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1 XVII ENDIPE - Simpósio – Eixo Temático 1.1.3 -‘SABERES DA PESQUISA NAS PRÁTICAS DOS PROFESSORES DA ESCOLA BÁSICA’- PARÂMETROS DE PESQUISA CIENTÍFICA DO PESQUISADOR DE SUA PRÁXIS DOCENTE – ARTICULANDO DIDÁTICA E EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA JACQUES THERRIEN, UECE O contexto de simpósio por ocasião do XVII ENDIPE incentiva a um debate em torno de questões que rondam o campo do ‘saber ensinar’ e que, contudo, parecem permanecer em espaços de periferia dos estudos científicos, embora fazem referências à dimensão da didática que articula a relação ensino e pesquisa. O ‘aprender a ensinar’, tanto na perspectiva da formação continuada como de estudos sobre a prática docente em contextos de sala de aula, tem seus fundamentos em referenciais teóricos e prático-empíricos que a ação reflexiva da racionalidade sistemática da pesquisa pode e deve identificar. Esse axioma permite sustentar que o percurso de formação científica do profissional de ensino propicia o desenvolvimento de aptidões que o habilitam a identificar os suportes teóricos imprescindíveis para a compreensão, explicação e sustentação de sua prática, constantemente confrontada à diversidade de suas experiências cotidianas de trabalho pedagógico situado. Postula-se, portanto, que processos de prática de pesquisa são inerentes à profissionalidade docente constituída por uma racionalidade que articula dialeticamente teoria e prática. Essas considerações pretendem explicitar o objeto dessa apresentação, a saber que a epistemologia da prática docente permeia os parâmetros da pesquisa científica do ‘pesquisador de sua práxis docente’, constituindo-se em referencial de análise e compreensão do saber ensinar, ou seja, do campo da didática. As reflexões a seguir não pretendem se fixar em sustentação de pressupostos ou hipóteses; situam-se nos caminhos do trabalho cientifico que incita a explicitação de dúvidas e ‘intuições’ que podem conduzir ao esclarecimento. Essa apresentação procede por um breve percurso articulado em torno de três elementos formulados como indagações: que racionalidade estrutura a ação pedagógica em contexto de ensino; que tipo de reflexividade caracteriza uma práxis de ensino produtora de aprendizagem autônoma; e, como estes elementos perpassam os pilares pedagógicos do ser educador, consolidando a integração teoria e prática fundante do pesquisador de sua práxis docente nos contextos de ensino e aprendizagem? Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00115 2 A racionalidade estruturante da ação pedagógica em contexto de ensino Dou início à minha apresentação com um aparente ‘jogo de palavras’ desenvolvido numa forma de raciocínio em torno de categorias recorrentes no campo da didática. A Didática trata do saber ensinar e do saber aprender. Essa relação contém múltiplos sentidos e significados que cabe a sujeitos singulares e sociais explicitar em conformidade com os contextos e os referenciais teóricos e práticos que lhes servem de suporte de interpretação. Na lógica formal de Aristóteles, o formato de silogismos permite estabelecer que: A didática trata do saber ensinar O saber ensinar trata do saber aprender Logo, a didática trata do saber aprender. Outro paralelo possível pode também referir-se ao campo da didática: A formação de professores abrange o aprender a ensinar O aprender a ensinar abrange o aprender a aprender Logo, a formação de professores abrange o aprender a aprender. Seria pertinente, portanto, afirmar ainda que na didática: O ‘saber ensinar’ requer o ‘aprender a ensinar’ O ‘saber aprender’ requer o ‘aprender a aprender’ A racionalidade subjacente a esse modo de argumentação objetiva e formal é sujeita a críticas procedentes de interpretações hermenêuticas diversas em decorrência dos sentidos e significados que sujeitos diferentes lhe atribuem; entram em cena os confrontos de referenciais de análise que privilegiam, seja as relações intersubjetivas da razão comunicativa, seja as relações objetivas da razão instrumental. Outras lógicas podem ser igualmente identificadas, possibilitando outras compreensões de fatores de transformação e movimentos do mundo dos humanos em tensões com o mundo dos objetos. A racionalidade que reconhece e articula as tensões dialéticas da relação teoria e prática, seus conflitos, contradições e negações, assim como as mediações nas compreensões e transformações do mundo da vida, é também constituinte do cotidiano da ação docente que ocorre em contextos situados e contextualizados. Racionalidade prática, neste entendimento, refere inicialmente ao modo como todo sujeito munido de razão identifica e articula seus conhecimentos e saberes para tomar decisões de ação, tendo assim condições de justificar os motivos que o levam a agir. No contexto em apreço, estamos referindo a uma atividade de reflexão profissional decorrente de uma formação que inclui, por natureza, o potencial Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00116 3 [capacidade, hábito] de análise sistemática e crítica do seu trabalho pedagógico situado em contexto de relações intersubjetivas de ensino e aprendizagem. Em estudos anteriores, apresentados por ocasião do X ENDIPE, nos detivemos sobre aspectos da racionalidade prática dos saberes da gestão pedagógica da sala de aula (Therrien & Therrien, 2000). Tratávamos de resultados de pesquisas com observação e análise dos motivos e justificativas de docentes em relação aos seus modos de intervenções pedagógicas em contextos de ensino. A pesquisa, conduzida para compreender e caracterizar a racionalidade subjacente à reflexividade da ação pedagógica, identificou importantes subsídios fundantes da razão prática e das lógicas que estruturam os processos dessa ação. Ao reconhecer que o sujeito reflexivo tem condições de explicitar as premissas que sustentam sua ação, ele pode reconstruir e redirecionar criticamente sua práxis. Fenstermacher (1988, 1994) referendado por Gauthier (1997) formula instigantes direções teóricas para caracterizar as premissas às quais os professores recorrem nos processos de decisão que estruturam a gestão pedagógica da sala de aula. Constitui-se o raciocínio prático que pode ser tomado como “um meio de compreender e explicar as ações”. Na concepção de Fenstermacher (1994:161) “o raciocínio prático designa atividades mais gerais e globalizantes como o pensamento, a definição de intenção e de ação, enquanto o argumento prático representa a elaboração formal do raciocínio prático”. Em resumo, a estrutura formal do raciocínio prático é composta por premissas que lhe conferem uma forma específica articulando quatro tipos de argumentos, os quais conduzem a uma decisão de ação ou a uma intenção de agir. São estas: premissas de valores que descrevem objetivos, princípios ou fins valorizados; premissas condicionais que formulam uma fundamentação ou uma concepção teórica explícita; premissas empíricas que trazem uma prova oriunda da experiência de vida ou de resultados de pesquisa empírica; e, premissas de situação que expõem os condicionamentos do contexto onde ocorre a ação (Fenstermacher, 1994:165-167). No raciocínio prático que fundamenta e estrutura a ação pedagógica do professor e seu discurso de ‘explicitação’ é possível discernir a expressão: de valores pedagógicos (de vida), de enunciados teóricos, de conhecimentos empíricos construídos na observação ou adquiridos na sua experiência pedagógica (passada e atual), e de considerações circunstanciaisligadas às peculiaridades da situação e do momento. Assim se delineia parte do nosso referencial para fundamentar a epistemologia da prática como base de uma compreensão didática centrada numa práxis crítica e Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00117 4 transformadora de ensino e aprendizagem, que mobiliza tanto o próprio sujeito mediador como o sujeito a quem se dirige a prática de ensino. A reflexividade que caracteriza uma práxis de ensino produtora de aprendizagem autônoma Entre os referenciais necessários para esclarecer e complementar dimensões fundantes da epistemologia da prática como abordagem de análise do saber ensinar, ou seja, de uma práxis crítica e transformadora por integrar teoria e prática em contexto situado, destacamos os estudos de Sacristã (1999) e Libâneo (2002), entre outros. São abordagens centradas particularmente em elementos referentes à formação docente para a reflexividade. Ao passar do enfoque da racionalidade do professor pesquisador para a reflexividade imanente à sua ação pedagógica recorremos a Zeichner (1993) que nos permite sustentar que o envolvimento sistemático, em atividades de pesquisa, favorece o desenvolvimento de racionalidades que dão suporte a práticas reflexivas. Estas são geradoras de questionamentos e argumentações, que conduzem à melhor compreensão dos significados dos saberes objetos do ensino, portanto, a aprendizagens mais significativas