- firo são: • Trabalho - a manipulação do meio físico e social, in- cluindo nossa própria manipulação. Interesse técnico/controle orienta o fazer curricular; • Linguagem - a mediação da qual depende a transmis- são institucionalizada da cultura. Neste caso, o interesse consen- so/comunicação é que orienta o fazer curricular; • Poder - a criação e manutenção da sociedade particu- lar/a tomada de posição em relação aos objetivos. O interesse eman- cipador ou crítico é que dá sustentação ao fazer pedagógico. Dando um salto - e hoje? como responder ao novo da questão no Brasil? A leitura da história da escola em função do seu presente e dos seus compromissos políticos revela que o novo, hoje, no Brasil, está: 1. A escola pública, pelo processo de expansão que passou, é o espaço privilegiado em que confluem conflitos, interesses antagónicos do Estado, aliados ao capital (reprodução), e do traba- dor (renovação) na formação do cidadão. 2. A escola pública deve ser vista como: - um dos instrumentos de revitalização/transformação social - lutas, etc; - o espaço, por excelência, destinado à apropriação do conhecimento por parte das classes subalternas: co nhecimento este que lhe foi expropriado historicamente (mandar e dirigir quem manda). 3. O professor da escola pública, pelo seu crescimento numérico, tornou impossível o controle total do seu trabalho pelo Estado. Isto coloca-o como uma das poucas forças culturais relativamente independente frente ao poder do capital e do Estado. Podemos ser juízes e orientadores do nosso o quê/como fazer? É uma questão que os professores devem explicitar e assumir. Sem reducionismo, sem ingenuidade, sem idealismo, mas realista, espero ter apontado para uma direção da resposta. Espero, nestes dias, reescrevermos coletivamente a resposta. IV. CURRÍCULO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL Iniciaria este tópico por uma definição aproximativa do que eu chamo de currículo. Currículo é uma manifestação deliberada da cultura via escola, cuja essência consiste no entrelaçamento do desvelar da história do eu individual com o desvelar da história do eu coletivo. É um ir e vir. - do singular para o geral, - do fenômeno para a essência, - da realidade para a possibilidade. Uma proposta curricular gira em torno de três eixos: his-tórico- social, epistemológico, cotidiano. A questão que se coloca em relação ao eixo histórico-so- cial é: qual o saber que emancipa? Em contraponto, qual é o saber que aliena? Já é hora de superarmos a polémica saber popular versus saber elaborado e analisarmos esta (falsa) polémica como faces de uma mesma moeda, na perspectiva de uma relação dialética entre ambas. As duas categorias a serem trabalhadas são o interesse cognitivo humano e o controle social. O eixo epistemológico resgata e coloca no hoje a historicidade dos componentes/conteúdos curriculares. É o assumir de que o conhecimento, nas suas diferentes formas, é temporal, tem um ritmo histórico no seu avanço que está imbricado no projeto de sociedade em que se insere. No entanto, estas reflexões não podem ser descoladas da função social dos componentes/conteúdos curriculares. Conteúdo é forma, é a categoria de análise/crítica por excelência. • O terceiro eixo, o cotidiano, dá-se quando o currículo transforma-se em ato. É o ponto de partida e o ponto de qualquer reformulação/reconstrução de currículo. É no cotidiano que se antecipa e se efetiva a história. Em outras palavras, é no momento em que o currículo se faz ação na sala de aula, que podemos ver a efetiva in- tencionalidade da proposta, do agente pedagógico, do livro didático, do aluno... No comprometimento e na instrumentalização do professor está o x da questão. Antes de encerrar esse tópico, gostaria de deixar registrados três alertas: 1. A penetração, cada vez maior, no currículo de escola pública do 19 grau, de todas as espécies de barbáries pedagógicas é uma realidade. 2. O velho e carcomido paradigma curricular (técnico-li-near) hegemónico no Brasil, atualmente, chegou ao seu ponto máximo de exaustão. 3. A crise indica a ocasião de renovação. De reconcep- tualizar o campo. Qual é o nosso compromisso e competência com esse desafio? V. APRENDENDO COM A HISTÓRIA: OS MOVIMENTOS DE RE- FORMULAÇÃO CURRICULAR Se aprendemos muito nesses últimos 20 anos de movimento de currículo, não sei, mas alguns nós desta caminhada gostaria de apontar. Nó I - Equipe de currículo: A sua constituição, a presença de gratificações externas aos seus membros, a sua posição em nível de estrutura da Secretaria de Educação são problemas que merecem, não só, serem revisados, mas, também, ousarmos nas suas soluções. Nó II - Professores: vítimas e réus de uma tríplice aliança - (1ª) formação da América em relação à teoria e à prática pedagógi-co-social, (2ª) falta de condições mínimas para o exercício da profissão e (3ª) negação da sua participação, como sujeito e não como recurso, nos projetos de reformulação/reconstrução curricular. A solução, à medida que o nó se apresenta com tanta clareza, é fácil. Falta, porém, a vontade política do Estado. Nó III - Material didático (livro escolar): interferir nesta parte significativa da indústria cultural é não só ameaçador como frustrador. O embate companhias editoras versus equipes de currículos é algo que tem de ser assumido. Caso contrário, as companhias editoras é que continuarão a prescrever, a controlar e a avaliar o currículo nosso de todos os dias. Com raras exceções. Para finalizar, gostaria de deixar registrada a minha preo- cupação com os programas de treinamentos desenvolvidos em diferentes UFs: o treinamento em cascata, que leva ao aniquilamento da proposta, e a fragmentação dos treinamentos, que levam à populari- 14 zação de custo e esforços, sem efeito algum na melhoria da qualidade de ensino. Comecemos a sonhar e ousemos a construir o futuro. A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA DE 1º GRAU -OS CONTEÚDOS SIGNIFICATIVOS Prof5 Selma Garrido Pimenta - USP Admitida a importância da escola como uma instância de lutas, articulada com a sociedade como um todo, na emancipação das camadas populares, a aprendizagem dos conteúdos socialmente elaborados coloca-se como a especificidade(l) da escola. Apesar de, na sociedade capitalista, a escola ser privilégio das camadas dominantes e trabalhar em seu favor, contraditoriamente a evolução do modo de produção capitalista requer, cada vez mais, que os trabalhadores tenham um mínimo de conhecimentos como condição da melhoria e da manutenção destes enquanto força (1) Quando se afirma que é especificidade da escola ensinar, não se quer di- zer que lhe seja exclusivo. A ênfase na especificidade se faz historica- mente necessária, porque dadas as diferentes concepções por que têm perpassado a prática dos educadores e as diferentes funções ideológicas que a escola tem desempenhado, o acirramento das posições que che- gam a anular a existência da escola acaba por deixá-la sem função. O que significa, contraditoriamente, fazê-la cumprir uma função. Acentuar a especificidade significa aqui revê-la, rever a prática escolar no sentido de colocá-la a serviço da luta em favor das camadas populares. de trabalho. A noção de que as condições mutáveis de trabalho exigem uma populaçãotrabalhadora cada vez mais instruída, mais educada (...) é uma afirmação quase universalmente aceita na fala popular e académica (2). No entanto, tal instrução, tal educação, entendida no capitalismo como os conhecimentos básicos de leitura e escrita, ou seja, a iniciação nos diferentes instrumentos culturais, não visa diretamente ao desvelamento das condições de dominação, mas estes instrumentos são requisitos essenciais para isso. Nesse sentido, a cobrança pela generalização da escola, à medida que esta se tem mantido privilégio das camadas dominantes, entendida como instância da transmissão sistemática dos conhecimentos, mesmo condi- cionada pela hegemonia das camadas dominantes, faz-se necessária na direção da luta pela apropriação coletiva dos conhecimentos. O contato e o acesso aos conhecimentos, aos conteúdos são requisitos necessários ao questionamento das relações de dominação, mesmo que não se vise diretamente a este questionamento, porque há, nos conteúdos de base, uma dimensão de criticidade, mesmo que estes não sejam diretamente críticos, porque são históricos e porque, ao serem trabalhados na relação entre sujeitos históricos, professores e alunos, são intermediados pelo ato de pensamento, de criatividade desses sujeitos