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Resumo- Egito, Roma e Grécia

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1. Introdução
“Ao empregar um termo grego para exprimir uma coisa grega, quero dar a entender que essa coisa se contempla, não com os olhos do homem moderno, mas sim com os do homem grego.”
(Werner Jaeger. Paidéia)
Há um fato na História das artes que já é bastante divulgado: temos, em relação à produção artística da Grécia Antiga, um conhecimento apenas derivativo e muitas vezes indireto. Isto é, muito do que conhecemos e apreciamos como "arte grega” é, na realidade, cópias romanas de originais gregos que se perderam. Este processo de conhecimento indireto ocorre com a escultura e, principalmente, com a pintura, da qual pouco ou quase nada teria resistido ao tempo. No entanto, se estas asserções são corretas, há que se refletir com mais minúcia um domínio específico da produção de imagens: a arquitetura. Ora, há, em toda a Grécia continental, e mesmo na chamada Magna Grécia, vários exemplares de obras arquitetônicas – e, principalmente, templos – que nos proporcionam um conhecimento direto, isto é, um conhecimento que, neste caso, não necessita da mediação da cultura romana. Mesmo o estado de ruínas destas construções remanescentes, e que lhes empresta seguramente o aspecto de um objeto que perdeu a sua feição de completude, não é suficientemente importante para impedir um certo grau de conhecimento e de experiência sensível. Além disto, há descrições de exemplares arquitetônicos realizadas por viajantes que estiveram no mundo grego, as quais podem ser comparadas com as construções ainda existentes, e, através deste método, "completa-se" com as imagens evocadas pelos textos os objetos arquitetônicos. Assim, não estaríamos longe da verdade se afirmássemos que possuímos um conhecimento mais seguro da arquitetura grega do que da sua escultura e, principalmente, da sua pintura.
Este fato, no entanto, foi muitas vezes eclipsado pelo simples motivo de que o mundo grego não nos legou nenhum documento tão completo e tão espetacular quanto o De Architectura Libro Decem, do arquiteto romano Vitrúvio, escrito, provavelmente, em 27 ou 16 a.C (2) (3). Porém, mesmo que se trate de um texto escrito por um arquiteto romano, pode-se estudar e conhecer, através deste documento, parte do pensamento e da prática arquitetônica gregas; e, novamente neste caso, estamos fadados a conhecer a arquitetura grega a partir da cultura romana... Destarte, assim como no caso da escultura e da pintura, estaríamos expostos a um conhecimento apenas indireto. É possível, no entanto, seguir um outro caminho, uma vez que alguns filósofos e aedos escreveram sobre a prática arquitetônica e sobre o estatuto social do arquiteto no mundo grego. Não vamos encontrar, certamente, um texto que poderia ser compreendido como uma espécie de "tratado de arquitetura avant la lettre" – com todo o anacronismo que esta visão implica – como normalmente o texto vitruviano o é. Os filósofos, por exemplo, apenas abordaram o tema por razões expositivas e no interior dos seus sistemas de pensamento (4). Não escreveram sobre o ofício de arquitetura simplesmente porque isto não seria culturalmente possível, uma vez que a prática arquitetônica era considerada, como explicaremos nas próximas páginas, uma téchne, e, a este título, não seria julgada um objeto da filosofia:
"Da teoria técnica à prática dos ofícios, os aspectos de estagnação acentuam-se ainda mais. Os artesãos não nos deixaram, acerca de seu trabalho, testemunhos diretos. Mas os escritores da Antigüidade são concordes em reconhecer aqui o tipo de atividade rotineira. A téchneartesanal não é um verdadeiro saber. O artesão não tem inteligência de seu método, não compreende o que faz". (5)
Pode-se depreender, das asserções do estudioso francês, duas conseqüências diretas: a arquitetura somente poderia existir e ser pensada como uma "prática profissional", isto é, como ofício; e este mesmo ofício era uma atividade artesanal, um trabalho manual que, certamente, dependia de uma teoria, mas que se realizava, verdadeiramente, na produção de um objeto sensível. Não existia no mundo grego – ao menos no mundo grego arcaico e clássico – uma esfera de pensamento que tomasse a multiplicidade do sensível como um tema possível ou digno de importância para a filosofia. Explicando-nos em outros termos: não há, na Grécia Antiga, algo que poderia vir a ser compreendido como "fruição estética", e, sem este conceito, não há "arte" no sentido moderno – assim como não há "estética", como um campo privilegiado para o estudo da arte (6). O termo “estética”, ainda que as suas raízes mais profundas estejam fincadas em solo grego – refiro-me, naturalmente, à etimologia da palavra, aisthesis –, não pode ser aplicado à Grécia Antiga sem o risco de se cometer um evidente anacronismo. Pintura e escultura ou bem serviam como ornamento, ou bem eram realizadas por razões votivas – possuíam, então, uma função utilitária bastante precisa. E, naturalmente, os objetos arquitetônicos não eram compreendidos de outra forma.
Procuraremos, nas páginas a seguir, estabelecer uma esfera de conceitualização que privilegie o surgimento da compreensão histórica de um trabalhador específico e da sua prática, assim como o seu estatuto no interior de uma dada sociedade. Utilizaremos, para tanto, três textos de dois filósofos: Ética a Nicômano e Metafísica, de Aristóteles, e Político, de Platão; além da Odisséia, epopéia atribuída a Homero. Tratar-se-á, como o leitor já terá percebido, de uma "leitura interessada", na medida em o sistema filosófico de Platão e de Aristóteles serão expostos apenas quando iluminarem a questão da prática do archetekton. Recorrer-se-á, igualmente, a textos de pesquisadores que já refletiram diretamente esta questão ou que, de alguma forma, a assimilaram ao seu discurso. Neste sentido, os textos supracitados serão considerados mais como documentos de caráter histórico do que como textos filosóficos ou obras literárias. Tentaremos, na medida em que este processo for possível, interpretá-los à luz desta inquietante questão: quem era o archetekton, isto é, quem era o trabalhador responsável, na Grécia Antiga, pelo papel que, nas sociedades modernas e contemporâneas, cabe ao arquiteto?
2. A Grécia arcaica: aedos
Inicialmente, como o ato preliminar de um método, convém indagar pela gênese da palavra arquiteto, isto é, archetekton. Como verbete de dicionário este termo significa "arquiteto, construtor de uma obra e engenheiro naval" (7). Isto é, um profissional encarregado da direção de atividades realizadas em pedra e em madeira – materiais de construção extremamente comuns e usuais na Antigüidade, principalmente no que se refere a edificações de grande porte destinadas às classes dirigentes. Neste sentido, o archetekton diferencia-se de um simples tekton porque em seu título lê-se a palavra archi, que significa, justamente, mestre ou chefe. Existem, ao menos, duas conseqüências interessantes desta breve genealogia: o termo archi coloca este profissional acima dos demais trabalhadores envolvidos nos processos construtivos, uma vez que ele ordenaria mais do que obedeceria, e que "faria fazer" mais do que concretamente "faria"; outra conseqüência não é menos clara: há uma superposição entre o artífice que trabalha com a madeira e aquele que trabalha com a pedra. Isto suscita, como conseqüência do próprio pensamento, uma outra questão: esta superposição estaria apenas no termo, ou realmente não haveria diferentes artífices para o trabalho dos dois diferentes materiais? Mas a resposta para esta questão não será pertinente se não for instaurado um campo de pensamento que trate o processo diacronicamente; isto equivale a perguntar como esta possível superposição se deu historicamente no mundo grego. Estabeleceremos, na tentativa de responder estas questões, uma clivagem: trataremos diferentemente a Grécia Arcaica – a Grécia cantada pelos aedos, tal como o próprio Homero – e a Grécia Clássica, a qual tomamos contato, neste artigo, através da obra filosófica de Platão e Aristóteles.
Seguindo, então, esta clivagem, iniciaremoso nosso percurso pensando o ofício do archetekton desde as indicações que podemos encontrar na Odisséia, canto XVII, indicações que foram valiosas para a observação de Vidal-Naquet (8):
“Com efeito, quem iria procurar um hóspede a mais se ele não fizesse parte dos artesãos (demiourgói)ou se não fosse adivinho, curandeiro ou carpinteiro (tekton)ou ainda aedo divinamente inspirado, cujos cantos nos encantam.
Essas são as pessoas que vamos buscar pela terra infinita.
Ninguém iria convidar um mendigo para piorar a sua situação.”
