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ALEXANDRE CARVALHO DE ARAÚJO CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR MILITAR Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: Cel Juaris Weiss Gonçalves Rio de Janeiro 2013 C2013 ESG Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencioná-los, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG _________________________________ Assinatura do autor Biblioteca General Cordeiro de Farias Araújo, Alexandre Carvalho de. Controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar / Alexandre Carvalho de Araújo. - Rio de Janeiro : ESG, 2013. 48 f. Orientador: Cel Juaris Weiss Gonçalves. Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2013. 1. Disciplina Militar. 2. Direito Militar. 3. Administração Pública. 4. Habeas Corpus. I. Título A minha família pelos ensinamentos, incentivo e compreensão. AGRADECIMENTOS Ao Coronel Juaris Weiss Gonçalves por ter me orientado na elaboração deste trabalho. Ao Corpo Permanente da ESG pelos ensinamentos ministrados ao longo do CAEPE 2013. RESUMO Esta monografia aborda o controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar como mecanismo fundamental do Estado Democrático de Direito para coibir possíveis arbitrariedades que a autoridade militar possa cometer no exercício do poder disciplinar. O objetivo deste estudo é, por meio da análise da legislação e do entendimento doutrinário e jurisprudencial, encontrar a limitação do controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar, particularmente quando o Poder Judiciário é instado a se manifestar em sede de habeas corpus. A metodologia adotada comportou uma pesquisa realizada em legislação, bibliografia, tais como livros e artigos doutrinários, e documentos, tais como decisões retiradas de repositórios jurisprudenciais, sejam impressos ou disponibilizados na rede mundial (internet). O campo de estudo delimitou-se ao processo disciplinar militar positivado no Regulamento Disciplinar do Exército. Discorre sobre aspectos que legitimem o controle jurisdicional do ato administrativo (Estado Democrático de Direito, separação dos Poderes, conceitos e princípios da Administração Pública, supremacia do interesse público versus legalidade, inafastabilidade do Poder Judiciário) com intuito de mostrar os fundamentos do indigitado controle. Discorre também sobre o processo preconizado pelo Regulamento Disciplinar do Exército e sobre o habeas corpus. Por último, analisa a plausibilidade de cabimento de habeas corpus em relação a punições disciplinares militares e a consequente limitação do controle jurisdicional, bem como a competência para processar e julgar. Os principais tópicos são: liberdade individual de locomoção, hierarquia e disciplina militares, razoabilidade na dosimetria da pena, mérito da decisão administrativa versus controle jurisdicional. A conclusão revela a limitação do controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar, particularmente quando o Poder Judiciário é instado a se manifestar em sede de habeas corpus, bem como são oferecidas recomendações e sugestões para aprimoramento do processo disciplinar militar. Palavras chave: Controle jurisdicional. Processo disciplinar militar. Habeas Corpus. ABSTRACT This monograph deals with judicial review of military disciplinary administrative act as fundamental mechanism of the Democratic State of Law to curb possible arbitrariness that the military authority may commit in the exercise of disciplinary power. The objective of this study is, through the analysis of relevant legislation, doctrine and understanding of jurisprudence to date, to find the limits of judicial review of military disciplinary administrative act, particularly when the Judiciary is urged to decide in case of Habeas Corpus Action. The adopted methodology employed a research into legislation, bibliography, such as books and doctrinal articles, and documents, such as judgments found in repositories of jurisprudence, whether printed or made available on the worldwide web (internet). The field of study was delimited to the military disciplinary procedures established in the Disciplinary Regulations of the Army. This study discusses aspects that legitimize the judicial review of administrative act (Democratic State of Law, separation of Powers, concepts and principles of Public Administration, supremacy of public interest versus legality, non-obviation of Judiciary jurisdiction) in order to show the basics of mentioned control. Also it elaborates on the procedures established in the Disciplinary Regulations for the Army and it covers habeas corpus. Finally, it examines the plausibility of acceptance of habeas corpus in relation to military disciplinary punishments and consequent limits of judicial review, as well as the competence to prosecute and judge. The main topics are: individual freedom of movement, military hierarchy and discipline, reasonableness in dosimetry of the penalties, the merits of administrative decision versus judicial review. The conclusion reveals the limits of judicial review of military disciplinary administrative act, particularly when the Judiciary is urged to decide in case of Habeas Corpus Action, as well as presents recommendations and suggestions for improvement of the military disciplinary procedures. Keywords: Judicial review. Military disciplinary procedures. Habeas Corpus. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 6 2 CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO ...................... 9 2.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...................................................... 9 2.2 SEPARAÇÃO DOS PODERES .................................................................... 10 2.3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ........................................................................ 11 2.4 ATO ADMINISTRATIVO ............................................................................... 11 2.5 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E LEGALIDADE ....................... 12 2.6 JURISDIÇÃO ÚNICA .................................................................................... 14 2.7 LIMITAÇÕES AO CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO ....................................................................................... 15 2.7.1 Conceito jurídico indeterminado ............................................................... 17 2.7.2 Princípios ....................................................................................................19 3 PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR .......................................................... 21 3.1 HIERARQUIA E DISICPLINA ....................................................................... 21 3.2 DESCRIÇÃO DO PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR .............................. 21 4 HABEAS CORPUS ...................................................................................... 33 4.1 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL ............................................................ 33 4.2 FUNDAMENTO LEGAL ................................................................................ 34 4.3 PROCESSO E PROCEDIMENTO ................................................................ 34 4.4 EXAME DE PROVA ...................................................................................... 35 4.5 CABIMENTO DE HABEAS CORPUS EM RELAÇÃO A PUNIÇÕES DISCIPLINARES MILITARES ................................................... 37 4.5.1 Competência para processar e julgar habeas corpus em relação a punições disciplinares militares ............................................... 42 5 CONCLUSÃO. .............................................................................................. 