históricos capazes de criar e de interferir na história, com seu pensar. Contudo, o acesso aos conhecimentos explícitos da dominação não é automático; requer a mediação dos profissionais da escola, que, na prática educativa, possibilitem aos alunos da classe dominada a compreensão crítica dos conhecimentos. O que coloca a necessidade de a escola organizar-se (ou reorganizar-se) para isto As camadas dominadas reivindicam a escola secundariamente em relação às lutas que lhes são prioritárias para a sobrevi- (2) Harray Braverman, Trabalho e capital monopolista - a degradação do tra- balho no século XX, pp. 359. vencia: alimentação, habitação e saúde. A reivindicação da escola não assume o caráter de sobrevivência, mas de condição para superação do estado de sobrevivência. No entanto, ao defrontar-se com as barreiras que a escola lhes opõe por toda a sua organização - con- teúdos desarticulados com a cultura de origem, portanto, inacessíveis, horários que dificultam a presença do aluno - fracassa. E este fracasso é justificado pelas camadas dominantes e aceito pelas camadas dominadas como incapacidade individual. A transformação dos mecanismos internos da escola, no sentido de colocá-la ao encontro das reais possibilidades das cama- das populares, permitindo que permaneçam na escola, para elevarem o grau de consciência dos determinantes que as tornam dominadas, pela posse dos conhecimentos que a escola transmite, articulados com os interesses dominados, é uma função política da escola, que requer a capacidade dos educadores para reorganizarem a escola na direção da emancipação das camadas populares. Esta especificidade da educação escolar que aqui se afirma está assentada nos seguintes pressupostos: - a escola deve transmitir a todas as crianças os saberes que são investidos na vida cotidiana - não só os saberes fundamen tais (leitura, escrita e bases matemáticas), mas também os saberes tecnológicos, econômicos e jurídicos (fundamentos do mundo social adulto). Esse ensino deve ser diretamente articulado com a experiên cia social da criança; - a escola deve esforçar-se por dar a todas as crianças uma formação científica e tecnológica ligada à luta contra as fontes da desigualdade social; - a escola deve proceder à transmissão sistemática do saber não como um corpo de conhecimentos voltados para si mes- mos, mas utilizará o saber como necessidade para melhor compreensão dos problemas sociais; - a escola deve conceder a cultura humana como formação da personalidade social, e não como assimilação, pelos indivíduos, de conteúdos culturais que têm um valor em si. (3) A escola, enquanto instância que procede à mediação entre a criança e os modelos sociais adultos (4) pelo confronto entre eles, possibilitando-lhe um alargamento do seu próprio modelo social, é necessária. É através do contato imediato com o professor que se processa essa mediação. Pelo trabalho docente é que se dá o encontro formativo entre o aluno e a matéria do ensino. O trabalho docente é intencional, sistemático. O professor desempenha a função de mediação entre a criança e o mundo social adulto, possibilitando àquela o confronto entre ambos, que a criança vá adquirindo a capacidade de compreender e transformar os saberes. O núcleo do trabalho docente é o ensinar de modo que os alunos aprendam. A organização do trabalho escolar é, por sua vez, mediação entre o trabalho docente e a prática social global. Afirmar este caráter de mediação da organização escolar significa afirmar que ela não se justifica por si mesma, mas tem sua razão de ser nos efeitos que se prolongam para além dela e que persistem mesmo após a sua (3) Cf. Bernard Charlot, op. cit., p. 304 (4) O uso das expressões criança e modelos sociais adultos tem por suposto a ênfase na educação básica, frequentada por crianças em idade escolar. No entanto, sabemos que a população escolar é composta também por adoles- centes e adultos - seja nos cursos supletivos, universidades, cursos noturnos, etc. Por isto, entenda-se a escola enquanto mediação entre os sujeitos que compõem uma sociedade e o sistema de relações sociais vigentes nessa sociedade. cessação (...). O critério para se aferir o grau de democratização, atingida no interior da escola, deve ser buscado, pois, na prática so- cial. (5) O núcleo da democratização da educação é, pois, a de- mocratização do saber. De fato a democratização das relações inter- nas da escola constitui-se em mediação para isso - o que não significa diminuir sua importância -, pelo contrário, admitir a democratização das relações internas como mediação para a democratização da educação significa considerá-la como condição sine qua non, porém não a única. As relações democráticas na escola, a participação nas decisões, o envolvimento da equipe de professores no.trabalho são mediações básicas do objetivo do trabalho docente - que é ensinar de modo a que os alunos aprendam -, mas não são suficientes nem exclusivas. (6) Portanto, opor a democratização do saber à democratiza- ção das relações internas como pólos excludentes é um falso proble- ma. Trata-se de reafirmar que o núcleo de trabalho docente é o ensi-no- aprendizagem, enquanto mediação entre os indivíduos que compõem uma sociedade e os modelos sociais vigentes nessa sociedade - o que se faz pelo ensino crítico dos conteúdos. As relações demo- cráticas de trabalho na escola favorecem a consecução deste núcleo. A participação dos professores na organização da escola, nos con- teúdos a serem ensinados, nas suas formas de administração será tão mais efetivamente democrática à medida que estes dominarem os conteúdos e as metodologias dos seus campos específicos, bem co- mo o seu significado social - pois só quem domina as suas especifi- cidades numa perspectiva de totalidade (significado social da prática de cada um) é capaz de exercer a autonomia na reorganização da es- (5) Cf. Dermeval Saviani, Escola e democracia. (6) Cf. José Carlos Libâneo, Pedagogia crítico-social, didática e currículo in Anais do XVI Seminário Brasileiro de Tecnologia Educacional. cola, que melhor propicia a sua finalidade - democratização da sociedade pela democratização do saber. Que organização escolar favorece a consecução do objetivo de torná-la um instrumento de emancipação das camadas populares? A esta indagação a resposta imediata que se tem é que certamente não é a escola que aí está, pois esta há anos cumpre a função de expulsar os alunos provenientes das camadas médias e baixas quetêm tido acesso a ela pela ampliação quantitativa de vagas. A escola está organizada a partir do aluno ideal. Calcada no modelo da classe dominante, esta escola é a estruturada segundo o princípio da homogeneidade, que partindo de uma "suposta uniformidade das características de ingresso da população (...) tem de conformar-se com um critério de prioridade estatística, com base na qual definiu-se o aluno médio, isto é, dotado suficientemente das qualidades necessárias para aprender e só ter de reproduzir na saída a mesma variabilidade real das condições de entrada". (7) Este aluno sempre teve o acesso e a permanência à escola garantidos. Assim, do ponto de vista dos conteúdos de ensino, dosagem, ritmo, etc. das metodologias de ensino; do tipo de relação professor e aluno, aluno e escola, escola e pais, professores e técnicos, professores entre si; do ponto de vista da grade horária, distribuição das aulas na semana, horários, da sistemática de avaliação, aprovação, reforço, etc, a escola pública que aí está tem cumprido a função seletiva e de evasão que privilegia os já privilegiados. No entanto, à indagação feita - que organização escolar favorece a consecução do objetivo de torná-la um instrumento de (7) Roberto Maragliano et alii, Teoria da didática, pp. 26-27. emancipação das camadas populares - é preciso responder que é a partir da escola que está aí que é preciso construir-se a nova. Ou seja, a organização escolar que possibilitará a consecução do objetivo de emancipação das camadas populares será engendrada a partir das condições existentes, porque, entre outras razões, é na escola que aí está que encontramos elementos válidos que mostram possibilidades para o que deve ser a nova organização escolar. Em outras palavras, não se trata de conceber previamente um tipo de organização escolar ideal, mas de garimpar-se no existente os elementos que, fortalecidos, apontam para novas práticas, o que requer pesquisas, análises, observações e experimentação - conduzidas a partir da finalidade de colocar