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4.3.4) Da Justiça A justiça é o valor cardeal de qualquer ordenamento jurídico. O Direito, enquanto sistema de normas de conduta que possibilita a convivência social, destaca- se, no cenário contemporâneo, como o meio historicamente mais eficiente de composição das liberdades individuais na solução dos conflitos. Mesmo aqueles que atribuem este sucesso à coercibilidade das prescrições jurídicas garantida pelo monopólio da jurisdição pelo Estado, não podem se esquivar da apreciação do conteúdo das normas jurídicas. O caminhar da História descortina a elevação de valores, que garantem a existência do homem, considerada não apenas fisicamente, mas também em sua dimensão espiritual, ao centro irradiador do sistema jurídico. Desta forma, as normas que integram o ordenamento jurídico não o fazem estritamente do ponto de vista funcional do encerramento dos conflitos sociais, mas, enquanto, promovem a melhor solução, perante o tribunal da razão, para as disputas ocorridas no seio da sociedade. O Direito é, portanto, a elaboração e a aplicação racional do justo nas relações entre os seres livres e iguais. A Filosofia do Direito, responsável pela elucidação do fundamento último de inteligibilidade do Direito, dirige, em primeiro plano, o seu olhar à investigação da justiça1. Desta forma, o posicionamento aristotélico da justiça como a mais importante das virtudes éticas, dedicando-lhe todo o livro V da Ética a Nicômacos, capta a especial atenção dos jusfilósofos, por vezes maior até do que aquela que a filosofia “pura” lhe dispensa. 1 Neste sentido afirma Kaufmann: “Toda a filosofia do direito deve – direta ou indiretamente – servir a missão de separar o direito do não direito/injustiça. Daí resultam as duas perguntas fundamentais da filosofia do direito: 1. O que é o direito correto? 2. Como reconhecemos ou realizamos o direito correto? Estas duas perguntas juntas conduzem à pergunta acerca da justiça como critério valorativo para o direito positivo e, como tal, à pergunta sobre a validade do direito.” (2002 (a), p. 57; 2002 (b), p. 41-42) Neste talante, em nossa exposição da justiça aristotélica, nos apoiaremos nas preciosas lições do Prof. Joaquim Carlos Salgado, que tanto se dedicou à elucidação da idéia de justiça imanente à história do pensamento ocidental. Feitos estes esclarecimentos, passemos à abordagem, seguindo o roteiro aristotélico, da virtude da justiça. De acordo com Aristóteles, diferentemente das demais virtudes éticas, à justiça contrapõe-se um único extremo vicioso, a injustiça. Entretanto, por tratar-se de virtude que se pratica em relação ao outro, a justiça estabelece-se como a mediania entre aquele que pratica a injustiça e aquele que a sofre, realizando, portanto, o equilíbrio, a igualdade entre dois sujeitos. A justiça é a única das virtudes éticas que se exerce na relação com o outro, ou seja, a consideração do justo não se refere à interioridade e individualidade da ação, mas se avalia pelas conseqüências do ato em suas implicações na esfera da alteridade, enfim, em seus reflexos na vida de outro ser racional e, portanto, igual ao agente. A este respeito, comenta Salgado: “A justiça é uma virtude que só se torna possível na dimensão do outro, enquanto igual ao sujeito que a pratica, vale dizer, na medida em que seja considerado como ser racional, ou ‘sujeito’. Essa alteridade da justiça é o que lhe dá o posto de maior nobreza dentre todas as virtudes e o que a faz uma virtude perfeita, pois ‘o que a possui pode executá-la em relação com o outro e não só consigo mesmo’ (1130 b)”. (1995, p. 38) Portanto, a justiça é critério de excelência das relações sociais. Mas como se define o ato justo? Neste ponto, o estagirita salienta a ambigüidade de sentido da palavra justiça. Quando nos referimos a alguém como justo, podemos estar ressaltando a conformidade de suas ações com as prescrições normativas vigentes ou àquele que percebe dos bens a parte que lhe é cabível e, portanto, adequada, nem mais, nem menos. À primeira ele denomina justiça universal; à segunda, justiça particular: “Os termos ‘justiça’ e ‘injustiça’ parecem ser ambíguos, mas em virtude da proximidade da homonímia, esta ambigüidade passa despercebida à observação e não é tão óbvia quanto seria se os sentidos fossem mais distantes um do outro [...] Verifiquemos, então, os diferentes caminhos pelos quais um homem pode