e autônomas. A indagação sobre que tipo de racionalidade articula os saberes e conhecimentos que fundamentam a práxis, se desdobra em nova pergunta: que reflexividade dinamiza e dá forma à articulação desses saberes? Sacristã (1999) afirma que a formação para a reflexividade permite alcançar níveis mais altos de racionalidade na prática. Por sua vez, Libânio (2002, p.138) observa que há sempre uma substantiva diferença e graus diversos de profundidade entre as reflexões que os seres humanos produzem. Trabalhos desenvolvidos por Sacristã (1999), comentados em estudos de Therrien e Nóbrega-Therrien (2013), identificam um esquema teórico ‘macro’ que permite dar suporte à análise de tipos de conhecimento, portanto, de racionalidades que movem a dinâmica da relação teoria-prática na ação educativa. Sacristã (1999, p. 177) se debruça sobre o conceito e as dimensões da reflexão, assim como a definição de três níveis de reflexividade que caracterizam os agentes da educação. Após estabelecer que o primeiro nível de reflexividade refira ao senso comum, esse autor reconhece que o segundo nível ocorre “como uma racionalidade mais depurada e elaborada, que se situa na interação recíproca entre o conhecimento cientifico e o conhecimento pessoal ou o compartilhado, sendo estes ligados à ação e às práticas sociais”. Desse modo Sacristã deixa claro que existem certas misturas e alguma continuidade entre o senso comum e a ciência e vice-versa. Ao mesmo tempo, Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00118 5 ele aponta que os fenômenos relacionados com a reflexividade de segundo nível são essenciais para compreender e orientar a educação e, nesse sentido, a prática docente. Ao adentrar a reflexividade de terceiro nível, registrada sob o titulo de “pensar como e sobre quem pensamos a educação”, ele estabelece que é preciso entender o que realizamos no trabalho pedagógico. Neste sentido, devemos ser conscientes de nossas referências de ação como sujeitos que fazem teoria em contextos de educação que são contextos sociais: “o domínio da teoria não pode ser desligado das práticas sociais” (Sacristã, 1999, p. 25). Libâneo (2002, p. 56-57), em estudo posterior ao de Sacristán, analisa a noção de reflexividade nos campos da Filosofia e da Pedagogia identificando, também, três níveis de reflexividade que conceitua como ‘três níveis de significados’. Para ele, é no terceiro significado (nível) que encontramos o que conceitua como reflexão dialética. “Há uma realidade dada, independente da minha reflexão, mas que pode ser captada pela minha reflexão”. É uma realidade que ganha sentido com o agir humano, isto é, uma realidade em movimento que necessita da elaboração de uma explicação do real. Compreender a ação educativa sob o ângulo da racionalidade prática e da reflexividade nos aproxima da epistemologia da prática como abordagem que reflete a integração teoria e prática dando sentido à uma práxis centrada na aprendizagem aos saberes no chão da sala de aula. São aportes de um movimento intrínseco ao cotidiano do professor pesquisador de sua práxis em transformação contínua e, portanto, de sua formação didática continuada no chão da sala de aula, ou seja, no seio de uma comunidade reflexiva e crítica. Os pilares pedagógicos do ser educador - a integração teoria e prática na didática Abordar a didática sob o enfoque da epistemologia da prática de ensino requer evidenciar as referências fundantes não somente de uma compreensão situada de práxis na intervenção pedagógica, como também da concepção da proposta curricular que contextualiza a ação docente. Em contexto de prática, o hábito reflexivo do professor pesquisador de sua práxis viabiliza a articulação de referenciais teórico- metodológicos que fundamentam os campos da didática e do currículo junto aos seus saberes experienciais de mediador de aprendizagem através de uma reflexividade crítica e transformadora. O referencial fundante dessa ação pedagógica se encontra no plano ontológico da Educação: que concepção de educação perpassa e direciona o processo reflexivo que dinamiza a prática/ação didática do professor? Para além do ‘como ensinar’ e do ‘como educar’ de uma compreensão estreita de didática, surgem sempre outras Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00119 6 indagações, antecedentes e subjacentes a estas primeiras: ‘para que ensinar’ e ‘para que educar’? Dúvidas que podem significar ‘porque educar’? Por fim, que concepções de educação movem o trabalho docente? Ao nos referir ao ‘hic et nunc’ (o agora) da ação didática pelo ângulo da epistemologia da prática postulamos um conjunto de elementos que permeiam a ação mediadora aos saberes e conhecimentos, e que devem ser desvelados. Revelar a intencionalidade da ação docente e dos seus fundamentos, além da ética da intervenção profissional, é de responsabilidade do próprio sujeito pedagógico, ou seja, do professor pesquisador de sua prática docente. Reflexividade e ação investigativa sobre a prática e adidática são vetores em articulação necessária. Nos focos anteriores desse ensaio abordei alguns elementos que explicitam a base de argumentação da relação entre didática, epistemologia da prática e o professor pesquisador de sua prática. Os fundamentos ontológicos e epistemológicos da práxis pedagógica, na dialética das tensões do movimento emancipatório do ser humano, necessitam de explicitação por parte do profissional de educação movido por uma reflexão científica. No escopo dessa apresentação concebida como convite a um debate colaborativo, podemos nos limitar à formulação resumida de elementos e proposições essenciais. Vou me deter, portanto, em três dimensões da formação continuada em didática do profissional de docência, procurando ressaltar o que chamo de categorias constituintes de sua estrutura e que, portanto, nunca deixam de ser referências fundantes no seu percurso histórico. Constituem-se em pilares da formação do educador/professor /mediador: a ONTOLOGIA que configura o campo da Educação a EPISTEMOLOGIA constituinte da Pedagogia e suas delimitações no Currículo a PRÁXIS constituinte da Ação Pedagógica da mediação do professor educador Articulada em enunciado de tese com o intento de incentivar o debate e a reflexão, essa trilogia pode ter a seguinte formulação: o contexto da Educação com a formação para o Ensino envolve o encontro da Didática (Práxis Pedagógica) com o Currículo constituindo a interface de um território delimitado pela epistemologia da teoria e da prática, na sombra ontológica do ‘ser cognoscente’. A compreensão dessa afirmação requer breves considerações sobre ONTOLOGIA e Educação. A ontologia tem por objeto o estudo do ser e seu sentido na sua totalidade, considerando suas múltiplas determinações Nossas reflexões abordam o campo da educação cuja centralidade é o ser cognoscente movido pela busca do saber e da compreensão sobre o ser social na sua totalidade e complexidade. Nesta perspectiva o Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00120 7 termo educação deve ser abordado como um construto1 porque refere a um campo das ciências humanas expressando uma dimensão de totalidade na plenitude do ser humano. O fenômeno da educação se caracteriza pela sua complexidade cuja compreensão vai sendo desvelada através de abordagens dos mais diversos campos disciplinares das ciências, incluindo análise multi, trans e interdisciplinares, bem como multirreferenciais por apresentar possibilidades quase inesgotáveis de facetas. A EPISTEMOLOGIA, por sua vez, estuda de modo crítico o método científico, as formas lógicas e os raciocínios da ciência na elaboração dos postulados e das hipóteses sobre as quais os cientistas elaboram suas teorias. Esse campo científico constitui um pilar para a análise das teorias construídas historicamente por cientistas ou autores de referência com o objetivo de explicar ou compreender um fenômeno e os elementos que legitimam sua estrutura. A crítica epistemológica permite delimitar os quadros teóricos desvelando seus contornos e limites na totalidade que pretendem cercar, identificando a sua incompletude em relação a esta. Seu objetivo é avaliar a pertinência de um processo científico e seus limites. A Pedagogia enquanto categoria abrangente da formação de sujeitos centrada no ensino e na aprendizagem abarca as propostas curriculares e sua centralidade nos processos de formação. Entendemos que no campo da pedagogia uma proposta curricular constitui uma determinada concepção de formação e gestão de saberes em vista à aprendizagem no mundo da vida, com abrangência maior ou menor de totalidade. As propostas curriculares, portanto, tornam-se objeto da análise epistemológica que identifica as determinadas abordagens e concepções que as estruturam, organizam e delineiam; são partes do campo ontológico da educação visto na sua totalidade. A epistemologia permite identificar os elementos teóricos constitutivos das propostas curriculares na sua grande diversidade, complexidade e variedade de abordagens as quais expressam concepções e compreensões de conduções e direções dos processos educacionais. Delineia-se assim a epistemologia das teorias curriculares. A AÇÃO EDUCATIVA E PEDAGÓGICA realizada em contexto ‘situado’ e prático de ensino/aprendizagem circunda o campo da DIDÁTICA no qual se manifesta a práxis de mediação. A ação pedagógica dos processos de ensino e aprendizagem é moldada por concepções e técnicas com suporte teórico-metodológico. Constitui-se um espaço que permite observar o ‘currículo na prática’ com seus determinantes de ação. Essa afirmação requer considerar alguns elementos da prática educativa. Inicialmente podemos destacar a racionalidade prática da intervenção educacional de ensino/aprendizagem movida e estruturada: seja pela razão 1 Construto designa em ciência um conceito teórico não observável. Exemplos de construtos são: personalidade, amor, medo. Tais conceitos são usados na linguagem comum, mas para se tornarem construtos científicos necessitam de uma definição clara e de um embasamento empírico. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00121 8 instrumental como interação objetiva e suas implicações de uma ciência manipuladora de objetos; seja pela razão comunicativa como interação de sujeitos (intersubjetiva) que considera as determinações sociais e individuais do ser humano em contexto de dialogicidade. Um segundo elemento condicionante da intervenção educacional refere à formação do educador/professor. Considero que o profissional de educação, o professor, por ofício deve se tornar detentor de uma formação que o qualifica em dois campos científicos de atuação concomitante: a área disciplinar na qual domina os conhecimentos e saberes específicos de sua prática; e, a área de ensino e aprendizagem, referendada pela pedagogia, na qual domina o saber ensinar como mediador, nos moldes da proposta curricular do curso onde atua. As reflexões desenvolvidas até esse ponto permitem desvelar elementos cuja dinâmica científica amplia os contornos de compreensão e desenvolvimento dos elementos em foco. Os desdobramentos decorrentes do enfrentamento científico da complexidade que caracteriza o campo da educação e consequentemente da pedagogia, particularmente em decorrência das abordagens da inter, trans e multidisciplinaridade, e da multirreferencialidade nas propostas curriculares e nas práticas didáticas, põem em relevo o papel da epistemologia na análise e compreensão dos fenômenos em foco: o Currículo e a Didática na formação do educador. O Quadro a seguir ilustra a complexidade da articulação entre as categorias relacionadas à Educação e à formação do professor educador (mediador) discutidas anteriormente. A representação gráfica ilustra intersecções da unidade constituída pelo fenômeno da Educação abordado pelo ângulo da Pedagogia que articula o Currículo e a Didática. O Quadro estrutura o que consideramos os pilares de análise da formação e do trabalho docente: a ontologia, a epistemologia e a metodologia. Os pilares da formação do educador/professor (mediador) Ontológico Epistemológico Metodológico Educação Pedagogia /Currículo Pedagogia/Didática As múltiplas determinações da totalidade do ser humano Os constituintes da aprendizagem A práxis de mediação no trabalho intersubjetivo de Ensino / Aprendizagem Um construto teórico Epistemologia das teorias curriculares de referência Campo teórico Epistemologia da prática pedagógica ‘situada’ Dialética teoria/prática Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00122 9 O primeiro pilar, ontológico, refere à Educação cuja compreensão envolve múltiplas determinações da totalidade do ser humano; um fenômeno cuja complexidade e abrangência constituem um construto teórico de definição abrangente referente a um fenômeno com embasamento empírico. O pilar epistemológico abriga a Pedagogia como campo científico que, portanto tem o suporte teórico de uma diversidade de abordagens e concepções passíveis de análise crítica em relação à racionalidade de seus fundamentos e à sua abrangência na totalidade do fenômeno da educação. O campo da pedagogia inclui o Currículo e os estudos para fundamentação e concepção de propostas curriculares esua complexidade em vista à aprendizagem. Neste pilar a epistemologia se propõe a analisar e identificar as teorias curriculares de referência, subjacentes à multiplicidade de propostas que sustentam o desenvolvimento do campo da educação e da formação pedagógica. Os debates, as concepções e as análises sobre currículo e propostas curriculares permanecem no campo teórico, assegurando validade, sustentação e cientificidade às ações propostas. O terceiro pilar, denominado de metodológico, põe em foco a integração teoria e prática em vista a uma práxis. Ao abordar a pedagogia na sua relação com a didática penetramos nas atividades de mediação no trabalho intersubjetivo de Ensino/Aprendizagem cujas abordagens teóricas são sujeitas à análise da ação situada e contextualizada de uma relação ‘empírica’ entre um mediador e um aprendiz. Neste espaço, a relação de interação tem possibilidades diversas de concepções e efetivação, como revela a configuração da razão objetiva distinta da razão comunicativa e dialógica. Neste pilar situamos o encontro das teorias emanadas do currículo junto às concepções teóricas que fundamentam as abordagens pedagógicas da didática, ou seja, da ação educativa realizada em contexto ‘situado’ e prático de ensino/aprendizagem. Constituem-se assim referenciais teóricos de base que a análise epistemológica crítica deve desvendar junto aos fatores que conferem cientificidade à articulação dos elementos em foco. O contexto da ação, contudo, que caracteriza o campo da didática apresenta contornos próprios cuja estrutura e racionalidades tornam-se objetos que integrantes da análise epistemológica. Penetramos numa arena de debates que muitas vezes a priori reduzem a ação didática a fatores de análise da tradição analítico-pragmatista alheia ao rigor dos conhecimentos científicos consolidados em outras abordagens. A reflexividade crítica de ação situada não dispensa os substratos teóricos das racionalidades que fundamentam as propostas de intervenção didático-pedagógica. As transformações observadas na pós-graduação em educação deram espaço a olhares metodológicos alternativos com status de cientificidade e de renovação. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00123 10 Ademais, quando o contexto de ação pedagógica integra práticas de relações intersubjetivas dialógicas, os saberes experienciais do mediador de aprendizagem constituem elementos necessários e insubstituíveis para a análise crítica dos métodos, das intervenções e das práticas situadas. Completa-se assim o cenário de um contexto que expressa o movimento dialético da teoria e da prática em direção a uma práxis. Constitui-se, portanto, a validade da epistemologia da prática docente como fator científico e fundante de análise crítica, situada e ética, da ação/intervenção pedagógica. Consideramos que aos poucos os novos contextos da Pós-Graduação em Educação vão propiciando a consolidação da epistemologia da prática na práxis pedagógica como dimensão integradora da relação teoria e prática no campo da Didática e da formação do educador. Articulando educação, didática e epistemologia da prática pedagógica Finalizando esse ensaio, algumas sínteses das categorias abordadas podem ser cunhadas no contexto dessa apresentação. O termo Educação constitui uma noção complexa expressa como um construto científico próprio à ontologia do ser na sua totalidade: é o processo de construção e de re-construção criativa do sujeito e do mundo social onde convive. Esse fenômeno constitui um desafio para o Educador profissional cuja identidade se completa na Pedagogia que o qualifica para a compreensão das mediações necessárias na aprendizagem aos saberes e conhecimentos Reconhecendo que o educador se forma educando (formação continuada), postula-se que a formação do formador de formadores torna-se contínua no cotidiano do seu trabalho pedagógico no qual ele aprimora sua práxis pela reflexão crítica que lhe proporciona a epistemologia da prática como análise permanente do seu modo de ser educador. Nossa reflexão se deteve sobre a Didática que se manifesta e é vivenciada no trabalho pedagógico como práxis situada em relações intersubjetivas de ensino e aprendizagem. A dimensão técnica e metodológica da didática é inseparável da proposta curricular que integra compreensões epistemológicas de acesso aos conhecimentos e saberes científicos que a práxis viabiliza na sombra ontológica do ser humano e sua emancipação. Insistimos em re-situar a compreensão da epistemologia da prática no contexto da didática. A produção científica sobre o tema registra uma disputa polêmica que articula duas áreas de conhecimento: a filosofia e a educação. Os pressupostos