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Ética e moral Ricoeur

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t-!,
I LEITURAS 1 - EM TORNO AO POLÍTICO
assumimos inteiramente nosso passado, seus valores e seus sím-
bolos, e na medida em que somos capazes de interpretá-lo em
totalidade. Essa arbitragem entre várias temporalidades constitui
o grande problema da cultura.
Esse problema não concerne menos às sociedades industriais
avançadas do que às sociedades em vias de desenvolvimento.
Também elas são ameaçadas de perder seu sentido no exercício
da pura tecnicidade; à medida que a sociedade de consumo se
desenvolve, sentimos de maneira cada vez mais viva a contradi-
ção entre a racionalidade crescente dos nossos meios e a raciona-
Iidade evanescente dos nossos fins.
Essa primeira tarefa exige uma segunda; nem todos os valo-
res do passado podem sobreviver; só os que são suscetíveis do
que eu acabo de chamar de "reinterpretação". Assim, só podem
sobreviver espiritualidades que se dêem conta da responsabilida-
de do homem; que dêem um sentido à existência material, ao
mundo técnico e, de modo geral, à história. Deverão morrer as
espiritualidades de evasão, as espiritualidades dualistas. Com re-
lação a isso, O cristianismo deve ir até o fim da crise que separará
essas duas orientações: a que o leva para o platonismo e para a
experiência contemplativa, e que levou Nietzsche a dizer que era
apenas um platonismo para o povo; e a que o leva para a história,
para a encarnação e realização da fraternidade entre os homens.
De maneira mais geral, penso que as formas de espiritualidade
que não podem dar contada dimensão histórica do homem su-
cumbirão sob a pressão da civilização técnica. Mas penso tam-
bém que só uma retomada do passado e uma reinterpretação
viva' das tradições permitirão às sociedades modernas resistir-ao
nivelamento ao qual as submete a sociedade de consumo. Alcan-
çamos aqui o trabalho da cultura, mais precisamente o trabalho
da linguagem, pelo qual nossa crítica da idéia de civilização con-
fina com o problema hermenêutico.
Mas não gostaria que no espírito de quem quer que seja se
dissociassem as três tarefas que atribuímos ao educador político
e que correspondem aos três níveis de intervenção do educador
político: a luta pela democracia econômica; a oferta de um pro-
jeto para o conjunto dos homens e para a pessoa singular; a
reinterpretação do passado tradicional, diante da ascensão da
sociedade de consumo.
160
Ética e moral
(1990)
É preciso distinguir entre moral e ética? A dizer a verdade,
nada na etimologia ou na história do liso das palavras o impõe:
uma vem do grego, a outra do latim, e ambas remetem à idéia de
costumes (ethos, mores); pode-se, todavia, discemir uma nuance,
segundo se ponha o acento sobre o que é J!..sti.!r!sf:.dobcU!l.ou sobre
o ue se impõe como ohrigatório. É por convenção que reservarei
o termo "ética" para a Intenção de uma vida realizada sob o signo
das ações estimadas boas, e o termo "moral" ara o lado ol?!iga-
tório, marcado por normas, obriga ~.,lu,t~mições ~aracteriza-
das ao mesmo tempo por uma exigência de ~ryvers~g,ade e por
um efeito de constri ão. Pode-se facilmente reconhecer na dis---~tinção entre intenção da vida boa e obediência às normas a opo-
sição entre duas heranças: a herança aristotélica, na qual a ética
é caracterizada por sua perspectiva teleológica (de télos, signifi-
cando "fim"); e uma herança kantiana, na qual a moral é definida
pelo caráter de obrigação da norma, portanto por um ponte de
vista deontológico tdeontolôgico significando precisamente "de-
ver"). Proponho-me, sem preocupação de ortodoxia aristotélica
ou kantiana, defender:
1) a primazia da ética sob-:-e a mo!al;
2) a necessidade para a intenção ética de passar pelo crivo da
norma; """ ~----
3) a legitimidade de um recurso da norma à intenção ética,
quando a norma conduzir a conflitos para os quais não há outra
saída senão uma sabedoria prática que remete ao que, na inten-
~~ .