ser dito injusto. Tanto aquele que descumpre a lei quanto o homem ganancioso e que promove a desigualdade são considerados homens injustos, portanto, tanto aquele que cumpre a lei quanto aquele que promove a igualdade, evidentemente, serão considerados justos. Os justos, então, são os obedientes à lei e os propiciadores da igualdade, e os injustos, os desobedientes da lei e os causadores da desigualdade.” (EN, V, 1, 1129 a 27 – 1129 b 1 - tradução nossa)2 Comenta Ross: “Por ‘justo’ podemos entender: 1) o que é conforme à lei, ou 2) o que é imparcial e igual; estes dois sentidos definem, respectivamente, a justiça ‘universal’ e a justiça ‘particular’. A primeira destas significações atribuimo- la naturalmente à palavra ‘justo’; isto se explica pelo fato de que δικαιος significa originalmente ‘aquele que observa o costume ou a regra (δικε) em geral’. Em particular, αδικειν era o termo empregado no direito ático para designar toda infração à lei. Mais tarde, a justiça tende a identificar-se com retidão.” (1957, p. 298 - tradução nossa)3 A justiça universal configura-se no cumprimento das leis (νοµοι)4 pelos cidadãos, ou seja, na conformidade da ação individual aos preceitos legais estabelecidos pelo poder competente designado pela comunidade social. Desta forma, justo é obedecer à lei e injusto contrariá-la5. É necessário ressaltar a importância concedida pelos gregos e, em especial por Aristóteles, à função das normas jurídicas. A convivência social é parte relevante do desenvolvimento humano e a imposição de iguais limites aos indivíduos em suas relações sociais, o único meio capaz de garantir a solidariedade social. 2 Texto original: “Now ‘justice’ and ‘injustice’ seem to be ambiguous, but because the homonymy is close, it escapes notice and is not obvious as it is, comparatively, when the meanings are far apart [...] Let us then ascertain the different ways in which a man may be said to be unjust. Both the lawless man and the grasping and unequal man are thought to be unjust, so that evidently both the law-abiding and equal man will be just. The just, then, are the lawful and the equal, the unjust the unlawful and the unequal.” 3 Texto original: “Por ‘justo’ podemos entender: 1) lo que es conforme a la ley, o 2) lo que es imparcial e igual; estos dos sentidos definen respectivamente la justicia ‘universal’ y la justicia ‘particular’. La primera de estas significaciones no la atribuimos naturalmente a la palabra ‘justo’; se explica en parte por el hecho de que δικαιος significa originalmente ‘el que observa la costumbre o la regla (δικη) en general’. En particular, αδικειν era el término empleado en el derecho ático para designar toda infracción a la ley. Más tarde, la justicia tiende a identificarse con rectitud.” 4 A palavra νοµος4 contém além do sentido jurídico moderno, as normas em geral, portanto, abrange qualquer regramento da conduta humana existente, seja ele moral, social ou estritamente jurídico. Portanto, nos referimos aqui ao ordenamento das condutas humanas por meio de regras estabelecidas seja pelo costume seja pelo poder político legiferante. 5 Esta é a formulação da justiça legal, fixada, pela primeira vez, por Sócrates, da forma que nos relata Platão no Críton.Neste sentido, refere-se Salgado: “Na comunidade ética da polis, o justo pouco se diferenciava do legal ou da norma de direito positivo em geral, fosse ela costumeira ou legal, ou, ainda, do padrão de comportamento em geral. Consciente de que direito era a ordem ou a garantia da comunidade ética que se caracterizou na polis, o grego (pelo menos em alguns autores) reverenciava a lei ou o costume como algo de origem divina. A ordem é a lei e o governo da lei é preferível ao de qualquer cidadão, porque a lei é a razão sem apetites, dirá Aristóteles na Política. Onde existe a relação de um ser humano com outro ser humano – relação que é natural por ser o homem social por natureza – existirá a lei para ordenar essas relações, e onde há a ordem legal, surge a possibilidade da justiça e da injustiça.” (1995, p. 40-41) As regras jurídicas de uma comunidade são criadas para a promoção do equilíbrio social, para distribuírem eqüitativamente os bens da cidade e para solucionar da melhor maneira possível os conflitos entre os cidadãos. Ora, a fixação racional de regras de convivência social, garantidas pelo aparato estatal, retira seu conteúdo dos fatos sociais valorados pela