Essa é a resposta de Eumeu a uma acusação realizada pelo pretendente Antínoo, de ter introduzido um mendigo no palácio. No entanto, tratava-se do próprio Ulisses disfarçado de mendigo... Este fato é interessante porque nos remete ao estatuto social de que gozavam na Grécia Arcaica algumas profissões. É extremamente significativo que diferentes ofícios sejam listados e compreendidos desde o mesmo registro: artesãos, isto é, os demiurgos, além dos adivinhos, curandeiros, carpinteiros e aedos... Não parece haver diferentes gradações nem alguma espécie de hierarquia entre eles, e, sendo todos trabalhadores da téchne, isto é, capazes de dominar a natureza através de astúcia e habilidades variadas, porém precisas, todos, em princípio, se equivalem socialmente. O próprio Ulisses, ainda que não fosse nem um artesão nem um carpinteiro, fabricou ele mesmo o leito de Penélope (9). A este respeito escreveu Vernant:
“Em Homero, o termo téchne aplica-se à habilidade dos demiourgói, metalúrgicos e carpinteiros, e a certas tarefas femininas que requerem experiência e destreza, como a tecelagem. Mas ele designa também as magias de Hefesto e os sortilégios de Proteu. Entre a eficiência técnica e a prática mágica, a diferença não é ainda nítida.” (10)
Pode-se concluir, então, que as atividades, na Grécia Arcaica, de forjar uma lançadeira ou de construir uma casa não apenas se equivaliam como não seriam considerados socialmente inferiores, como normalmente se supõe (11). Ora, não apenas não havia ainda um domínio específico de reflexão sobre a téchne, como também não deveria existir uma clivagem nítida entre o archetekton e o tekton. O termo utilizado na Odisséia, tekton, e que foi traduzido por carpinteiro, indica uma atividade ligada a um material específico, a madeira – e, como a etimologia da palavra ensina – igualmente à pedra, mas não indica a produção de um objeto específico: poderia ser uma arma, assim como um leito ou um navio, e, igualmente, uma casa. A oposição existente no trecho citado não está localizada no interior de uma dada atividade, mas entre o trabalhador e aquele que, não possuindo nenhum tipo de habilidade específica, está reduzido à condição, socialmente inferior, de mendigo. Assim, a frase de Régis Debray dita acerca do fabricante de imagens da Grécia, segundo a qual, "(...), o fabricante de imagens é vítima do desprezo que pesa sobre todos os trabalhadores manuais" (12), deve ser vista, no mínimo, com muitas ressalvas. Em Homero observa-se que aquele que não exerce nenhuma ocupação é que é desprezado, e o trabalhador, seja ele matemático, demiurgo ou tekton, goza certamente de um certo prestígio social.
Porém, é importante que se diga que, em relação à Grécia Arcaica, ainda não estamos refletindo o archetekton, mas o tekton – a epopéia de Homero, assim como a tragédia de Ésquilo, indica apenas o tipo de atividade exercida, mas não deixa perceber ou entrever nenhuma distinção importante em termos de divisão social ou técnica do trabalho. Se supuser a existência de um profissional encarregado da direção dos trabalhos parece razoável e mesmo lógico, é, no entanto, uma reflexão de caráter apenas especulativo, uma vez que os textos em questão não a autorizam. Deve-se avançar alguns séculos para que a arquitetura, esta téchne específica, se clive em uma maior especialização.
3. A Grécia clássica: filósofos
Há, nos escritos que nos legaram os filósofos clássicos, inúmeras considerações sobre os profissionais da arquitetura – não se trata, como já afirmamos na introdução deste texto, de registros detalhados sobre a atividade técnica da construção, os quais envolveriam, necessariamente, a descrição de regras construtivas assim como de uma tipologia arquitetônica – estaremos diante de asserções que, se por um lado apenas tangenciam a questão, por outro lado permitem-nos ao menos conhecer o estatuto social de que gozavam tanto o archetekton quanto o tekton na Grécia Clássica.
Começaremos o nosso estudo por Platão, principalmente porque o seu pensamento apresenta uma relação um pouco ambígua com as imagens – alguns estudiosos, como o esteta francês Raymond Bayer, defendem o "caráter estético" deste pensamento: "Platão não escreveu uma estética propriamente dita, mas a sua metafísica é toda ela uma estética" (13). Naturalmente, o autor francês não está afirmando que o filósofo grego pensava a partir de considerações estéticas que poderiam vir a ser compreendidas no sentido moderno, isto é, como uma espécie de "ciência do belo". No entanto, é certo que a teoria platônica a que nos referimos possibilita, em um certo nível, uma aproximação estética, uma vez que supõe uma intuição, ainda que intelectual, a respeito das Idéias. Há uma posição não menos importante para o tema que estamos desenvolvendo, já que nos remete a uma interpretação quase canônica dele. Trata-se dos que afirmam que o fabricante de imagens seria, no pensamento platônico, desprezado, ou, ao menos, menosprezado, porque faria, sempre, a "cópia da cópia", isto é, a cópia daquilo que, por sua vez, já seria uma cópia da Idéia. Neste sentido, uma pintura ou uma escultura apresentariam menos verdade do que o próprio objeto representado. Estas asserções encontram-se sintetizadas neste admirável trecho de A República: "Temos razão em criticar o poeta, pois, em relação à verdade, ele faz obras tão vis quanto o pintor" (14) (15). Se esta teoria, usualmente compreendida como "anti-estética", encontra-se nos escritos do próprio Platão, é necessário, no entanto, relativizá-la, ou ao menos, pensá-la a partir do ofício do archetekton. A partir destas considerações preliminares pode-se refletir a profissão de arquiteto na Grécia Clássica tal como alguns escritos platônicos determinam.
No diálogo Político pode-se ler algumas asserções sobre a função do archetekton:
“ESTRANGEIRO:
– A seguinte: lembras-te de que falávamos da arte do cálculo...
SÓCRATES, O JOVEM:
– Sim.
ESTRANGEIRO:
– Pois toda ela faz parte, creio eu, das ciências teóricas.
SÓCRATES, O JOVEM:
– Nem poderia ser de outro modo.
ESTRANGEIRO:
– Bem, o cálculo, que nos dá a conhecer a diferença entre os números, terá ainda outra função além daquela de julgar as diferenças?
SÓCRATES, O JOVEM:
– Que teria ele mais a fazer?
ESTRANGEIRO:
– Nenhum arquiteto (archetekton)trabalha como operário, mas apenas dirige os operários.
SÓCRATES, O JOVEM:
– É certo.
ESTRANGEIRO:
– A sua contribuição é um conhecimento, e não uma colaboração manual.
SÓCRATES, O JOVEM:
– Sim.
ESTRANGEIRO:
– Seria certo então dizer que ele participa da ciência teórica?
SÓCRATES, O JOVEM:
– Perfeitamente.
ESTRANGEIRO:
– Ele, no entanto, uma vez traçado o plano, não deve considerar-se livre e abandonar a tarefa como o faria o calculista. Ao que creio, cabe-lhe ainda indicar a cada um dos operários tudo quanto lhes compete fazer até que tenham terminado todo o trabalho.
SÓCRATES, O JOVEM:
– É certo.
ESTRANGEIRO:
– Assim, pois, todas estas ciências são teóricas, incluindo as que participam da arte do cálculo, mas os dois gêneros que elas formam diferem; pois um deles, em seus cálculos, apenas julga, e outro, além de julgar, também dirige.
SÓCRATES, O JOVEM:
– Parece que sim.” (16)
Este trecho do diálogo platônico tem importantes conseqüências para o conhecimento das funções desempenhadas pelo archetekton. A primeira destas conseqüências é uma determinação mais precisa do seu papel social no interior do ofício. Como se pode perceber, não estamos mais diante da indistinçãoentre archetekton e tekton da Grécia Arcaica, tal como se pôde depreender da leitura da epopéia homérica –, trata-se, ao contrário, de uma nítida divisão: de um lado temos o operário, o tekton, responsável pelos trabalhos manuais, e de outro lado há o trabalhador que não executa concretamente as atividades, mas as elabora intelectualmente e as dirige. Aqui já surge claramente uma nítida divisão entre aquele que executa as tarefas e aquele que dirige o processo. A segunda conseqüência apresenta, igualmente, repercussões importantes; ora, tratando-se das atividades realizadas pelo archetekton, trata-se, por conseguinte, da formação requerida para o desempenho satisfatório do ofício. São partes integrantes da téchne específica do archetekton, segundo o texto platônico, o traçado dos planos e a direção das obras, e ambas são compreendidas como conhecimento e ciência teorética, e não como um mero trabalho manual (17).