a escola com instância socializadora do saber para as camadas populares. A escola de massa deve ser estruturada segundo o princípio da diferença, que, atuando sobre uma população bastante diferenciada, permite elevar qualitativamente, na saída, a sua formação, possibilitando que todos saiam da escola no mesmo grau elevado. A organização do trabalho nesta escola "não pode ser artesanal (...); precisa delinear um novo perfil de competência coletiva no qual se expressa uma primeira forma de divisão técnica do trabalho, um uso mais equilibrado e racional dos recursos materiais do ensino, uma capacidade de programar, realizar e controlar a ação educacional. Aqui, situam-se as novas funções decorrentes da necessidade de oferecer apoios específicos, de compensar carências de ingresso, de acompanhar o desenvolvimento do currículo em suas mínimas fases, funções que devem ser consideradas como constitutivas do trabalho didático". (8) Em outras palavras, o trabalho docente é o núcleo primordial da educação escolar. Desta forma, a organização escolar que se deseja é aquela que melhor favoreça o trabalho docente. (8) Idem, ibidem, p. 27. A organização da escola compete aos profissionais do- centes e não-docentes. Seria ingénuo advogar que o professor de sala de aula deva suprir todas as funções que estão fora da sala de aula, mas que nesta interferem - quer dizer, interferem no trabalho docente - , o que não significa que este só atue na sala de aula. Assim as tarefas que são objeto de trabalho social coletivo dos profissionais da escola podem ser listadas como segue: a) seleção, distribuição e organização dos conteúdos a serem ensinados, considerados relevantes na prática social. Os con- teúdos têm objetivos socio-políticos, por isso, têm de ser selecionados a partir da prática social, fazendo-se a crítica da prática existente, para que se construa uma prática social transformadora. Por essa razão, as fontes para a seleção dos conteúdos são: a natureza primária enquanto objeto de conhecimento, a natureza transformada pela ação dos homens (segunda natureza), as relações sociais e o conhecimento em si. Impõem-se como tarefa necessária, pois, a revisão dos conteúdos, cujos princípios norteadores devem ser a visão política da educação escolar como prática social situada numa sociedade de classe; o domínio dos conteúdos específicos pelos diferentes professores; o conhecimento e a constante identificação das possibilidades sócio-culturais individuais dos alunos; a articulação das matérias (dos conteúdos) do ensino. A revisão dos conteúdos se dá, pois, a partir do que é historicamente necessário (a transformação da situação de desigualdades sociais) articulado com o que é historicamente possível (a situação de desigualdades sociais). O trabalho de revisão dos conteúdos requer o concurso de todos os profissionais da escola. Para cada princípio de seleção e organização dos conteúdos acima expostos, é preciso que os profis- sionais da educação escolar, partindo das condições existentes, to- mem decisões e estabeleçam formas de suprir aquilo que inexiste: as condições de trabalho para a consecução do núcleo do trabalho do- cente, que é o ensino/aprendizagem. b) A complexidade da organização escolar requer o con- curso de profissionais não-docentes, que tendo determinadas compe- tências devem cuidar de tarefas relativas à articulação dos conteúdos; a composição de turmas homogéneas, heterogéneas e o que se fazer com cada uma; o acompanhamento didático-pedagógico aos professores em face de novos tipos de organização curricular, por exemplo. Ciclo básico; em face das questões metodológicas e de ar- ticulação conteúdos/métodos; em face da avaliação que deve ser constantemente diagnostica, que requer conhecimentos técnicos es- pecíficos; em face das dificuldades de aprendizagem que os alunos apresentam. Ainda é importante ressaltar que as decisões quanto a horários adequados às possibilidades dos alunos, dos períodos esco- lares - quantos, como organizá-los, número de alunos em sala, a dis- tribuição das matérias na semana, a combinação dos horários de es- tudo e trabalho em aula e os horários de merenda e recreação de tal forma a possibilitar o aproveitamento máximo dos trabalhos escolares; os dias letivos - sua utilização favorável para ampliar as possibilidades de estudo e trabalho escolar, a atribuição de aulas e distribuição dos professores nas turmas de forma a propiciar a melhoria qualitativa do trabalho em aulas. Enfim, estas são questões administrativas que requerem a competência (não exclusiva, como anteriormente explicitado) do pedagogo, especialistas em educação. !Seu trabalho, enquanto profissional da educação escolar, deve se configurar como de mediação entre a organização escolar e o trabalho docente de modo a garantir as condições favoráveis à consecução dos objetivos pedagógico-políticos da educação escolar. Assim, é possível redirecionar as funções deste profissio- nal a partir das necessidades que a escola apresenta hoje no que se refere ao trabalho docente. Este trabalho se traduz numa organização didática que compreende os conteúdos, os métodos de ensino e a avaliação do ensino. Articular estes aos objetivos pedagógico-políti- cos da educação escolar é um trabalho que requer a contribuição de toda a equipe técnica da escola. A questão dos conteúdos coloca, a essa equipe, inúmeras tarefas. Em primeiro lugar, é preciso saber quais conteúdos estão sendo ensinados, analisá-los no todo da escola tentando apreender a sua trama para interpretá-los, juntamente com os professores e a supervisão pedagógica, no sentido de apreender o seu significado e a sua importância para a emancipação dos alunos. A análise dos conteúdospauta-se constantemente pela articulação destes com os objetivos pedagógico- políticos. Um conjunto de aspectos precisa ser pesquisado no momento da análise dos conteúdos da escola: o que se pretende ensinar, quais os conteúdos propostos para as diferentes disciplinas e séries; identificar a sequência lógica dos conteúdos de uma série a outra, os pré-requisitos que estão sendo considerados, a articulação vertical e horizontal dos conteúdos; a quantidade. Com isto se está buscando identificar a proposta dos professores e da escola em relação aos conteúdos. Em segundo lugar, identificar os elementos definidores dos conteúdos: quem os define e como; a partir de quais referenciais são definidos; porque são definidos estes e não outros, qual o ponto de partida para a definição destes. Com isto se está buscando identificar o grau de consciência dos professores em relação aos conteúdos de suas disciplinas. En- terceiro lugar, verificar se os conteúdos ensinados le-vam em consideração a experiência dos alunos e o grau de conhecimento que já possuem. Se isto ocorre, verificar de que maneira a experiência do aluno é incorporada nos novos conteúdos propostos e se se tem avançado para além dela. Se isto não ocorre, quais as conse- sequências que se pode observar? Como se dá esta incorporação (ou não) nas diferentes disciplinas? Algumas disciplinas, por sua natureza, podem ser facilitadoras dessa incorporação. Um procedimento extremamente necessário para este terceiro aspecto é a busca do conhecimento da população que adentra a escola, sua cultura, seus valores, sua concepção de vida. O conhecimento da população poderia ser uma atividade que envolvesse professores, supervisores e orientadores, direção, para se definirem as diferentes formas possíveis (questionários, entrevistas, etc.) para o conhecimento da cultura dos alunos, enquanto membros de uma classe social, certamente diferente e desconhecida dos profissionais da escola. O conhecimento dessa cultura não se faz de uma vez, no início do ano, mas é um processo que precisa ir sendo paulatinamente sistematizado. Como tal, constituir-se-á num constante balizamento para a adequação dos conteúdos aos alunos, condição primeira para a aprendizagem efetiva. Neste conhecimento é importante ter presente as atitudes de preconceito que os profissionais possam vir a assumir, rotulando os alunos. É preciso evitar que isto ocorra. De nada adianta afirmar que o aluno é carente de alimentação. É preciso saber como ensinar o aluno, apesar dessa carência. A compreensão da população é um dos caminhos para apreender-se o aluno enquanto ser concreto, sua condição social e histórica que determina o seu modo de ser, de compreender, de aprender. Por outro lado, a captação da cultura do aluno, por-parte da equipe da escola, que se