comunidade. As leis visam ao interesse comum e, neste sentido, ordenam a prática de certos atos e proíbem a de outros, realizando todas as virtudes éticas e evitando todos os vícios. Desta forma, a justiça universal é o máximo da virtude, pois representa a prática efetiva de todas as outras virtudes, enfim, é a virtude perfeita. Quando nos comportamos de acordo com os preceitos legais, estamos realizando todas as ações virtuosas a um só tempo e, ademais, colaborando para o equilíbrio de toda a comunidade, pois só retiramos dos bens sociais aquilo que nos cabe e que nos foi atribuído pela lei. Vejamos o seguinte exemplo. Certa norma ordena que os cidadãos maiores de 18 anos sejam responsáveis pela defesa da cidade. Quando aqueles indivíduos obedecem ao comando legal, suas ações são ao mesmo tempo justas, pois em conformidade com a lei e porque contribuem para o bom funcionamento da cidade sem onerar mais uns que os outros, e corajosas, porque dominam o sentimento de medo diante das adversidades6. 6 Cabe ressaltar, neste ponto, que para o direito não importa a motivação da ação, apenas a sua exterioridade em conformidade com o prescrito. Portanto, há aqui um descompasso entre a justiça universal e a realização do máximo da virtude, pois para o estagirita, só se é virtuoso quando se pratica a ação consciente de sua virtude e tendo-a como fim. Entretanto, mesmo que num primeiro momento, a conduta do indivíduo não seja motivada pela sua convicção da virtude dos comportamentos ordenados pela lei, a reiterada praxis pode promover a aquisição da virtude pela formação do hábito justo e, portanto, retificar a motivação do ato individual. A este respeito tornaremos quando expusermos o processo de formação da consciência da virtude em Aristóteles. Trazemos à colação os comentários de Ross, que elucidam nossa exposição: “Aristóteles pensa que a lei deve controlar toda a vida humana e assegurar, senão a moralidade, posto que não pode fazer com que os homens ajam ‘segundo o nobre motivo’, ao menos que as ações adequadas a todas as virtudes sejam praticadas; se a lei de um Estado particular garante este objetivo somente em parte é porque ela não mais do que um mero esboço do que a lei deve ser. A justiça neste sentido de obediência à lei é coextensiva com a virtude, mas os termos não têm significados idênticos; o termo ‘justiça’ refere-se ao caráter social implicado por toda virtude moral, enquanto o termo ‘virtude’ não destaca este caráter.” (1957, p. 298- 299 - tradução nossa)7 É preciso ressaltar, entretanto, que para Aristóteles a lei não é estabelecida ao bel-prazer de seu criador. Como já dito, a lei criada pelos homens para regular seus comportamentos em sociedade obedece a certa finalidade, critério de sua validade e legitimidade. As leis são estabelecidas para a realização da excelência do homem, uma vez que a existência humana só é possível em comunidade. Assim, para que o homem possa atingir o melhor de si para si é necessária, além da prática das virtudes individuais éticas e dianoéticas, a perfeita regulação da convivência social. Portanto, a lei é o instrumento realizador da finalidade da ordem social, qual seja, o bem comum e não às conveniências particulares. Explicita Salgado: “A lei, contudo, não é o produto do arbítrio do legislador político. Tem o seu critério de validade: a lei natural que expressa a própria natureza da ordem política que é uma ordem natural destinada a realizar a autarkeia [auto-suficiência, o que se basta a si mesmo] do homem, que isolado não pode consegui-la. A lei que realiza essa finalidade do Estado, que se destina ao bem comum e não a interesses particulares (governantes ou grupos de governados) expressa a justiça, e agir em desacordo com o seu preceito é injustiça. Há, portanto, uma lei natural (ou direito natural), que é a lei que revela a natureza da comunidade política, o seu fim, pois que o Estado é uma realidade natural cujo telos é a autarkeia. Há um parentesco próximo entre razão, lei e igualdade. A razão é o comum a todos os homens, o igual. A lei é razão porque ‘é a instância impessoal e objetiva’ que impede o arbítrio e realiza a igualdade jurídica formal (tal como desenvolvida pelo Estado romano [a igualdade de todos perante a lei]). A justiça é, para 7 Texto original: “Aristóteles piensa que la ley debe controlar toda la vida humana y asegurar, si no la moralidad, puesto que no puede hacer con que los hombres