Não estamos diante, contudo, de um inventário de habilidades e disciplinas tão detalhado e exaustivo como aquele encontrado no escrito de Vitrúvio, mas já é possível perceber com certo nível de certeza que por volta do século IV a. C. já existia no mundo grego um trabalhador encarregado de realizar um esquema gráfico suscetível de antecipar, em um certo nível, a obra construída e, igualmente, de zelar pela sua execução. E, como se pode depreender da leitura do texto platônico, temos certeza ao menos de uma disciplina que seria de suma importância na formação do archetekton: a matemática. Conhece-se suficientemente como era determinante a participação desta disciplina no pensamento platônico, mas, neste caso, vai-se além do simples cálculo: de um lado temos a matemática como ciência teorética, responsável por "despertar o pensamento do homem" (18); e, de outro lado, há a sua utilidade prática, que no caso do archetekton seria o de fundamentar o "traçado dos planos". Porém, certamente a matemática não era a única disciplina formadora do archetekton: não seria, com certeza, uma mera especulação se afirmássemos que seria necessário conhecer a trajetória do sol, e as estações do ano, para construir uma residência adequada em termos de "conforto térmico". Estamos, aqui, nos referindo a esta dimensão da arquitetura justamente porque temos, em Xenofonte, uma afirmação atribuída a Sócrates bastante precisa neste sentido:
Ainda se referindo à construção, Sócrates deu uma lição de que como deveriam ser construídas as casas para que fossem ao mesmo tempo belas e úteis. Eis como ele tratou a questão:
"Quando alguém deseja construir uma casa, ele não deve planejá-la de forma tal que esta seja tão agradável para viver e tão útil quanto possível?"
E isto estando admitido, ele perguntou:
"E não deveria ser a casa fresca no verão e quente no inverno?"
E quando se concordou igualmente com este princípio:
"No inverno, uma vez que as casas estejam voltadas para o sul, não penetram os raios de sol no pórtico? E, no verão, os raios de sol não se dirigem acima das nossas cabeças e do telhado, deixando-nos na sombra? Se, ainda, este for o melhor arranjo possível, deve-se construir as casas de forma tal que o lado sul tenha o telhado mais alto para receber o sol de inverno e o lado norte mais baixo para maior proteção contra os ventos frios? Em resumo, a casa que seja um bom abrigo em todas as estações e um depósito seguro para os pertences do proprietário é, ao mesmo tempo, a mais bela e agradável. Pinturas e ornamentos não acrescentariam em nada a esta casa". (19)
Os argumentos socráticos vão, certamente, no sentido da kalokagatia, mas, para que a dimensão do "conforto térmico" fosse abordada de forma tão clara por Sócrates, seria preciso que já existisse socialmente como uma espécie de expectativa em relação à atividade do archetekton. É bem pouco provável que o mestre de Platão estivesse criando uma inesperada exigência construtiva ao associar a beleza de um objeto arquitetônico à sua estrita utilidade. Destarte, já possuímos alguns dos componentes prováveis da formação do archetekton: o cálculo, a geometria (uma vez que um plano deveria ser traçado) e a "clímata". (20)
Mas estes não são, certamente, os únicos conhecimentos requeridos ao archetekton; em um outro trecho de Memoráveis, Sócrates interpela o jovem Eutidemo, que passava por possuir uma vasta biblioteca, com livros de poesia, tratados de medicina e de matemática, além de escritos de arquitetura. Em certo momento da conversa, o mestre de Platão pergunta pela finalidade de possuir tantas obras: "Mas talvez você deseje ser arquiteto? Neste caso é necessário possuir, como no campo da medicina, muitos conhecimentos" (21). O termo do original grego, gnômonikou, traduzido por nós a partir da versão em língua inglesa como "possuir muitos conhecimentos" (22), poderia ser traduzido, igualmente, por "estar apto para emitir juízos". Isto significa que o archetekton deveria ter tido contato, na sua própria formação, com muitas e variadas disciplinas. No entanto, não há como elencá-las na sua totalidade sem correr o risco de realizar uma especulação muito frágil.
Estas frases de Sócrates, assim como as de Platão, evidenciam um ponto de extrema importância: já estamos diante de do binômio "projeto e canteiro de obras", atividades realizadas por trabalhadores que, ao longo de muitos séculos, foram compreendidos diferentemente pelas inúmeras sociedades que atingiram um certo nível de sofisticação construtiva. Seja um artífice bizantino como Antêmio de Tralles (23), seja um anônimomaistre masson do gótico francês, ou um célebre ourives italiano como Brunelleschi (24), o desenho e a supervisão dos trabalhos sempre acompanharam este ofício. E se retornarmos a frase de Debray, citada no capítulo anterior, a qual indica a baixa consideração social de que gozariam os fabricantes de imagem na Grécia Antiga, veremos que ela não se aplica à Grécia Clássica, assim como já não se aplicava sem as devidas ressalvas à Grécia Arcaica.
Porém, foi analisado apenas um texto, e talvez estejamos incorrendo em uma simplificação, uma vez que um único documento não é material suficiente para conformar uma história. Destarte, assim como havíamos antecipado na introdução deste trabalho, recorreremos a um trecho da obra do Estagirita na tentativa de estabelecer uma visão um pouco mais panorâmica do ofício do archetekton. O trecho abaixo foi retirado da obra Ética a Nicômano:
Na classe do variável incluem-se coisas produzidas tanto quanto coisas praticadas. Há uma diferença entre produzir e agir (quanto à natureza de ambos, consideramos como assente o que temos dito mesmo fora de nossa escola); de sorte que a capacidade raciocinada de agir difere da capacidade raciocinada de produzir. Daí, também, o não se incluírem uma na outra, porque nem agir é produzir, nem produzir é agir.
Ora, como arquitetura é uma arte (téchne), sendo essencialmente uma capacidade raciocinada de produzir, e nem existe arte alguma que não seja uma capacidade desta espécie, nem capacidade desta espécie que não seja uma arte, segue-se que a arte é idêntica a uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocínio (25).
Há importantes considerações neste trecho para o tema de que tratamos, e há uma espécie de questão principal que perpassa e determina todas as outras: a oposição indicada por Aristóteles entre ação (práxis) e produção (poiésis). Ora, se a arquitetura não é uma práxis tampouco se conforma como uma poiésis tout court... O ofício do archetekton, ao contrário daquele praticado pelo tekton, é suscetível de ser ensinado, uma vez que envolve o "reto raciocínio", como nos ensina Fernando Puentes: "Por este motivo o arquiteto, por exemplo, é considerado mais sábio do que o pedreiro, pois ele conhece a razão (lógos) e a causa (aitíon) do que será construído, enquanto o pedreiro sabe apenas como executar a construção propriamente dita, mas isso ele o sabe apenas por costume (éthos)" (1998, p. 131). No mundo grego clássico, como o trecho supracitado indica, a pura experiência não pode ser objeto da ciência,e o trabalho baseado na simples observação e na repetição não goza do mesmo prestígio daquele que se baseia no estudo e conhecimento das causas. Há uma outra obra na qual Aristóteles trata da questão do ofício do archetekton, a Metafísica, a qual, de certa maneira, reforça e amplia as conclusões exposta acima:
Por isso consideramos os que têm a direção (archetekton) nas diferentes artes (téchne) mais dignos de honra e possuidores de maior conhecimento e mais sábios do que os trabalhadores manuais (cheirotechnês), na medida em que aqueles conhecem as causas das coisas que são feitas; ao contrário, os trabalhadores manuais agem, mas sem saber que o fazem, assim como agem alguns dos seres inanimados, por exemplo, como o fogo queima: cada um desses seres inanimados age por certo impulso natural, enquanto os trabalhadores manuais agem por hábito. Por isso consideramos os primeiros mais sábios, não porque capazes de fazer, mas porque possuidores de um saber conceitual e por conhecerem as causas (26).
Nas frases acima se percebe que o archetekton é "mais sábio" que o tektonjustamente porque a sua téchne é um "saber conceitual", e não exatamente porque seja "capaz de fazer"... Se a sua habilidade consistisse somente na realização material, isto é, na poésis, não se diferenciaria muito do trabalhador manual – no entanto, não seria uma mera especulação se afirmássemos que o ato de "traçar o plano" e "dirigir o trabalho" não são ocupações manuais que possam ser compreendidas como poéisis, mas fazem parte de um domínio que pode ser sistematizado como conhecimento e, a este título, ensinado. E se é certo que uma obra arquitetônica de uma certa sofisticação pressupõe a existência tanto de um "plano" como de uma "direção", é igualmente seguro que não são exatamente trabalhos "intelectuais" como a solução de um problema lógico ou matemático o seria. O que determina a diferença e marca mesmo uma distinção social entre o archetekton e o tekton não é a realização poética, mas a diferença no interior mesmo do trabalho, na medida em que de um lado é colocado o conhecimento teorético e, do outro lado, dispõem-se o hábito e a tradição.