e argumentos que fundamentam as concepções possibilitam divergências de interpretações revelando um debate ainda incipiente em torno de uma temática Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00124 11 promissora nos quadros da pós-graduação em educação. Epistemologia da prática pedagógica, neste ensaio, refere à análise do conjunto de saberes oriundos tanto de teorias científicas do campo da educação, como da experiência profissional situada, com reflexividade crítica, dialógica e ética de sujeitos comprometidos no trabalho pedagógico. Essa análise implica o desafio da articulação crítica de parâmetros racionais constituídos de elementos teóricos e pragmáticos por sujeitos sociais únicos no campo da educação, ou seja, com autonomia profissional. O texto intentou, ao mesmo tempo, destacar a importância e a consolidação da epistemologia da prática na práxis pedagógica como dimensão integradora da relação teoria e prática no campo da Didática. Tendo em vista os fins declarados de debates produtivos nos ‘Encontros de Didática e Práticas Educativas’ (ENDIPE’s), as proposições e reflexões apresentadas fazem parte do movimento sempre incompleto e inconcluso da pós-graduação em educação que os diálogos acadêmicos e profissionais aperfeiçoam. Reformulo, portanto, a intencionalidade de minha intervenção nesse simpósio como um modo de evidenciar um enunciado. Ao desvelar e identificar os referenciais teórico-metodológicos que moldam seus saberes experienciais e fundamentam sua prática didática cotidiana, o profissional de educação com hábitus da reflexão sistemática e crítica proporcionada pelo exercício de pesquisar sua própria prática docente, adéqua constantemente suas intervenções pedagógica ao contexto de relações intersubjetivas de ensino e aprendizagem, proporcionando sentidos e significados aos conteúdos de sua ação. Constitui-se o movimento da práxis educativa na aprendizagem aos saberes e conhecimentos no mundo da vida proporcionada pela dinâmica de transformação tanto do próprio educador mediador como do estudante/aprendiz. Sua mola propulsora repousa num processo de formação continuada ao saber ensinar, à didática fundada na epistemologia da prática. Não podemos ignorar que o caminhar da ciência admite a ‘dúvida sistemática’ na busca do ‘esclarecimento’ pós Descartes: “Dubito, ergo cogito, ergo sum”! “Duvido, portanto penso, então existo!” REFERÊNCIAS BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas. Ijui: Unijui, 2001. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00125 12 CRÈVECOEUR, J.J. Et si nous apprenions à douter de tout? Néosanté. #27, 2014. Consulta: http://creer-une-meilleure-vie.com/neosante-27-et-si-nous-apprenions-a-douter-de-tout/, em 24/08/14. FENSTERMACHER, G.D. The place of science and epistemology in Schon‟s conception of reflective practice. In: Grimmett, P.P. et Erickson, G.L. (ed) Reflection in teacher education. New York: Teachers College Press. 1988. p.36-46. ______. & RICHARDSON, V. L’explicitation et la reconstruction des arguments pratiques dans l’enseignement. Cahiers de la recherche en éducation. 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A globalização carrega consigo forte tendência homogeneizadora no que se refere a produtos, trocas, formas de consumo, padrões culturais e à disseminação das tecnologias digitais. Dentro de interesses mercadológicos em nome do desenvolvimento econômico, os organismos multilaterais influenciam reformas educativas e, no caso dos países emergentes, políticas de proteção social à pobreza e de reconhecimento da diversidade social, de modo a tornar os pobres mais produtivos. Os processos de individuação realçam a diversidade e põem peso no papel das práticas socioculturais nas aprendizagens, ao se constituírem, também, como elementos do processo de ensino-aprendizagem. Desse modo, junto com a homogeneidade global, acentua-se a diversidade sociocultural em que emergem múltiplas culturas e múltiplos sujeitos, trazendo desafios aos agentes dos processos educativos, especialmente, no de ensino-aprendizagem. Tais processos são particularmente importantes nos estudos da teoria histórico-cultural, considerando-se que esta teoria tem como uma de suas mais fortes premissas a influência das práticas socioculturais na gênese e desenvolvimento de processos mentais. Estas questões já encontram lugar na produção acadêmica no campo da sociologia, das políticas educacionais, da teoria crítica do currículo, incidindo, também, no debate sobre o conteúdo do conhecimento didático e do seu papel na formação de professores. Surgem propostas variadas em torno formas de convivência social e recusa da discriminação, de discussão sobre igualdade de direitos e respeito às diferenças, práticas de formação ética e plural e de conquista da cidadania, reavivamento dos temas 1 Doutor em Educação pela PUC de São Paulo. Professor do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós- Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00127 2 transversais nas escolas, programas compensatórios de ações socioeducativas, etc. Essas propostas provêm tanto no âmbito das políticas neoliberais (das orientações principalmente do Banco Mundial) quanto no âmbito das orientações progressistas de variado naipe. Em qualquer caso, ainda são insuficientes contribuições das pesquisas que venham a ajudar os professores a integrar, no trabalho de sala de aula, os conteúdos, os motivos dos alunos e a diversidade sociocultural, viabilizadas em práticas de ensino. Na prática escolar, são mantidos em momentos separados o trabalho com os conteúdos e a atenção aos contextos socioculturais e institucionais nos quais os alunos participam e vivenciam. Ou seja, os especialistas em pedagogia e os professores não vêm conseguindo conectar, no ato de ensinar, práticas socioculturais e práticas pedagógicas. Quando estas são levadas em conta, aparecem mais como formas de organização da escola do que práticas pedagógico-didáticas ou, quando muito, como atividades “extracurriculares” ou temas transversais como se, de um lado, estivessem os conteúdos e as atividades “escolares” e, de outro, as práticas sociais e cotidianas. Este texto aborda possibilidades de introduzir as práticas socioculturais e, dentro delas, a diversidade social e cultural, no cerne da didática, das didáticas e das práticas de ensino. Problematiza-se e dá-se encaminhamento a condições do processo de escolarização e do tratamento das matérias de ensino em face da diversidade social e cultural dos alunos, de modo a sugerir o papel da didática na formação de identidades em contextos culturais diversos; na atenção à diversidade sociocultural e aos processos de inclusão e exclusão na escola e na vida em sociedade; às condições e contextos para aprender a pensar e atuar com conceitos com base na participação e na interlocução. A primeira questão a ser abordada visando identificar o papel da didática na articulação entre conteúdos e práticas socioculturais é enfrentar uma questão prévia: para que servem as escolas. Com efeito, uma visão sobre os objetivos e formas de funcionamento da escola é requisito para um posicionamento sobre o papel da didática, da organização escolar, do currículo, da formação de professores, etc. No segundo tópico, assume-se uma posição em relação às funções sociais e pedagógicas da escola e o lugar da didática. No terceiro, propõe-seuma didática para o desenvolvimento humano articulada com a diversidade social. 1) A didática e as respostas à pergunta: para que servem as escolas? Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00128 3 Essa pergunta é título de um artigo do pesquisador inglês Michael Young (2007), pondo em relevo as tensões e conflitos de interesses na sociedade mais ampla em relação aos objetivos e funções da escola. O autor discute os questionamentos de educadores e sociólogos críticos em relação ao papel das escolas, a seu ver equivocados, bem como as políticas governamentais neoliberais que visam adequar a escola às necessidades da economia, posição igualmente equivocada. Para ele, a tensão entre demandas políticas/econômicas e realidades educacionais é uma das maiores questões educacionais do nosso tempo. Ao longo do artigo, ele desenvolve a ideia de que as escolas existem para o propósito específico de promover a aquisição de conhecimentos e que a negação desse propósito equivale a “negar as condições de adquirir ‘conhecimento poderoso’ para os alunos que já são desfavorecidos pelas suas condições sociais” (YOUNG, 2007, pp. 1288-1294). Young argumenta que não há contradição entre democracia e justiça social e o papel das escolas em promover a aquisição de conhecimentos. Situando esse debate no contexto brasileiro, cabe reconhecer a existência de uma diversidade de respostas à pergunta mencionada, o que tem levado a visíveis desacordos entre pesquisadores educacionais, funcionários de órgãos públicos e militantes de associações científicas e