actúen ‘según el noble motivo’, al menos las acciones adecuadas a todas las virtudes son practicadas; si la ley de un Estado particular lo hace sólo en parte es porque ella no es más que un mero bosquejo de lo que la ley debe ser. La justicia en este sentido de obediencia a la ley es coextensiva con la virtud, pero los términos no tienen sin embargo significados idénticos; el término ‘justicia’ se refiere al carácter social implicado por toda virtud moral, mientras que el término ‘virtud’ no destaca este carácter.” Aristóteles, (...) a virtude que opera em definitivo a vinculação do político com o ético. A razão de ser dessa virtude é a comunidade, sem a qual não se poderá falar em justiça, porque esta, por sua vez, se destina ao bem da comunidade.” (1995, p. 41-42) Aquele que cumpre os preceitos legais é, portanto, o mais virtuoso dos homens, na medida em que sua praxis abrange as demais virtudes éticas e, em especial, a esfera do outro a ele igual, promovendo o bem de toda a comunidade. Neste sentido, expõe Aristóteles: “Esta forma de justiça [justiça universal] é a virtude completa, não absolutamente, mas na relação com os outros. E, por isso, a justiça é freqüentemente considerada como a maior das virtudes e ‘nem o raiar do dia nem o pôr do sol’ é tão maravilhoso quanto ela, e no provérbio ‘na justiça tudo está compreendido’. A justiça é a virtude completa em sentido total, porque é atualização de todas as virtudes. Ademais, aquele que a possui pode praticar todas as excelências em direção ao outro e não meramente para si mesmo; pois muitos homens podem exercer as virtudes em seus próprios assuntos, mas poucos são os que as praticam nas relações com os outros.” (EN, V, 1, 1129 b 26 – 35 - tradução nossa)8 A justiça particular, por sua vez, informa-nos o sentido estrito de virtude ética do justo e, para destacá-la das demais, Aristóteles utiliza-se da argumentação contrária, ou seja, apóia-se no sentido específico do injusto para fazer sobressair o do justo. Segundo o estagirita, todos osvícios são atos injustos no sentido legal de infrações às leis, mas, em especial, são caracterizados quanto ao meio de que são excessos. Em outras palavras, o ato injusto stricto sensu se verifica quando a prática de atos contrários à lei é motivada pelo prazer proporcionado pelo ganho excessivo que advém da ação ilícita. Exemplifiquemos. O adultério é imputado ao vício da concupiscência; a deserção, à covardia; a agressão, à cólera. Todos são atos injustos, pois contrários à lei, mas são, também, vícios em relação às demais virtudes éticas. Entretanto, quando uma pessoa pratica estes mesmos atos para obter proveito de bens que não lhe são 8 Texto original: “This form of justice then is complete excellence – not absolutely, but in relation to others. And therefore justice is often thought to be the greatest of excellences and ‘neither evening nor morning star’ is so wonderful, and proverbially ‘in justice is every comprehended’. And it is complete excellence in its fullest sense, because it is the actual exercise of complete excellence. It is complete because who possesses it can exercise all excellence towards other too and not merely by himself; for many men can exercise excellence in their own affairs, but not in their relations to excellence.” atribuídos, sua ação é qualificada de injusta no sentido específico do vício de querer mais do que aquilo a que tem direito, no sentido de iniqüidade9. Portanto, tudo o que é iníquo é ilegal, ou seja, tudo o que é injusto em particular o é universalmente, mas nem tudo o que é ilegal é iníquo, pois nem todas as ações de desobediência à lei caracterizam o vício do injusto; podem ser outros vícios. Comenta Ross: “O homem que ‘não é justo’ neste sentido [justiça particular] é aquele que toma mais do que lhe corresponde das coisas que, ainda que boas em si mesmas, não o são sempre para uma pessoa particular, por exemplo os bens exteriores como a riqueza e as honras. O homem que foge na batalha ou que se enfurece pode ser chamado injusto no sentido amplo da palavra, mas não ganancioso. A cobiça é evidentemente um vício particular que deve ser diferenciado dos outros, e é a este vício ao que em particular se aplica o nome de ‘injustiça’.” (1957, p. 299 - tradução nossa)10 A justiça particular, portanto, consiste na justa medida com a qual repartimos os bens da cidade entre os indivíduos. É mediania por excelência, é proporção