44 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 46 6 1 INTRODUÇÃO No Estado Democrático de Direito a existência de um controle realizado pelo Poder Judiciário sobre os atos emanados da Administração Pública é fundamental para coibir possíveis arbitrariedades que a autoridade pública possa cometer no exercício dos poderes administrativos. Destarte, ao emanar atos administrativos disciplinares, assim como em qualquer outra atividade administrativa, a autoridade pública deve se pautar pela legalidade e pelos princípios da Administração Pública, sob pena de o ato ser anulado pelo Poder Judiciário, segundo reza o ordenamento jurídico brasileiro. Por outro lado, a independência e a harmonia dos Poderes, previstos na Constituição Federal, exigem que se imponham limitações ao controle jurisdicional do ato administrativo, seja disciplinar ou não. Em consequência, há limitações quanto ao controle jurisdicional sobre atos administrativos que, como no caso perquirido, tenham a finalidade específica de aplicar uma punição ao militar, em decorrência de conduta por ele perpetrada, a qual foi apurada e tipificada como transgressão disciplinar, punição esta resultante de um processo instaurado e conduzido pela autoridade competente, no exercício do poder administrativo disciplinar militar. No âmbito militar há ainda uma particularidade quanto ao controle jurisdicional, pois, ainda no exercício do poder disciplinar, há a possibilidade de a autoridade militar aplicar uma punição ao transgressor que tenha por consequência limitar a liberdade de locomoção do indivíduo, prisão disciplinar é o exemplo mais característico, liberdade esta garantida constitucionalmente por meio do instituto jurídico do habeas corpus. Acontece, porém, que o artigo 142, parágrafo 2º, da Constituição Federal, prescreve que “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”. O dispositivo a princípio teria o condão de proibir a apreciação judicial de punições disciplinares militares que cerceiam a liberdade de locomoção do transgressor. Entretanto, constata-se que, mesmo com a vedação constitucional expressa, há a impetração do instituto jurídico e a apreciação da punição disciplinar militar pelo Poder Judiciário. O problema a ser solucionado é revelar, a despeito da vedação constitucional, se é aceitável o cabimento de habeas corpus em relação às punições 7 disciplinares militares e, em caso afirmativo, encontrar a limitação do controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar. Assim, o presente trabalho tem por objetivo geral solucionar o problema acima exposto, por meio da análise da legislação e do entendimento doutrinário e jurisprudencial no tocante à limitação do controle jurisdicional do ato administrativo disciplinar militar, particularmente quando o Poder Judiciário é instado a se manifestar em sede de habeas corpus impetrado contra punição disciplinar militar cerceadora da liberdade de locomoção do transgressor. A citada análise adquire importância na medida em que tem o potencial de apontar aspectos jurídicos a serem observados pelas autoridades militares, a fim de se evitar falhas nos processos disciplinares e consequentes demandas judiciais, proporcionando maior segurança e estabilidade das decisões administrativas. A hipótese a ser verificada como solução do problema repousa no entendimento de que o artigo 142, parágrafo 2°, da Constituição Federal, não deve ser interpretado literalmente, mas sistematicamente com os demais dispositivos e princípios constitucionais, em especial os direitos e garantias fundamentais individuais, restando cabível o habeas corpus em relação a punições disciplinares militares com vistas ao controle jurisdicional do ato administrativo punitivo aplicado pela autoridade militar, desde que a apreciação judicial verifique apenas aspectos ligados à legalidade e aos princípios administrativos. A fim de verificar a hipótese como solução do problema, desenvolver-se-á o trabalho no sentido de destacar os princípios e dispositivos legais que limitam o controle jurisdicional dos atos administrativos; no de descrever o processo disciplinar militar; no de identificar os fundamentos da interpretação doutrinária e jurisprudencial para o artigo 142, parágrafo 2°, da Constituição Federal. Ao final do desenvolvimento deverá haver fundamentação suficiente para a confirmação ou não da hipótese. Como limitação do trabalho, a descrição do processo disciplinar militar restringir-se-á àquele positivado no Regulamento Disciplinar do Exército, o qual possui estrutura normativa de tipificação de conduta e de cominação de pena semelhante às estruturas normativas positivadas nos regulamentos disciplinares das demais Forças. Como metodologia adotada, os resultados estarão fundamentados em pesquisa realizada em legislação, bibliografia, tais como livros e artigos doutrinários, 8 e documentos, tais como decisões retiradas de repositórios jurisprudenciais, sejam impressos ou disponibilizados na rede mundial (internet). Apresentar-se-á o desenvolvimento do trabalho em três capítulos. O primeiro capítulo abordará o controle jurisdicional do ato administrativo. Para tanto, a fim de apresentar uma base teórica e geral para solução do problema, discorrer-se-á sobre os fundamentos do citado controle, quais sejam, o Estado Democrático de Direito e a separação dos Poderes. Em seguida discorrer-se-á sobre conceitos e princípios da Administração Pública e sobre aspectos do ato administrativo. Evidenciar-se-á nesse ponto a oposição da supremacia do interesse público em face da legalidade. Comentar-se-á sobre o sistema adotado no Brasil de jurisdição única em decorrência da inafastabilidade do Poder Judiciário. Por fim, discorrer-se-á sobre as limitações ao controle jurisdicional do ato administrativo e a relação do tema com os conceitos jurídicos indeterminados, bem como com os princípios da razoabilidade, moralidade administrativa, princípios gerais do direito e supremacia do interesse público. O segundo capítulo abordará o processo disciplinar militar. Para tanto, apresentar-se-ão os conceitos de hierarquia e disciplina, base das Instituições Militares. Em seguida, descrever-se-á o processo disciplinar segundo o regulamento do Exército. O terceiro capítulo abordará o habeas corpus. Para tanto, discorrer-se-á sobre os fundamentosconstitucional e legal deste instituto jurídico, bem como processo, procedimento e exame de prova. Em seguida, apresentar-se-á o entendimento sobre a plausibilidade de cabimento de habeas corpus em relação a punições disciplinares militares, as limitações do controle jurisdicional, bem como a competência para processar e julgar. Por fim, a conclusão encerrará o trabalho onde se apresentarão considerações finais sobre o assunto desenvolvido, revelar-se-á a confirmação ou não da hipótese em face dos resultados obtidos, bem como serão oferecidas recomendações e sugestões para aprimoramento do processo disciplinar militar. 9 2 CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO O objetivo deste capítulo é apresentar aspectos relacionados ao controle jurisdicional do ato administrativo ou, em outras palavras, ato emanado da Administração Pública. Faz-se mister estabelecer que no presente trabalho o termo controle jurisdicional se refere àquele controle realizado pelo Poder Judiciário no exercício da função judicial propriamente dita (função jurisdicional do Poder Judiciário), ou seja, a possibilidade do Poder Judiciário de dizer o direito no caso concreto por meio dos processos judiciais. Outrossim, o ato administrativo no presente trabalho se refere àquele emanado pelo Poder Executivo no exercício da função executiva propriamente dita (função administrativa do Poder Executivo). O controle do Poder Judiciário sobre atos da Administração Pública decorre da separação dos Poderes que, por sua vez, é um princípio que tem sua origem na concepção do Estado de Direito, cujo conceito evoluiu desde a fase liberal até os dias de hoje para consolidar o que se denomina Estado Democrático de Direito. 2.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A instituição do Estado Democrático brasileiro está juridicamente fundamentado, inicialmente, no preâmbulo da Constituição Federal (1988, p. 11). Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. O mesmo princípio constitucional volta a ser citado no artigo 1º da Constituição Federal (1988, p. 13), estabelecendo que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 10 Segundo Silva (2006, p. 112) o Estado de Direito era um conceito tipicamente liberal caracterizado por postulados básicos, quais sejam, submissão ao império da lei, divisão de poderes e enunciado e garantia dos direitos individuais. Posteriormente o conceito liberal deu lugar ao conceito social de Estado de Direito na medida em que este se volta precipuamente para a afirmação dos direitos sociais. Dessas características infere-se que o Estado de Direito é aquela estrutura política em que o exercício do poder por seus detentores está limitado pelas normas do seu próprio ordenamento jurídico. Por sua vez, o Estado Democrático se funda no princípio da soberania popular, isto é, a efetiva participação do povo nos assuntos públicos. O Estado Democrático visa, assim, realizar o princípio do poder que emana do povo como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana. Por fim, o Estado Democrático de Direito não é simplesmente a reunião formal de princípios do Estado de Direito e Estado Democrático. Mais do que isso, O Estado Democrático de Direito possui a tarefa fundamental de instaurar um regime democrático que realize materialmente a justiça social. 