LEITURAS 1 - EM TORNO AO POLÍTICO 162 163 'I'I.A 1 MIIII 1
ção ética, é mais atento à singularidade das situações. Comece-
mos pois pela intenção ética.
Passemos ao segundo momento: viver bem com e para os
outros. Como o segundo componente da intenção ética, que de-
signo com o belo nome de Y.ç,!icÜude.:" encadeia-se com o pri-
meiro? A estima de si, por onde começamos, não traz em si mes-
ma, em razão do seu caráter reflexivo, a ameaça de um dobrar-se
sobre o eu, de um fechamento, em prejuízo da abertura para o
horizonte da vida boa? A despeito desse perigo certo, minha tese
é que a solicitude não se acrescenta de fora à estima de si, mas
explicita a dimensão dialogal implíc~tanaquela. Estima e solicitu-
de não o em ser vivi as e pensa as uma sem a outra. Dizer si
não é diz rw. Si implica o outro de si, a fim de ue se ' "'-êITZer
de alguém queeiêse estima a"Simesmo como um outro. A dizer
a verda e, €Só por abstração que se po e ar da estima de si
sem pô-Ia em dupla com uma demanda dereci~ Deidade, segun-
do um esquema de estima cruzado, que resume a exclamação tu
também: tu também és um ser de iniciativa e de escolha, caRaz e >t..
a~gun o rÇ.lzões,de hierar uizar teus fi,ns; e, estimando bons X.
os objetos da tua busca, és c3Qaz de estimar a ti mesmo. O outro'" . -
é, assim, aquele que po e dizer eu como e como eu ser con-
siderad m.:agillUs;, a,utor e responsável ~los seus atos. Do con-
trário' nenhuma regra de recipr'ocidade seria possível. O milagre
da reciprocidade é que as pessoas são reconhecidas como
.•ill.su9stituíV;~ umas às outras na própria troca. Essa reciprocida-
~;}2s insubstituíveis é o segredo da solicitude. A~ ade só
e aparentemente completa na amáããe, na qual um estima o outro
tanto quanto a si. Mas a reciprocidade não exclui certa desigual-
dade, ~0!ll.ona submissão ~Q dis_çfu~o ao mestre. a desigualda-.
de, todavia, é corrigida pelo reconhecimento da superioridade do
mestre, reconhecimento que restabelece a reciprocidade. Inver-
samente, a desigualdade pode provir da fraqueza do outro, do
seu sofrimento. Nesse caso, é tarefa da compaixão restabelecer a
reciprocidade, na medida em que, na compaixão, aquele que
aparentemente é o único a dar recebe mais do que dá por via da
gratidão e do reconhecimento. A solicitude restabelece a igualda-
de lá onde ela não é dada, como na amizade entre iguais.
Viver bem, com e para o outro, em instituições justas. Que a
intenção do bem-viver envolva de algum modo o sentido da jus-
tiça, isso é exigido pela própria noção de outro. O outro é tarn-
I. A INTENÇÃO ÉTICA
Definirei a intenção ética pelos três termos seguintes: inten-
ção da vida boa, com e para os outros, em instituições justas. Os
três componentes da definição são igualmente importantes.
Falando primeiro da vida boa, gostaria de sublinhar o modo
gramatical dessa expressão tipicamente aristotélica. É o modo do
optativo e não do imperativo. É, no sentido mais forte da palavra,
uma aspiração: "Possa eu, possas tu, possamos nós viver bem!",
e nós antecipamos o cumprimento dessa aspiração numa expres-
são do tipo: "Feliz aquele que ...!" Se a palavra "aspiração" parece
demasiado fraca, falemos - sem particular fidelidade a Heidegger
- de "cuidado": cuidado de si, cuidado do outro, cuidado da
instituição.