profissionais acerca dos objetivos e formas de funcionamento da escola pública. O problema não é novo, visto que os objetivos da escola expressam interesses de grupos e disputas de poder em âmbito internacional e nacional, bem como os embates teóricos no campo das ciências humanas e da educação. A questão relevante, no entanto, é que tais objetivos se materializam em currículos, projetos pedagógicos, formas de organização e gestão da escola, formas de condução do processo de ensino- aprendizagem, formação de professores, práticas de avaliação. Distintos objetivos para a escola se refletem, também, em diferentes significados de “qualidade de ensino” nos meios institucional e acadêmico. Desse modo, o dissenso em relação aos objetivos da escola e aos distintos significados de qualidade de ensino contribui para a debilidade das políticas públicas para a escola, tal como ocorre em nosso país. Numa tentativa de captar posicionamentos no meio educacional brasileiro nos últimos vinte anos acerca de objetivos e funções da escola, tal como se observa na produção acadêmica e na docência em cursos de formação de professores, pode-se apontar ao menos três linhas de orientação curricular em relação às finalidades da escola: a) a orientação dos organismos multilaterais, especialmente do Banco Mundial, para um Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00129 4 currículo de resultados imediatistas, associado a uma escola de integração social; b) a orientação sociológica/intercultural de atenção à diversidade social e cultural; c) a orientação sócio-histórico-cultural que busca articular a formação cultural e científica com as práticas socioculturais. A primeira orientação, como se sabe, tem sido dominante no sistema de ensino brasileiro em decorrência da subordinação das políticas educacionais a orientações de organismos internacionais multilaterais (LEHER, 1998; EVANGELISTA, 2013; LIBÂNEO, 2013). Os documentos desses organismos ressaltam dois modelos de currículo. O primeiro é o currículo instrumental, ou de resultados imediatos, que se caracteriza como um conjunto de conteúdos mínimos necessários ao trabalho e emprego, na verdade um “kit” de habilidades de sobrevivência para redução da pobreza e adequar os indivíduos às exigências do desenvolvimento econômico. O segundo é modelo de currículo de convívio e acolhimento social focado na experiência corrente dos alunos, na inclusão social, nos ritmos individuais de aprendizagem, frequentemente reduzido ao provimento na escola de vivências de integração e socialização social visando formar para um tipo de cidadania baseado na solidariedade e na contenção de conflitos sociais. Na verdade, esses dois currículos se complementam e constituem a orientação curricular de sistemas escolares estaduais e municipais, com o monitoramento do Ministério da Educação. Muitas das orientações baseadas nesses modelos foram assumidas pelo governo brasileiro desde 1990 aos dias atuais e há razões para crer que, na atual gestão do MEC, elas estão incorporadas às políticas educacionais oficiais (LIBÂNEO, 2012a, 2013). As outras duas orientações curriculares de cunho sociocrítico estão comprometidas com a luta pela escola pública e gratuita para todos. A orientação sociológica/intercultural defende um currículo de experiências educativas, isto é, a formação por meio de experiências socioculturais vividas em situações educativas (acolhimento da diversidade social e cultural, práticas de compartilhamento de diferentes valores e de solidariedade com base em experiências cotidianas). Nesta orientação curricular, o foco está mais na prática social que acontece em contextos socioculturais mais imediatos, e menos nos saberes sistematizados ou na prática propriamente pedagógica. Esta visão menos universalista do currículo se aproxima de concepção pragmática tal como formulada por J. Dewey (escola como prolongamento simplificado e organizado das atividades sociais cotidianas), da concepção humanista de Paulo Freire, assim como de propostas Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00130 5 pedagógicas fundamentadas na teoria curricular crítica, nos estudos culturais, na proposta intercultural, na pedagogia do cotidiano, entre outras. Embora não declaradamente, setores do MEC incorporam boa parte dessas ideias já que, desde a primeira gestão do Governo Lula a diversidade social tornou-se o princípio orientador das políticas e diretrizes do MEC, acentuando-se cada vez mais na atualidade. A outra orientação curricular de cunho crítico defende um currículo assentado na formação cultural e científica em interconexão com as práticas socioculturais. Tendo como pressuposto que a escola é uma das mais importantes instâncias de democratização da sociedade e de promoção de inclusão social, cabe-lhe propiciar os meios da apropriação dos saberes sistematizados constituídos socialmente, como base para o desenvolvimento das capacidades intelectuais e a formação da personalidade, por meio da atividade de aprendizagem socialmente mediada. Considera-se, ademais, que a escola recebe sujeitos em sua diversidade social e cultural e, assim, faz-se necessário ligar os conteúdos às práticas socioculturais e institucionais (e suas múltiplas relações) nas quais os alunos estão inseridos. Esta concepção é, geralmente, fundamentada em autores da teoria histórico-cultural, para quem a formação das funções psicológicas superiores decorre da atividade sócio-histórica e coletiva dos indivíduos expressa em múltiplas formas de mediação cultural do processo do conhecimento, incluindo aí o papel central do ensino na promoção do desenvolvimento humano. Conforme comentado, essas orientações acabam por definir distintos referenciais de qualidade de ensino, os quais, por sua vez, influenciam os modos de conceber atividades no âmbito da escola e das salas de aula e, portanto, o lugar da didática.As duas primeiras orientações, ainda que resultem de posições com distintas premissas educacionais e distintos propósitos políticos, têm em comum o fato de ajudarem pouco no provimento das condições psicológicas e pedagógico-didáticas para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos alunos. Seu principal problema é negar validade ao conhecimento universal, isto é, ao papel da internalização da experiência sociocultural da humanidade na formação humana, mesmo que a segunda sustente a atenção à diversidade social e cultural, desiderato caro ao pensamento pedagógico progressista. O currículo instrumental, posto em prática numa escola organizada para a proteção da pobreza, não propicia os meios de desenvolver processos de pensamento que impulsionem a reflexividade e a criticidade já que está assentado em competências e habilidades dissociadas de conteúdos e de significados. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00131 6 O currículo focado em experiências educativas por vivências socioculturais com base na experiência corrente dos alunos traz consigo, sem dúvida, muitas virtudes. Com efeito, a diversidade social e cultural e suas características (diferenças de classe social, étnico-raciais, de linguagem, políticas, físicas, sexuais, as relações desiguais de poder, diferentes redes de saberes, as diversas práticas institucionais), estão presentes na dinâmica das atividades escolares. Reconhece-se nesse currículo uma visão social das questões pedagógicas, em que a aprendizagem está associada à participação em interações sociais por meio de atividades socioculturais que formam o contexto de significações a serem interiorizadas. No entanto, esse tipo de orientação curricular tende a perder o foco das funções sociais e pedagógicas da escola à medida que põe em segundo plano os conteúdos, recaindo-se nos mesmos limites das propostas neoliberais já criticadas. Esta posição tende, também, a rejeitar, deliberadamente ou não, as implicações psicológicas do ato de aprender, ou seja, os processos internos de apropriação de conhecimentos e habilidades, os quais são viabilizados pelo ensino. Em relação a essa crítica, é preciso esclarecer que os aspectos sociais do processo de ensino e aprendizagem são tanto condições como pontos de apoio no processo gradual de interiorização de conhecimentos e habilidades. Seguramente, a aprendizagem tem uma base social e histórica em que “um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal” (VYGOTSKY, 1984, p.64). No entanto, cingir a aprendizagem apenas à participação em interações sociais não é suficiente para essa interiorização, porque a aprendizagem envolve uma transformação interior, uma mudança qualitativa nos processos cognitivos, requerendo uma atividade psicológica interna. Com efeito, segundo Leontiev, “a apropriação de conceitos, das noções, dos conhecimentos, supõe a formação na criança das operações mentais adequadas” (LEONTIEV, 2004, p. 349) implicando a atuação do adulto e uma atividade interna de aprendizagem. A escola, nessa visão, é mais do que um