Posto esta questão, é mister que analisemos os objetos produzidos pelo ofício do archetekton; já havíamos salientado, na introdução deste texto, a ambigüidade e a dicotomia presentes no termo archetekton, o qual indica uma téchne ligada tanto ao trabalho em madeira quanto ao trabalho em pedra. Esta ambigüidade é reforçada em algumas traduções de textos gregos, nas quais tanto o termo archetekton quanto tekton são traduzidos por carpinteiro. Esta escolha tradutiva pode provocar o sentimento no leitor hodierno de que não havia nenhuma distinção social nem nenhuma divisão técnica na prática arquitetônica, porém, já conhecemos os inúmeros significados que o termo "carpinteiro" pode ocultar... Faz-se necessário, então, refletir se o mesmo archetekton realizava tanto trabalhos em madeira como em pedra, sem nenhuma espécie distinção, ou se havia algum tipo de especialização. Não é uma pergunta que possa ser respondida exaustivamente, uma vez que os textos não são exatamente precisos. Mas sabemos que o ofício do archetekton era relativamente vasto, principalmente se comparado com as funções atuais do arquiteto: arquitetura e urbanismo, construção de navios, engenhos de guerra, decorações e maquinarias teatrais (27) (28). Ou seja, se realizarmos uma "leitura moderna", ainda que incorrendo em um evidente anacronismo, perceberemos que o termo archetekton subsume, simultaneamente, o imenso campo de atuação da Engenharia – no que se refere ao cálculo e à supervisão do canteiro de obras – e o da Arquitetura e Urbanismo – como o projeto de prédios e de cidades e a direção (hoje utilizaríamos, preferencialmente, o termo "coordenação") dos trabalhos. No entanto, é necessário perceber que o archetekton não é nem um Engenheiro Civil nem de um Arquiteto e Urbanista no sentido moderno, e nem se trata de uma fusão entre ambos os profissionais. O archetekton é, naturalmente, um outro "profissional", nascido de uma civilização que apresenta, como toda civilização, as suas idiossincrasias e especificidades.
Mas a questão foi apenas parcialmente respondida, posto que há uma pergunta que ainda guarda o seu poder de inquietação: todos os profissionais da archetekton realizavam todas as atividades elencadas ou havia uma seleção e escolha consoante as oportunidades de trabalho e os diferentes locais? E isto equivale a perguntar se esta téchne comportava divisões e especificidades. Há, felizmente, um texto bastante esclarecedor a este respeito, atribuído a Xenofonte:
"Nas pequenas cidades, o mesmo operário (technai) produz leitos, portas, charruas, mesas; às vezes, constrói mesmo casas (...). Mas, nas grandes cidades, em que cada um encontra muitos compradores, é suficiente uma só profissão para alimentar um homem. Às vezes, mesmo, não se tem necessidade de uma profissão completa: um fabrica o calçado para homens; outro, calçado para senhoras. Um corta, outro costura simplesmente o sapato, um só corta as roupas, outro ajusta as diferentes peças". (29) (30)
Mesmo que o termo empregado pelo discípulo de Sócrates tenha sido genérico, marcando apenas um trabalhador da téchne e não exatamente umtekton e muito menos um archetekton, não estaríamos apenas especulando se afirmássemos que o archetekton não existiria nos termos descritos por Platão e Aristóteles senão em certas cidades – as maiores, mais prósperas e mais populosas – do mundo grego. Assim, tomando as asserções de Xenofonte para melhor refletir a prática do archetekton, poder-se-ia afirmar que as atividades elencadas por Vernant eram exercidas, nas cidades menores, por uns poucos trabalhadores da téchne; e, nas cidades maiores, estas atividades seriam exercidas por "profissionais especializados" – glosando a tradução brasileira do texto francês, dir-se-ia que exerceriam a sua profissão de maneira "incompleta". Isto significa que, talvez – o termo da incerteza se impõe uma vez que, de fato, o nosso conhecimento sobre este ofício é apenas fragmentário – houvesse trabalhadores que se dedicassem tão somente à construção de residências e de outros prédios, ao passo que outros se dedicariam à esta atividade acrescida da construção de navios, de engenhos de guerra, etc. Esta divisão do trabalho seria determinada pelo número de habitantes de uma polis, e não por uma questão de regulamentação da "profissão", que, como é conhecido, não existia no mundo grego:
"Uma observação de história social permite precisar estes pontos: na época clássica, não se encontra nenhuma forma de organização religiosa da profissão. Não há intermediário entre o artesão e a cidade: nem corporação, nem confraria. O fato contribui para colocar a "profissão" sob uma luz inteiramente racional: ela é vista em sua função econômica e política". (31) (32)
Feitas estas considerações, e à guisa de síntese, poder-se-ia afirmar que não é tarefa fácil descrever e precisar o estatuto social de um trabalhador e o papel que este ocupa no interior da sua téchne – e mesmo esta última é difícil de ser compreendida na sua totalidade, uma vez que lançar uma luz moderna sobre a questão seria cometer um evidente anacronismo. Isto significa que não podemos pensar o ofício do archetekton desde o ofício do arquiteto moderno, por mais tentador que isto seja (e torna-se ainda mais tentador porque o léxico do termo parece autorizar...). Toda sociedade afastada do universo cultural do pesquisador, seja a partir de uma perspectiva histórica, seja a partir de uma perspectiva geográfica, seja – como no caso deste trabalho – tanto histórica quanto geograficamente, deve ser estudada a partir das especificidades culturais que a determinam. Neste caso, o único método possível é uma hermenêutica cuidadosa dos textos produzidos na época e no espaço em questão.
No entanto, nem este método poderia colocar o pesquisador fora do alcance de anacronismos e de interpretações imprecisas ou mesmo francamente errôneas. O número escassode documentos escritos que tratem o tema, e a própria condição "marginal" do tema no interior dos documentos, fazem com que a trama na qual a narrativa histórica é urdida apresente-se, muitas vezes, como um conjunto de fios entrelaçados cuja ordem é de difícil percepção. Mas o "ordenamento dos fios" não pode ser feito desde o exterior, deve ser realizado, ao contrário, a partir dos próprios documentos, como o ofício de uma tecelã que domine perfeitamente a sua téchne.
Introdução
“Tendo, por conseguinte, a sabedoria natural concedido não ao conjunto dos povos, mas a uns poucos homens dispor de tais capacidades; devendo o ofício do arquiteto ser exercitado em todos os saberes e, podendo a mente, em virtude da dimensão da matéria, ter além do necessário, não toda, mas uma pequena noção das ciências, peço, ó César, tanto a ti quanto aos que hão ler estes livros, que ignorai o que vier a ser explicado em pouca concordância com as leis da gramática. De fato, como não sou filósofo, nem orador eloquente, nem gramático versado em todas as regras do ofício, mas sim arquiteto, imbuí-me de escrevê-los da maneira que se segue.” (2)
No estudo História da arte uma questão é de capital importância: quando, exatamente, teria surgido a arquitetura? Isto é, quando e em que região geográfica precisa, certos trabalhadores que se ocupavam de construções passaram a ser conhecidos pela denominação específica – ou foram "agraciados" com este "título" de caráter hierárquico ou diferenciador – de arquitetos, destacando-se, portanto, do corpo do restante dos trabalhadores envolvidos no processo construtivo. Estamos partindo da premissa de que quando houve um objeto ao qual foi conferido o epíteto de construção, houve, igualmente um construtor, ou construtores. E, em um determinado momento, construção e construtores foram socialmente reconhecidos e designados com os conceitos de arquitetura e arquitetos. Mas, quando, precisamente, isto ocorreu? E, sobretudo, haveria uma continuidade histórica do conceito forjado neste caput?
Podemos muito bem pensar que tais reconhecimento e denominação não se produziram, necessariamente, no momento do surgimento do objeto, e que poderiam muito bem ser posteriores, ou mesmo anteriores ao processo. Poder-se-ia tratar de um caso de anterioridade literária, ou, ao contrário, de uma "anexação histórica".
Estas questões sobre as quais lançamos luz parecem banais, uma vez que já teriam sido respondidas inúmeras vezes, em diversos livros, escritos pelos mais variados autores. No entanto, refletir as respostas dadas pode demonstrar que a questão ainda não teria perdido o seu caráter instigador, e que, portanto, outras respostas seriam tão possíveis quanto far-se-iam necessárias.