Mas o cuidado de si é um bom ponto de partida? Não seria
melhor artir do cui a o o outro? Se, to aVia, mSlsto nesse pri-
meiro com onente, é recisamente ara sub m ar que o ermo
"si". que gostaria de associar ao termo 'estima •. no plano ético
fundamental, reservando o de "respeito" para o nível moral,
deontológico, de nossa investigação:'i1ão se confunde de maneira
nenhuma com o eu, portanto com uma osi ão egológica ue 9
encontro com o outro subverteria necessariamente. Duas coisas
são~{undan1entaImente estimáveis ~m si' mesmas.prirneiro-a ca-
pacidade de escolher por razões, de referir isso àquilo, em pou-
cas palavras, a capaci a e e agir intenõiõiiã mente; em seguida,
. ., ...•.•.
a capacidade de introduzir mudanças nocurso das coisas, de
começar alguma coisa no mundo, em poucas palavras, a_capaci-
dade de inici tiv. Nesse sentido, a estima de si é o momentõ
réflexivo da práxis: é apreciando nossas ações que apreciamos a
n mesmos como sendo os autores delas e, portanto, como sen-
utr coisa que simples forças da natureza ou simples instru-
I 1 t . ri n cessário desenvolver toda uma teoria da ação
I lI' I III tr mo a estima de si acompanha a hierarquização
11 11(
LEITURAS 1 - EM TORNO AO POLÍTICO 164
bém O outro do tu. Correlativamente, a justiça estende-se para
além do face-a-face. Duas asserções estão aqui em jogo: de acor-
do com a primeira, o viver bem não se limita às relações interpes-
soais, mas estende-se' à vida nas instituições; de acordo corri a
segunda, a justiça apresenta traços éticos que não estão contidos
na solicitude, a saber, essencialmente uma exiaência de i ualda-
de de uma espécie diferente daquela da amizade.
.•••~~..... /I
Relativamente ao primeiro ponto, é preciso entender por
"instituição", nesse primeiro nível de investigação, todas as estru-
turas do viver-em-comum de uma comunidade histórica, irre-
dutíveis às relações interpessoais e, contudo, ligadas a elas num
sentido específico, que a noção de distribuição - encontrada na
expressão "justiça distributiva" - permite esclarecer.
Pode-se, com efeito, compreender uma instituição como um
sistema de partilha, de repartição, que se refere a direitos e deve-
res, rendimentos e patrimônios, responsabilidades e poderes; em
poucas palavras, vantagens e encargos. É esse caráter distributiuo
- no sentido amplo da palavra - que põe um problema de jus-
tiça. Com efeito, uma instituição tem uma amplidão mais vasta
do que o face-a-face da amizade e do amor: na instituição, e por
meio dos processos de distribuição, a intenção ética estende-se a
todos os que o face-a-facedeixa fora a título de terceiros. Assim
forma-se a categoria do cada um, que não é o se,mas o partidário
de um sistema de distribuição. Ajustiça consiste, precisamente,
em atribuir a cada um a sua parte. O cada um é o destinatário de
uma partilha justa.
-y •
Poderia chocar o 'fato de falarmos de justiça no plano ético,
no qual ainda nos mantemos, e não exclusivamente no plano
moral, vale dizer, legal, que abordaremos em seguida. Uma razão
legitima essa inscrição do justo na intenção da vida boa e com
relação à amizade pelo outro. Primeiro, a origem quase imemorial
da idéia de justiça, sua saída para fora do molde mítico na tragé-
dia grega, a perpetuação das suas conotações religiosas até mes-
mo nas sociedades secularizadas atestam que o sentido da justiça
não se esgotana construção dos sistemas jurídicos que ele susci-
ta. Em seguida, o sentido da justiça é solidário do de injustiça
que, muito amiúde, o precede. É sob c: modo da reclamação que
165 ÉTICA E MORAL
~ntrar~lOs.no campo do injusto e do justo: "Isso é injusto!" - esta
e a pnmeira exclamação. Não é de estranhar, então, que se en-
contre um tratado da justiça nas Éticas de Aristôteles, o qual se-
gue nesse ponto os passos de Platão. Seu problema consiste em
~or~a: a .idéia .de uma igualdade proporcional que mantenha as
inevitáveis desigualdades da sociedade nos quadros da ética: "a
cada um na proporção da sua contribuição, de seu mérito", tal é
a fór.mula <:iajustiça distributiva, definida como igualdade pro-
porcional. E, certamente, inevitável que a idéia de justiça se com-
prometa nas vias do formalismo pelo qual caracterizaremos em
seguida a :no~al.~~s seria conveniente parar nesse estágio inicial
no qu~ a Just~ç~e amda uma virtude na via da vida boa, e no qual
? s:lltldo do injusto precede por sua lucidez os argumentos dos
Juristas e dos políticos.