e igualdade em si mesma e se divide em duas espécies: a justiça na distribuição dos bens consagrados na constituição da cidade entre os cidadãos e a justiça reparadora nas relações particulares entre os homens. Diz Aristóteles: “Da justiça particular e daquele que é justo em sentido correspondente, uma espécie é aquela que se manifesta na distribuição das honras, das riquezas ou de outras coisas que podem ser divididas entre aqueles que têm participação na constituição da cidade (neste caso é possível que um homem tenha porção igual ou desigual à de outro), outra espécie é aquela que faz a retificação das partes nas transações. Desta última, há dois tipos: das transações, algumas são voluntárias, outras, involuntárias – voluntárias são as transações tais quais a venda, a compra, o empréstimo de dinheiro 9A palavra grega utilizada para denominar o injusto particular é pleonexia (piλεονεξια). Vlastos esclarece o sentido do vocábulo grego: “Como piλεονεξια significa ‘possuir em excesso’, i.e., mais do que lhe é devido (‘o que pertence a alguém), ter ‘aquilo que pertence a outros’ seria cometer piλεονεξια, e ‘ser privado do que é seu’, sofrê-la.” (1981, p. 119-120 - tradução nossa) O conceito é comum aos filósofos gregos, entretanto, em Aristóteles adquire sentido ético-jurídico, na medida em que, para ele, a lei é que estabelece o que pertence a cada um: “a justiça é a virtude por meio da qual todos usufruem de suas próprias posses de acordo com a lei; seu oposto é a injustiça, por meio da qual os homens usufruem das posses de outros em desrespeito à lei.” (Retórica, I, 9, 1366 b 9 – 11) 10 Texto original: “El hombre que es ‘no justo’ en este sentido [justiça particular] es el hombre que toma más de lo que le corresponde de cosas que, aunque buenas en sí mismas, no lo son siempre para una persona particular, por ejemplo los bienes exteriores como la riqueza y los honores. El hombre que huye en la batalla o que se enoja puede ser llamado injusto en el sentido amplio de la palabra, pero no codicioso; la codicia es evidentemente un vicio particular que debe ser distinguido de los otros, y es a este vicio al que más en particular se aplica el nombre de ‘injusticia’.” a juros, a fiança, o depósito, o aluguel (elas são chamadas voluntárias porque a origem destas transações é voluntária), das involuntárias algumas são clandestinas, tais como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, incitar a revolta de escravos, difamação, o falso testemunho, e outras são violentas, tais como agressão física, o seqüestro, o homicídio, o roubo, a mutilação, o estupro, os insultos.” (EN, V, 2, 1130 b 30 – 1131 a 9 - tradução nossa)11 Para facilitar a exposição das espécies do justo particular, elaboramos um quadro que as organiza. No que tange à distribuição dos bens da cidade entre os particulares, o justo é a proporcionalidade adequada de bens em relação aos méritos individuais. Mais ou menos bens devem ser distribuídos de acordo com o maior ou menor mérito dos cidadãos. Entre os iguais, quantidades semelhantes de bens devem ser atribuídas, realizando a igualdade comutativa; entre os desiguais, quantidades diversas, realizando a igualdade distributiva, de forma a estabelecer entre todos os indivíduos daquela 11 Texto original: “Of particular justice and that which is just in the corresponding sense, one kind is that which is manifested in distribuction of honour or money or the other things that fall to be divided among those who have a share in the constitution (for in these it is possible for one man to have a share either unequal or equal to that of another), and another kind is that which plays a rectifying part in transactions. Of this there are two divisions; of transactions some are voluntary and others involuntary – voluntary such transactions as sale, purchase, usury, pledging, lending, depositing, letting (they are called voluntary because the origin of these transactions is voluntary), while of the involuntary some are clandestine, such as theft, adultery, poisoning, procuring, enticement of slaves, assassination, false witness, and others are violent, such as assault, imprisonment, murder, robbery with violence, mutilation, abuse, insult.” comunidade o equilíbrio. Caracteriza-se, portanto, como o justo distributivo, pois atribui a cada indivíduo a adequada porção dos bens da cidade em função de seus méritos12. É, enfim, o justo público que se