Assim, podemos iniciar a nossa reflexão pelo próprio caráter da questão: por que perguntar pelo que já foi tantas vezes respondido? Devemos lembrar, sempre, que esta pergunta tem um "apelo fundante" – no sentido de que funda uma disciplina, a arquitetura, estabelecendo e dando visibilidade a uma origem. Trata-se, então, da busca de uma gênese. Porém, as respostas como genealogia somente podem ser dadas na medida em que se compreende a sua dualidade: não se está lidando com uma questão histórica qualquer, mas, com uma questão de historicidade de um léxico. Neste ponto, é importante perceber como estes dois campos – o da história e o da linguística – se misturam e se imbricam até ao ponto de se confundirem fazendo-se indiscerníveis: para se pensar historicamente a construção e os seus trabalhadores é necessário estabelecer a historicidade do conceito, isto é, o que teriam significado em diferentes momentos os vocábulos arquitetura e arquiteto em momentos e lugares precisos. Poder-se-ia empregar a palavra arquiteto para se designar o trabalhador egípcio envolvido nos processos construtivos, quando se sabe que a palavra tem a sua origem na Grécia? E, por outro lado, poder-se-ia aplicá-la a Ictino quando se sabe que o arquiteto gozava, na Grécia Antiga, de um estatuto social não muito diferente de qualquer outro trabalhador manual (3)? Portanto, não seria a tradução "Ictino foi o arquiteto do Partenon" uma simples e canhestra "anexação modernista"? Mas como não fazê-lo quando se sabe que a palavra surgiu, justamente, na Grécia Antiga? Mesmo se encurtarmos a nossa perspectiva e olharmos para apenas oitenta ou cinquenta anos atrás, a mesma dificuldade apresentar-se-á: a partir do século XX, com a multiplicação dos cursos universitários de Arquitetura, a denominação de arquiteto passou a designar apenas aqueles que possuíam diploma universitário emitido por uma instituição legalmente estabelecida – mas, neste caso, como não designar arquitetos Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright, e, aqui no Brasil, Zanini Caldas? É, então, fato fundante a ausência ou, ao contrário, a presença de formação universitária? O que o Estado compreende como arquiteto teria, então, se apartado da compreensão do restante da sociedade?
Vamos proceder, então, a uma análise que possa ser compreendida como a "história do léxico", o recorte pretendido inicia-se na Grécia, passa por Roma e encontra a sua síntese no Renascimento florentino, o Olimpo erigido por historiadores italianos, habitat dos deuses fundadores de uma nova fé.
Este recorte, como se pode facilmente perceber, é claramente arbitrário: não se pensará nem o ofício dos "arquitetos da Pré-História", nem a arquitetura africana ou mesopotâmica – seremos, então, perfeitamente ocidentais. Não estamos, com esta confissão, pleiteando a indulgência dos leitores, nem afirmando que um recorte é tão bom quanto qualquer outro, desde que devidamente esclarecido – mais que uma simples questão de método, trata-se de anunciar o objetivo: perfazer o caminho de tantos historiadores ocidentais, recolhendo, aqui e lá, o que foi deixado para trás. Estes traços, marcas, pistas, ignorados ou simplesmente desprezados, e que estavam ausentes dos seus escritos, ganham, aqui, uma nova luz; o que era "pano de fundo", "marca d`água", silêncio ou sussurro, terá que ser visto e ouvido. Trilharemos, então, o caminho das respigadeiras após a colheita.
Os gregos
Como já foi dito na introdução, a palavra arquitetura remonta à Grécia, ou melhor, foi introduzida na literatura ocidental a partir da Grécia. Embora os gregos não tivessem palavra para arte, para artista e nem para obra-prima, cunharam, no entanto, uma palavra que se revelou muito preciosa e que fez fortuna na História da arte ocidental: archetekton. Assim como a palavra arte pertence ao vocabulário da Idade Média, a palavra arquitetura está indissoluvelmente ligada ao mundo grego. Mas, as palavras não são invólucros vazios e, tanto quanto existem uma História da Arte e uma História dos seus objetos, há uma História do léxico da Arte, muito pouco estudada. O destino e as vicissitudes de cada palavra estão inscritas em seu corpo, o que torna um pouco menos difícil o ofício do historiador. Diante de um templo grego, contemplamos o ritmo das colunas sob o sol da Europa meridional, e sabemos, enfim, que se trata de arquitetura, como um objeto para o qual teríamos reservado um espaço mental bastante preciso. Mas com qual arquitetura, como léxico e conceito, teríamos que lidar? Ora, a História dos objetos não se faz sem o concurso da História do léxico... E, aliás, nem seria possível estudar ambas as Histórias separadamente. Enfim, quando utilizamos as palavras "arquiteto" ou "arquitetura", com quais dos conceitos de arquitetura e de arquiteto estamos lidando, uma vez que já acumulamos alguns? E quais são eles?
O que teria significado, então, a arquitetura para os gregos antigos? Vamos tentar unificar objeto e palavra refazendo a nossa questão: qual é o sentido de um templo para um grego? Isto é, qual teria sido a significação daquele objeto específico, e como os gregos se referiam a ele? Respondendo a estas perguntas estaremos respondendo a uma questão mais originária: qual era o sentido da archetekton grega? E poderíamos traduzir esta palavra diretamentepara arquitetura?
Infelizmente, para nós, as pedras não falam... Temos, então, que recorrer aos textos para uma compreensão mínima da historicidade da palavra e do objeto. Ora, é amplamente conhecida a desconfiança de alguns filósofos gregos em relação aos "produtores de objetos", trabalhadores manuais, artífices da thécne, tais como pintores, ferreiros, oleiros, escultores, sapateiros e... arquitetos. Apesar da importância social da sua atividade, pintores e poetas, artistas enfim, não tinham lugar na Polis ideal concebida por Platão. Não poderiam alcançar as ideias, posto que eram prisioneiros das determinações da matéria. Além disto, uma escultura, por exemplo, não seria senão uma cópia de algo que, desde a sua origem, já estaria "condenado" como uma cópia do mundo sensível criado pelo demiurgo a partir da contemplação das ideias. Mas, assim como os marceneiros e carpinteiros, os arquitetos gregos teriam, pelo menos, um parco consolo: não fariam, diretamente, cópias do mundo, como o fazem pintores e escultores. A condenação que pesa sobre o objeto arquitetônico é de natureza mais sutil: existindo como matéria, somente se realiza como cópia sensível do não-sensível, do imaterial, e, portanto, da Verdade. Há, portanto, ainda menos "verdade" nas obras dos escultores e pintores do que nas dos carpinteiros, marceneiros e arquitetos.
E o que dizer da kalocagatia socrática? A junção fundamental do belo (kalos) ao bem (Agaton), fará com que o primeiro esteja subordinado ao segundo. Se lermos com atenção este pequeno trecho dos Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, poderemos compreender, com maior propriedade, o sentido de um templo para os gregos antigos:
“Em uma palavra, o prédio que em qualquer estação proporcionar o mais aprazível retiro e o depósito mais seguro para o que se possua, não pode deixar de ser o melhor e o mais belo: pinturas e outros ornamentos mais desprazem que aprazem. Dizia de um sítio descoberto e completamente insulado o melhor local para os templos e altares. Que grato, ao orar, é não ter a vista atrancada e aproximar-se dos altares sem sujar-se.” (4).
O que se pode depreender da leitura deste trecho é o caráter de absoluta utilidade que cerca os objetos fabricados pelos gregos, e a não-autonomia dos objetos arquitetônicos neste sistema. Um templo, assim como uma casa, deve ser, antes de mais nada, "útil", isto é, mais ligado ao Bem do que ao Belo. Não há, no discurso de Sócrates, absolutamente nada que possamos vir a compreender como um "discurso estético" sobre o objeto. Um templo é uma "realização técnica", um artefato do mundo da Téchne¸ um objeto para ser "convenientemente usado" e não para ser fruído como uma obra-de-arte. Um templo é, então, archetekton, e não arquitetura. Logo, é mister ter sempre presente a impossibilidade de um conhecimento a-histórico de objetos que são, fundamentalmente, históricos. E que a tradução de archetekton por arquitetura é, pelo menos, uma simplificação que deve ser vista com enormes ressalvas. Assim, os gregos não eram arquitetos como os medievais e modernos o foram, ou como os contemporâneos o são.