2.2 SEPARAÇÃO DOS PODERES A Constituição Federal (1988, p. 13) estabelece no artigo 2º os Poderes por meio dos quais é manifestada a vontade estatal para consecução de seus objetivos. É afirmado no mesmo dispositivo que os Poderes são independentes e harmônicos entre si. É o princípio da separação de Poderes. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Consagra a Constituição Federal (1988, p. 60) no artigo 60 a separação dos Poderes como sendo cláusula pétrea, ou seja, norma constitucional estabelecida pelo constituinte originário proibida de ser alterada pelo constituinte derivado. Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] III - a separação dos Poderes; Segundo Silva (2006, p. 106), na Constituição Federal as expressões “o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” possuem duplo sentido, isto é, exprimem as 11 funções legislativa, executiva e jurisdicional e indicam os respectivos órgãos os quais estão discriminados ao longo do texto da própria Constituição Federal. Quanto à expressão “independentes e harmônicos entre si”, explica o autor seu significado aduzindo primeiramente que, no exercício das atribuições que lhe sejam próprias, não precisa o titular de um determinado Poder consultar o titular de outro nem necessita de sua autorização. Porém, há uma faceta quanto à harmonia entre os Poderes que torna essa independência relativa. Nesse diapasão o autor infere que “há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados”. É exatamente a separação dos Poderes, entendido esse princípio como um sistema de freios e contrapesos, que serve de fundamento para a existência do controle do Poder Judiciário sobre os atos emanados da Administração Pública. Por outro lado, é evidente que esse controle não pode ocorrer sem que haja limitações ao Poder Judiciário. Para tanto, necessita-se perquirir conceitos e princípios da Administração Publica. 2.3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A Administração Pública é a estrutura executiva do Estado para consecução de seus objetivos. Por isso que o conceito de Administração Pública relaciona-se com o conceito de Governo, porém dele difere essencialmente. Para Silva (2006, p. 107) a vontade do Estado é vontade humana expressa por meio de seus órgãos, os quais podem ser classificados em supremos (constitucionais) ou dependentes (administrativos). Os órgãos supremos possuem a incumbência do exercício do poder político, cujo conjunto se denomina Governo ou órgãos governamentais. Os órgãos dependentes não possuem a incumbência do exercício do poder político, desempenham as suas funções através de agentes públicos em plano hierárquico inferior, portanto são dependentes do Governo e seu conjunto se denomina Administração Pública ou órgãos administrativos. 2.4 ATO ADMINISTRATIVO 12 Segundo Meirelles (2001, p. 59) a Administração Pública não pratica atos de governo, haja vista estes serematos resultantes do exercício de faculdade de opção política, mas tão-somente pratica atos de execução, com maior ou menor autonomia funcional, segundo a competência do órgão e de seus agentes. Esses atos são os chamados atos administrativos. Adverte ainda o autor que, apesar de a Administração Pública ser mero instrumental de que dispõe o Estado para por em prática as opções políticas do Governo, tem ainda a Administração Pública poder de decisão, porém somente na área de sua atribuição e dentro dos limites legais de competência executiva. No exercício do poder administrativo, o agente público se pauta pelos princípios que regem a matéria. A Constituição Federal (1988) dedica o Capítulo VII do Título III à Administração Pública e explicita no artigo 37 os princípios que regem a matéria. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] A Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, explicita outros tantos princípios no artigo 2º. Art. 2 o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. (BRASIL, 1988). Desses princípios faz-se mister, para fundamentar os limites do controle jurisdicional do ato administrativo, confrontar principalmente o princípio da supremacia do interesse público com o da legalidade. 2.5 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E LEGALIDADE Segundo Di Pietro (2001, p. 217), o direito administrativo nasceu e desenvolveu-se baseado na oposição da supremacia do interesse público em face da legalidade. É a bipolaridade do direito administrativo. Se por um lado os direitos individuais devem ser protegidos diante do Estado, razão que serve de fundamento ao princípio da legalidade, por outro a Administração Pública deve possuir 13 prerrogativas e privilégios para alcançar a satisfação de interesses públicos, seja para limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do bem-estar coletivo (poder de polícia), quer para a prestação de serviços públicos. Se por um lado protege-se a liberdade do indivíduo impondo restrições à Administração Pública, por outro lado resguarda-se a autoridade da Administração Pública conferindo-lhe prerrogativas. Consequentemente, para proteger a liberdade do indivíduo, sujeita-se a autoridade pública à observância da lei. É a aplicação à Administração Pública, do princípio da legalidade. Da mesma forma, para resguardar a autoridade da Administração Pública, necessária à consecução de seus fins, são-lhe conferidos prerrogativas e privilégios que assegura a supremacia do interesse público sobre o particular. Nesse diapasão, Meirelles (2001, p. 80) afirma que os fins da Administração Pública resumem-se num único objeto, qual seja, o bem comum da coletividade administrada. Assim, o autor alerta que do princípio da supremacia do interesse público decorre a indisponibilidade do interesse público, entendendo que a Administração Pública não pode dispor nem renunciar a poderes que a lei lhe deu para exercer a tutela do interesse público, pois o titular é o Estado e somente ele poderá autorizar a Administração Pública a dispor ou renunciar de tal interesse. Aduz ainda o autor que, como consequência da indisponibilidade do interesse público, o poder do administrador público é insuscetível de renúncia pelo seu titular e, por isso, reveste-se ao mesmo tempo do caráter de dever para com a coletividade administrada. É o poder-dever de agir da autoridade pública que o deve exercer na conformidade do princípio da legalidade. Segundo Di Pietro (2001, p. 60) no direito brasileiro o princípio da legalidade é imposto à Administração Pública no artigo 37, caput, da Constituição Federal, e completa-se com a regra do artigo 5º, inciso II, segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Observa a autora que o primeiro dispositivo não define o conteúdo do princípio, porém o segundo dispositivo tem um conteúdo muito preciso, que impede a Administração de impor obrigações ou proibições por iniciativa própria, isto é, para fazê-lo depende de fundamento legal. Meirelles (2001, p. 82) afirma que o princípio insculpido no caput do artigo 37, da Constituição Federal, significa que o administrador público está, em toda a 14 sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido. Essa afirmação dá ensejo à máxima de que a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite, enquanto o particular pode fazer tudo que a lei não proíbe. Infere-se da assertiva do autor que o princípio da legalidade deve então ser visto no sentido amplo do conceito. De fato, a Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999, estabelece no inciso I do parágrafo único do artigo 2º que nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de atuação do administrador público conforme a lei e o Direito, isto é, legalidade significa observar não só a lei no sentido estrito, mas também a conformação da atuação do administrador público aos princípios administrativos. A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inc. I do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784/99. Com isso, fica evidente que, além da atuação conforme à lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos. (MEIRELLES, p. 82). Mais adiante Meirelles (2001, p. 83) apresenta o conceito de legitimidade: Além de atender à legalidade, o ato do administrador público deve conformar-se com a moralidade e a finalidade administrativas para dar plena legitimidade à sua atuação. Administração legítima só é aquela que se reveste de legalidade e probidade administrativas, no sentido de que tanto atende às exigências da lei como se conforma com os preceitos da instituição pública. Infringindo as normas legais ou os princípios, o agente público vicia o ato administrativo de ilegitimidade e tem por consequência sujeitá-lo à anulação pela própria Administração Pública ou pelo Poder Judiciário. 