lI. A NORMA MORAL
Cabe à segunda parte desse estudo a tarefa de justificar a
s:gunda proposição de nossa introdução, a saber, que é necessá-
no submeter a intenção ética à prova da norma. Deverá ser mos-
tra~o de que modo os conflitos suscitados pelo [ormalismo, es-
treitamente solidário do momento deontológico, remetem da
moral à ~tica,.mas ~ ~ma ética enriquecida ~ela passagem pela
nor~a ~ inscnta n~ JUIZO moral em situação. E sobre o laço entre
obngaçao e forrnalismo que essa segunda parte vai se concentrar
tendo como fio condutor os três componentes da. intenção ética:
Ao primeiro componente da intenção ética, que chamamos
de "aspiração à vida boa", corresponde, do lado da moral no
sentido preciso que demos a esse termo, a exigência de univ~rsa-
lidade ..Co~ efeito, a passagem pela norma está ligada à exigência
de racíonalidade que, interferindo com a intenção da vida boa,
t~rna-~e razão prática. Ora, como se exprime a exigência de ra-
clOnall~ade? Essencialmente como exigência de universalização.
? kantismo se reconhece nesse critério. A exigência de universa-
h~ad~, com efeito, só pode ser ouvida como regra formal, que
nao diz o que se deve fazer, mas a que critérios é preciso subme-
ter as máximas da ação: a saber, precisamente, que a máxima seja
I
I'
I
LEITURAS 1- EM TORNO AO POLiTICO 167 ÉTICA E MORAL166
universalizável, válida para todo homem, em todas as circunstân-
cias, e sem levar em conta as conseqüências. Podemos ter ficado
chocados' com a intransigência kantiana. Com efeito, a posição
do formalismo implica a exclusão do desejo, do prazer, da felici-
dade; não enquanto maus, mas enquanto não satisfazem, em razão
do seu caráter empírico particular, contingente, ao critério
transcendental de universalização. É essa estratégia de depuração
que, levada a seu termo, conduz à idéia de autonomia, vale dizer,
de autolegislação, que é a verdadeira réplica na ordem ~o dever
à intenção da vida boa. Com efeito, a única lei que uma liberdade
pode se dar não é uma regra de ação que responda à questão:
"Que devo fazer aqui e agora?", mas o imperativo categórico na
sua nudez: "Age unicamente segundo a máxima que faça com
que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se torne lei univer-
sal". Qualquer um que s&submeta a esse imperativo é autônomo,
vale dizer, autor da lei à qual obedece. Põe-se então a questão do
vazio, da vacuidade, dessa regra que não diz nada de particular.