lugar de se vivenciar experiências, por mais democráticas e acolhedoras da diversidade que sejam, pois cabe-lhe tratar os objetos, a realidade, como objetos de pensamento, para além da experiência cotidiana. Vê-se que as posições progressistas em educação colocam os objetivos e as formas de funcionamento da escola num campo de tensões: por um lado, a exigência social e democrática de escolarização formal a todas as crianças e jovens; por outro, a necessidade de as escolas se organizarem de forma adequada para o acolhimento da diversidade social e cultural expressa pelas diferenças individuais e sociais entre os Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00132 7 alunos (LIBÂNEO, 2013). Tal polarização, no entanto, tende a enfraquecer a condição da escola de fazer justiça social principalmente para a população pobre que tem na escola a chance de apropriação do conhecimento teórico-conceitual e de desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral. Será viável uma saída pedagógica que aposte na superação desta polarização? A condição para isso é que os educadores aceitem a imprescindibilidade dos conteúdos como referências para o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos e, ao mesmo tempo, saibam integrar no currículo as práticas sociais vivenciadas pelos alunos, nas quais está presente a realidade da desigualdade social, acompanhada da diversidade sociocultural. Em outras palavras, trata-se de viabilizar pedagogicamente a articulação entre conteúdos científicos significativos e as práticas socioculturais dos alunos a partir de seus contextos de vida. Evidentemente não se deseja o retorno a práticas que caracterizam a escola monocultural, de memorização de informações, das tarefas pouco estimuladoras da atividade mental, o ensino individualista, a avaliação homogeneizadora. A aposta é numa proposta pedagógica que propicie instrumentos conceituais aos alunos e promova mudanças qualitativas no seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos alunos e, ao mesmo tempo, articule os conceitos científicos aos conceitos que trazem do meio local e da vida cotidiana. É nessa perspectiva que a didática e as didáticas disciplinares ganham seu sentido como ciência profissional do professor. 2) Uma posição sobre as funções sociais e pedagógicas da escola Pensar o papel da didática na formação de professores, especialmente para assegurar o aprimoramento dos saberes docentes, implica, como vimos, numa tomada de posição sobre objetivos e formas de organização da escola. Conforme já comentado, é nosso entendimento que a escola não é nem meramente lugar de provimento de conhecimentos instrumentais e imediatistas nem somente um lugar de acolhimento da diversidade social e integração social dos pobres. Sua função social prioritária é de proporcionar formação cultural e científica tendo em vista o desenvolvimento humano, integrando no currículo as práticas socioculturais que caracterizam suas vivências. A posição defendida neste texto é de que o cumprimento da justiça social por meio da atividade de aprendizagem e do ensino - conforme a ideia vigotskiana de que a função primordial do ensino é promover e ampliar o desenvolvimento da capacidade intelectuais, - implica entender que atividade de aprendizagem apoia-se no conjunto de Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00133 8 saberes produzidos na experiência sócio-histórica da humanidade, denominado pelo pedagogo russo V. Davídov, de conhecimento teórico-científico. No quadro conceitual de Davídov (1988), “conhecimento teórico” ou “conhecimento teórico-científico” não é o mero saber especulativo, ele é, ao mesmo tempo, produto do desenvolvimento histórico e processo mental. Refere-se a categorias mentais que tornam possível lidar com os objetos de conhecimento da realidade, enquanto procedimento lógico da mente. O conhecimento teórico refere-se aos conceitos gerais produzidos pelo nosso pensamento e possíveis de serem aplicados a situações particulares. Na escola, trata-se, portanto, de introduzir os alunos no mundo do conhecimento e do aprimoramento de sua capacidade de pensar e, ao mesmo tempo, à medida que a escola lida com sujeitos diferentes, considerar no ensino a coexistência das diferenças, a interação entre indivíduos de identidades culturais distintas. Eis, então, três ingredientes absolutamente imprescindíveis para que o ensino esteja à alturadessa missão da escola: a) o desenvolvimento das capacidades intelectuais por meio dos conteúdos; b) as características individuais e sociais do aluno; c) os fatores socioculturais e institucionais da aprendizagem. A posição defendida aqui se aproxima da proposição de Gimeno Sacristán: uma escolarização igual, para sujeitos diferentes, por meio de um currículo comum (2000). Por um lado, trata-se de assegurar o direito à semelhança, vale dizer, à igualdade, pelo provimento da formação cultural e científica a todos como condição para o desenvolvimento cognitivo, afetivo, moral, estético. Por outro, trata-se de considerar a diferença, pois a formação cultural e científica se destina a sujeitos diferentes. A diferença aqui é encarada não como uma excepcionalidade, mas como condição concreta do ser humano e das situações educativas, ponto de partida para uma aprendizagem com sentido para o sujeito que aprende. É pertinente, também, trazer a posição de Boaventura Santos para quem a desigualdade material está profundamente entrelaçada com a desigualdade não material, ou seja, as desigualdades sociais e diferenças possuem íntima relação com o acesso ou não ao conhecimento (SANTOS, 1997). A aprendizagem escolar, portanto, deve ser um fator de ampliação das capacidades dos alunos de promover mudanças, em si e nas condições objetivas em que vivem, fundamentando-se na ética da justiça social. Para isso, trata-se de articular a formação cultural e científica com as práticas socioculturais (diferenças, valores, redes de conhecimento, etc.) de modo a promover interfaces pedagógico-didáticas entre o Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00134 9 conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano. Esta proposição será desenvolvida mais adiante. 3) Uma didática para o desenvolvimento humano articulada com a diversidade sociocultural A teoria histórico-cultural, na tradição do pensamento de Vigotski e seguidores, possibilita compreender a didática como um conhecimento que busca a unidade entre ensino e aprendizagem. Essa unidade é bem representada pelo significado de instrução na língua russa (obutchenie) como a ação de ensinar e aprender. Ou seja, a instrução implica a atividade autônoma do aluno e a orientação e intencionalidade de outra pessoa no processo de aprendizagem (PRESTES, 2010, p.188). Para Vigotski, boa instrução (ensino) é a que se antecipa e mantém o foco na próxima etapa do desenvolvimento, ao despertar e provocar “toda uma série de funções que se encontram em estado de maturação na zona de desenvolvimento próximo” (VYGOTSKY, 2007, p. 360), guiando o processo de desenvolvimento. Pode-se afirmar, assim, que a didática tem como especificidade epistemológica o processo instrucional que orienta e assegura a unidade entre o aprender e o ensinar na relação com um saber, em situações contextualizadas, nas quais o aluno é orientado em sua atividade autônoma pelos adultos e colegas para apropriação dos produtos da experiência humana na cultura e na ciência, visando o desenvolvimento humano. Este processo é, também, designado mediação didática, isto é, mediação das relações do aluno com os objetos de conhecimento (processo de ensino- aprendizagem), em contextos sociais e culturais concretos, em que se articulam o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento. Reconhece-se aí, na perspectiva histórico- cultural, o caráter social do ensino em que está presente a intencionalidade de orientação da atividade dos alunos e, ao mesmo tempo, a atividade pessoal do aluno em sua relação com o processo de conhecimento, implicando especialmente um processo de mudança, de reorganização e enriquecimento do próprio aluno, na dependência de sua participação ativa nesse processo. Sendo assim, a didática assegura a unidade entre o ensino e a aprendizagem, articulando dialeticamente condicionantes socioculturais da atividade de ensino e processos internos da atividade de aprendizagem. Observa-se que o processo de ensino-aprendizagem envolve a apropriação pelo indivíduo de conhecimentos e modos de ação acumulados na experiência social e histórica da humanidade. Segundo Vigotski, esta apropriação implica a transição de Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00135 10 conhecimentos do plano social externo (atividade social coletiva) para o plano individual interno, o que implica o desenvolvimento de processos internos de interiorização, em que o social se incorpora no individual (VYGOTSKY, 1984, p. 64). Ou seja, por um lado, os processos psicológicos