2.6 JURISDIÇÃO ÚNICA Além do princípio constitucional da separação de poderes, o controle jurisdicional do ato administrativo tem fundamento também no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, o qual estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos”, conhecido como princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário. Em decorrência também da separação de poderes e da inafastabilidade do Poder Judiciário é que se afirma que o Brasil adotou o sistema de jurisdição única. O outro sistema conhecido é denominado contencioso administrativo. Neste, somente 15 a Administração Pública pode rever seus atos e decidir de forma definitiva, fazendo destarte coisa julgada, vedada a interferência do Poder Judiciário. Diferentemente do contencioso administrativo, na jurisdição única, todos os interesses, quer do administrado, quer da Administração Pública, se sujeitam a uma única jurisdição definitiva: a do Poder Judiciário. Meirelles (2001, p. 52) esclarece que isso não significa que se negue à Administração Pública o poder de decisão, o que se lhe nega é ocaráter de decisão definitiva, a qual é própria das decisões judiciais que fazem coisa julgada. 2.7 LIMITAÇÕES AO CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO O controle jurisdicional do ato administrativo tem por limitação a legalidade e a legitimidade do ato administrativo, sendo vedado ao Poder Judiciário pronunciar-se sobre o mérito, substituindo-se à Administração Pública, em face do fundamento constitucional da separação de Poderes. A competência do Judiciário para a revisão de atos administrativos restringe-se ao controle da legalidade e da legitimidade do ato impugnado. Por legalidade entende-se a conformidade do ato com a norma que o rege; por legitimidade entende-se a conformidade com os princípios básicos da Administração Pública, em especial os do interesse público, da moralidade, da finalidade e da razoabilidade, indissociáveis de toda atividade pública. [...]. O que não se permite ao Judiciário é pronunciar-se sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato, porque, se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração, e não de jurisdição judicial. (MEIRELLES, 2001, p. 666). Porém, em relação ao mérito do ato administrativo, Meirelles (2001, p. 146) observa inicialmente que é um conceito de difícil fixação, porém não deixa o autor de esclarecer que se consubstancia na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração Pública, porém somente quando está autorizada a decidir sobre oportunidade, conveniência ou justiça do ato a realizar. Neste caso, está o administrador público exercendo o poder discricionário ao valorar motivos e escolhendo o objeto do ato a ser produzido. Em contraposição, há atos vinculados em que a Administração Pública, ao atuar, tão-somente atende imposições legais para produzi-los. Nas lições de Di Pietro (2001, p. 66): [...] hipótese em que se diz que o poder da Administração é vinculado, porque a lei não deixa opções; ela estabelece que, diante de determinados pressupostos, a Administração deve agir de tal ou qual forma. [...]. Em outras hipóteses, o regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre 16 várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é baseada em critérios de mérito [...]. Mais restrito quanto à margem de liberdade de decisão, Mello (2006, p. 48) conceitua discricionariedade ressaltando que a adoção da solução pelo administrador público deve ser baseada também em critérios de razoabilidade para consecução da finalidade legal: Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente. Então, no exercício do poder discricionário o administrador público, diante das soluções possíveis, todas válidas perante o direito, tem o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal. Mello (2006, p. 15) afirma que há na verdade um dever discricionário: Tomando-se consciência deste fato, deste caráter funcional da atividade administrativa (por isto se diz “função administrativa”), desta necessária submissão da administração à lei, percebe-se que o chamado “poder discricionário” tem que ser simplesmente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal. Só assim poderá ser corretamente entendido e dimensionado, compreendendo-se, então, que o que há é um dever discricionário, antes que um “poder discricionário”. Uma vez assentido que os chamados poderes são meros veículos instrumentais para propiciar ao obrigado cumprir o seu dever, ter-se-á da discricionariedade, provavelmente, uma visão totalmente distinta daquela que habitualmente se tem. Observa o autor que, em face do dever de adotar a solução mais adequada, o Poder Judiciário deve apreciar o ato administrativo, com vistas ao seu controle, ainda que haja discricionariedade outorgada pela lei ao administrado público: Em suma: casos haverá em que, para além de qualquer dúvida, qualquer sujeito em uma intelecção normal, razoável (e assim, também a fortiori, o Judiciário) poderá concluir que, apesar da discrição outorgada pela norma, em face de seus termos e da finalidade que anima, dada situação ocorrida não comportava senão uma determinada providência, ou então que, mesmo comportando mais de uma, certamente não era aquela que foi tomada. (MELLO, 2006, p. 41). O autor ressalta ainda que o Poder Judiciário não deve adentrar questão de mérito do ato administrativo, pois, neste caso, se apresentam ao administrador mais de uma solução que atendem a finalidade legal e, consequentemente torna-se impossível ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada: 17 Sem dúvida, perante inúmeros casos concretos (a maioria, possivelmente) caberão dúvidas sobre a decisão ideal e opiniões divergentes poderão irromper, apresentando-se como razoáveis e perfeitamente admissíveis. Nestas hipóteses a decisão do administrador haverá de ser tida como inatacável, pois corresponderá a uma opção de mérito; [...]. (MELLO, 2006, p. 40). Quanto ao conceito de mérito, aduz o autor que: Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada. (MELLO, 2006, p. 38). Nesse diapasão, Meirelles (2001, p. 666) afirma que o controle jurisdicional do ato administrativo é exato para os atos vinculados ou regrados, porém não é menos aplicável aos atos discricionários da Administração Pública. Nos atos discricionários, aduz o autor, há maior liberdade no modo e momento de sua prática, porém essa característica não fornece ao agente público o direito de agir arbitrariamente, seja atuando além de sua competência, seja atuando contrariamente a princípios administrativos, porquanto, nesses casos, está caracterizado o abuso de poder. O abuso de poder é conceituado por Meirelles (2001, p. 102) em termos de ocorrência quando a autoridade, embora competente para praticar o ato administrativo, ultrapassa o limite de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas. Para fins didáticos, o abuso de poder reparte-se respectivamente em duas espécies: excesso de poder e desvio da finalidade. Assim é que o Poder Judiciário pode anular não só o ato praticado por agente público fora de sua competência, ou além dela, pois neste caso o agente incorre no excesso de poder, como também o ato que desatenda aos princípios administrativos, pois neste caso o agente incorre no desvio do poder. 2.7.1 Conceito jurídico indeterminado Vezes há que o administrador público se depara com textos legais ou regulamentares nos quais a hipótese da norma (pressuposto de direito) contem noções vagas expressos em vocábulos plurissignificativos, de significados indeterminados, imprecisos, fluidos, que possibilitam a apreciação do fatoconcreto 18 (pressuposto de fato) segundo valoração da própria autoridade competente para emanar o ato administrativo. São os conceitos jurídicos indeterminados ou conceitos imprecisos. A expressão conceito jurídico indeterminado, embora bastante criticável, ficou consagrada na doutrina de vários países, como Alemanha, Itália, Portugal, Espanha e, mais recentemente, no Brasil, sendo empregada para designar vocábulos ou expressões que não têm um sentido preciso, objetivo, determinado, mas que são encontrados com grande frequência nas normas jurídicas dos vários ramos do direito. Fala-se em boa fé, bem comum, conduta irrepreensível, pena adequada, interesse público, ordem pública, notório saber, notória especialização, moralidade, razoabilidade e tantos outros. (DI PIETRO, 2001, p. 97) O conceito jurídico indeterminado possui características de significação abstrata que varia no tempo e no espaço de acordo com as necessidades coletivas, bem como deve ser perquirida pelo administrador público, seja pela