constitui numa verdadeira pesquisa-ação, é feita a partir da visão de mundo dos profissionais da escola, o que implica uma não-neutralidade nos aspectos a serem captados. "Cada momento empírico é repensado no confronto com outros momentos e a partir da reflexão crítica novos caminhos de investigação são traça- dos, que por sua vez levam ao reexame de todos os empíricos e análises feitas, ampliando sempre a compreensão e o âmbito do conhecimento". (9) A compreensão da população escolar implica, pois, uma atividade constante por parte dos profissionais da escola. Quanto ao aspecto de articulação dos conteúdos é de fundamental importância colocá-la como fator de melhoria da aprendizagem. Por isso trata-se de investigar se esta ocorre ou não e quais os critérios que a orientam. Trabalhar com e através dos conteúdos requer uma série de competências da equipe técnica, das quais algumas ela já possui, outras precisa adquirir. A decisão sobre estas parte da análise da situação real da escola, dos professores e demais profissionais que ali estão. Em qualquer caso, trabalhar os conteúdos na perspectiva da pedagogia crítico-social dos conteúdos requer que se tenha claro que: a) Trabalhar os conteúdos, por dentro, é reconhecer, a um só tempo, a limitação destes, na produção da igualdade social, e a possibilidade de que pela aquisição sólida dos conteúdos a escola pode contribuir para a diminuição das desigualdades sociais. A participação das mais amplas massas na escola leva consigo a tendência a afrouxar a disciplina, a provocar facilidades, o que contribui para diminuir as oportunidades das classes populares terem consciência das condições de sua opressão. (10) (9) Silvia T. M. Lane, "Consciência/alienação: a ideologia no nível individual" in Psicologia social, p. 46. (10) Cf. António Gramsci, Os intelectuais e a organização da cultura, p. 139. Excertos do livro O pedagogo na escola pública, de Selma Garrido Pimenta, Edição Loyola, SP, 1988. b) Trabalhar os conteúdos não significa, em hipótese alguma, que a equipe técnica deva ter o conhecimento específico de todos os ramos do saber nem tão pouco retirar do professor a decisão sobre os conteúdos específicos a serem ensinados. Significa, sim, colocar à disposição do professor a contribuição de uma pedagogia que conduza mais eficientemente à democratização do ensino. "Se a escola é objetivamente selecionadora e marginalizadora das crianças pobres, a prática docente também o é (...), os milhares de alunos que ano a ano repetem e abandonam a escola foram alunos de alguém." Os professores têm, pois, importância fundamental. A equipe técnica pode estabelecer junto com os professores a estrutura básica dos conteúdos que a escola precisa garantir aos alunos. Nessa estrutura, estarão presentes os mínimos de conteúdos desejáveis para se considerar a escola como de boa qualidade. O estabelecimento dessa estrutura básica possibilita a discussão sobre a articulação desejável, além de estabelecer os parâmetros para a avaliação. c) O trabalho da equipe técnica da escola é de assessoria ao processo ensino-aprendizagem, desenvolvido na relação professor--aluno. Requer, portanto, o conhecimento não apenas dos alunos, mas também das condições concretas, pessoais e profissionais dos professores. Este conhecimento implica a compreensão de que professor e a equipe técnica têm tarefas direfentes, numa luta comum. Em síntese, o trabalho pedagógico com os conteúdos colocará em discussão constante os princípios que estão norteando a seleção, a ordenação e a organização dos conteúdos articulados aos objetivos pedagógico-políticos da educação escolar, articulados por sua vez aos conteúdos culturais amplos. D E B A T E Profª Eloísa Gostaria que a Prof- Selma Garrido esclarecesse melhor seu posicionamento quando afirma: "A escola pública está com muitos problemas, mas nunca esteve tão bem como agora". Profª Selma No momento em que nós, educadores brasileiros, nos de- bruçamos nos estudos, nas pesquisas, na prática, enfim, fazemos críticas sobre a educação no nosso país, quase que criamos um certo pessimismo em relação à escola pública, quando, enfaticamente, dizemos que a escola pública é de má qualidade, a escola pública é precária. Quase que admitimos que a escola particular, em contrapartida, é de boa qualidade, é ótima. Estou aqui fazendo uma provocação, nesta questão, porque admito que a escola pública está precária em todos os aspectos: precária de quadros, de funcionamento, de prédios, de formas de trabalhar com os seus alunos, no nível de apropriação dos conhecimentos do aluno. Não vou entrar aqui na consideração da escola particular. Devemos ter a clareza de que as condições culturais partem dos alunos que frequentam as escolas particulares e que, talvez, seja a maior responsável por uma maior apropriação do conhecimento do que o próprio funcionamento da escola particular; e levando ainda em consideração as múltiplasescolas particulares que trabalham em sala de aula, às vezes, com 120 alunos, eu pergunto: que qualidade é esta? Como está se dando esta apropriação do conhecimento da escola particular e em que direção esta apropriação está ocorrendo? Voltando à questão da escola pública, eu concordo com esta precariedade e acho que temos muito a fazer em relação a esta questão. No entanto, quando eu disse que, deixando de lado o sau- dosismo, a escola antiga é que era boa e que a de hoje está ruim, a escola pública de antigamente tinha, nos seus bancos, a parcela da população privilegiada, ou seja, a quantidade de escolas públicas era tão restrita que os alunos que as frequentavam eram os alunos egressos, originários das famílias das camadas dominantes da aristo- cracia, numa época da oligarquia rural, depois urbana, etc. Quando dizemos, saudosamente, que a escola pública de antigamente era boa, nós estamos falando da escola privilegiada; quando eu estou chamando atenção para esta nova qualidade da es- cola pública que temos, eu estou trazendo, com toda a força, a am- pliação quantitativa de alunos da escola pública e o acesso das ca- madas que, até então, estavam fora do acesso à escola pública. As camadas pobres da população, da classe baixa, trouxeram para den- tro da escola a exigência de que a escola se modifique, o que ainda não está acontecendo, porque nós não deixamos nossos padrões an- tigos; o modelo de aluno que nós temos na cabeça é o modelo que veio de uma família de classe média ou média alta. É nesse sentido que estou afirmando que a escola pública brasileira nunca foi tão boa como está, no sentido de que a população está colocando desafios para essa transformação que se faz necessária. Eu só queria lembrar, ainda, que essa ampliação quanti- tativa não foi uma benesse do Estado, como nós temos visto em al- gumas interpretações na história da educação brasileira, mas ela foi a resultante da mobilização popular. De um lado, pegando a década de 30, o período do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, vamos ter a formação de grandes concentrações urbanas. Junto com isso, um avanço do capitalismo industrial urbano, em algumas regiões, um capitalismo que requer que o trabalhador tenha, no mínimo, o domínio das habilidades básicas da leitura e da escrita. De outro lado, não dá para esquecer a luta e a contribuição do Movimento dos Pioneiros da Educação. Tudo isso conjuminando com o poder político da época, calcado num nacionalismo e num populismo, respondendo, portanto, aos interesses de reivindicação da população e aos interesses do empresariado industrial que começava a se formar. Com relação à população urbana que foi se urbanizando, há aí uma contribuição muito grande de pesquisadores recentes mostrando como os movimentos sociais foram importantes para a reivindicação da escola. A escola era uma forma de se conseguir trabalho, no mínimo. Como decorrência desses fatores, historicamente colocados, é que nós temos hoje, na escola, uma massa de população que requer uma outra qualidade de escola. A escola pública está com uma nova qualidade. Quando se fala que ela está ruim, nós estamos com um modelo antigo na nossa cabeça. Representante da SEC - Acre Diante das colocações que foram feitas e que para nós todos não é mais novidade, é o nosso dia-a-dia, quando falamos: a escola é instrumento do poder dominante; os filhos da classe média já vêm alfabetizados; e o da classe baixa têm dificuldades pelas condições sócio- econômicas; os professores não estão capacitados e, muitas vezes, não são habilitados, nós temos até a