superiores estão enraizados no desenvolvimento social e cultural, por outro, a apropriação da experiência social humana histórica ocorre por meio de uma atividade psicológica interna propiciada pelo processo de ensino-aprendizagem. A dinâmica deste processo envolve a formação de conceitos científicos para além dos conceitos empíricos, cuja peculiaridade consiste em que a principal função da escola é atuar no desenvolvimento do pensamento dos alunos, introduzindo-os no domínio do caráter abstrato e generalizante dos saberes, de modo que os alunos aprendem formando abstrações, generalizações e conceitos. A mediação didática consiste, assim, em estabelecer as condições ideais à ativação do processo de aprendizagem, ou seja, assegurar as melhores condições possíveis de transformação das relações que o aprendiz mantém com o saber. Desse modo, a atividade pedagógica somente é pedagógica se ela mobiliza as ações mentais dos sujeitos, visando a ampliação de suas capacidades cognitivas e a formação de sua personalidade global. Essa formação de ações mentais ou novos usos de uma ação mental requer, por parte dos alunos, uma atividade reflexiva e, da parte dos professores, a mediação didática, precisamente a intervenção intencional na formação de processos mentais do aluno. O processo de apropriação que vimos mencionando ocorre em contextos de práticas sociais, culturais e institucionais, dada a natureza social das funções psicológicas superiores. Desse modo, o ensino acontece em meio a práticas correntes no entorno social e nas próprias situações de aprendizagem na escola e na sala de aula, dando a configuração do ambiente social de aprendizagem. A atuação na zona de desenvolvimento próximo, portanto, supõe o contexto de “vivências” do aluno, ou seja, os contextos socioculturais e institucionais que atuam na sua subjetividade. Não se trata, pois, de um processo que surge e termina na aprendizagem individual do aluno. Com isso, as atividades de uma disciplina na sala de aula orientadas para a formação de processos mentais por meio dos conteúdos científicos precisam estar articuladas com as formas de conhecimento cotidiano vivenciadas pelos alunos. Eis como as práticas socioculturais e institucionais, onde estão inseridas a diversidade humana e as diferenças, devem integrar-se nas práticas pedagógico-didáticas. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00136 11 Podemos, numa breve síntese, concluir que a questão sobre o “campo do didático” se resolve, em primeira instância, pelo papel do ensino em criar as condições para assegurar a relação do aluno com um saber (mediação, compartilhamento de significados), levando a uma mudança qualitativa nas relações com esse saber promovendo, assim, o desenvolvimento humano. A atividade de ensino que visa a organização das formas de relação com um saber é permeada pela atividade social coletiva e pela atividadede aprendizagem individual. Além disso, essas atividades se dão em contextos de práticas socioculturais, as quais atuam nas formas de aprendizagem e nos processos de subjetivação. Desse modo, a didática articula, simultaneamente, a lógica dos saberes a ensinar (dimensão epistemológica), a lógica dos modos de aprender (dimensão psico- pedagógica) e a lógica das interfaces com as práticas socioculturais. Essas três lógicas repercutem no trabalho dos professores em sala de aula. A lógica dos saberes a ensinar implica a análise e a organização dos conteúdos com base em conceitos nucleares. A lógica do processo ensino-aprendizagem pela qual se trata de atuar no desenvolvimento das capacidades psicológicas dos alunos por meio da interação pedagógico-didática com os conteúdos. A lógica das implicações dos contextos socioculturais e institucionais nas aprendizagens implica fazer interagir com os conteúdos as condições históricas e socioculturais, cotidianas e locais, vivenciadas pelos alunos. Portanto, não há didática fora dos conteúdos e dos processos de desenvolvimento do pensamento por meio dos conteúdos. Não há didática fora da relação do aluno com o conteúdo (fora da transformação das relações do aluno com o conteúdo). Não há didática separada das práticas socioculturais e institucionais em que os alunos estão envolvidos (LIBÂNEO, 2012b). Didática, didáticas, práticas de ensino O referencial que acabo de expor fornece o fundamento tanto à didática quanto às didáticas específicas, duas disciplinas com conteúdos próprios mantendo, no entanto, interdependência e articulação entre si, uma vez que ambas têm por objeto o estudo do processo de ensino-aprendizagem. Ambas estão vinculadas a formas de relação com saberes e aos modos de sua internalização pelos alunos em ambientes próprios de aprendizagem. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00137 12 A didática é uma disciplina pedagógica, ou seja, um ramo da pedagogia, ao lado de outras disciplinas pedagógicas como a teoria da educação, a teoria da organização escolar, a teoria da escola, a psicologia educacional, a sociologia educacional, entre outras. Faz a ponte entre as disciplinas de fundamentação teórica e as práticas de ensino, provendo a reflexão teórica sobre o ensino-aprendizagem proporcionada pela teoria pedagógica e outras ciências da educação. Desse modo, reúne características do processo de ensino-aprendizagem em sua relação com as especificidades epistemológicas de cada matéria de ensino. Constitui-se, assim, como didática básica (diferente de “geral”) que se constitui como teoria e prática do processo de ensino- aprendizagem, generalizando princípios, metodologias e procedimentos obtidos a partir das ciências da educação (especialmente a psicologia e a sociologia) e dos conhecimentos resultantes de pesquisas concernentes às próprias disciplinas específicas. Em síntese, a didática tem por objeto o estudo do processo de ensino-aprendizagem nos âmbitos teóricos e práticos implicados no domínio de conhecimentos escolares. As didáticas específicas (ou disciplinares), por sua vez, e em conexão com a didática básica, têm como objeto de estudo as peculiaridades do processo de ensino de cada uma das disciplinas no que se refere a objetivos, conteúdos e métodos conforme os níveis de ensino a atender. Elas abordam o processo de ensino-aprendizagem em sua relação imediata com os conteúdos das disciplinas: a natureza e gênese do conteúdo a ensinar, os modos de ensiná-lo levando em conta as particularidades de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos e a organização das situações didáticas. Se, por um lado, a didática básica tem nas metodologias de ensino específicas uma importante fonte de referência para formar seu conteúdo, por outro, as disciplinas específicas necessitam o aporte da didática que traz para o ensino-aprendizagem as contribuições da teoria da educação, da teoria do conhecimento, da psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem, da sociologia da educação, da filosofia, dos métodos e procedimentos de ensino da tradição pedagógica. Juntando esses elementos, a didática generaliza as manifestações e leis de aprendizagem para o ensino das diferentes disciplinas. Ao efetuar essa tarefa de generalização, a didática se converte em uma das bases essenciais das didáticas específicas. Sendo assim, não se pode a rigor falar de uma didática “geral”, nem de métodos gerais de ensino aplicáveis a todas as disciplinas. A didática somente faz sentido se estiver conectada à lógica científica da disciplina que é ensinada. Ela oferece às disciplinas específicas o Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00138 13 que é comum e essencial ao ensino, mas respeitando suas peculiaridades epistemológicas e metodológicas (LIBÂNEO, 2008, p. 67). As práticas de ensino (estágio) são desdobramentos necessários dessas duas disciplinas, ou seja, elas incorporam o processo e o resultado da formação profissional proporcionada por essas disciplinas e pelo currículo com um todo. São como momentos experienciais em que os futuros professores estabelecem contato mais direto com o campo de trabalho profissional, ou seja, uma aproximação à realidade escolar em suas várias facetas tendo em vista a reflexão sobre essa mesma realidade para o enriquecimento da dimensão prática da teoria. As práticas de ensino (e estágio) devem ser organizadas em concomitância com a didática/didáticas, pois formam com elas uma unidade. Também é desejável que todas as outras disciplinas do currículo se articulem com as práticas de ensino. Porém, é em conexão direta com a didática/didáticas que devem ser pensadas e desenvolvidas em um esforço coordenado tanto da instituição formadora quanto das escolas-campo onde se realizam os estágios. Didática e diversidade sociocultural Vejamos mais de perto o papel dos fatores socioculturais e institucionais da aprendizagem. A permanência da exclusão social em nossa sociedade tem levado ao realce cada vez maior do tema da diversidade social e cultural. A exclusão