estabelece na relação de subordinação entre governantes e governados e se verifica pela correta repartição dos bens da cidade. Nas relações particulares, sejam elas voluntárias ou involuntárias, o justo se caracteriza pelo meio termo estabelecido entre as perdas e os ganhos que advém dos vínculos formados, ou seja, pela correção do equilíbrio rompido. Trata-se da justiça privada, ou seja, aquela que se estabelece na relação de coordenação entre os indivíduos iguais que se vinculam como sujeitos de direitos e deveres frente às leis da polis. As relações voluntárias são aquelas em que o vínculo formado entre os indivíduos é desejado por eles, como no caso da compra e venda, da locação, dos empréstimos e outros mais. Quando não há correspondência entre os bens e serviçostrocados entre os indivíduos, um terceiro, eqüidistante entre as partes, iguais perante a lei, é chamado a restabelecer o equilíbrio rompido entre elas, subtraindo de um o excedente auferido e restituindo-o ao outro, retornando-as ao estado anterior de igualdade. O terceiro é o aplicador da lei, o juiz, aquele que diante do conflito de interesses, informa-se das circunstâncias em que tal desequilíbrio ocorreu e aplica a ele as disposições gerais da norma, de forma a igualar em concreto as partes em litígio. Ora, na medida em que a lei realiza a igualdade de todos os cidadãos pela adequada distribuição dos bens da cidade, quando este equilíbrio é desfeito pelas trocas desproporcionais ocorridas nas relações particulares, a própria lei fixa um mecanismo de correção destas desigualdades, que restabelece a proporção correta entre os cidadãos e realiza o justo comutativo. 12 A distribuição dos bens de acordo com os méritos dos cidadãos suscita o problema do critério de verificação do mérito de cada um. Aristóteles procura solucionar a questão dizendo que o mérito se caracteriza pelo esforço de cada indivíduo e que, portanto, em qualquer sistema de governo, desde que se realize o interesse da comunidade, a justiça pode se efetivar em todas as suas espécies, ainda que ponha em relevo a República como a melhor forma de governo. É importante ressaltar, neste ponto, a percepção de Aristóteles quanto ao processo de trocas que se estabelece na sociedade. Segundo ele, as trocas se fazem entre objetos diferentes, produzidos por pessoas diversas e que recebem diferentes valorações no seio da comunidade. Desta forma, a moeda se impõe como mediadora, possibilitando a quantificação do comércio. Afirma o estagirita: “Deste modo, agindo o dinheiro como uma medida, ele torna os bens comensuráveis e os equipara entre si; pois nem haveria associação se não houvesse troca, nem troca se não houvesse um critério de igualdade, nem igualdade se não houvesse comensurabilidade.” (EN, V, 5, 1133b 15-18) As relações involuntárias são aquelas em que os vínculos formados entre os indivíduos não são desejados por ambos os lados, como ocorre nos furtos e adultérios em que o sujeito que pratica o injusto age clandestinamente – relações involuntárias sub-reptícias – ou nos homicídios e agressões físicas e morais, em que o sujeito que pratica a injustiça age com violência – relações involuntárias violentas. Nestes casos, o juiz aplica ao sujeito ativo da injustiça – aquele que age com a intenção de causar um dano qualquer a outrem – a adequada sanção; e, ao sujeito passivo, o correto ressarcimento pelo dano sofrido, concedendo-lhe uma reparação ou compensação a posteriori, realizando o justo reparativo ou corretivo. A justiça corretiva, seja nas relações involuntárias sub-reptícias, seja nas violentas, é aritmética, pois considera os particulares em sua igualdade perante a lei, impessoal, que se destina ao cumprimento de todos da mesma forma. Ademais, a reparação promovida pelo juiz é proporcional e não absoluta. Não se realiza a justiça pela prática de um mal correspondente ao dano sofrido. A justiça não comporta o injusto. Aristóteles rompe com a regra do ‘olho por olho, dente por dente’. Aquele que age como causa eficiente de um dano indevidamente provocado a outrem, recebe a punição legalmente prevista, e aquele que sofre o injusto, a correta reparação ou compensação e, deste modo, é restabelecido o equilíbrio rompido entre as partes. A justiça aristotélica é, pois, a virtude que realiza a igualdade entre os sujeitos da polis, tanto formal, de todos os destinatários perante a lei13, quanto material, na atribuição