É para compensar esse vazio do formalismo que Kant intro-
duziu o segundo imperativo categórico, no qual podemos reco-
nhecer o equivalente, no plano moral, da solicitude no plano éti-
co. Relembro os termos da formulação do imperativo categórico,
que vai permitir elevar o respeito ao mesmo nível da solicitude:
"Age sempre de tal modo que trates a humanidade na tua própria
pessoa e na de outro, não somente como um meio, mas s~mpre
também como um fim em si". Essa idéia da pessoa como fim em
. .sié decisiva: ela equilibra o formalismodoprimeiro imperativo,
Nesse ponto, sem dúvida, pode-se perguntar o que o formalismo
acrescenta à solicitude e, em geral, a moral à ética. Minha respos-
ta é breve: é por causa da violência que se deve passar da ética à
moral. Quando Kant diz que não se deve tratar a pessoa como um
meio, mas como um fim em si, ele pressupõe que a relação es-
pontânea de homem a homem é, precisamente, a exploração~ Esta
stá inscrita na própria estrutura da interação humana. Repre-
nt mo-nos muito facilmente a interação como um enfrenta-
t u como uma cooperação entre agentes de força igual. O
r íso considerar em primeiro lugar é uma situação na
• re um poder sobre o outro, e na qual, por conse-
I t correspond um p cí nt ,qu é potencial-
mente a vítima da ação do primeiro. Sobre essa assimetria de
base se enxertam todos os desvios maléficos da interação, resul-
tantes do poder exercido por uma vontade sobre a outra. Isso se "
estende da influência até o assassinato e a tortura, passando pela
violência física, pelo roubo e pelo estupro, pela constrição psíqui-
ca, pelo engodo, pela astúcia etc. Em face dessas múltiplas figuras
do mal, a moral se exprime por interditos: "Não matarás", "Não
mentirás" etc. A moral,nesse sentido, é a figura que a solicitude
assume diante da violência e da ameaça da violência. A todas as
figuras do mal, da violência, responde o interdito moral. Aqui
reside, sem dúvida, a razão última pela qual a forma negativa da
interdição é inexpugnável. Foi isso que Kant percebeu perfeita-
mente. Com relação a isso, a segunda fórmula do imperativo ca-
tegórico, acima citada, exprime a formalização de uma antiga
regra, chamada de Regra de Ouro, que diz: "Não faças ao outro o
que não queres que te façam". Kant formaliza essa regra introdu-.
zindo a idéia de humanidade - a humanidade na minha pessoa
e na pessoa do outro -, idéia que é a forma concreta e, se pode-
mos dizer, histórica da autonomia.
Resta-me dizer algumas palavras sobre a transformação da
idéia de justiça, quando passa do plano ético ao plano moral.
Vimos que essa transição foi preparada pelo semiformalismo da
virtude da justiça em Aristóteles. A formalização da idéia da jus-
tiça é completa num autor como J. Rawls em Teoria da justiça,
por causa de uma conjunção entre o ponto de vista deontológico
de origem kantiana e a tradição contratualista que oferece, para
.a justificação dos princípios da just~a, .()quadro de-umaficção- _
a ficção de um contrato social hipotético, anhistórico, fruto de
uma deliberação racional realizada nesse quadro imaginário. Rawls
deu o nome de fairness à condição de igualdade na qual, supos-
tamente, se encontram os parceiros de uma situação original
deliberando sob o véu da ignorância quanto à sua sorte real numa
sociedade real.
Não é o caso de discutir aqui as condições que satisfaçam à
[airness na situação original (a saber, o que é preciso ignorar da
sua própria situação e o que é preciso saber sobre a sociedade em
geral e sobre os termos da escolha). O ponto sobre o qual me
limitarei a insistir é a orientação antiteleológica da demonstração
LEITURAS 1 - EM TORNO AO POLÍTICO
dos princípios de justiça, dado que a teoria é dirigida apenas contra
uma versão teleológica particular da teleologia, a saber, a do
utilitarismo, que predominou durante dois séculos no mundo de
língua inglesa com Iohn Stuart Mill e Sidgwick. Com efeito, o
utilitarismo é uma doutrina teleológica na medida em que a jus-
tiça é definida pela maximização do bem para o maior número.
Na concepção deontológica de Rawls, nada é pressuposto, pelo
menos no nível do argumento concernente ao bem.
Afunção do contrato é derivar os conteúdos dos princípios de
justiça de um processo eqüitativo (Jair) sem qualquer compromis-
so com algum critério que seja do bem. O objetivo declarado da
teoria da justiça é dar uma solução processual à questão do justo.
O primeiro princípio de justiça não constitui problema para
nós: "Cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais ex-
tenso de liberdades de base, igual para todos, que seja compatível
com o mesmo para os outros"; esse primeiro princípio exprime a
igualdade dos cidadãos diante da lei sob a forma de uma partilha
igual das esferas de liberdade. Reencontramos a igualdade arit-
mética de Aristóteles, porém formalizada. É o segundo princípio
que constitui um problema: "Asdesigualdades sociais e econômi-
cas devem ser organizadas de modo que, ao mesmo tempo: a) se
possa razoavelmente esperar que sejam vantajosas para cada um;
b) e que sejam ligadas a posições e a funções abertas a todos".