social se manifesta em situações muito evidentes de pobreza, de formas de discriminação (cultural, de raça, gênero, religião, e outras), como também em formas de exclusão escolar. Não há como ignorar as implicações desta realidade no debate em torno dos objetivos e formas de funcionamento da escola e, por consequência, no processo de ensino-aprendizagem. No Brasil, a introdução da problemática da cultura no campo do ensino fez ressaltar o tema da diferença e, dentro dele, da diversidade e do multiculturalismo. A cultura passou a ser considerada não apenas como formas de expressão da vida em sociedade e um subproduto da estrutura social, mas como um campo de atuação humana, um espaço que constitui realidades, um espaço de lutas. Com isto, a problemática cultural e seus elementos como as diferenças de classe social, étnicas, de linguagem, políticas, físicas, sexuais, as relações desiguais de poder, o conhecimento cotidiano dos alunos, as redes de saberes, as diversas práticas institucionais em que os alunos crescem e se desenvolvem, passaram a ser integrados nos modos de compreender a dinâmica da escola. É isso que, no contexto da diversidade, tem sido chamado de multiculturalismo – ou seja, a expressão dessas Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00139 14 realidades culturais – e interculturalidade, que é a análise dessa problemática na educação e a busca de formas deintervenção propositiva na realidade multicultural (CANDAU, 2005). A posição defendida neste texto é de que não deve haver incompatibilidade entre a formação cultural e científica que visa o desenvolvimento das capacidades intelectuais, e a consideração do conhecimento cotidiano dos alunos e dos fatores socioculturais na aprendizagem. Com efeito, a definição de didática apresentada anteriormente mostra que o processo de ensino-aprendizagem está sempre situado e referido a um contexto histórico-cultural, portanto, envolvendo também as práticas vivenciadas pelos alunos em seus contextos de vida. A questão da relação entre a didática e a diversidade sociocultural está em saber como articular o papel da escola enquanto lugar de formação dos processos mentais por meio dos conteúdos, e as práticas socioculturais em que está implicada a diversidade. Seguindo a tradição de Vygotsky, a interação entre indivíduos em práticas socioculturais e institucionais desempenha papel fundamental na formação de instrumentos psicológicos ou sistemas conceituais, já que o ser humano interioriza formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico. Esta ideia está em estreita relação com o desenvolvimento dos conceitos científicos em sua conexão com os conceitos cotidianos (espontâneos). Escreve Vigotski: Os conceitos científicos crescem para baixo por meio dos cotidianos. Os conceitos cotidianos crescem para cima por meio dos científicos (...). Podemos dizer que a força dos conceitos científicos se manifesta em uma esfera integralmente determinada pelas propriedades superiores dos conceitos: a compreensão consciente e a voluntariedade. Justamente nesta esfera é que os conceitos cotidianos das crianças mostram sua debilidade, pois são fortes na esfera da utilização espontânea, situacional-significativa e concreta, na esfera da experiência e do empirismo. O desenvolvimento dos conceitos científicos começa na esfera da compreensão consciente e da voluntariedade e continua mais além, crescendo para baixo, até à esfera da experiência pessoal e do concreto. O desenvolvimento dos conceitos espontâneos começa na esfera do concreto e empírico e se move em direção às propriedades superiores dos conceitos: a compreensão consciente e a voluntariedade. A relação entre o desenvolvimento destas duas linhas oposta revela indubitavelmente sua verdadeira natureza: trata-se da relação entre a zona de desenvolvimento próximo e o nível atual de desenvolvimento (2007, p. 377) Os conceitos cotidianos são formados nas vivências das práticas socioculturais. Desse modo, as práticas socioculturais e institucionais que crianças e jovens Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00140 15 compartilham na família, na comunidade e nas várias instâncias da vida cotidiana são, também, determinantes na formação de competências, na apropriação do conhecimento e na identidade pessoal, sendo que elas são caracterizadas na escola tanto como contexto da aprendizagem quanto como conteúdo (HEDEGAARD, 2004, p.25). Isto quer dizer que o desenvolvimento do pensamento de um aluno que ocorre no processo de apropriação dos conteúdos científicos, precisa estar articulado com as formas de conhecimento cotidiano das quais ele participa na família, na escola ou na comunidade local. Escreve Hedegaard: Ao considerar as práticas como importantes para a compreensão do uso de ferramentas, isto implica que a aprendizagem seja conceitualizada dentro de um contexto em que as tradições e práticas devem ser vistas como parte das condições de aprendizagem. (...) Diferenças nas práticas em diferentes instituições dão à criança diferentes competências e a competência da criança é avaliada de forma diferente em diferentes instituições, porque tais práticas fazem diferentes exigências para a criança (Ib. p.26). Há, pois, uma relação entre o desempenho escolar e as práticas das quais os alunos participam, o que significa dizer que a aprendizagem (incluindo o êxito ou insucesso das aprendizagens) está influenciada pela interação entre os alunos e as práticas socioculturais que vivenciam na família, nas relações correntes no local em que vive, nas escolas. Ou seja, crianças e jovens estão na escola para adquirir competências para a vida adulta, como ler e escrever, contar, etc., de modo que o papel da escola é integrar os conceitos científicos com os conceitos cotidianos trazidos de casa e do meio social, elevando os conceitos cotidianos a um patamar mais elevado de desenvolvimento cognitivo. Hedegaard designa essas relações de “duplo movimento” do ensino: Na abordagem do duplo movimento, enfatizamos as relações entre conceitos cotidianos já adquiridos pelas crianças, conceitos da matéria e conhecimento local. O principal ponto do duplo movimento no ensino é criar tarefas de aprendizagem que podem integrar o conhecimento local com relações conceituais nucleares de uma matéria, de modo que o aluno possa adquirir o conhecimento teórico a ser utilizado em suas práticas locais. (...) Na abordagem do duplo movimento, o plano de ensino do professor deve avançar de características abstratas e leis gerais de um conteúdo para a realidade concreta, em toda a sua complexidade. Inversamente, a aprendizagem dos alunos deve ampliar-se de seu conhecimento pessoal cotidiano para as leis gerais e conceitos abstratos de um conteúdo (HEDEGAARD E CHAIKLIN, 2005, pp. 69-70). Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00141 16 Em síntese, nosso entendimento é de que a relação entre a didática e a diversidade social e cultural se expressa na articulação entre os conteúdos da matéria e as práticas socioculturais vivenciadas pelos alunos em seu cotidiano e em sua comunidade. É nessas práticas que se manifestam a diversidade social e cultural, as redes de conhecimento, as particularidades culturais, as experiências e vivências. Nas ações de ensino, portanto, deverão ocorrer as interfaces pedagógico-didáticas entre o conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano - o que caracteriza a “abordagem do duplo movimento” - ou seja, são situações de ensino organizadas de modo a ligar o conhecimento teórico-conceitual ao conhecimento pessoal vivido pelos alunos em suas práticas cotidianas na família e na comunidade e utilizando essa conexão para mobilizar os motivos dos alunos para as diferentes matérias. O duplo movimento consiste em o professor utilizar o conteúdo do conhecimento cotidiano e local no desenvolvimento do conhecimento teórico- conceitual, e o uso deste conhecimento teórico-conceitual em relação ao conhecimento cotidiano e local (Id., 2005, p. 81). Desse modo, o conhecimento do conteúdo como conhecimento teórico geral por parte dos alunos, possibilita a eles aplicar os conceitos internalizados nas suas situações concretas de vida. Segundo os autores: Nesta forma de ensino, o conhecimento teórico-conceitual e o conhecimento local podem tornar-se integrados, de modo que o conhecimento teórico-conceitual possa enriquecer os conhecimentos pessoais da criança, usando-o na compreensão da prática local cotidiana. Na perspectiva radical-local, o professor parte da compreensão da criança e as orienta para tarefas e problemas ligados ao conteúdo que, assim, torna-se significativo para a criança e motivador para a compreensão tanto dos princípios teóricos da matéria quando dos problemas da prática local e cotidiana”(Ib.). Dito de outra maneira, o processo de ensino-aprendizagem, cuja referência é o conhecimento teórico-científico (no
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