certeza de que somos nós, professores, que estamos reprovados. Na maioria das vezes, é também uma questão muito séria a dos estados pobres, como os do Norte e do Nordeste, pelo desrespeito que o poder central tem com a educação. No momento do repasse dos nossos recursos, não há realmente esse respeito; fazemos os nossos planejamentos dentro das nossas melhores intenções, e esses recursos são repassados, muitas vezes, no final do ano, nos impossibilitando de fazer um trabalho que nós planejamos. Esse respeito é preciso que exista por parte do poder central; não se pode fazer educação sem recursos; esses devera ser liberados em tempo hábil, quando as nossas redes de ensino estabelecem o ingresso do alunado na escola. Representante da SEMEC - Belém Participar desses encontros é sempre um momento importante. Eu estava me sentindo uma pessoa perdida no deserto. Eu também achava que nós estávamos numa época, num período muito bom; que a educação pública está num período muito bom. Eu me sinto, realmente, muito triste quando eu pego o meu contracheque, mas nós não podemos partir para uma análise da situação da escola fora da realidade social, e a escola brasileira nunca esteve tão presente nas discurssões e na elaboração de propostas como hoje em dia. Eu só me levantei para dizer que eu não estou mais me sentindo sozinha. Eu tinha e tenho convicção de que, quando um pai de aluno cobra por que não está havendo aula ou seu filho vai e volta, eu digo: você tem razão, mas eu procuro colocar porque não está havendo aula, o que nós estamos tentando conseguir, o que nós estamos tentando mostrar. A colocação que foi feita de que a escola brasileira está atravessando os seus melhores momentos vai ao encontro do que nós tentamos, principalmente, quando um estado como o Estado do Pará, que é um estado imenso, muito grande, com problemas, inclusive, para se conseguir a mesma linguagem, é um estado com várias culturas, mas onde se vê a educação sendo tratada com a sociedade. Vamos tratar de uma maneira a reivindicar melhoras para a população do Pará. Então, a educação brasileira, no meu ponto de vista, atravessa os seus melhores momentos. Representante da SEC - Bahia Concordo plenamente que a escola pública brasileira vai muito bem quanto ao acesso da classe proletária à escola, principalmente quando se vê as comunidades se mobilizando para fazer as suas próprias escolas, as escolas comunitárias que, às vezes, não permitem interferência do Estado nesses projetos pedagógicos. Eles preferem os currículos que eles mesmos orientam e têm as suas propostas pedagógicas específicas. Então, eu vejo um enriquecimento muito grande para nós. O que está nos faltando para que as nossas escolas públicas sejam totalmente de qualidade são as condições pedagógicas para que a educação funcione: capacitação, maior conhecimento do conteúdo pelo professor e avaliação constante. A nossa dificuldade maior está em conseguir maior e mais apoio para que se desenvolva nossa proposta. Não podemos ficar de braços cruzados esperando que as coisas aconteçam, mas buscar saídas. Profª Selma Quero deixar muito claro que esta qualidade a que me referi tem tudo a ver com o fato de que o acesso das camadas majoritárias da população à escola está trazendo, no dizer do Prof. José Luiz, conflito de classe para dentro da escola; é nessa perspectiva que eu digo que ela é qualitativamente melhor. Vamos tomar cuidado para não sairmos daqui felizes e contentes pensando que está tudo bem; não é isso, por favor. Não senti isso na sua colocação, mas quero deixar bem grifado que há muito o que se fazer, na perspectiva de que a escola pública será de total qualidade quando ela conseguir garantir o acesso aos conhecimentos desveladores da desigualdade social à totalidade dos alunos que têm acesso a ela e quando conseguir ampliar, ainda mais, esse acesso à totalidade da população brasileira. Aí é que eu vou dizer que ela é totalmente de qualidade. Profª Avani Os pontos aqui abordados são fundamentais. É, também, borri recordar e tentar buscar novos caminhos para continuar a luta para superar os problemas. Queria destacar um aspecto da falada Prof9 Selma que considero também muito importante. É importante que haja um espaço para discussões conjuntas entre professores/supervisor. O professor, muitas vezes, é um solitário ou necessita de alguma orientação específica do supervisor. Esse momento de discussão, de trabalho em conjunto é riquíssimo; é o momento em que o professor vai se ocupar da sala dele; que o professor pára um pouco para pensar o que ele está fazendo na sala de aula; por que ele está fazendo o que está fazendo; por que abordou tal assunto desta forma, etc, porque, nesta roda-viva, ele não tem tempo para discutir com colegas e trocar ideias. Essas discussões, esse trabalho em conjunto, estas horas em conjunto devem fazer parte do dia-a-dia da escola. Representante da SEC - Pernambuco Eu não senti na exposição qual seria o trato específico do conhecimento do ponto de vista da Psicogênese, como é que se dá o pensamento lógico do aluno; o conhecimento como uma representação do real do pensamento do aluno. O aluno tem uma representação real quer ele tenha ou não acesso ao conhecimento. Como vocês colocam esta questão para garantir uma apresentação do real mais aproximada no trato do conhecimento, do ponto de vista da produção de um novo conhecimento? Seria, de fato, a transmissão desse conhecimento, talvez do ponto de vista mais histórico, mais contemporâneo, mais ainda de novo trato epistemológico? Prof. José Luiz Eu acho que esta dicotomia do pensamento popular, do saber popular e do saber erudito são faces de uma mesma moeda. Elas têm uma relação dialética que ambos são arbitrários em termos de relação ao conhecimento mútuo: tanto o saber erudito como o popular. A experiência que a Universidade Federal de Pernambuco vem desenvolvendo em Psicologia - Psicogenética - mostra que a criança sempre descobre uma lógica, uma razão para explicar o que faz; ela cria um instrumental que tem; ela confronta como ela cria e como é o arbítrio cultural que ela vai ter de romper, quer dizer, não cabe essa diferença entre um e outro. Eu trabalharia, dialeticamente, os dois, isto é, se um é o ponto de partida, o saber erudito passa a ser o saber popular com o passar do tempo, à medida que o conhecimento foi avançado. Em termos de um enfoque epistemológico - durante muito tempo houve uma má ou péssima interpretação de Piaget, em termos de Psicogênese, etapa evolutiva, etc. -, eu acredito que, em alguns pontos, houve avanços, principalmente, com a influência de psicólogos socialistas. Representante da SEMEC - Belo Horizonte Eu só quero pegar um gancho da fala da Prof9 Selma. Ela afirma que há necessidade de a escola ensinar de forma que o aluno aprenda, e isto influi na transformação da escola que aí está. Eu só queria lembrar que esta escola deve ser transformada do ponto de vista de instituição, ou seja, da estrutura da escola, da forma de estrutura, sua organização, etc. Prof. José Luiz Eu gostaria de fazer uma pequena colocação em relação à qualidade do ensino da escola pública. Eu concordo com a Prof-Selma quando diz que as camadas populares, estando dentro da escola, estabelecem conflitos de classe - não dá mais para mascarar esta situação. Eu gostaria de deixar uma preocupação com o pessoal da Secretaria da Educação - existem várias experiências nos estados em que a comunidade da camada de baixa renda está organizando escolas comunitárias à revelia do poder central, em forma de cooperativas, etc. Será que é este o caminho? Representante da SEMEC - Fortaleza Eu gostaria de retomar alguns pontos como a afirmativa de que a escola pública está melhor hoje. Eu estive fazendo uma pesquisa, em Fortaleza, e constatei que só está em escola pública quem não pode pagar. Logo, não acho vantagem o proletário estar lá. A Profª Selma falou em condições de trabalho - concordo. Nós temos de ver a educação de uma maneira global. Hoje, estamos tratando aqui o problema do currículo, mas não podemos deixar de ver as condições de trabalho de uma maneira global. Se atacarmos só o problema do currículo, não vamos resolver muito, porque, inclusive, eu considero o currículo a parte sagrada dentro da educação e a parte administrativa tratada como a parte profana, mas uma depende da outra. Para a educação funcionar, tem de estar presente o profano e o sagrado. O Prof. José Luiz falou sobre a escolha do livro didático; nós, no Ceará, gostaríamos de receber