Reconhecemos aqui o princípio aristotélico da justiça pro-
porcional ao mérito, mas formalizada pela exclusão de toda refe-
rência ao valor das contribuições individuais. Só vale o raciocínio
desenvolvido tia situação oríginalsob o véu da ignorância, o qual'
tende a provar que se pode conceber uma partilha desigual que
seja vantajosa para cada um. Esse argumento corresponde ao
raciocínio do maximin, emprestado à teoria da decisão num con-
texto de incerteza. Ele é designado por esse termo pelo fato de
que os parceiros supostamente escolhem a regulamentação que
maximize a parte mínima. Dito de outro modo, é mais justa a
partilha desigual pela qual o aumento de vantagens dos mais fa-
vorecidos é compensado pela diminuição das desvantagens dos
menos favorecidos.
Meu problema não é o do valor probatório do argumento
considerado enquanto tal, mas de saber se não é a um sentido
168 169 ÉTICA E MORAL
ético prévio da justiça que a teoria deontológica da justiça de
algum modo apela. Sem pôr de modo algum em questão a inde-
pendência do seu argumento, Rawls concede de bom 'grado que
este encontra nossas "convicções bem ponderadas" (our con-
sidered convictions), e que se estabelece um "equilíbrio refletido"
(reflective equilibrium) entre a prova formal e essas convicções
bem ponderadas. Essas convicções devem ser bem ponderadas,
pois, se em certos casos flagrantes de injustiça (intolerância reli-
giosa, discriminação racial) o julgamento moral ordinário parece
seguro, temos muito menos segurança quando se trata de repar-
tir a riqueza e a autoridade. Os argumentos teóricos desempe-
nham então, com relação a essas dúvidas, o mesmo papel de crivo
que Kant atribui à regra de universalização das máximas. Todo o
conjunto da prova mostra-se como uma racionalização dessas
convicções, pelo viés de um complexo processo de ajuste mútuo
entre as convicções e a teoria.
Ora, qual o objeto dessas convicções? Ameu ver, é o mesmo
que encontramos expresso pela antiga Regra de Ouro: "Não faças
ao outro o que não gostarias que te fizessem". Com efeito, ado-
tando o ponto de vista do menos favorecido, Rawls raciocina como
moralista e leva em conta a injustiça fundamental da distribuição
das vantagens e desvantagens em toda sociedade conhecida. Eis
por que, por trás do seu formalismo, aparece seu sentido de eqüi-
dade, fundado no imperativo kantiano que interdita tratar a pes-
soa como um meio e exige que se a trate como um fim em si. E,
por trás desse imperativo, percebo o elã da solicitude que, como
.mostrei acima, faz a. transição entre a estima de si e o sentido
ético da justiça.
111. SABEDORIA PRÁTICA
Gostaria de começar a justificação da terceira tese enuncia-
da no início, a saber, que um certo recurso da norma moral à
intenção ética é sugerido pelos conflitos que nascem da própria
aplicação das normas a situações concretas. A partir da tragédia
grega, particularmente depois da Antígona de Sófocles, sabemos
que nascem conflitos precisamente quando pessoas obstinadas e
íntegras identificam-se tão completamente com uma regra parti-
LEITURAS 1 - EM TORNO AO POLÍTICO ÉTICA E MOlíAl.170 171
cular, que se tornam cegas com relação a todas as outras: assim
ocorre com Antígona, para quem o dever de sepultar um irmão se
sobrepõe à classificação do irmão como inimigo pela razão de
Estado; igualmente com Creonte, para quem o serviço da Cidade
implica a subordinação da relação familiar à distinção entre ami-
gos e inimigos. Não fecho aqui a questão de saber se são as pró-
prias normas que se enfrentam no céu das idéias - ou se não é
apenas a estreiteza da nossa compreensão, ligada precisamente à
atitude moral separada da sua motivação ética profunda. Guerra
dos valores ou guerra dos comprometimentos fanáticos, o resul-
tado é o mesmo, a saber, o nascimento de um caráter trágico da
ação sobre o fundo de um conflito de deveres. É para fazer face a
essa situação que se requer uma sabedoria prática, sabedoria li-
gada ao juízo moral em situação e para a qual a convicção é mais
decisiva do que a própria regra. Essa convicção, contudo, não é
arbitrária, na medida em que recorre às fontes do sentido ético
mais originário que não passaram para a norma.