proporcional dos bens da cidade aos cidadãos e na aplicação da lei que visa restabelecer o equilíbrio rompido nas relações dos particulares entre si. Ademais, a própria virtude é em si mediania entre o injusto e a retribuição absoluta dos males sofridos, pois não justo é pretender mais bens e menos males do que o outro. Salgado corrobora nossas ilações: “É em Aristóteles que o conceito de igualdade é trabalhado com esmero ao definir a justiça, visto que para ele, sua essência se identifica com o igual (ισον). O elemento igualdade na justiça aristotélica aparece em três momentos: a) na ação considerada em si mesma: a justiça é o termo médio entre o injusto e o justiceiro, a carência e o excesso; b) no objeto da ação: neste caso, a igualdade aparece na atribuição do bem: injusta é a ação que se pratica no sentido de receber mais bem do que o outro (...) c) tudo isso, porém, no pressuposto de uma igualdade fundamental: o ser humano na justiça universal e o cidadão na justiça particular. A virtude que leva em consideração o outro como o igual e cujas ações se determinam por essa igualdade é a justiça.” (1995, p. 46-47) Cabe, ainda, ressaltar que a prática de um ato justo ou injusto pressupõe a vontade daquele que age. A lei define o justo e o injusto, mas a praxis do justo ou do injusto só se realiza na medida em que o sujeito da ação dirige o seu querer para o vício ou a virtude. Só comete o injusto aquele que quer obter proveito de outrem ou quer causar dano ao outro. Neste sentido, acrescenta Salgado: “E mais: do ponto de vista do agente, a moralidade do seu ato não se mede ainda pela simples voluntariedade da ação, mas pela premeditação ou escolha deliberada. Se não houve essa reflexão prévia para a execução do ato, pode ser o ato injusto, mas não o seu autor, pois que não agiu com perversidade. Em resumo: algumas ações causam danos que não foram previstos (infortúnio); outras prevêem o resultado, porém sem maldade (erro); outras ocorrem com o conhecimento do agente (voluntárias), mas sem perversidade; finalmente, outras ações são premeditadas, o que significa que se elegem os meios próprios para alcançar os resultados previamente conhecidos. Nesse caso, não só o ato como o seu autor 13 É preciso ressaltar, neste ponto, que a igualdade universal de Aristóteles comporta certa desigualdade em virtude de sua concepção ideológica escravocrata. Segundo o estagirita, comenta Salgado, “livre não é o ser humano em geral, dotado da diferença específica, a racionalidade. A divisão da sociedade entre livres e escravos não procede das convenções, mas da própria natureza, visto que o escravo é inferior ao senhor (...)” (1995, p. 51). reputam-se injustos ou justos, conforme causem danos ou bem ao outro.” (1995, p. 40) Portanto, caberá ao aplicador a adequação dos preceitos abstratos da lei, que caracterizam o justo e o injusto, às circunstâncias particulares em que se circunscreve a ação, e a apuração do grau de intencionalidade do agente, para que se realize in concreto a justiça; ou seja, a eqüidade (εpiιεικεια), o momento de efetivação da justiça na realidade dos indivíduos da polis. Mais uma vez, são indispensáveis as observações de Salgado: “De outro lado, a justiça expressa pela lei positiva é uma justiça abstrata, já que a lei tem de prevenir casos futuros, sem consideração das particularidades que envolvem cada fato, podendo, com isso, sua aplicação mecânica não corresponder à justiça. Daí a eqüidade para a correção da aspereza da lei (...) Esta [a eqüidade] é suscitada pelas circunstâncias particulares do caso. Entretanto, tanto a fonte inspiradora da lei como a do ato de eqüidade que dirime um caso concreto são uma e a mesma: a igualdade que deve ser realizada entre os indivíduos, pois quem pratica a eqüidade age como agiria o legislador na mesma situação. Justo é, finalmente, na concepção aristotélica, ‘o que observa a lei e a igualdade’, ou o que é conforme a lei e a eqüidade.” (1995, p. 44)Munidos destes pressupostos teóricos seremos capazes de explicitar a interação entre hábito, virtude e razão que se faz por meio do justo na formação da consciência ética do indivíduo. Preliminarmente, entretanto, em respeito à coerência do sistema ético aristotélico, discorreremos ainda sobre o prazer – decorrência da ação – e a eudaimonia – objetivo a ser alcançado pelo indivíduo por meio da ação virtuosa.
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