adequada interpretação, quando possível extrair determinada significação da norma legal ou regulamentar, seja pelo exercício do poder discricionário, quando mais de uma significação for possível de ser extraída da norma, desde que sempre pautado pelos princípios administrativos, em especial a razoabilidade. Em suma muitas vezes – exatamente porque o conceito é fluido – é impossível contestar a possibilidade de conviverem intelecções diferentes, sem que, por isto, uma delas tenha havida como incorreta, desde que quaisquer delas sejam igualmente razoáveis. (MELLO, 2006, p. 23). Seja o ato administrativo produzido por meio de interpretação ou por meio de discricionariedade do agente público quando diante da norma contendo conceito jurídico indeterminado, é evidente que este ato está sujeito ao controle do Poder Judiciário para que este verifique se a atuação do agente se pautou pela legalidade e pelos princípios administrativos, isto é, se o agente não cometeu desvio de finalidade na subsunção do caso concreto à norma. Induvidosamente, havendo litígio sobre a correta subsunção do caso concreto a um suposto legal descrito mediante conceito indeterminado, caberá ao Judiciário conferir se a Administração, ao aplicar a regra, se manteve no campo significativo de sua aplicação ou se o desconheceu. Verificado, entretanto, que a Administração se firmou em uma intelecção perfeitamente cabível, ou seja, comportada pelo conceito ante o caso concreto – ainda que outra também pudesse sê-lo – desassistirá ao Judiciário assumir est’outra, substituindo o juízo administrativo pelo seu próprio. (MELLO, 2006, p. 24). Observa-se que os conceitos jurídicos indeterminados são utilizados pelo legislador na concepção dos pressupostos de direito por ser impossível prever todos os pressupostos de fato que possam subsumir aos primeiros. Assim é que o legislador atribui ao administrador público, por meio de normas contendo conceitos 19 jurídicos indeterminados, a incumbência de interpretar esses conceitos segundo entendimento aceito pela coletividade, bem como, no caso de mais de uma possibilidade possível e válida para o direito, utilizar os critérios de oportunidade e conveniência, à luz da razoabilidade, e desta forma encontrar a solução mais adequada e atender às necessidades coletivas as quais estão em constante evolução. Em relação ao ato administrativo disciplinar, encontram-se conceitos jurídicos indeterminados nas hipóteses das normas que descrevem condutas ilícitas do direito administrativo disciplinar sancionador, tanto nos regulamentos disciplinares de servidores civis quanto nos regulamentos disciplinares militares. Exige-se, nestes casos, especial atenção da autoridade competente para apurar a transgressão disciplinar e aplicar a correspondente sanção, pois deve considerar todas as razoáveis possibilidades de interpretação do conceito jurídico indeterminado e subsumir o fato à norma. 2.7.2 Princípios Di Pietro (2001, p. 233) cita os princípios da razoabilidade, moralidade administrativa, princípios gerais do direito e supremacia do interesse público como princípios de origem pretoriana que foram acolhidos pela Constituição Federal e que ampliam o controle jurisdicional do ato administrativo. O princípio da razoabilidade [...] permite ao Poder Judiciário invalidar, por inconstitucionalidade, leis e atos administrativos cujo conteúdo contenha discriminações injustificadas ou medidas que não guardem relação ou proporção com os fins objetivados pelo legislador. [...] O princípio da moralidade administrativa [...] exige da Administração Pública comportamentos compatíveis com o interesse público que lhe cumpre tutelar, voltados para os ideais expressos, agora, de forma muito nítida, no preâmbulo da Constituição; a moralidade tem que estar não só na intenção do agente, mas também e principalmente no próprio objeto do ato e na interpretação que da lei faça o Administrador para aplica-la aos casos concretos. (DI PIETRO, 2001, p. 233). Quanto aos princípios gerais do direito, positivados ou não, a autora aduz que há casos em que estes princípios podem reduzir a margem de opções do administrador público no exercício do poder discricionário citando, como exemplo, a aplicação do princípio do devido processo legal. 20 Quanto ao princípio da supremacia do interesse público, já abordado anteriormente, a autora aduz que a Administração Pública só pode atender aos interesses dos entes que exercem função administrativa quando não conflitarem com os interesses da coletividade. Esses princípios exigem que a ação do Poder Judiciário não se limite ao exame puramente formal da lei e do ato administrativo, mas que se amplie ao exame da atuação da autoridade administrativa conforme a lei e o Direito. 21 3 PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR O objetivo deste capítulo é apresentar os princípios da hierarquia e da disciplina, bem como descrever o processo disciplinar militar no âmbito do Exército Brasileiro. 3.1 HIERARQUIA E DISCIPLINA Os princípios basilares das Instituições Militares são a hierarquia e a disciplina assim expressas na Constituição Federal (1988, p. 99): Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, traz as definições de hierarquia militar e disciplina: Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico. § 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade. § 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo. O Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002, que aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4 ou, em sua sigla mais utilizada, RDE)e dá outras providências, repete literalmente as definições estabelecidas no Estatuto dos Militares e acrescenta que são manifestações essenciais de disciplina a correção de atitudes, a obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos, a dedicação integral ao serviço e a colaboração espontânea para a disciplina coletiva e a eficiência das Forças Armadas. 3.2 DESCRIÇÃO DO PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR 22 O processo disciplinar militar é espécie do gênero processo administrativo, porém reveste-se de características próprias decorrentes da finalidade de apuração de transgressão disciplinar e do âmbito de aplicação da punição disciplinar, qual seja, âmbito militar. A Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabelece no artigo 69 que os processos administrativos específicos, e o processo disciplinar militar é específico pela sua finalidade e pelo seu âmbito de aplicação, continuarão a reger- se por lei própria, aplicando-se ao processo específico apenas subsidiariamente os preceitos daquela Lei. O arcabouço legal que fundamenta o processo disciplinar militar é a Constituição Federal, o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar do Exército. A Constituição Federal (1988, p. 19), no artigo 5º, inciso LXI, ao preconizar que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, ressalva os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, e delega aos diplomas legais a incumbência de defini-los. No caso da incumbência de definição das transgressões militares, o diploma legal primeiro é a Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Porém, observa-se no artigo 42 que o Estatuto, por sua vez, delega essa incumbência a outros diplomas legais, no momento em que preconiza que a violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou regulamentação específicas. Observando mais além, percebe-se que o Estatuto delega a incumbência de definir, colocados em termos de especificar e classificar, as transgressões disciplinares militares aos regulamentos disciplinares das Forças Armadas. Art. 47. Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares. 23 Da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal verifica-se que o estabelecido no artigo 47 do Estatuto dos Militares suscitou questionamentos sobre a constitucionalidade do RDE, porém a questão não foi julgada no mérito. EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto no 4.346/2002 e seu Anexo I, que estabelecem o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro e versam sobre as transgressões disciplinares. 2. Alegada violação ao art. 5o, LXI, da Constituição Federal. 3. Voto vencido (Rel. Min. Marco Aurélio): a expressão ("definidos em lei") contida no art. 5o, LXI, refere-se propriamente a crimes militares. 4. A Lei no 6.880/1980 que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, no seu art. 47, delegou ao Chefe do Poder Executivo a competência para regulamentar transgressões militares. Lei recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Improcedência da presente ação. 5. Voto vencedor (divergência iniciada pelo Min. Gilmar Mendes): cabe ao requerente demonstrar, no mérito, cada um dos casos de violação. Incabível a análise tão-somente do vício formal alegado a partir da formulação vaga contida na ADI. 6. Ausência de exatidão na formulação da ADI quanto às disposições e normas violadoras deste regime de reserva legal estrita. 