o livro didático bom ou ruim, atendendo muito bem à educação ou não atendendo, ou alguma coisa que pudéssemos entregar nas mãos dos alunos para trabalhar e trabalhar criticamente - o livro didático ruim é bom também, mas nem isso temos. É muito bom que se trate aqui, hoje, do currículo, mas, também, que se trate da distribuição da merenda escolar, do livro didático e de tudo o que a escola precise para funcionar melhor, para que, globalmente, se possa orquestrar melhor as condições de traba- 1ho para uma melhor aprendizagem do aluno. Representante da SEC Paraíba - impossível a transcrição Prof9 Selma Achei de extrema felicidade a intervenção da colega da Paraíba sobre educação popular. Você está vendo o popular dentro da escola pública, e eu gostaria de me reportar a este ponto. O popular não é um segmento que está à parte, está na escola pública e tem de estar cada vez mais. Então, reportando a esta tese, eu estou enfati- zando o compromisso que o Estado brasileiro tem de ter com a edu- cação. Eu não sou contra, não estou fechada a examinar experiências de comunidades, mas, historicamente, neste país, neste momento, sobretudo após a promulgação da Constituição, e como ficou assen- tado a questão das verbas públicas para as chamadas escolas comu- nitárias, eu tenho um receio muito grande que se desvincule a res- ponsabilidade primeira do Estado de oferecer escola e, como alterna- tiva, que o privado se manifeste. Por isso, sou contra a escola privada, comunitária, ou que nome ela tenha, mas eu defendo a ideia de que a garantia do acesso à escolaridade seja colocada, assumida e comprometida pelo Estado. Neste sentido, a minha preocupação também vai ao en- contro do que o Prof. José Luiz colocou: que é de nós não termos um saber regional versus um saber mais amplo - essa oposição também precisa ser cuidada. A desvinculação da escola comunitária do Estado, por exemplo, eu acho que favoreceria este tipo de coisa. É bom aprofundar e eu queria dizer que você colocou, com muita felicidade, aquele aspecto de que o popular está dentro da escola, da escola pú- blica. Se não tem escola pública em quantidade suficiente, nós temos de brigar para tê-la e se não tem em condições melhores, a nossa luta vale para que elas funcionem melhor. Por aí é que eu coloquei a questão das condições de trabalho da escola. Nesse sentido, fazendo um gancho com a nossa colega de Fortaleza-, eu diria que a nossa especificidade aqui no encontro é discutir o currículo, mas eu penso que ficou suficientemente claro que o currículo, sobretudo pela exposição do Prof. José Luiz, não pode ser desvinculado de questões mais amplas e, ao mesmo tempo, nós te- mos de trabalhar as questões específicas do currículo até como con- dição de modificar as condições mais amplas - esta coisa está em- bricada; é porque nós estamos aqui pensando nos conteúdos signifi- cativos; na parte da tarde, estamos falando em transformação mais ampla, não dá para fazer uma dissociação. Esta clareza se faz ne- cessária. Um último ponto que eu deixei de colocar na minha inter- ferência inicial é que nós temos uma realidade educacional escolar em que a criança da população economicamente baixa não está com o acesso garantido ainda que o Estado resolvesse abrir vagas em quantidade suficiente porque aí tem questão estrutural que nos escapa de imediato, mas se pode interferir nela,que é para a criança a questão da educação escolar. Embora ela e a família valorizem a educação escolar, a escola é vista como: ou ela trabalha ou ela estu- da, ou seja, nós vivemos uma realidade num país que tem os contor- nos do capitalismo, onde o acesso à escola não está assegurado também, porque a questão da sobrevivência não está garantida. Então, apesar de a Constituição dizer que é proibido o trabalho do menor, ele trabalha, e, às vezes, o seu subemprego é condição de manutenção da família. Esta é uma questão mais ampla que não se pode fechar os olhos; eu, como educadora, não tenho o poder de transformar esta situação estrutural. Talvez eu tivesse se houvesse uma outra profissão que pudesse mexer mais diretamente com isso, mas o fato é que eu não tenho; indiretamente eu tenho en- quanto profissional da escola. Enquanto profissional de escola, eu posso organizar o funcionamento da escola, de forma que o aluno aprenda, apesar de ter de trabalhar. Não adianta ficar atirando pedra no trabalho dele. Foi isso que eu quis dizer quando eu falei da orga- nização da escola. Que organização? A organização tem de ser aquela que melhor propicie a democratização do saber, mais do que a democratização das relações; eu tenho de discutir a democratização das relações que vão passar por consumo, eleição... Essa discussão é importante porque é condição para a democratização do saber. A FUNÇÃO DOS CONTEÚDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA NA FORMAÇÃO DO CIDADÃO BRASILEIRO Prof- Avani Xavier Lanza - UFMG Refletir sobre a função dos conteúdos de Língua Portuguesa, na formação do cidadão brasileiro, exige retomar alguns aspectos relativos ao contexto em que esse cidadão se insere. A caracterização desse contexto contribuirá para o levan- tamento de aspectos básicos a serem considerados no âmbito do papel a ser conferido ao processo de ensino/aprendizagem da língua, tendo em vista a formação do cidadão. Assim, é fundamental lembrar que o nosso país caracteriza-se por apresentar diferenças sociais e econômicas que refletem as diferenças nas possibilidades tanto de acesso aos bens culturais quanto de participação política. Cada brasileiro, como ser social que faz parte de um grupo, tem consigo as marcas caracterizadoras desse grupo, que o diferenciam dos demais. Logo, a busca de recursos que permitam novas conquistas, mais condições de participação política e cultural, maiores facilidades de reivindicações na sociedade, visando à superação das contradições sociais, deve ser acionada em diferentes instâncias, princi- palmente no âmbito educacional. A escola, ao lidar com essas diferenças sócio-culturais de seus alunos, deve contribuir para viabilizar a transformação social, através da superação das desigualdades. Qual seria, então, na escola, o papel do ensino da língua para essa superação? Acredita-se que a aprendizagem da língua permite uma ampliação das possibilidades de o indivíduo ter acesso aos bens culturais, assim como a conquista de participação política na sociedade, principalmente, no processo de democratização. No caminhar desse processo de democratização, a leitura surge como um instrumento fundamental, quando vista como: "(1) uma habilidade humana que permite o acesso do povo aos bens culturais já produzidos e registrados pela escrita e, portanto, como um meio de conhecimento e crítica dos fatos históricos, científicos, literários e (2) como um dos meios mais práticos, ao lado da palavra oral, de que o povo pode lançar mão, a fim de comunicar e fazer valer as suas ideias, interesses e aspirações". (SILVA, 1983). Logo, não só o acesso à leitura e à escrita, mas também a aquisição e o domínio desses processos devem constituir-se em metas prioritárias da escola de 1º grau. Para que a realização desses processos ocorra com mais sucesso, torna-se necessário que a escola tenha consciência de que a clientela por ela atendida domina variedades linguísticas que, normalmente, diferenciam-se da usada e exigida pela escola. Dessa forma, cabe à instituição escolar partir das variedades linguísticas apresentadas por seus alunos, para trabalhar a aprendizagem da variedade culta. Ao oferecer e garantir essa aprendizagem, a escola estará atendendo à finalidade base do ensino de Língua Portuguesa - promover o domínio da língua padrão culta - e, consequentemente, estará preparando o cidadão para viver e atuar na sociedade. Para se atingir essa finalidade básica, o ensino da Língua Portuguesa no 1º grau deve ser prático, crítico e criativo. A prática, o uso da língua é uma maneira de fazer com que o aluno "a domine e a maneje melhor e se sinta senhor dela, não seu servo humilhado e inseguro" (LUFT, 1985). Sentindo-se dono de seu discurso, o aluno poderá "crescer, desenvolver o espírito crítico e expressar toda sua criatividade" (LUFT, 1985), ampliando seus conhecimentos e adquirindo domínio da língua padrão culta e percebendo ainda que, na escola, se valoriza e respeita tanto sua individualidade quanto o seu contexto de origem. Essa prática da língua na escola pode desenvolver-se no 1º grau, levando-se em consideração alguns pontos como: No conjunto