Neste momento, é importante salientar o caráter histórico da apreensão do mundo – o olhar não é apenas um acontecimento de ordem biológica, mas um evento social. É lógico supor que os gregos não apreendiam os objetos – arquitetônicos e outros – como os medievais e os modernos faziam. O olhar do cidadão grego foi moldado em outras fôrmas e em outras formas, a chamada êntase dos templos nô-lo provam. Segundo o historiador de arquitetura A. W. Lawrence, o olhar dos gregos era mais capaz de apreender curvas que o olhar moderno, devido ao fato de que as suas construções domésticas em tijolo seco ao sol os havia acostumado com curvas suaves e delicadas, as quais estavam presentes nos templos (5). Mas, lembremo-nos, o olhar moderno teria criado a apreensão estética do mundo. Aisthesis, que para os gregos significava apenas sensibilidade, isto é, a multiplicidade do mundo sensível, para os modernos, e desde Baumgartem, tornou-se um discurso sobre a arte e sobre o Belo. Como afirmamos anteriormente, ao se narrar a história dos objetos, não se pode esquecer de narrar, simultaneamente, a história das palavras.
Neste momento já estamos preparados para responder a pergunta enunciada no início deste capítulo: teriam, então, os gregos fundado a arquitetura, como disciplina e prática? A sentença "Ictino foi o arquiteto do Partenon" é correta? E se é incorreta, qual seria a palavra que nos livraria de qualquer anacronismo? Poderíamos, talvez, tentar a palavra autor – mas conheceríamos o sentido mais profundo que esta palavra teria no mundo cultural grego? Não estaríamos substituindo um anacronismo por outro? Ora, qual seria o sentido do conceito de autoria em um mundo em que o conceito mesmo de escritor tinha uma dimensão completamente diferente daquela que lhe emprestamos hoje (6)? Aristóteles foi realmente o autor da sua obra?
Poderíamos tentar outras versões; a sentença "Ictino trabalhou no Partenon" teria a vantagem do emprego do verbo trabalhar, cujas variações históricas tendem a ser mais sutis. Porém, como apreender a diferença do "trabalho" de Ictino face ao trabalho dos demais? Se, aparentemente, escapamos do anacronismo, isto se deu pelo uso de um termo amplo demais e, por conseguinte, vago demais. Talvez tenhamos incorrido, aqui, em um outro erro: utilizamos um "conceito ônibus", capaz de subsumir muitas determinações, mas a custa de tornar-se tão vago quanto pouco operante.
Estamos, parece-nos, diante de um obstáculo quase intransponível: não há tradução que seja perfeitamente adequada em termos históricos assim como não há sinônimos perfeitos. Deveríamos, então, desistir da tarefa porque não haveria instrumentos disponíveis para tal, ou porque, simplesmente, seria impossível? Trata-se de uma aporia irredutível? Sob este aspecto, narrar historicamente um evento da Grécia Antiga é tão difícil quanto traduzir a poesia de Homero... Mas, assim como a tradução é realizada sob certas condições, também a narrativa histórica, obedecendo a certos critérios lexo-lógicos, pode ser realizada. Voltemos, então, a sentença com a qual tentamos responder a nossa questão sobre a arquitetura grega, e talvez a circunscrevêssemos com maior propriedade se a enunciássemos assim: Ictino foi o arquiteto do Partenon. O itálico, apesar de não indicar uma posição de hierarquia, nem uma anterioridade de alguns eventos face a outros, marcaria a dimensão histórica do evento, a distância que nos separa dos gregos de então, a própria passagem dos séculos e a fragilidade de todo documento face a realidade a ser construída – o itálico seria responsável, então, por elucidar e evidenciar a diferença entre archetekton e arquitetura. (7)
Os romanos
Os arquitetos romanos passam, frequentemente, por herdeiros da arquitetura grega, responsáveis pela continuidade lógica de uma tradição construtiva fértil e rica. Esta compreensão da arquitetura romana, se apresenta a inegável vantagem de tornar mais fácil a narrativa histórica, na medida em que privilegia a continuidade em detrimento da ruptura, e porque encontra a sua corroboração nos próprios objetos arquitetônicos, tem a desvantagem de negar, de forma implícita ou explícita, a autonomia de uma arquitetura reconhecidamente sofisticada e de incrível diversidade tipológica.
De uma forma geral, contentamo-nos em conhecer a pintura e a escultura gregas pelas manifestações romanas – no caso da pintura é a única forma possível de experiência, uma vez que nada, ou quase nada, teria restado da produção grega. Houve uma profissão de pintor, como os textos nos indicam, mas pouco conhecemos dos objetos. Este conhecimento indireto e, obviamente analógico, parece ter surgido a partir desta visão mais geral de se estudar a produção artística romana desde o ponto de vista grego. Aproxima-se, de alguma forma, o objeto desconhecido do objeto que se conhece, e, assim, passa-se a "conhecê-lo"... Mas adormece neste procedimento metodológico uma estranhacontradição: reconhece-se a primazia, justamente, do objeto que não se conhece senão a partir daquele que é menos prezado... Ora, isto equivale a dizer: "Vejo, pelos exemplares romanos, que a pintura grega – que eu jamais vi – era muito superior"... Neste caso, a superioridade dos gregos em relação aos romanos – na ausência dos objetos gregos com que se pudesse fazer uma análise e um cotejamento mínimo – reside em uma simples construção ideológica: a primazia cabe sempre à anterioridade, porque este conceito indica uma originalidade, isto é, está ligada à origem. Em alguns casos esta construção ideológica toma a forma de importantes omissões: a História da Estética de Raymond Bayer, que trata até de algo descrito como a Estética Pré-Histórica, em um capítulo intitulado: Despertar da consciência estética e pré-história, no qual as pinturas rupestres são analisadas a luz de conceitos modernos, como podemos ler nesta curta frase: "Isto com vista a fins práticos, sem dúvida, mas talvez para ilustrar qualquer ideia de belo" (8); omite, no entanto, o que seriam as reflexões estéticas dos autores latinos. O que esta ausência indicaria? Que os "homens das cavernas" possuíam mais "pendores artísticos" que os romanos? Ou que tanto faz, já que se trata de um evidente anacronismo? Podemos acreditar que esta ausência indica, justamente, um menosprezo em relação a produção literária e filosófica romana, nos termos em que isto poderia ser compreendido esteticamente pelo autor.
A contradição analisada torna-se mais insuportável se refletirmos a produção escultórica romana e a sua relação com a escultura grega. Novamente acredita-se que a escultura grega teria sido superior às romanas pelo simples fato de muitas das esculturas romanas serem compreendidas como cópias de esculturas gregas. O pecado incorrido pelos romanos teria sido, mais uma vez, a falta de originalidade. No entanto, se buscarmos a coerência deste argumento, deveremos procurar a anterioridade da produção escultórica na Antiguidade não nos gregos, mas, talvez, entre os egípcios... A não ser que acreditemos no mito da produção cultural grega como algo sempre e genuinamente autóctone, não podemos permanecer na contradição de maneira confortável, uma vez que a escultura grega teria se desenvolvido a partir da escultura egípcia. Ora, por que a escultura da Grécia seria "superior" à escultura do Egito? E, neste caso, por que não estender este raciocínio e admitir a mesma conclusão em relação a arquitetura grega e a sua ligação com a arquitetura romana? Isto é, por que, então, a arquitetura romana não seria "superior" à arquitetura grega como a escultura grega é considerada superior à escultura egípcia? Se apenas tudo se resumisse a origens e a anterioridades...