Darei três exemplos, tomando cada um de um dos três com-
ponentes da ética: estima de si, solicitude, sentido da justiça.
Nasce um conflito no nível do primeiro componente da es-
tima de si quando a ele se aplica a regraformal de uniuersalização, .
da qual afirmamos acima ser o fundamento da autonomia do
sujeito moral. Ora, aplicadaao pé da letra, essa regra de univer-
salização cria situações conflituosas, a partir do momento em que
a pretensão universalista, interpretada por uma certa tradição que
não se explícita, choca-se com o particularismo solidário dos con-
textos históricos e comunitários de~efetivação dessas mesmas
regras. Somos testemunhas e, freqüentemente, atores, na Europa
ocidental, de conflitos nos quais se enfrentam a moral dos direi-
tos do homem e a apologia das diferenças culturais. O que não
vemos é que a pretensão de uníversalismo ligada à nossa profis-
são dos direitos do homem é, ela mesma, marcada pelo particula-
rismo, em razão da longa coabitação entre esses direitos e as
ulturas européias e ocidentais nas quais eles foram formulados
l primeira vez. Isso não quer dizer que autênticos universais
j m misturados nessa pretensão; mas só uma longa dis-
tr as culturas - discussão que apenas começou -
vi nt o que merece verdad írarn nt r ch mado d
"universal". Inversamente, só faremos valer nossa pretensão à uni-
versalidade na medida em que admitirmos que outros universais
em potência também estão presentes nas-culturas consideradas
exóticas. Apresenta-se aqui urna noção sem dúvida paradoxal: a
de universais em contexto ou de universais potenciais ou
incoativos. Essa noção traduz melhor o equilíbrio refletido que
buscamos entre universalidade e historicidade. Só uma discussão
em um nível concreto das culturas poderia dizer, ao termo de
uma longa história ainda por vir, quais os pretensos universais
que se tornarão universais reconhecidos.
Proponho um segundo exemplo de conflito de deveres, to-
mado da esfera ética da solicitude e do seu equivalente moral, o
respeito. Poderia voltar à velha questão da verdade devida ao
moribundo, ou à da eutanásia, ou entrar na controvérsia do direi-
to ao aborto nos primeiros meses de gravidez. Eu não deixaria de
invocar a sabedoria prática em situações particulares, que são,
muito amiúde, situações aflítivas, e não deixaria de defender uma
fina dialética entre a solicitude dirigida às pessoas concretas e o
respeito de regras morais e jurídicas indiferentes a essas situações
aflitivas. Eu insistiria também sobre o fato de que nunca se deci-
de sozinho, mas no seio do que chamarei de célula de conselho,
em que vários pontos de vista entram em jogo, na amizade e no
respeito recíprocos. Preferi tomar um exemplo para o qual se
apelou, a meu ver, no quadro de uma discussão na Anistia Inter-
nacional. Trata-se da prática da medicina em situações de alto
risco, corno o internamento psiquiátrico, o regime carcerário, a
. , participação na 'execução da pena ·Cápi1áf.êfê~O-médicO consúl:'
tado no interior da prisão não pode exercer plenamente sua vo-
cação definida pelo dever de assistência e de cuidados, dado que
a própria situação na qual ele é chamado a exercê-Ia constitui um
atentado à liberdade e à saúde, requerida precisamente pelas
regras do sistema carcerário. A escolha, para o médico individual,
é entre aplicar sem concessões as exigências decorrentes do jura-
mento de Hipócrates, com risco de ser eliminado do meio car-
cerário, e consentir às constrições constitutivas desse meio o
mínimo de exceções compatíveis com o respeito de si, o respeito
do outro e o da regra. Não há mais regras para decidir entre re-
gras, mas, de novo, O recurso à sab doria prática, próxima Elaque
I. I
; I
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LEITURAS 1- EM TORNO AO POLÍTICO 172
Aristóteles designava com o termo phronesis (traduzido por "pru-
dência"), que, segundo a Ética a Nicômaco, é na ordem prática o
que a sensação singular é na ordem teórica. Este é exatamente o
caso do juizo moral em situação.