destas abordagens sobre a função dos conteúdos de Português na formação do cidadão brasileiro, a problemática da alfabetização, mais uma vez, tem um destaque acentuado. Para que o indivíduo domine a língua padrão culta, é imprescindível que ele se alfabetize. E, no desenrolar do processo de alfabetização, na escola, é fundamental que ocorra "uma articulação e integração dos estudos e pesquisas a respeito de suas diferentes facetas" (SOARES, 1985), ou seja, as suas perspectivas psicológica, psicolinguística, so-cio-lingúística e propriamente linguística. Essa articulação suscita uma retomada e um aprofundamento dos estudos e reflexões sobre a prática de alfabetização que a escola vem desenvolvendo, com uma clientela que apresenta características específicas e variadas. Ao lado das preocupações com o processo de alfabetização propriamente dito, desponta também, como imprescindível, uma análise crítica do trabalho desenvolvido no tradicional período prepa- ratório para a aprendizagem da leitura e da escrita. Isto porque da forma como ele ocorre, sua contribuição tem sido no sentido de eliminar a priori, do acesso à alfabetização, as crianças consideradas sem prontidão para essa aprendizagem. So-nega-se assim, logo ao início do ano letivo, "não só um direito que ele (o indivíduo) possui, como também a possibilidade de adquirir mais um instrumento de luta (...)". (LANZA, 1988). Alterando-se essa prática, é possível que as "manifestações diferentes passem a ser consideradas não como um meio de definir o destino dos alunos, ãs vezes dramaticamente, na escola, mas como importantes aquisições que eles trazem consigo e que deverão ser cognitivamente estimuladas". (LANZA, 1988). Somente atuando no sentido de não acentuar diferenças ou tomá-las como motivo para discriminação e seletividade, a escola e, nela, o trabalho em Língua Portuguesa poderão contribuir positivamente para a formação do verdadeiro cidadão brasileiro. LINGUA PORTUGUESA NO ENSINO DE 1º GRAU Objetivos Gerais Áreas de Atuação — Aspectos Fundamentais Obje- tivo Aspectos a serem Ia a 4a 5ª a 8ª Leitura Produção de Análise .Básico. considerados Textos Linguística o cu lta diferenças sócio-culturais no país variedades linguísticas realidade sócio-cultu-ral do aluno entendi- mento da es- crita como forma de in- terlocução à distância, no tempo e no es- paço, de tal modo que a criança perceba seu valor e sua função social, no meio ambiente e fora dele. . constituição do falante e do autorde textos orais e escritos que respondem ás necessidades de expressão do aluno e que apresen- tem estrutura, coesão e coe- rência inter- nas que não dificultem sua interpre- . acesso a tex- tos diferen- ciados e em uso na socie- dade. leitura — momento de ver e sentir a gramática. . produção de textos simi- lares aos em circulação na sociedade. . produção de textos - momento de aplicação dos mecanismos ou regras da gramática de uso. ampliação da gramática interiorizada através dos elementos da Língua-padrão culta. r a os a lu no s o do m ín io d a lin gu a- pa dr ã leitura re- flexiva cons- ciente e crí- tica (percep- ção de valo- res, conceitos e preconceitos da sociedade nos textos e nos demais meios de comunicação). . produção de textos com- prometidos com as reais necessidades do aluno evi- tando-se si- tuações arti- ficiais. considera- ção do saber linguístico do aluno to- mando-o como ponto de partida para análises e novas aqui- sições lin- guísticas. Po ss ib ilit a desenvolvi- mento do es- pírito crítico prática da língua instrumen- talização do aluno . entendimento de que a es- crita, para permitir a in- terlocução à distància.obe- dece a uma convenção or- tográfica de que cada usu- ário não pode ser árbitro, mas que é ne- cessáriodomi- nar para não prejudicar o objetivo pre- . constituição do ouvinte e do leitor capaz de dar uma interpretação dos textos que ouve e lê, embora não se exija que tal interpretação apresente alto grau de profundidade de análise original do texto lido. . incentivação e aceitação de diferentes interpretações dos textos e acréscimo da sugestão de ou- tras possibili- dades. . possibilita- cão de diver- gência do conflito e re- beldia. utilização dos recursos e dos meca- nismos que a língua oferece. . produção de textos para se exprimir dia- logando, de- batendo, es- crevendo ex- periências. conheci- - mento da gramática de uso — domínio de habilidades comunicativas necessárias ao domínio do padrão culto. LlNGUA PORTUGUESA NO ENSINO DE 1º GRAU Obje- tivo Objetivos Gerais Áreas de Atuação — Aspectos Fundamentais Aspectos a serem considerados 5a a 8a Leitura Produção de Textos Análise Linguística lln gu a- pa dr ão c ul ta cípuo da existência da própria escrita, questiona- mentos, tra- balho. reela- boração, dis- cussão e aná- lise dos textos. . formação de estruturas mensais, rela- cionar pensa- mento, formar a visão própria do mundo, tra- tar crit ica menteclichés, ideias, etc. . trabalho de análise lin- guística vi- sando aos as- pectos relativos a: ortografia, pontuação, concordância verbal e nominal, vocabulário, construção de frases, pará- grafos e texto. P os si bi lit ar a os a lu no s o do m ín io d a . criação do gosto da leitura, mediante o convívio constante com obras da literatura infantil. . criação do gosto da lei- tura mediante convívio com obras juvenis ou não especialmente brasileiras. . possibilidade de contato com textos informativos. formativos e literários. . respeito ao nível de aqui- sição da lei- tura do aluno — oferta de desafios. trabalho com textos narrativos, descritivos e dissertativos. respeito e análise da produção de textos tendo em vista os níveis, a área estrutural e a área instru- mental. comparação entre diferentes variedades linguísticas e diferentes es- truturas tex- tuais, frasais ou vocabulares. que possibilitará o alcance da expressão na língua culta. utilização de textos tanto dos alunos quanto literários e em uso na sociedade para análise lin- guística. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA - DISTRITO FEDERAL. Ministério da Educação e Cultura. Diretrizes para o aperfeiçoamento do ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa. Relatório conclusivo. Brasília, 1986. - LANZA, Avani A. X. Fracasso escolar e alfabetização: uma crítica ao pe- ríodo preparatório. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educação, 1988 (Dissertação de Mestrado). - LUFT, Celso P. Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna e seu ensino. Porto Alegre, LBPM, 1985. - MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Educação. Programa de língua e literatura. Belo Horizonte, 1986. - SILVA, Ezequiel T. Leitura & realidade brasileira. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983. - SOARES, Magda. As muitas facetas da alfabetização. Cadernos de Pes- quisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas (52): 25-33; fev., 1985. D E B A T E Profª Selma Vou fazer algumas colocações com o objetivo de explicitar a contribuição do ensino da Língua Portuguesa para a função social da escola. Eu gostaria que você explicitasse um pouco mais claramente esses três objetivos que você coloca como objetivos gerais: o desenvolvimento do espírito crítico no ensino da Língua Portuguesa; o que é o criativo, o aspecto de criação em Língua Portuguesa e o que é a instrumentalização ou o prático, ou melhor, o prático, o crítico, o criativo. Profº Avani A questão do desenvolvimento crítico deve permear o trabalho da escola, em todas as áreas. Para que haja esse desenvolvimento crítico, é fundamental que o indivíduo entenda, primeiro, o seu próprio contexto, as suas questões, para que, a partir desse entendimento, tenha acesso ao conhecimento, sem que a escola o sonegue. Os conhecimentos que o aluno traz, incorporados a outros que ele vai ampliar na escola, ele os extrapola numa tentativa de conhecer melhor e interpretar a sua realidade. Dessa forma, ele terá condições de desenvolver esse espírito crítico e, ao desenvolvê-lo, em termos de Língua Portuguesa, o espírito crítico vai ser quase um instrumento que o ajudará a manifestar essa crítica e a produzir, também, textos, falas orais, em que tenha oportunidade de expor este momento crítico. O desenvolvimento do espírito crítico contribui para que o aluno enxergue um pouco além da aparência, como as coisas estão sendo apresentadas. Por exemplo, em Língua Portuguesa, quando se trabalha um texto, está se desenvolvendo uma leitura mais aprofundada e, talvez, caminhando para uma leitura mais