Estas reflexões linguísticas e históricas que se debruçam sobre objetos que são estéticos apenas na já referida acepção grega – e, portanto, originária – de serem objetos sensíveis e materiais, têm a vantagem de abrir uma clareira e lançar uma renovada luz sobre antigas questões. Vamos, então, proceder ao seu estudo. Em que sentido foram os romanos arquitetos? Isto é, qual era o sentido histórico da architectura? Em relação aos gregos os romanos apresentam, para o historiador, uma grande vantagem: há ao menos um livro romano conhecido sobre arquitetura, isto é, sobre aquilo que nós chamamos de arquitetura: De Architectura Libri Decem, escrito por Vitrúvio, provavelmente no século I a. C. No entanto, este livro não é nem um "Tratado de Arquitetura", no sentido moderno, nem uma "História da Arquitetura", tal como empregamos esta expressão; também não pode ser considerado um "Ensaio sobre Estética", nem tampouco algo que poderíamos considerar como uma "Teoria da Percepção". Mas, de que trata Vitrúvio senão, justamente, de arquitetura? ... Ora, se lermos o autor romano como leríamos Argan ou Benevolo não podemos senão nos decepcionar... Há pouquíssimas referências no texto latino que poderiam merecer uma contemplação e um entendimento modernos. Observemos, a este respeito, a seguinte asserção: "Realmente, a visão persegue a beleza (...)" (9). Esta asserção, retirada do seu devido contexto, parece nos fazer acreditar na existência de um princípio estético entre os romanos, ou, ao menos, em algo que se assemelha ao princípio estético moderno. No entanto, se a lermos em sua totalidade, e tendo em mente o ambiente cultural vitruviano, observaremos com correção que se trata tão somente de uma asserção que introduz algumas lições de ordem construtiva: "Realmente, a visão persegue a beleza, com cujo prazer, se não nos encantarmos, pela proporção e pela adição de módulos de correção, que o que ilude seja ampliado por meio de adaptações, e o aspecto, que seja remetido aos espectadores rude e sem graça (10). Poderíamos chegar a uma conclusão semelhante ao lermos esta frase: "Quanto mais alto a vista galgar para que possa vê-lo, dificilmente transpassará a condensação do ar, pois a visão em altura, evanescente pelo espaço e esgotada de suas forças, transmite aos sentidos uma noção incerta das medidas" (11). O que, inicialmente, parecia ser o anúncio de uma "Teoria da Percepção" torna-se, na realidade, a justificativa de uma regra construtiva.
Sabe-se que De Architectura Libri Decem apenas muito indiretamente pode ser compreendido como um "livro de arquitetura" no sentido moderno. O livro latino estaria melhor compreendido se for descrito como estando entre o "Manual do Construtor" e a "Arte de Projetar"... Isto é, uma compilação e sistematização de regras e procedimentos para o bom exercício da profissão. Este fato não se deve ao já conhecido e celebrado "pragmatismo dos romanos", mas pertence ao próprio cerne da questão: o que os romanos compreendiam por arquitetura está muito distante da compreensão moderna, isto é, da nossa compreensão de arquitetura. Este fato nos remete a uma questão já abordada anteriormente: apenas podemos avaliar a produção arquitetônica romana se levarmos em consideração a architectura...
Os modernos
Pensemos na arquitetura da Era Moderna a partir de um dos seus principais mitos fundadores: após a dissolução do Império Romano ocidental, o dilúvio... De acordo com esta interpretação, a Idade Média, um período histórico longo, rico e variado, mas que não teria sido nada brilhante, posto que "médio", foi compreendida como a decadência da cultura ocidental, e, por extensão, de toda a civilização ocidental. Teria cabido, então, aos homens da Era Moderna o resgate dos altos valores civilizatórios da Antiguidade Clássica. Este mito recorrente possui, como todo mito, um panteão de heróis e de fundadores, assim como uma mitologia. A noção da pretensa superioridade dos primeiros modernos transformou-se, pela pena de alguns bons autores, na mais absoluta certeza, em um dogma a ser respeitado, cultuado e, sobretudo, reproduzido. É a crença, simultaneamente, na ideia de progresso e que este pode dar-se "aos saltos" – e um "salto" nada desprezível de quase dez séculos...
A arquitetura medieval ocidental teve que esperar por quase quatro séculos para ser devidamente estudada e ter os seus valores "resgatados", para ser apreendida, enfim, como "um objeto estético". Assim, no século XIX, alguns estetas retomaram em novas bases o que os primeiros modernos haviam realizado em relação a arquitetura greco-romana, isto é, interpretaram à luz dos seus valores culturais uma tradição pretensamente esquecida. A interpretação da arquitetura gótica como um conjunto de forças, empuxos e tensões empreendida por Viollet-le-Duc se insere neste panorama – aproximando-a dos valores construtivos do ferro e do vidro, o arquiteto francês teria tentado "atualizá-la", não mais como simples formas que poderiam ser copiadas, mas como um conjunto de princípios construtivos básicos de aplicabilidade universal. Por outro lado, a nostalgia dos românticos dotou a arquitetura medieval, e, principalmente, a Gótica, de valores positivos, porque justamente o passado já era quase um valor positivo per se. Mas não podemos misturarno mesmo cadinho a postura técnica de Viollet-le-Duc, a estética moralizante de Ruskin, os romances ditos históricos de Walter Scott e o medievalismo saudosista de Victor Hugo, há que se estabelecer clivagens e distinções, posto que não se compreendeu nem se "resgatou" a arquitetura medieval da mesma forma. No entanto, são estetas que não apenas não viam mais a produção arquitetônica medieval com menor apreço, mas como já eram capazes de reconhecer-se – como ocidentais – nesta mesma produção.
Assim, neste ambiente cultural de escritores românticos, estetas regressivos e pintores simbolistas, forjou-se um revival de antigas e enobrecidas formas, cuja uma das faces mais visíveis foi, justamente, a arquitetura Historicista. Na cidade de Paris, lado à lado nos largos bulevares haussmanianos, conviviam, com respeitosa indiferença, Igrejas neogóticas e neobizantinas, museus neogregos, teatros neobarrocos e palácios orientalizantes. Nada mais normal na capital do país cujo governante via-se como a encarnação do tio, ele mesmo já um revival neoclássico.
Mas, como se sabe, este revival, apesar da sua consolidação acadêmica, estava fadado a durar pouco. Não houve romantismo que pudesse legitimar construções góticas em plena Era Industrial, e, o que um dia foi compreendido como uma espécie de "liberdade estética de escolha" tornou-se um vício insuportável para os estetas arautos do Modernismo. A "arquitetura dos estilos", como era conhecido o Historicismo, não se produziu sem as suas construções ideológicas. Mas, se no início havia, por parte de alguns arquitetos, uma desconfiança agressiva em relação ao passado, este sentimento acabou por ceder o seu lugar a uma desconfiança mais refinada, e, sobretudo, mais seletiva... Se era necessário refundar a arquitetura, como prática e como disciplina, era importante, então, localizar no tempo e no espaço os seus marcos iniciais.
Se os arquitetos gregos e romanos foram agraciados com este título, coube aos arquitetos medievais uma designação menos nobre: mestres-construtores (12)... Ora, se o léxico – em uma perspectiva hodierna e sincrônica – permite esta construção, a história do léxico – ou seja, um breve estudo diacrônico da palavra –, no entanto, a contraria: nem os gregos, nem os romanos e nem os medievais foram arquitetos no sentido moderno, não sendo possível, portanto, designar nenhum destes com a palavra arquiteto tout court, sem as devidas referências históricas e culturais. Se a distinção apontada acima não é marca do mesmo desprezo que definiu a Idade Média, na sua totalidade, como um período "obscuro", de pouco "progresso científico e artístico", torna visível, no entanto, a seleção e a escolha. E, se o que os gregos e romanos faziam era arquitetura e não, exatamente, arquitetura, quais são os critérios que circunscreverão este último léxico?
O historiador italiano Giulio Carlo Argan, um dos maiores no panteão mitológico, define a arquitetura a partir, justamente, do desenho. Ora, sabe-se que gregos e romanos desenhavam, tendo a tradição construtiva latina nos legado, através de Vitrúvio, uma nomenclatura ligada à sua prática: ichnographia, orthographia e scaenographia, traduzidos, respectivamente, por planta, elevação e perspectiva. Ou seja, se é o desenho, como mediação intelectual entre o desejo humano e a sua efetividade concreta, que vai nos conduzir à fundação moderna da prática arquitetônica, tal como pensam a maioria dos historiadores, caímos, então, em uma contradição assaz interessante: se todos desenhavam, tendo o projeto em arquitetura uma história mais longa do que normalmente se supõe, como distinguir os gregos e romanos dos modernos? A resposta para este embaraço é simples: não se distingue gregos e romanos dos modernos, mas dos medievais... Em primeiro lugar, não se define o desenho dos antigos como projeto, mas simplesmente como uma prática ligada à arquitetura de então, prática que é mencionada no intuito de diferenciá-la da prática moderna. Isto é, o desenho dos antigos é definido não a partir de algo que seria a sua "positividade", mas da sua negação: o desenho dos romanos não é, ainda, o "projeto". Estabelece-se uma continuidade histórica sugerindo a ideia de progresso, e, com isto, constrói-se a própria ideia de Renascimento...
Há o caso mais específico de Argan, em cujo panteão brilha a figura de Brunelleschi como o herói fundador da arquitetura, isto é, como aquele que separou definitivamente o momento da criação daquele ligado à execução, a partir da criação do "projeto" (13). A este respeito, leiamos a seguinte asserção:
“[Brunelleschi] Percebeu que, para substituir uma prática esquecida, era necessário criar um sistema; que, não podendo contar com a perícia tradicional dos mestres-de-obras, o projeto deveria eliminar a priori todo imprevisto ou acidente; que, sobretudo, devia sub-rogar uma experiência e um engajamento individuais” (14).