7. Dada a ausência de indicação pelo decreto e, sobretudo, pelo Anexo, penalidade específica para as transgressões (a serem graduadas, no caso concreto) não é possível cotejar eventuais vícios de constitucionalidade com relação a cada uma de suas disposições. Ainda que as infrações estivessem enunciadas na lei, estas deveriam ser devidamente atacadas na inicial. 8. Não conhecimento da ADI na forma do artigo 3º da Lei no 9.868/1999. 9. Ação Direta de Inconstitucionalidade não- conhecida. (ADI 3340, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2005, DJ 09-03-2007 PP-00025 EMENT VOL-02267-01 PP-00089) Assim sendo, no artigo 1º o RDE estabelece as finalidades daquele regulamento disciplinar, em consonância com o mandamento legal. Art. 1 o O Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) tem por finalidade especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas. No artigo 2º o RDE estabelece o âmbito de aplicação de suas disposições regulamentares. Art. 2 o Estão sujeitos a este Regulamento os militares do Exército na ativa, na reserva remunerada e os reformados. § 1 o Os oficiais-generais nomeados ministros do Superior Tribunal Militar são regidos por legislação específica. § 2 o O militar agregado fica sujeito às obrigações disciplinares concernentes às suas relações com militares e autoridades civis. Quanto à finalidade de especificar as transgressões disciplinares (e também de classificar, conforme ordena o Estatuto), o RDE inicialmente conceitua o que é transgressão disciplinar no artigo 14. Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à etica, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação 24 elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. Posteriormente, no artigo 15, o RDE especifica as transgressões disciplinares como sendo as ações elencadas no Anexo I daquele Regulamento. Quanto à finalidade de estabelecer normas relativas a punições disciplinares, o RDE estabelece em vários de seus dispositivos o procedimento a ser seguido quando da instauração de um processo administrativo disciplinar. Depreende-se dos dispositivos a preocupação do legislador em balizar o RDE nos princípios institucionais da hierarquia e da disciplina, nos princípios da Administração Publica, bem como garantir ao suposto transgressor todas as oportunidades de exercer e seu direito de contraditório e ampla defesa. A notícia de ocorrência de transgressão disciplinar pode ser dada por todo militar que tiver conhecimento de fato contrário à disciplina. Este deverá participá-lo ao seu chefe imediato, por meio de documento escrito claro, preciso e conciso, qualificar os envolvidos e as testemunhas e discriminar bens e valores. O local, data e hora da ocorrência devem ser precisos e as circunstâncias que envolverem o fato devem ser caracterizadas sem que sejam tecidos comentários ou emitidas opiniões pessoais. A autoridade, a quem a parte disciplinar é dirigida, deve dar a solução no prazo máximo de oito dias úteis, devendo, obrigatoriamente, ouvir as pessoas envolvidas, obedecidas as demais prescrições regulamentares. Caso não seja possível solucionar a questão no prazo de oito dias úteis, o motivo disto deverá ser publicado em boletim e, neste caso, o prazo será prorrogado para trinta dias úteis. Ao fim do prazo a autoridade, se for a competente para tal, deve decidir pela instauração do processo disciplinar ou não. Se não for a autoridade competentepara tal, deve encaminhar ao superior imediato. Se não for o caso de instauração de processo disciplinar, deve verificar ainda se o fato enseja a instauração de inquérito ou sindicância. Quanto à competência para a aplicação, o RDE estabelece que é definida pelo cargo e não pelo grau hierárquico. Art. 10. A competência para aplicar as punições disciplinares é definida pelo cargo e não pelo grau hierárquico, sendo competente para aplicá-las: I - o Comandante do Exército, a todos aqueles que estiverem sujeitos a este Regulamento; e II - aos que estiverem subordinados às seguintes autoridades ou servirem sob seus comandos, chefia ou direção: 25 a) Chefe do Estado-Maior do Exército, dos órgãos de direção setorial e de assessoramento, comandantes militares de área e demais ocupantes de cargos privativos de oficial-general; b) chefes de estado-maior, chefes de gabinete, comandantes de unidade, demais comandantes cujos cargos sejam privativos de oficiais superiores e comandantes das demais Organizações Militares - OM com autonomia administrativa; c) subchefes de estado-maior, comandantes de unidade incorporada, chefes de divisão, seção, escalão regional, serviço e assessoria; ajudantes- gerais, subcomandantes e subdiretores; e d) comandantes das demais subunidades ou de elementos destacados com efetivo menor que subunidade. Uma vez decidindo a autoridade competente pela instauração do processo disciplinar, ela deverá seguir o procedimento preconizado pelo RDE, descrito a seguir. Este procedimento foi concebido pelo legislador a fim de padronizar a apuração de transgressões disciplinares, tendo em vista assegurar ao suposto transgressor o direito do contraditório e da ampla defesa, bem como auxiliar a autoridade competente na tomada de decisão justa, serena e imparcial, referente à aplicação de punição disciplinar. Art. 35. O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina e que tem em vista o benefício educativo do punido e da coletividade. § 1º Nenhuma punição disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido pela autoridade competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos devidamente apurados. § 2º Para fins de ampla defesa e contraditório, são direitos do militar: I - ter conhecimento e acompanhar todos os atos de apuração, julgamento, aplicação e cumprimento da punição disciplinar, de acordo com os procedimentos adequados para cada situação; II - ser ouvido; III - produzir provas; IV - obter cópias de documentos necessários à defesa; V - ter oportunidade, no momento adequado, de contrapor-se às acusações que lhe são imputadas; VI - utilizar-se dos recursos cabíveis, segundo a legislação; VII - adotar outras medidas necessárias ao esclarecimento dos fatos; e VIII - ser informado de decisão que fundamente, de forma objetiva e direta, o eventual não-acolhimento de alegações formuladas ou de provas apresentadas. § 3º O militar poderá ser preso disciplinarmente, por prazo que não ultrapasse setenta e duas horas, se necessário para a preservação do decoro da classe ou houver necessidade de pronta intervenção. O procedimento se inicia com a entrega do Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar (FATD), conforme modelo previsto no RDE, ao militar arrolado como suposto transgressor. A partir de então o militar arrolado terá três dias 26 úteis para apresentar por escrito (de próprio punho ou impresso) e assinado, suas alegações de defesa. Este prazo para a apresentação das alegações de defesa pode ser prorrogado justificadamente conforme discricionariedade da autoridade competente, em caráter excepcional, sem comprometer a eficácia e a oportunidade da ação disciplinar. Pode ser concedido, ainda, pela mesma autoridade, prazo para que o interessado possa produzir as provas que julgar necessárias à sua defesa. As justificativas ou razões de defesa serão apresentadas por escrito, de próprio punho ou impresso, de forma sucinta, objetiva e clara, sem conter comentários ou opiniões pessoais e com menção de eventuais testemunhas. Se desejar, o suposto transgressor poderá anexar documentos que comprovem suas razões de defesa e aporá sua assinatura e seus dados de identificação. Pode ainda ocorrer de o suposto transgressor não desejar apresentar razões defesa. Neste caso, deverá manifestar esta intenção, de próprio punho. Se o militar não apresentar, dentro do prazo, as razões de defesa e não manifestar a intenção de não apresenta-las, a autoridade que estiver conduzindo a apuração do fato certificará no FATD, juntamente com duas testemunhas, que o prazo para apresentação de defesa foi concedido, mas o militar permaneceu inerte. Cumpridas as etapas anteriores, a autoridade competente para aplicar a punição concluirá pela procedência ou não das acusações e das alegações de defesa. Uma vez a autoridade competente concluindo pela procedência das acusações, ela julgará a transgressão com base em análise que considere a pessoa do transgressor, as causas que a determinaram, a natureza dos