O último exemplo de juízo moral em situação que proponho
procede do problema da justiça já evocado duas vezes, no plano
ético com o justo e o injusto, depois no plano moral com a tradi-
ção contratualista. Partamos do ponto em que tínhamos parado
com a concepção puramente processual da justiça em Rawls. O
que essa concepção não leva em conta é a heterogeneidade dos
bens implicados na distribuição, pela qual as instituições em ge-
ral foram definidas. Adiversidade das coisas a partilhar desapare-
ce no processo de distribuição. Perde-se de vista a diferença qua-
litativa entre as coisas a partilhar, numa enumeração que põe no
mesmo nível rendimentos e patrimônios, posições de responsa-
bilidade e de autoridade, honras e desonras. O próprio Rawls abre
caminho para pôr em questão o formalismo, referindo-se à idéia
de bens sociais primários. Ora, se se pergunta o que qualifica como
bons esses bens sociais, abre-se um espaço conflitual no momen-
to em que esses bens se mostram como relativos a significações,
a avaliações heterogêneas. Num autor corno Michael Walzer, em
Spheres cflustice (1983),o fato de considerar essa real diversidade
dos bens leva a um verdadeiro desmembramento da idéia unitá-
ria de justiça, como sugere o título de seu livro. Constituem "es-
feras" distintas de justiça as regras que decidem sobre as condi-
ções da cidadania; as que se referem à segurança e ao bem -estar:
as que têm por referência a idéia de mercadoria, .ístoé, a noção
daquilo que, por sua natureza de bem, pode ser ou não compra-
do ou vendido; as que regulamentam a atribuição dos empregos,
das posições de autoridade e de responsabilidade sobre bases di-
ferentes da herança ou das relações pessoais. Ora, os conflitos
não nascem só dos desacordos sobre os bens que distinguem essas
sferas de justiça, mas sobre a prioridade a dar às reivindicações
li das a cada uma. É a essa situação embaraçante que, mais uma
V Z, d ve fazer face a sabedoria prática.
riência histórica mostra, com efeito, que não existe
u v l p . classificar numa ordem universalmente con-
I Ivil 1 igualmente estimáv i c m d u-
173 ÉTICA E MORAL
rança, da liberdade, da legalidade, da solidariedade etc. Só o de-
bate público, cujo fim permanece aleatório, pode dar origem a
uma certa ordem de prioridade. Mas essa ordem só valerá para
um povo, durante certo período de sua história, sem jamais al-
cançar uma convicção irrefutável válida para todos os homens e
para todos os tempos. O debate público é aqui o equivalente, no
plano das instituições, do que chamei há pouco de círculo de
conselho para as questões privadas e íntimas. O juízo político é,
também aqui, da ordem do juízo em situação. Ele tem possibili-
dades, maiores ou menores, de ser a sede da sabedoria, do "bom
conselho" evocado pelo coro da Antígona. Essa sabedoria prática
não é mais uma questão pessoal: é, se podemos dizer, uma
phronesis de muitos, pública, como o próprio debate. Aqui a eqüi-
dade mostra-se superior à justiça abstrata. Falando do eqüitativo
Cépieikes) e da sua superioridade com relação ao justo, Aristóteles
observa: "Arazão disso é que a lei é sempre algo geral e há casos
específicos para os quais não é possível formar um enunciado
geral que a eles se aplique com certeza". E Aristóteles conclui:
"Tal é a natureza do eqüitativo: ser um corretivo da lei, onde a lei
deixou de estatuir por causa da sua generalidade" (Ética a
Nicômaco, V 14, 1137b 26-27).Aeqüidade mostra-se assim como
o outro nome do sentido da justiça, quando este atravessou os
conflitos suscitados pela própria aplicação da regra da justiça.
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