Temos, nestas curtas frases, a síntese histórica operada pelo historiador italiano: autor e ação se definem em um caráter de premente necessidade; com o "declínio técnico da mão-de-obra" surge o "projeto" como a prática que separa, socialmente, mestres-de-obras decadentes de arquitetos em ascensão... O maior problema ligado a esta construção tão corrente é que não havia, ainda, o projeto tal como nós conhecemos. Os arquitetos de então, tal como o próprio Brunelleschi, serviam-se de modelos e desenhos, que, a seguir, eram, como reconhece Argan, interpretados... Quisessem os arquitetos renascentistas que os seus "projetos" – isto é, os seus modelos, desenhos e desenhos em perspectiva – fossem executados de acordo com os seus desejos artísticos teriam que manter-se vivos durante a execução da obra e zelar pela interpretação dos nem sempre zelosos mestre-de-obras.
Podemos sempre interpretar o "projeto" ao qual alude o historiador italiano como uma espécie de "atitude mental", a qual, mais tarde, teria dado origem ao projeto tal como o conhecemos. Mas, se assim for, e se o tal "projeto" não existiu materialmente, estaremos diante de uma espécie de "filosofia", e não, exatamente, de uma prática arquitetônica. Isto é, estaremos nos referindo ao vago e vasto plano das ideias, tais como capitalismo, revolução burguesa e outros conceitos amplos o suficiente para neles caber o mundo.
Voltemos, então, à importante questão da seleção histórica: ora, por que não compreender os mestres construtores medievais em um registro próximo aos dos mestres renascentistas? Por que a ruptura se instala, com a precisão de um corte cirúrgico, justamente com o Renascimento florentino? Por que esta forma de narrativa seria superior às demais? E, sobretudo, por que estender uma longa linha de continuidade que vai de Brunelleschi e Alberti até nós? Seiscentos anos podem ser compreendidos como um único bloco temporal, dividido cronológica e didaticamente em períodos de mais ou menos cem anos? Linhas contínuas em história são como frentes de batalha – quanto mais longas mais difícil se torna operacionalizá-las – e mais complexa se torna a linha de suprimentos que se estende por vastas regiões... Isto é, procede-se com frequência à simplificações e a reducionismos de todo o tipo... Mas, como se sabe, a história é uma construção realizada por meio de generalizações e de analogias e, portanto, aquelas que apontamos não seriam diferentes de muitas outras. No entanto, o que tentamos fazer é, justamente, compreender os limites de uma tal narrativa, e isto significa tentar compreender o significado desta escolha narrativa.
Como vimos, Argan "fundou" a arquitetura como prática moderna a partir do conceito de projeto como separação entre intelecção e execução. E esta escolha tem, como se pode facilmente deduzir, motivações e implicações ideológicas. Inicialmente, poderíamos refletir a seguinte questão: o que separaria tão radicalmente os mestres construtores medievais dos mestres renascentistas? Talvez o termo que melhor conviria seria este: a escritura... Ora, pouco conhecemos da biografia artística e intelectual dos construtoresmedievais, assim como também temos pouco acesso aos seus métodos construtivos e a suas preferências estéticas. O Le carnet de Villard de Honnecourt é uma exceção – assim como o De Architectura Libri Decem vitruviano – e, como tal, se não justifica nenhuma regra, ao menos deixa-nos entrever o ambiente, por assim dizer, "cultural", no qual se trabalhou. E ali, como em muitos "livros de arquitetura", podem ser encontrados muitos desenhos: desde representações de santos, profetas e outras figuras retiradas da mitologia bíblica, até plantas baixas e esquemas construtivos só muito recentemente reconhecidos como tal. E se isto não é suficiente para colocar o autor medieval no sagrado panteão dos tratadistas de arquitetura, isto se deve mais à opção realizada pelos historiadores: o que não pode ser compreendido desde o conceito de moderno – criado, aliás, por eles mesmos – deve ser banido e eliminado da narrativa. Villard de Honnecourt, não sendo renascentista e nem sequer italiano, não logrou penetrar no seleto e fechado clube dos pioneiros fundadores da ideia de arquitetura (15). Esta prática teria começado, como se sabe, com Brunelleschi. Ora, o que teria faltado ao mestre construtor francês para a sua inclusão no clube? Faltaram-lhe, justamente, um Vasari, um Alberti, assim como, no século XX, teria lhe faltado um escritor refinado e influente como Argan. Faltou-lhe, portanto, escritura.
Não tendo sido descoberto senão em 1825, na cidade de Paris, o Carnet não se tornou um tema literário para os modernos, e coube ao ambiente cultural neogótico a criação das condições da sua recepção (16). Isto significa que as possibilidades para a sua assimilação e inclusão na narrativa histórica não foram colocadas senão muito tardiamente, ao passo que os escritos dos italianos tiveram uma boa penetração entre as classes instruídas da Europa já desde o século XV. Um outro fator interessante, e que vai afastar o texto medieval dos seus correlatos italianos, é a sua própria condição de escritura: enquanto os tratados de arquitetura dos séculos XV e XVI foram escritos em latim ou na língua vulgar das classes dominantes, o que facilitava a sua recepção e transmissão, o texto medieval foi escrito em uma língua vulgar, o Picardo, e não em latim ou na língua vulgar falada na região de Île-de-France, a qual torna-se-ia, a partir de 1539, a língua administrativa do Reino da França.
Não estamos a afirmar que o Carnet de Villard de Honnecourt pertença ao mesmo ambiente cultural que teria forjado os tratados arquitetônicos italianos, e que as formas de ambos seriam semelhantes, apenas afirmamos o caráter ideológico que preside a narrativa da História da Arquitetura, escrita por interesses diversos que se escondem por detrás do véu de uma suposta "objetividade científica". Pensando desde esta perspectiva, o corte cronológico chamado de Renascimento, efetuado a partir de 1300, 1350 ou 1400 (17), conforme o gosto e os interesses de cada historiador, excluiu de forma dramática uma longa e rica tradição construtiva, e não foi reservada aos seus praticantes nem mesmo o uso da palavra arquiteto, título de nobreza reservado somente para aqueles que estavam próximos, de alguma maneira, à classe dirigente florentina.
Conclusão
Aqui finalizamos o nosso percurso e ofício de respigadeira, recolhendo os grãos que a historiografia ocidental não quis ou não pôde incorporar à sua colheita – trata-se de uma história na qual predominou a continuidade, mesmo quando este procedimento não conseguia incorporar vastos períodos cronológicos e vastas superfícies territoriais. Assim, pouco importa se a tradição arquitetônica medieval teria de ser compreendida em outro registro, na medida em que se tratava de escolher e reconstruir rituais, práticas discursivas e mentalidades, costurando-as em uma trama mais ou menos urdida. Os gregos, inventores da palavra, tornaram-se, quase sem mediações nem ressalvas, os inventores da coisa, e esta, por sua vez, a partir dos romanos, que a teriam ampliado e divulgado no mundo ocidental, foi tomada como paradigma estético.
Isto é, ou se diz apenas arquitetura, sem as necessárias ressalvas e contextualizações, ou se estabelecem cortes e recortes que acabam por se tornar arbitrários e excludentes em relação à totalidade dos objetos a serem estudados. No primeiro caso, temos os "manuais de história da arquitetura", os quais apresentam o grave defeito de estudar fenômenos completamente diferentes e diversos a partir da mesma compreensão teórica – o resultado é, na maioria das vezes, uma homogeneização de fenômenos que são, na realidade, bastante heterogêneos entre si. No segundo caso, temos o surgimento de uma história da arquitetura que, a força de excluir elementos incômodos ou indesejáveis, parece querer indicar a existência de uma hierarquia nos fenômenos ditos artísticos, na qual uns objetos são tratados como brilhantes figuras em um panteão de heróis, ao passo que outros são relegados à uma zona vaga, uma espécie de limbo histórico.
Ora, se uma História perfeitamente objetiva, sem heróis nem excluídos, é uma falácia, e se o ato de narrar é, desde o princípio, uma tomada de posição, isto é, uma perspectiva, implicando uma escolha e uma seleção de objetos a incluir e a excluir, deve-se esperar, ao menos, que as condições a partir das quais a história é narrada sejam explicitadas desde o princípio. Afinal, como a própria clivagem em História e Pré-História indica, História é escritura.

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