fatos ou atos que a envolveram e as consequências que dela possam advir. Para tanto, o RDE elenca causas que justificam a falta e circunstâncias que atenuam ou a agravam a pena que devem ser levadas em conta no julgamento. Art. 18. Haverá causa de justificação quando a transgressão for cometida: I - na prática de ação meritória ou no interesse do serviço, da ordem ou do sossego público; II - em legítima defesa, própria ou de outrem; III - em obediência a ordem superior; IV - para compelir o subordinado a cumprir rigorosamente o seu dever, em caso de perigo, necessidade urgente, calamidade pública, manutenção da ordem e da disciplina; V - por motivo de força maior, plenamente comprovado; e VI - por ignorância, plenamente comprovada, desde que não atente contra os sentimentos normais de patriotismo, humanidade e probidade. Parágrafo único. Não haverá punição quando for reconhecida qualquer causa de justificação. Art. 19. São circunstâncias atenuantes: 27 I - o bom comportamento; II - a relevância de serviços prestados; III - ter sido a transgressão cometida para evitar mal maior; IV - ter sido a transgressão cometida em defesa própria, de seus direitos ou de outrem, não se configurando causa de justificação; e V - a falta de prática do serviço. Art. 20. São circunstâncias agravantes: I - o mau comportamento; II - a prática simultânea ou conexão de duas ou mais transgressões; III - a reincidência de transgressão, mesmo que a punição anterior tenha sido uma advertência; IV - o conluio de duas ou mais pessoas; V - ter o transgressor abusado de sua autoridade hierárquica ou funcional; e VI - ter praticado a transgressão: a) durante a execução de serviço; b) em presença de subordinado; c) com premeditação; d) em presença de tropa; e e) em presença de público. Segundo esses critérios e desde que não haja causa de justificação, a autoridade a qual couber aplicar a pena deve classificar a transgressão disciplinar em leve, média e grave, sendo que será sempre classificada como "grave" a transgressão disciplinar que constituir ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe. Art. 6 o Para efeito deste Regulamento, deve-se, ainda, considerar: I - honra pessoal: sentimento de dignidade própria, como o apreço e o respeito de que é objeto ou se torna merecedor o militar, perante seus superiores, pares e subordinados; II - pundonor militar: deverde o militar pautar a sua conduta como a de um profissional correto. Exige dele, em qualquer ocasião, alto padrão de comportamento ético que refletirá no seu desempenho perante a Instituição a que serve e no grau de respeito que lhe é devido; e III - decoro da classe: valor moral e social da Instituição. Ele representa o conceito social dos militares que a compõem e não subsiste sem esse. O RDE acolhe a tese de que a pena tem caráter de resposta institucional à sociedade, quanto à preservação dos preceitos constitucionais da hierarquia militar e disciplina castrense, por meio da punição ao transgressor disciplinar (caráter repreensivo da pena). Observa-se também que o RDE tem como crença a recuperação disciplinar do transgressor (caráter educativo da pena) e a prevenção contra nova ocorrência do fato (caráter preventivo da pena), na medida em que preconiza que a punição disciplinar deve ter em vista o benefício educativo ao punido e à coletividade a que ele pertence. Nesse diapasão, uma vez classificada a transgressão, a autoridade competente deve estabelecer a punição disciplinar ao transgressor dentre as que estão sujeitos os militares, quais sejam, em ordem de gravidade crescente: a 28 advertência, o impedimento disciplinar, a repreensão, a detenção disciplinar, a prisão disciplinar, o licenciamento e a exclusão a bem da disciplina. Advertência é a forma mais branda de punir, consistindo em admoestação feita verbalmente ao transgressor, em caráter reservado ou ostensivo. Impedimento disciplinar é a obrigação de o transgressor não se afastar da OM, sem prejuízo de qualquer serviço que lhe competir dentro da unidade em que serve. Repreensão é a censura enérgica ao transgressor, feita por escrito e publicada em boletim interno. Detenção disciplinar é o cerceamento da liberdade do punido disciplinarmente, o qual deve permanecer no alojamento da subunidade a que pertencer ou em local que lhe for determinado pela autoridade que aplicar a punição disciplinar. Prisão disciplinar consiste na obrigação de o punido disciplinarmente permanecer em local próprio e designado para tal. Licenciamento e exclusão a bem da disciplina consistem no afastamento, ex officio, do militar das fileiras do Exército, conforme prescrito no Estatuto dos Militares. Para tanto, a autoridade competente deve pautar-se nas normas de dosimetria da pena preconizadas pelo RDE, dentre as quais a punição disciplinar deve ser proporcional à gravidade da transgressão, dentro de determinados limites: para a transgressão leve, de advertência até dez dias de impedimento disciplinar, inclusive; para a transgressão média, de repreensão até a detenção disciplinar; e para a transgressão grave, de prisão disciplinar até o licenciamento ou exclusão a bem da disciplina. O RDE estabelece que as punições disciplinares de detenção e prisão disciplinar não podem ultrapassar trinta dias e a de impedimento disciplinar, dez dias. O RDE estabelece ainda, no Anexo III, a punição disciplinar máxima que cada autoridade pode aplicar ao transgressor. Observa-se que a aplicação da punição classificada como "prisão disciplinar" somente pode ser efetuada pelo Comandante do Exército ou comandante, chefe ou diretor de OM. Diante de todas essas normas para dosar a punição que será imposta ao transgressor, verifica-se que o RDE relaciona as transgressões disciplinares no Anexo I sem fazer menção à sua gravidade, deixando, portanto, totalmente à autoridade competente julgar, abstrata e subjetivamente, se a descrição se refere a uma transgressão leve, média ou grave. 29 Após ouvir o militar e julgar suas justificativas ou razões de defesa, a autoridade competente lavrará no FATD, de próprio punho, sua decisão, a qual será publicada em Boletim Interno, encerrando o processo de apuração. Uma vez distribuído o Boletim Interno da OM a que pertence o transgressor, publicando a aplicação da punição disciplinar e especificando as datas de início e término, dar-se-á o início do cumprimento de punição disciplinar. Nenhum militar deve ser recolhido ao local de cumprimento da punição disciplinar antes da distribuição do boletim que publicar a nota de punição. No caso das punições disciplinares que cerceiam a liberdade do transgressor, a contagem do tempo de cumprimento da punição disciplinar tem início no momento em que o punido for impedido, detido ou recolhido à prisão e termina quando for posto em liberdade. O militar poderá ser preso disciplinarmente, por prazo que não ultrapasse setenta e duas horas, se necessário para a preservação do decoro da classe ou houver necessidade de pronta intervenção. Contra o ato da autoridade competente que aplicar a punição disciplinar podem ser impetrados os recursos regulamentares peculiares do Exército. São recursos cabíveis segundo o RDE o pedido de reconsideração de ato e o recurso disciplinar. Ressalta-se que a tramitação destes recursos deve ter tratamento de urgência em todos os escalões. É também importante ressaltar que não só o militar que se julgue, mas também aquele que julgue subordinado seu, prejudicado, ofendido ou injustiçado por superior hierárquico tem o direito de recorrer na esfera disciplinar. Com relação ao recurso de reconsideração de ato, preconiza o RDE que: Art. 53. Cabe pedido de reconsideração de ato à autoridade que houver proferido a primeira decisão, não podendo ser renovado. § 1º Da decisão do Comandante do Exército só é admitido o pedido de reconsideração de ato a esta mesma autoridade. § 2º O militar punido tem o prazo de cinco dias úteis, contados a partir do dia imediato ao que tomar conhecimento, oficialmente, da publicação da decisão da autoridade em boletim interno, para requerer a reconsideração de ato. § 3º O requerimento com pedido de reconsideração de ato de que trata este artigo deverá ser decidido no prazo máximo de dez dias úteis, iniciado a partir do dia imediato ao do seu protocolo na OM de destino. § 4º O despacho exarado no requerimento de pedido de reconsideração de ato será publicado em boletim interno. Preconiza ainda o RDE, sobre o recurso de reconsideração de ato, que o militar que o requerer, se necessário para preservação da hierarquia e disciplina, 30 poderá ser afastado da subordinação direta da autoridade contra quem formulou o recurso disciplinar, até que seja ele julgado. Com relação ao recurso disciplinar, preconiza