crítica, ou seja, tentar enxergar nas entrelinhas do texto, nas entrelinhas das propagandas das novelas. A contribuição da Língua Portuguesa é aguçar o aluno a indicar diferentes formas de comunicação com que terá contato no dia-a-dia dentro da escola. Revendo as próprias estórias em quadrinhos, que são leituras a que o aluno tem acesso na escola, dentro de um desenvolvimento do espírito crítico, fazê-lo ver o que representa o quadrinho, articular, por exemplo, o Tio Patinhas numa sociedade capitalista, o que representa o Pato Donald, os sobrinhos, etc. A contribuição da Língua Portuguesa, no desenvolvimento crítico, é ajudar o aluno a enxergar um pouco mais, a ler nas entrelinhas e, talvez, a produzir as suas questões, as suas ideiasde forma coerente e clara. Profª Selma Eu perguntaria se essa explicitação do crítico é especificidade do ensino de Língua Portuguesa? Há uma especificidade da Língua Portuguesa? Profª Avani Eu acredito que não é específico da Língua Portuguesa, mas a Língua Portuguesa teria, dentro da sua especificidade, esse momento de leitura, de ler através do texto, de enxergar o texto, e isso enriqueceria a questão das outras áreas. A linguagem permeia o trabalho de todas as outras áreas e, muitas vezes, a falta de compreensão de outra área pode estar sendo comprometida por causa da qualidade de interpretação de texto, da produção escrita dos alunos. A criatividade em Língua Portuguesa é muito discutida. Só o fato de o aluno ter espaço para se manifestar, a forma como ele estrutura sua fala, a forma como ele se manifesta tem toda uma criatividade. Eu vejo o criativo, em termos da língua, na palavra que o aluno coloca no papel, num desenho, numa argumentação ou até numa opinião que ele possa dar. Há, também, uma discussão muito grande em termos da utilização de modelos na linguagem: a criatividade do aluno seria tolhida se ele criasse outros textos em cima de modelos. Na minha opinião, os modelos sempre estiveram em todas as situações de vida, como ponto de partida para se avançar. O prático é a questão da língua como uso, como prática; é o falar do dia-a-dia, é fazer esse espaço existir num trabalho de Língua Portuguesa e captar dessa linguagem um linguajar prático. Aproveitar esse linguajar e trabalhar esse linguajar. Há no prático duas leituras: uma leitura é partir da linguagem usual, prática, do dia- a-dia do aluno; é a questão do uso prático, dentro da escola, de certas situações que facilitaria o trabalho; a outra leitura é o prático utilizado em textos funcionais como bilhetes, cartas, avisos... ProfªSelma Da forma como você explicita estes três aspectos a serem considerados e quando você fala de reprodução de textos e faz referência à presença das diferentes variedades linguísticas dos alunos, como ponto de partida para se chegar a uma variável padrão, a língua culta, neste processo, sobretudo, da forma como você define a criatividade, seria correto fazer a interpretação de que o ensino da língua estaria calcado numa crença, no espontaneísmo, ou seja, a produção vem de dentro para fora? Profª Avani Como ponto de partida, sim. Uma vez que o aluno tenha internalizado uma gramática própria, ele colocaria essa gramática própria em função da espontaneidade de sua manifestação na produção do texto. Esse espontaneísmo, entendido como um ponto de partida, como um espaço, como um momento que a escola dá para obter a naturalidade de expor as coisas como se pensa e como se sente. Prof. José Luiz Primeiro, eu gostaria de parabenizar a Profª Avani pelo enfoque dado à sua fala. Você foi bastante feliz em colocar o Português como ler, escrever, ouvir e falar. E vou mais além, eu só consigo participar como cidadão na sociedade quando eu consigo sair da minha consciência singular e entrar na minha consciência de homem e ser genérico. Nada mais importante do que, na área de Português, você trabalhar a obra literária como você propõe desde o início. E bastante significativa esta colocação. meu ver, é fundamental. A leitura deve ser uma atividade solidária e não solitária. E muito frequente na escola, por exemplo, o professor mandar o aluno ler. Leia o livro tal que no dia tal vou fazer uma prova. O professor tem de ler o livro, tem de discutir com o aluno e, depois, poderá optar por um dos muitos mecanismos de avaliação. Nós estamos fazendo uma experiência, e que a Prof- Selma colocou hoje pela manhã, sobre a relação escola versus universidade. No Rio de Janeiro, nós temos um convênio assinado entre a UFRJ e o projeto da Favelada Maré e nós trabalhamos com as escolas da rede municipal. O que nós propomos ao professor de Por- tuguês é a aplicação de uma técnica que consiste em retirar uma palavra de modo que a pessoa só pode encaixar aquela palavra. Po- de-se fazer com toda a estrutura da língua portuguesa, como, por exemplo, se se vai trabalhar na área de vocabulário, eu dou um exer- cício assim. Na... de 60, os Beatles estouraram em todas as paradas. Qual é a única palavra que pode aparecer aqui? década. Todos acer- taram. Introduza uma vogal na palavra de modo que o número de sí- labas não aumente. Damos para a criança a palavra a..la. O aluno vai falar a vogal que vai colocar - u. Qual a noção gramatical que estamos querendo passar para ele? Ditongo. Mas no meu enunciado não existe a palavra ditongo; está vendo como se faz com a terminologia embutida. Profª Avani Eu gostaria de completar o seguinte: é fundamental a lei- tura deste material. O grupo de especialistas na área apresentou su- gestões muito importantes, inclusive, com sugestões até para o 2º grau. Com relação às questões sobre o como ensinar, eu faço algu- mas restrições. Eu tenho muito medo de que esse como ensinar se caracterize como receita. A forma de ensinar deve ser buscada não só por nós, especialistas, mas fazer com que o professor sinta neces- sidade de refletir sobre o que ele está fazendo e como ele poderia buscar uma outra forma de fazer. Este como fazer tem de vir de uma busca. Profª Selma Eu gostaria de fazer um complemento. Quanto a estas observações da Profª Avani, eu considero de maior importância quando ela chama a atenção para o que eu vou chamar de pesquisa do cotidiano. A referência que ela faz ao trabalho do cotidiano da escola de 1º grau e do trabalho que ela nos apresenta aqui é muito o fruto desta pesquisa do cotidiano. Isto é fundamental, é algo que nós estamos precisando desenvolver mais fortemente em nossas escolas. O complemento que eu gostaria de fazer nesta questão, que de certa forma está totalmente amarrada à reflexão que eu fiz pela manhã, diz respeito à questão conteúdo e forma. Eu disse e reafirmo que a fonte da transmissão de conteúdos tem de ser o momento histórico em que nós estamos vivendo considerando os três aspec-tos: a natureza, a natureza transformada pelos homens e as relações sociais. No nível de cada disciplina, é preciso que, dentro das especificidades, ela traduza, na sua área de conhecimento, como contribui, como trabalha, como traduz em instrumentos didáticos/pedagógicos a sua contribuição. Neste ponto, é que eu gostaria de chamar atenção da questão para a relação conteúdo versus método versus objetivo. Eu não posso pensar método de trabalho desconectado de conteúdos que, por sua vez, tem de estar conectado aos objetivos, se quisermos a finalidade da disciplina. Dizendo de outra forma, cada área do conhecimento tem um método de apropriação e de produção do conhecimento. Por exemplo, na Língua Portuguesa, certamente é diferente do método da produção do conhecimento da Matemática. Isso configura, epistemologicamente, a diferença entre as áreas do conhecimento. Agora, há uma questão que é embricada a esta que é o método do ensino. O método do ensino ou o método da difusão do conhe- cimento tem de estar diretamente vinculado ao método da apropriação do conhecimento de cada uma das áreas. Essa vinculação me parece ser fundamental. Quando nós colocamos o terceiro, elemento que é o objetivo, então, não dá mesmo para fazer a separação entre essas três coisas. Eu vou me permitir colocar como um exemplo o que eu ouvi de uma professora no seu trabalho cotidiano - uma professora que trabalha na 4ª série do 1º grau e é professora polivalente - portanto, ensina Português, Matemática, História, Geografia... numa escola que é próxima a uma favela, em Niterói, Rio de Janeiro. Um dos seus objetivos, dentro da Língua Portuguesa, é a ampliação do vocabulário. Ela constatou que todos os alunos tinham
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