o RDE que: Art. 54. É facultado ao militar recorrer do indeferimento de pedido de reconsideração de ato e das decisões sobre os recursos disciplinares sucessivamente interpostos. § 1º O recurso disciplinar será dirigido, por intermédio de requerimento, à autoridade imediatamente superior à que tiver proferido a decisão e, sucessivamente, em escala ascendente, às demais autoridades, até o Comandante do Exército, observado o canal de comando da OM a que pertence o recorrente. § 2º O recurso disciplinar de que trata este artigo poderá ser apresentado no prazo de cinco dias úteis, a contar do dia imediato ao que tomar conhecimento oficialmente da decisão recorrida. § 3º O recurso disciplinar deverá: I - ser feito individualmente; II - tratar de caso específico; III - cingir-se aos fatos que o motivaram; e IV - fundamentar-se em argumentos, provas ou documentos comprobatórios e elucidativos. § 4º Nenhuma autoridade poderá deixar de encaminhar recurso disciplinar sob argumento de: I - não atendimento a formalidades previstas em instruções baixadas pelo Comandante do Exército; e II - inobservância dos incisos II, III e IV do § 3o. § 5º O recurso disciplinar será encaminhado por intermédio da autoridade a que estiver imediatamente subordinado o requerente,no prazo de três dias úteis a contar do dia seguinte ao do seu protocolo na OM, observando-se o canal de comando e o prazo acima mencionado até o destinatário final. § 6º A autoridade à qual for dirigido o recurso disciplinar deve solucioná-lo no prazo máximo de dez dias úteis a contar do dia seguinte ao do seu recebimento no protocolo, procedendo ou mandando proceder às averiguações necessárias para decidir a questão. § 7º A decisão do recurso disciplinar será publicada em boletim interno. Art. 55. Se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado. Parágrafo único. Se apenas em parte, a punição aplicada poderá ser atenuada, cancelada em caráter excepcional ou relevada. O RDE cita também que a instalação, o funcionamento e o julgamento dos Conselhos de Disciplina e Conselhos de Justificação obedecerão à legislação específica. O dispositivo refere-se a conselhos que, uma vez instalados, funcionam seguindo processo disciplinar próprio, com aspectos diferentes do processo disciplinar sumário, até então apresentado no RDE, para apuração de determinadas transgressões disciplinares e consequente julgamento do transgressor, desde que este também possua qualificações específicas, conforme a seguir discorrido. O Conselho de Disciplina, previsto no Decreto nº 71.500, de 5 de dezembro de 1972, é destinado a julgar da incapacidade do Guarda-Marinha, do Aspirante-a- Oficial e das demais praças das Forças Armadas com estabilidade assegurada, para 31 permanecerem na ativa, criando-lhes, ao mesmo tempo, condições para se defenderem. Este Conselho também pode ser aplicado ao Guarda-Marinha, ao Aspirante-a-Oficial e às demais praças das Forças Armadas, reformados ou na reserva remunerada, presumivelmente incapazes de permanecerem na situação de inatividade em que se encontram. Art . 2º É submetida a Conselho de Disciplina, " ex officio ", a praça referida no artigo 1º e seu parágrafo único. I - acusada oficialmente ou por qualquer meio lícito de comunicação social de ter: a) procedido incorretamente no desempenho do cargo; b) tido conduta irregular; ou c) praticado ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou decoro da classe; II - afastado do cargo, na forma do Estatuto dos Militares, por se tornar incompatível com o mesmo ou demonstrar incapacidade no exercício de funções militares a ele inerentes, salvo se o afastamento é decorrência de fatos que motivem sua submissão a processo; III - condenado por crime de natureza dolosa, não previsto na legislação especial concernente à segurança do Estado, em tribunal civil ou militar, a pena restritiva de liberdade individual até 2 (dois) anos, tão logo transite em julgado a sentença; ou IV - pertencente a partido político ou associação, suspensos ou dissolvidos por força de disposição legal ou decisão judicial, ou que exerçam atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional. Parágrafo único. É considerada entre os outros, para os efeitos deste decreto, pertencente a partido ou associação a que se refere este artigo a praça das Forças Armadas que, ostensiva ou clandestinamente: a) estiver inscrita como seu membro; b) prestar serviços ou angariar valores em seu benefício; c) realizar propaganda de suas doutrinas; ou d) colaborar, por qualquer forma, mas sempre de modo inequívoco ou doloso, em suas atividades. Conselho de Justificação, previsto na Lei nº 5.836, de 5 de dezembro de1972, é destinado a julgar, através de processo especial, da incapacidade do oficial das Forças Armadas - militar de carreira - para permanecer na ativa, criando- lhe, ao mesmo tempo, condições para se justificar. Este Conselho também pode ser aplicado ao oficial da reserva remunerada ou reformado, presumivelmente incapaz de permanecer na situação de inatividade em que se encontra. Art. 2º É submetido a Conselho de Justificação, a pedido ou "ex officio" o oficial das forças armadas: I - acusado oficialmente ou por qualquer meio lícito de comunicação social de ter: a) procedido incorretamente no desempenho do cargo; b) tido conduta irregular; ou c) praticado ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe; II - considerado não habilitado para o acesso, em caráter provisório, no momento em que venha a ser objeto de apreciação para ingresso em Quadro de Acesso ou Lista de Escolha; 32 III - afastado do cargo, na forma do Estatuto dos Militares por se tornar incompatível com o mesmo ou demonstrar incapacidade no exercício de funções militares a ele inerentes, salvo se o afastamento é decorrência de fatos que motivem sua submissão a processo; IV - condenado por crime de natureza dolosa, não previsto na legislação especial concernente a segurança do Estado, em Tribunal civil ou militar, a pena restrita de liberdade individual até 2 (dois) anos, tão logo transite em julgado a sentença; ou V - pertencente a partido político ou associação, suspensos ou dissolvidos por força de disposição legal ou decisão judicial, ou que exerçam atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional. Parágrafo único. É considerado, entre outros, para os efeitos desta Lei, pertencente a partido ou associação a que se refere este artigo o oficial das Forças Armadas que, ostensiva ou clandestinamente: a) estiver inscrito como seu membro; b) prestar serviços ou angariar valores em seu benefício; c) realizar propaganda de suas doutrinas; ou d) colaborar, por qualquer forma, mas sempre de modo inequívoco ou doloso, em suas atividades. Observa-se que a Constituição Federal estabelece no artigo 142, inciso VI, que o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra. Em consonância com o mandamento constitucional, a Lei nº 5.836, de 5 de dezembro de1972, aponta o Superior Tribunal Militar como sendo o tribunal competente para julgar o oficial culpado e declará-lo indigno do oficialato ou com ele incompatível, determinando a perda de seu posto e patente. É importante ressaltar que no processo de apuração e julgamento das transgressões disciplinares por meio do Conselho de Disciplina e pelo Conselho de Justificação, tal como no processo disciplinar sumário, anteriormente apresentado no RDE, deve ser garantida ao suposto transgressor a oportunidade de exercer o direito do contraditório e da ampla defesa, bem como ser assegurada a observância dos demais princípios norteadores da Administração Pública e das Instituições Militares. 33 4 HABEAS CORPUS O objetivo deste capítulo é apresentar aspectos relacionados ao habeas corpus, haja vista que, apesar da vedação constitucional insculpida no artigo 142, parágrafo 2º, da Constituição Federal, o qual prescreve que “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”, é garantia constitucional e, portanto, constitui meio pelo qual o militar transgressor requer perante o Poder Judiciário a prestação jurisdicional quando não se conforma com a punição disciplinar, cerceadora de sua liberdade de locomoção, aplicada por seu superior hierárquico. Constitui assim uma via de controle jurisdicional do ato administrativo e servirá, no presente trabalho, para se analisar os limites do indigitado controle sobre os atos da autoridade militar de caráter disciplinar punitivo. 4.1 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL A Constituição Federal dedica o Titulo II aos direitos e garantias fundamentais e, neste título, o Capítulo I é dedicado aos direitos e deveres individuais e coletivos. Neste
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